Eleições EUA

William Waack: Lição do debate americano

Disputa indica uma crise constitucional, já que Donald Trump só aceita um resultado: sua vitória

Não são nada boas as evidências trazidas pelo debate entre Donald Trump e Joe Biden sobre o estado geral da política americana. O debate trouxe a cara feia do que até há pouco era impensável: uma crise constitucional provocada por uma eleição de resultados contestados. Com Trump dizendo que só aceita um: o da sua vitória.

O que acontece no sistema político americano pesa de forma desproporcional no resto do mundo. Especialmente quando o país que serviu de referência – “a cidade de luzes no topo da colina”, na clássica definição – vai deixando de ser exemplo positivo.

Os Estados Unidos são um país muito grande, muito rico, muito poderoso e que exerceu grande atração como modelo de vida pública e virtudes civis (há séculos, por sinal). Mas o debate da terça feira fez saltar aos olhos como se acelerou essa “virada para dentro”, o “deixa prá lá” em relação ao que se assumia como sendo o papel dos Estados Unidos de “nação líder” (pode-se gostar ou detestar esse papel, mas não dá para ignorar).

Nota-se na falta de conteúdo substantivo do debate a presença de uma espécie de doença infecciosa espalhada de tal maneira a ponto de grandes temas de formulação de políticas domésticas e internacionais mal receberem menções – uma das poucas foi sobre desmatamento da Amazônia, provavelmente pela sensibilidade que Joe Biden julga detectar no eleitorado democrata. É como se fosse uma “amnésia” em relação ao resto do planeta, assinalam comentaristas americanos.

Um deles é Adam Garfinkle, fundador e editor da imperdível publicação “The American Interest” (que tem no seu quadro de colaboradores nomes como Francis Fukuyama, Walter Russel Mead, Robert D. Kaplan, Niall Ferguson). Ele vai ao ponto de dizer que a sociedade e política americanas vivem um “estado geral de loucura” do qual Donald Trump não foi o iniciador. Mas que ajudou a acelerar, passando a representar a “quintessencia” de um tipo de desorientação geral típico de quem se perde numa sala de espelhos.

Para Garfinkle, constatar que Trump está ativamente empenhado em solapar as instituições democráticas americanas (seu destaque favorito é a politização do Departamento de Justiça) não significa dizer que o outro lado é “bom”. “Os democratas podem parecer relativamente menos perigosos para normas e princípios americanos, mas suas divisões internas e seus julgamentos equivocados não os tornam admiráveis. Por serem meramente incompetentes em vez de imorais não os torna bons na linha do tradicional provérbio de que dois erros não compõe um acerto”, escreveu.

Já é lugar-comum afirmar que no ambiente político americano (no brasileiro também, diga-se de passagem) as pessoas não conseguem concordar em sequer quais são os fatos. Não é de hoje que a política se tornou um espetáculo de imagens rápidas, mais compatíveis a eventos de esportes brutais, nos quais o entretenimento tem total precedência. Quando tudo vai se limitando a 140 toques, e ao “joinha” no pé da postagem, esse tipo de debate acaba sendo o espelho da perda do hábito da leitura e, sobretudo, da reflexão.

É o tipo da situação na qual tanto democratas quanto republicanos colocam o “sound bite” (a “sonora”, na gíria televisiva brasileira) adiante de qualquer substância, as teorias conspiratórias na frente de qualquer abordagem racional ou de substância. De novo, não é Trump o “inventor” desse tipo de fenômeno – muito conhecido também na nossa política. Mas é ele quem se esmera em tirar todo partido possível do desrespeito às regras não escritas de convivência dentro da civilidade e do respeito à opinião alheia e, sem dúvida, da mentira descarada.

A julgar pelo que ele mesmo disse no debate, Trump terá de ser forçado para fora da Casa Branca, mas mesmo uma clara e inequívoca derrota dele não fará o relógio voltar para trás. O que pareceu perdido no espetáculo do debate de terça à noite foi o que tanto fascinou sobretudo comentaristas europeus desde o século 18: o espírito de comunidade, de virtudes civis e de dedicação ao bem comum da tal “cidade das luzes no alto da colina”.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


El País: 'Se Trump vence eleições via ação judicial, será nocivo e pode atiçar Bolsonaro', diz Anthony Pereira

Anthony Pereira, do King’s College, vê risco de radicalização da extrema direita no mundo com vitória do republicano, mas celebra oposição da sociedade civil

Felipe Betim, do El País

Anthony Pereira, cientista político e professor da King’s College de Londres, onde coordena o centro de estudos sobre o Brasil, olha com preocupação para o que chama de “nacional-populismo” em ascensão no mundo, especialmente quando mira as eleições dos Estados Unidos. “Donald Trump vem dizendo que, se perde, a eleição terá sido fraudulenta. Não apresenta indícios, mas muitos eleitores estão acreditando. Além do resultado, o próprio procedimento e a confiança nas instituições estão em jogo”, explicou em entrevista ao EL PAÍS por videoconferência, às vésperas de sua participação no evento online Cidadania em Cena, com discussões sobre a democracia, promovido pelo Instituto Votorantim, na terça-feira. “Se Trump ganha via ação judicial, o efeito para democracia mundial é muito nocivo, porque mostra que se pode ganhar dessa forma. Pode atiçar Jair Bolsonaro e movimentos [de extrema direita] na Europa, porque o custo de fazer movimento do tipo fica mais baixo”.

Pereira, que acompanha a realidade brasileira de perto há mais de 30 anos, aponta para algumas características do Governo Bolsonaro que o colocam dentro desse grupo nacional-populista em ascensão. “Esse tipo de populismo define a nação de uma maneira excludente. Em discursos do presidente e de ministros como Ricardo Salles, Ernesto Araújo e, antigamente, Abraham Weintraub, eles pegam uma maioria, seja étnica ou religiosa, e falam em nome da nação por meio desse grupo dominante”, argumenta. Pereira se refere sobretudo às falas em que esses dirigentes se mostram “muito desconfortáveis com a ideia de diversidade, com a ideia de povos indígenas sendo um grupo distintos merecendo reconhecimento e respeito por suas terras e tradições e maneiras de viver”.

O alinhamento, explica, “é com a maioria das pessoas que não estão lutando para preservar o meio ambiente e, ao invés de conciliar interesses distintos a partir de uma visão de desenvolvimento sustentável, apostam em uma visão predatória que desconta os direitos dessa minoria, dizendo que é importante desenvolver a qualquer custo”. Embora haja uma exclusão étnica e religiosa no discurso das atuais autoridades brasileiras e um crescente autoritarismo do Governo, Pereira diz evitar a palavra fascismo. “Nos fascismos italiano e alemão havia uma forte mobilização cívico-militar, com pessoas enfrentando outras na rua e cometendo atos de violência”, argumenta. “Acho que as milícias são uma força protofacista com potencial de se mobilizar dessa forma, mas até agora as vejo mais como grupos interessados em lucrar para si próprios”.

Sobre o discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU, ele acredita que a comunidade internacional passou a enxergar o Brasil com “ceticismo”. Enquanto os dados indicam que as queimadas na Amazônia e no Pantanal estão aumentando, o presidente “não reconhece o problema e nega sua existência”, além apresentar alguns fatos “falsos” em seu discurso.

Entre os temas de pesquisa de Pereira estão as ditaduras militar brasileira, argentina e chilena e o tratamento que a Justiça desses países dava para os dissidentes políticos, criando o que chama de “legalismo autoritário”. Agora, o professor reflete sobre a presença dos militares como integrantes da burocracia no Governo Bolsonaro. Pereira afirma ser difícil enxergar os militares que ocupam ministérios como “figuras totalmente técnicas”, como eles se apresentaram e são vistos por parcela importante da opinião pública. “Eles estão fazendo uma aposta política e sinto que sabem que estão correndo risco, já que a imagem das Forças Armadas está ligada a um Governo que não responde aos anseios da população”, explica. Para o especialista, isso “pode ser positivo porque podem lutar para limitar os danos e buscar sair dessa situação sem a reputação rasgada”.

O brasilianista também opina que até os militares da reserva que estão no Governo “dificilmente pensam como civis”, mesmo que afastados da cadeia de comando da corporação. Assim, enxerga a defesa de interesses do Exército, como a aproximação com os Estados Unidos para troca de informações de inteligência e acesso ao sistema de defesa norte-americano, e dentro da máquina pública. “Podem defender um orçamento maior para eles ou agir de forma a beneficiar os interesses corporativos”.

“São mais de 6.000 militares nas várias camadas da burocracia federal, e alguns ainda estão na ativa, então existe potencial conflito de interesse”, argumenta. Acredita, porém, que a instituição possui correntes políticas diferentes, como em outras instituições. "Nem todos os militares são necessariamente bolsonaristas, isso é algo que temos que reconhecer.” Da mesma forma, acredita que existe dentro das Forças Armadas aqueles com mais afinidade à ideia de conservação da Amazônia e que consideram que “mais desmatamento gera atenção indesejável para a região”.

Para ele, Bolsonaro respondeu aos anseios de uma sociedade que passou a enxergar que todas as instituições estavam corrompidas. “Existe uma tentação de que precisamos provocar uma ruptura para limpar a democracia e começar de novo. Mas não resolve as coisas. Melhor qualidade de democracia significa mais democracia, e não menos”, defende. Ainda assim, diz enxergar uma “mobilização contrária” ao bolsonarismo no seio da sociedade civil, com pessoas “mais zelosas sobre as instituições e com pluralidade”. Ele acredita que as eleições municipais de 2020, e também as de 2022, podem refletir essa diversidade de interesses. “No longo prazo sou otimista. Vejo a disposição de muitas pessoas, de muitos jovens, de defender e participar das instituições democráticas”.


Monica De Bolle: As eleições nos EUA

Uma eventual vitória dos democratas nos EUA trará imensos desafios para o trumpismo de Bolsonaro

Esse artigo será publicado no dia seguinte do primeiro debate presidencial entre Trump e Biden. Portanto, escrevo sem poder dizer quem foi melhor ou pior, sem poder discorrer sobre eventuais gafes e mentiras, sem nada poder falar sobre o comportamento de cada um. Contudo, algo me parece quase certo nesses tempos em que a polarização não mais se dá no plano político, mas no plano das realidades: o debate pouca diferença fará nos resultados de novembro.

A polarização da realidade, tema de estudo recente a ser publicado no prestigiado periódico American Economic Review (ver Alesina, Alberto, Miano, Armando, e Stefanie Stantcheva (2020) “The Polarization of Reality”), está entre nós. Não mais se trata de posicionamentos políticos e/ou ideológicos distintos e dos juízos de valor a eles associados. Esse tipo de polarização foi atropelado por outro bem mais nefasto, aquele em que cada pessoa tem o seu mundo, a sua realidade. Para alguns indivíduos, a realidade é que não existe covid-19 – trata-se de uma grande conspiração do “Estado profundo” (“deep state”) para, bem, não se sabe articular muito bem para o quê. Parte dos que não acreditam na existência do vírus condenam o uso de máscaras e identificam nos democratas o maior perigo para a estabilidade norte-americana: “vão invadir os subúrbios!”; “vão roubar nossas casas!”; “armemo-nos contra a investida dos comunistas!”. Para ser honesta, o outro lado não é muito melhor. Vivo nos EUA, em Washington DC, uma bolha democrata. Republicanos são vistos como seres inferiores, de intelecto comprometido, vis e desalmados. Exagero um pouco, mas não muito.

Quando a polarização se dá no plano das ideias, ainda é possível ter a esperança de que consensos se formem. Afinal, boa parte das ideias têm algum tipo de convergência ou algum elemento em comum. Nesses casos, tais elos servem para trazer à mesa pontos de vista aparentemente inconciliáveis. Contudo, quando a polarização se dá na realidade que cada um vê como a verdadeira, não há possibilidade de consenso, convergência, ou qualquer tipo de trégua no embate permanente. Realidades distintas necessariamente colocam “o outro” como um alienígena, ser estranho que merece ser tratado com suprema desconfiança. Assim está a sociedade norte-americana. O Brasil está chegando lá com velocidade assustadora.

A polarização da realidade não permite que eleitores cruzem fronteiras, ainda que não gostem muito do candidato que representa melhor sua visão do universo – universo mesmo, não mundo. Por essa razão, o debate entre Trump e Biden não haverá de mexer muito nos votos de certa maneira já pré-determinados. O mesmo vale para a vultosa série de reportagens administrativas sobre as manobras de Trump para não pagar seu imposto de renda nos últimos vários anos. Para os democratas, essa é mais uma prova do que já decidiram a respeito da personalidade do atual presidente dos EUA. Para os republicanos, trata-se de nada mais do que mais uma caça às bruxas dos “progressistas”, a somar-se às investigações sobre o envolvimento de Trump com os russos e ao impeachment decidido pela Câmara e rejeitado no Senado.

Resta, portanto, observar a inédita convulsão política em torno das eleições de novembro. Haverá crise constitucional? Será que Trump vencerá na noite da apuração dos votos apenas para perder dias mais tarde após serem contados os votos por correio? E os votos por correio, serão eles usados por Trump para declarar fraude eleitoral? Será a Suprema Corte – que acaba de perder a grande Ruth Bader Ginsburg, afetuosamente RBG – incumbida de dar a palavra final sobre o vencedor das eleições? E será que até lá Trump terá conseguido emplacar sua juíza indicada, provocando reviravolta ideológica na Corte?

É impossível exagerar o grau de incerteza, de turbulência política e social, associados a essas eleições. O que dá para afirmar é que, sem sombra de dúvida, a vitória dos democratas, seja para a presidência dos Estados Unidos, seja na conquista da maioria no Congresso, seja em ambas, trará imensos desafios para o trumpismo de Jair Bolsonaro.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Ricardo Noblat: Trump põe em xeque a confiança dos americanos na democracia

Biden venceu o debate, segundo pesquisa de rede de televisão

Nunca antes na história dos Estados Unidos um presidente da República pôs em xeque a confiança popular no sistema eleitoral e na própria democracia como Donald Trump, ontem, no primeiro dos três debates que travará com o senador Joe Biden, candidato do Partido Democrata, e vice de Barack Obama durante 8 anos.

Trump denunciou que as eleições de novembro próximo estão sendo fraudadas para impedi-lo de se reeleger, culpou os democratas e recusou-se a antecipar sua posição caso seja derrotado. Biden afirmou que aceitará o resultado, qualquer um. Trump calou-se mesmo quando provocado mais de uma vez.

Pesquisa da Rede de Televisão CBS apontou Biden como vencedor do debate – 48% a 41%. A diferença de sete pontos percentuais é a mesma das pesquisas mais recentes de intenção de voto. Na prática, isso pode significar que o debate não mexeu com a pequena parcela dos eleitores que ainda se dizem indecisos.

Seguramente, foi o pior debate entre candidatos à presidência dos Estados Unidos desde o primeiro transmitido pela televisão entre John Kennedy (Democrata) e Richard Nixon (Republicano) no início dos anos 60 do século passado. Nixon perdeu. Kennedy não completou o mandato porque morreu assassinado a tiros.

Trump comportou-se como um moleque de rua disposto a ganhar a briga aos gritos ou na mão. Biden, como um senhor respeitável e idoso, desacostumado com o estilo agressivo do adversário. Mas, em alguns momentos, Biden também bateu em Trump, a quem acusou de racismo, chamou de palhaço e mandou fechar a boca.

Durante uma hora e meia, enquanto Biden falava olhando para a câmera, Trump falava olhando para ele. Interrompeu-o o tanto que pôde, e quando advertido pelo mediador do debate, bateu boca com o mediador. Poucas vezes, Biden conseguiu completar seu raciocínio. E perdeu as melhores chances de encurralar Trump.

Uma delas foi quando o mediador perguntou sobre quanto cada um pagou de Imposto de Renda no ano passado. Biden respondeu que pagou US$ 299,3 mil. Trump negou-se a responder. Segundo o jornal The New York Times, Trump pagou apenas US$ 750 em 2016 e 2017, menos do que um professor de ensino médio.

O debate de pouco serviu para que os americanos façam uma ideia de como será um segundo governo Trump ou o primeiro de Biden. O Brasil entrou em cena por causa da devastação da Amazônia. Biden prometeu US$ 20 bilhões para combater a devastação e disse que haverá retaliações se ela continuar.

Trump, de quem o presidente Jair Bolsonaro se diz amigo e admirador, preferiu o silêncio.


Hélio Schwartsman: Trump e o espírito santo

Ou ele é um dos piores empresários do país ou um sonegador contumaz

Num furo histórico, o jornal The New York Times obteve as declarações do imposto de renda de Donald Trump, que, contrariando uma tradição de décadas entre candidatos e presidentes, ele sempre recusara mostrar. O resultado é arrasador.

Em 2016, ano em que foi eleito, ele pagou US$ 750 em impostos federais, uma ninharia não apenas para um suposto bilionário, mas para qualquer contribuinte. Eu próprio, no ano em que passei como "fellow" numa universidade americana, recebendo uma bolsa, gastei mais do que ele em tributos federais.

E fica pior. Trump pagou tão pouco porque alega sofrer enormes prejuízos em seus negócios. Se diz a verdade, é um dos piores empresários do país; se mente, é um sonegador contumaz. Não obstante, analistas não prognosticam nenhum efeito devastador sobre a corrida eleitoral. O presidente já disse que a reportagem é "fake news", e seus apoiadores tendem a acreditar nisso.

Parece haver uma classe de políticos que é quase invulnerável a escândalos e declarações absurdas. São às vezes chamados de candidatos teflon, pois nada grudaria neles. Trump está nessa categoria, assim como Bolsonaro, Lula, Maluf, Ademar de Barros. Eles sobrevivem a coisas como fama de ladrão, condenações judiciais e podem sem temor defender o indefensável. Não raro transformam tais passivos em ativos, que vão compondo uma espécie de mitologia pessoal. Por quê?

O primeiro a ensaiar uma resposta foi o sociólogo alemão Max Weber. Para ele, algumas lideranças, que chamou de carismáticas, são postas à parte do universo das pessoas comuns e passam a ser tratadas, ao menos por seus seguidores, como se tivessem poderes especiais ou mesmo sobre-humanos. Não é coincidência que Weber tenha ido buscar o termo "carisma" na teologia cristã. Só o espírito santo explica por que alguns "escolhidos" se livram tão facilmente de pecados que seriam fatais para políticos mais normais.


Pablo Ortellado: E se Trump decidir ficar?

Presidente americano quer deslegitimar voto pelo correio que pode dar vitória a democrata

Faltando pouco mais de um mês para as eleições presidenciais, os Estados Unidos podem ver o atual presidente não reconhecer eventual derrota e se negar a fazer uma transição pacífica caso a eleição se decida com os votos pelo correio.

Trump foi questionado duas vezes, recentemente, se se comprometia com uma transição pacífica de poder se vier a perder as eleições; uma em entrevista à Fox News, em julho, e outra em entrevista coletiva na Casa Branca, na última quarta-feira (23). Nas duas ocasiões, preferiu não se comprometer. Na convenção do partido Republicano, em agosto, disse que só perderia a eleição se houvesse fraude.

Em 2016, mesmo tendo vencido, Trump acusou Hillary Clinton de ter se beneficiado de milhões de votos de imigrantes ilegais —alegação feita sem nenhum embasamento.

Nas últimas semanas, Trump tem dado em média quatro declarações diárias colocando em dúvida a confiabilidade do voto postal. Esse tipo de voto, no qual o eleitor recebe as cédulas com antecedência e as envia pelo correio, é utilizada desde o século 19 e tem um nível de segurança aceitável.

Na verdade, esse ou qualquer outro tipo de fraude eleitoral é muito infrequente nos Estados Unidos.

Levantamento do Centro Brennan, ligado à Universidade de Nova York, mostrou que fraudes apuradas variam de 0,0003% a 0,0025% dos votos, o que, no universo de uma eleição presidencial, com cerca de 155 milhões de eleitores, equivale a menos de 3,9 mil votos —uma quantidade quase certamente incapaz de afetar o resultado final.

Apesar disso, o fantasma da fraude no voto postal pode gerar um perigoso impasse.

Em tempos normais, não há diferença significativa na opção pelo voto por correio entre eleitores democratas e republicanos, mas durante a pandemia pesquisas têm mostrado que democratas --que consideram a Covid mais grave —pretendem fazer mais uso do voto pelo correio.

A diferença é tão grande que simulações da empresa de dados Axios dão como altamente provável que a apuração com os votos presenciais dê vitória parcial a Trump, mas, após a contagem dos votos pelo correio, Biden saia eleito.

A incerteza é como Trump vai agir no intervalo entre a publicação do resultado parcial e do resultado final.

Reportagem da revista The Atlantic mostra que líderes do partido Republicano estudam, em alguns cenários, declarar suspeição das eleições, de modo que deputados estaduais determinem qual vai ser o voto de todo o Estado —uma possibilidade prevista na Constituição, mas jamais colocada em prática, e que pode jogar o país numa crise sem precedentes.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Marcus André Melo: Na eleição norte-americana, o ganhador leva tudo

EUA: polarização nacional, eleições locais

A campanha presidencial nos EUA virou um jogo de apostas altíssimas agora que Trump poderá ter maioria estável na Suprema Corte, em um pleito que provavelmente será judicializado. Mas, se o pleito é nacional, de importância inédita, a disputa é fragmentada, estadualizada.

Isso se deve à importância no colégio eleitoral dos "swing states" —estados com muitos delegados e onde há equilíbrio de forças. Espécie de relíquia institucional, tem sobrevivido a 700 emendas constitucionais apresentadas para sua eliminação, que tiveram apoio massivo, como discuti neste espaço.

Países que copiaram os EUA nas suas constituições eliminaram o colégio já no século 19, e outros no século 20, como a Argentina (1995) e o Chile (1920).

A instituição é exemplo de regra majoritária ("winner takes all") aplicada a eleições presidenciais, mas o raciocínio vale para as legislativas.

As chances de vitória no colégio e derrota no voto popular têm origem dupla: a) o ganhador no estado escolhe todos os delegados da jurisdição: uma vitória por uma margem de 1% produz um ganho de 100%; b) o número de delegados em cada estado é a soma do número de deputados federais e senadores, o que favorece os de menor população.

Entre nós, na República Velha, valia a mesma lógica, mas para as eleições legislativas: o mais votado em cada distrito levava a totalidade das vagas em disputa (que variava de 1 a 4). Utilizamos também no Segundo Reinado distritos de um representante, como nos EUA hoje. O impacto da regra fica claro no resultado final. No limite, um partido que obtiver um terço dos votos nacionalmente, mas não for o mais votado em nenhum distrito, não obterá nenhuma cadeira.

A regra majoritária cria uma estrutura de incentivos pela qual, durante as eleições, a campanha ocorre apenas nos poucos distritos onde há equilíbrio na disputa (também chamados de "marginal districts"). Caso contrário, é como se não houvesse eleição (caso dos "safe districts"). Aos simpatizantes de partidos minoritários resta não votar ou votar no candidato que rejeite menos.

Em contraste, sob a representação proporcional, os partidos minoritários têm incentivos para disputar o voto porque conseguem obter cadeiras mesmo não sendo os mais votados. Quanto maior a magnitude do distrito eleitoral, maiores as chances de representação (desconsiderando efeitos de cláusulas de barreira e a existência de segundo turno). Por isso o comparecimento às urnas também aumenta.

Assim as regras importam e têm enorme resiliência. O localismo na eleição americana tem raízes institucionais e se insere paradoxalmente em um ambiente "desespacializado" e polarizado das redes.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).


RPD || Nelson Tavares Filho: Perspectivas da economia brasileira

Provável vitória dos democratas nas eleições norte-americanas, ausência de uma política ambiental e investimentos baseados em aumento da dívida pelo governo Bolsonaro são fatores que podem influenciar a economia do país, levando a uma alta da inflação e dos juros

A PwC, companhia de assessoramento contábil e financeiro, com filiais em inúmeros países, atualiza, todos os anos, cenário da economia mundial para o ano 2050.

Seu último estudo estima que a economia brasileira será a sexta do mundo naquele ano, com um PIB, a preços correntes, de US$ 6,5 trilhões. O PIB per capita seria cerca de US$ 28 mil.

As estimativas realizadas por institutos e órgãos de pesquisa indicam que, em 2020, o PIB do país deve apresentar queda de 5%, em termos reais.

O traçado de um cenário de curto prazo, para os anos 2021/2, envolveria avaliação qualitativa de variáveis, consideradas determinantes, do comportamento da economia nesse período.

A primeira delas diz respeito não à ciência econômica, mas à questão da tecnologia na área de saúde. A presente pandemia tem apresentado interferência direta no desempenho econômico. Aguarda-se a existência de uma vacina para o segundo trimestre de 2021, quando se retornaria a uma certa “normalidade”. Não se prevê uma “segunda onda”, de acordo com diversos cientistas.

Estimar o desempenho futuro da dívida pública é da maior importância. A esse respeito, economistas debatem a possibilidade de haver emissão monetária para, de maneira responsável, fazer investimentos. Difícil é encontrar na história do Brasil quem tenha tido esse comportamento perante os gastos públicos. Esse governo atual não difere da maioria dos anteriores. Pesa mais o fato de que, no período de pouco mais de dois anos, teremos duas importantes eleições. As eleições municipais, em 90 dias, ressaltam que, para melhor desempenho, é necessário investir em obras no município.

Portanto, embora considere de fundamental importância a Lei do “Teto dos Gastos”, reputo ser baixa a probabilidade de que seja respeitada. Isso poderá aumentar o investimento em 2021. Nada significativo, para quem já investiu, em décadas anteriores, 13% e hoje investe 1,35%. Será um aumento de investimento baseado em aumento da dívida. O que significa dizer que, no longo prazo, poderá ocorrer pressão altista na inflação e no aumento dos juros, internos e externos.

Haverá influência da (ausência de) política ambiental deste governo no desempenho de curto e médio prazos. Os fundos de investimentos estrangeiros não estão dispostos a financiar governos que não respeitam os acordos ambientais, em especial o Acordo de Paris. Nem a União Europeia irá assinar acordos com estes governos. As repercussões internas são: pouco crescimento em exportações, na geração de empregos daí decorrente e na atração de investimentos desses países.

Por último, mas não menos importante, eventual vitória democrata nas eleições americanas aumentará o isolamento do governo brasileiro. Democratas, em discursos no Congresso americano, já elencaram questões sobre as quais pretendem pressionar o governo brasileiro, com destaque para questões ambientais.

Dadas as limitações acima anotadas, qual é o cenário possível para 2021/2? O governo montou recentemente base congressual para evitar futuros questionamentos legais de seus atos. A base é composta, em sua imensa maioria, por deputados do Centrão, que, desde a promulgação da Constituição, participaram de todos os governos em troca de distribuição de verbas. A ameaça de impeachment e a realização das eleições de 2020 e 2022 justificam supor uma “abertura do cofre”, independente da vontade do atual ministro da Fazenda.

A pandemia exigiu, corretamente, gastos além dos orçamentários, o chamado “orçamento de guerra”. Estes gastos foram usados, inclusive, para manter a renda da parcela mais pobre da população e financiar micro e pequenas empresas. Mas agora chegou a hora de pagar esta conta – a dívida do governo já se aproxima de 100% do PIB.

A economia brasileira vem apresentando taxas medíocres de investimento, 1,35% do PIB. Isto acontece porque os gastos correntes inadiáveis vêm ocupando o espaço no orçamento. Inúmeras estatais estão dependendo do orçamento público para pagar suas folhas salariais, sem contrapartida de ofertar um bom serviço público. Mas fechar uma estatal hoje significa subtrair “poder” de um congressista. A base formada pelo governo Bolsonaro irá dificultar muito o ajuste necessário ao Estado brasileiro.

Apesar de todas as restrições mencionadas, há um detalhe importante que poderá favorecer a apresentação de taxas de crescimento positivas em 2021: o efeito estatístico causado pela diminuição do PIB em 2020. Outra questão que poderá influir no crescimento é o auxílio a ser pago a camadas mais pobres da população: 65% do crescimento é ocasionado pelos gastos familiares e este auxílio aumenta o poder de compra dessa população integralmente, pois não tem condições de poupar.

No início deste artigo, citei o cenário de longo prazo feito por uma multinacional. Pelo valor estimado para nosso PIB (US$ 6,5 trilhões) e o PIB per capita (US$ 28 mil), é fácil deduzir que a empresa aguarda desenvolvimento significativo no longo prazo.

No cenário de curto prazo, com as variáveis mencionadas, o crescimento ocorrerá mais por efeito estatístico e/ou desrespeitando normas e leis que constituem base para um crescimento de longo prazo.

Não são dois cenários excludentes. Mas a prevalecer no curto prazo crescimento nas condições explicitadas, mais difícil será a realização do cenário de longo prazo traçado pela empresa.

*Nelson Tavares Filho é economista, especialista em planejamento estratégico


RPD || Marcos Sorrilha Pinheiro: O sistema eleitoral norte-americano e as eleições de 2020

No Brasil, quem tiver mais de 50% dos votos válidos vence a eleição e leva a Presidência. Nos Estados Unidos, vence quem alcançar a maioria absoluta no colégio eleitoral

Para o brasileiro, é difícil entender o sistema eleitoral dos Estados Unidos, porque lá a escolha do presidente não se dá pelo voto direto, mas pelo colégio eleitoral.

A origem data da Constituição de 1787, quando o país ainda não era uma nação, ao reunir treze Estados organizados em uma confederação destituída de um poder central. Foi justamente durante a Assembleia Constituinte que o modelo federativo foi desenhado e, com ele, a maneira pela qual o chefe do Executivo seria escolhido.

A elaboração do sistema de escolha do mandatário atendeu a alguns interesses que estavam em jogo naquele evento, como, por exemplo, a necessidade de se estabelecer um mecanismo de mediação que pudesse deliberar sobre os votos populares, impedindo que a escolha da maioria fosse motivada por paixões momentâneas capitaneadas por líderes demagogos. Vale dizer: o sistema eleitoral da maior democracia do mundo foi elaborado para impor limites à democracia, reduzindo a participação da população na escolha direta de seu presidente.

Outro interesse em pauta dizia respeito à autonomia dos Estados que se congraçariam em uma nação. Temia-se que o voto direto beneficiasse os Estados mais populosos, ao passo que os Estados do Sul contavam com número maior de pessoas escravizadas, ou seja, menos eleitores. Um candidato que representasse os interesses da porção Norte do país ou concentrasse sua campanha nos Estados mais populosos, poderia, assim, sagrar-se vitorioso e pôr em risco a capacidade de representação das demais unidades da Federação.

O colégio eleitoral apresentou-se, portanto, como uma solução capaz de atribuir maior representatividade aos Estados menores, uma vez que a vitória nas eleições já não seria daquele que obtivesse um número maior de votos, mas de quem conseguisse garantir a maioria dos delegados no colégio eleitoral.

O colégio eleitoral, por sua vez, é formado por delegados indicados pelos partidos e escolhidos pelos eleitores no dia da eleição. No modelo atual, ele é composto por 538 delegados, número equivalente ao total de assentos no Congresso americano (100 senadores e 435 deputados), mais 3 delegados advindos do Distrito de Colúmbia. A distribuição dos delegados entre os Estados se dá de acordo com sua densidade demográfica. Daí porque a Califórnia possui o maior número de delegados, 55.

De tal maneira, seguindo o modelo estabelecido, o candidato que vence em um Estado, mesmo que seja por diferença mínima de votos, leva para sua conta todos os delegados que estavam em disputa, tendo ou não votado nele. Isto é: o vencedor leva tudo.

Esse formato permite algumas anomalias. Poe exemplo: um candidato pode ser eleito sem que obtenha um único voto em 39 Estados da Federação, desde que vença, mesmo que pela margem mínima de votos, em pelo menos 11 desses 12 Estados: Califórnia, Nova York, Texas, Flórida, Pensilvânia, Illinois, Ohio, Michigan, Nova Jersey, Carolina do Norte, Geórgia ou Virgínia.

Existem algumas barreiras para impedir o êxito dessa estratégia de privilegiar os Estados populosos, com vistas à construção da maioria no colégio eleitoral. Por conta de peculiaridades em sua cultura política, algumas unidades da Federação se consolidaram como eleitoras históricas de um dos dois grandes partidos nos EUA. São os chamados Safe States. Existem, também, aqueles Estados que não possuem seus votos consolidados e que mudam de lado a cada uma ou duas eleições. São os chamados Swing States. Esta característica pendular faz com que seja justamente nesses locais onde a eleição “realmente acontece”, conhecidos pela alcunha de “Campos de Batalha”.

Nas eleições deste ano, ao menos três dos chamados Swing States aparecem como campos de batalhas: Wisconsin, Flórida e Pensilvânia. A novidade são os Estados que historicamente votam com os republicanos e que, agora, aparecem em disputa: Georgia, Arizona e Carolina do Norte. Desses, o Arizona é aquele em que Joe Biden aparece com melhor chance de vitória.

Neste exato momento, a corrida eleitoral ganha contornos de indecisão. Após três meses de muitos tumultos em torno da figura de Donald Trump – causados pela derrubada do PIB, pelas mortes causadas pela Covid-19 e pelas manifestações antirracistas –, em que uma vitória esmagadora de Biden parecia se desenhar, o atual presidente se recuperou nas pesquisas, aumentando sua vantagem em Estados ameaçados, como o Texas, e aproximando-se de seu opositor em dois campos de batalha: Flórida e Pensilvânia.

De certa maneira, a economia começa a dar sinais de recuperação e isso pode ser bom para Trump. Além disso, o aumento das tensões em torno das manifestações étnicas é uma carta que ele mobiliza com frequência, tentando plantar o medo, vendendo a imagem de Biden como se fora a marionete da ala radical do partido, atrelada àqueles movimentos. Por outro lado, o candidato democrata sai-se bem em temas que são tidos como muito importantes entre os eleitores independentes – a questão climática e a crise do coronavírus – com as quais, estimam, Biden saberá lidar com mais competência.

Hoje, dos temas centrais que norteiam a escolha do próximo presidente, cinco despontam com particular importância: pauta étnica, economia, relações com a China, coronavírus e questão climática. Biden parece ter dois pontos seguros a seu favor, ao passo que Trump luta para consolidar seu posicionamento em ao menos dois deles também. Apenas a China está em aberto. Ambos os candidatos coincidem em que a China é um problema para a América.

Trump tem acrescentado pauta própria e muito sensível ao eleitor de direita do país, a ênfase na lei e na ordem, sua plataforma preferida na tentativa de alertar a população do país contra os efeitos da campanha de Biden, de maior aproximação com as minorias étnicas. Que, para o candidato republicano, são precisamente os agentes principais das ameaças à segurança interna dos Estados Unidos. O dia das eleições dirá de que lado se alinhará o eleitorado do país.

*Marcos Sorrilha é professor Doutor do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca.


Oliver Stuenkel: Por que a derrota de Trump seria um desastre para Bolsonaro

Vitória de Biden poderia ameaçar o ambiente global que a presidência dos EUA ajudou a criar para o projeto político do brasileiro

Um animado debate teve início no Brasil a respeito de como uma vitória de Joe Biden nas próximas eleições presidenciais dos Estados Unidos afetaria as relações entre os dois países. Para alguns, o forte alinhamento ideológico do presidente Jair Bolsonaro com o presidente Donald Trump levaria inevitavelmente a um recuo significativo nas relações bilaterais, enquanto outros creem que o pragmatismo de ambos os lados e uma preocupação dos EUA com a crescente influência da China impediriam uma ruptura.

Além de afetar as relações bilaterais em si, uma vitória de Biden poderia ameaçar o ambiente global que a presidência de Trump ajudou a criar para o projeto político de Bolsonaro. Com o presidente brasileiro abertamente fazendo campanha pela reeleição em 2022, outra pergunta se insinua: como o resultado da eleição americana afetaria a sorte política de Bolsonaro?

Uma possível derrota de Trump em novembro traria três desafios domésticos para o presidente brasileiro.

Em primeiro lugar, Trump é muito popular entre os defensores de Bolsonaro e, entre seus principais fãs, a ideia de que o presidente brasileiro goza de acesso privilegiado à Casa Branca tem sido um trunfo político essencial para o ex-capitão do Exército.

Ainda assim, numerosos analistas políticos apontaram que a parceria Trump-Bolsonaro produziu poucos benefícios concretos para qualquer um dos envolvidos – Bolsonaro não fez jus às promessas de ajudar a derrubar Maduro ou a reduzir a influência chinesa na América Latina, enquanto os setores agrícola e siderúrgico ficaram sem obter um acesso privilegiado ao mercado americano.

Mas, para a maioria dos apoiadores de Bolsonaro, o mais importante eram a narrativa e as fotografias lado a lado. Para eles, Trump e Bolsonaro romperam com a tradição política e tiveram a coragem de enfrentar os globalistas e as elites esquerdistas de todo o mundo. Uma vitória de Biden eliminaria assim um dos trunfos políticos de Bolsonaro e dividiria seus apoiadores entre aqueles que defenderiam uma radicalização e ruptura com o novo governo americano e aqueles que optariam pelo pragmatismo, protegendo os elos entre brasileiros e americanos.

Essa decisão não seria facilitada pelo fato de o filho de Bolsonaro, o congressista Eduardo, um político poderoso com ambições presidenciais, quase certamente preservar seus elos existentes com Steve Bannon, de quem se espera que volte a trabalhar imediatamente para injetar nova energia na direita populista para atacar o governo de Biden. Além disso, uma vitória de Biden pode servir como modelo de como vencer um governante populista nas urnas, energizando uma série de candidatos centristas que desafiarão Bolsonaro em 2022.

Pode parecer uma questão menor, mas a política externa radical de Bolsonaro foi fundamental para satisfazer uma parte importante do seu eleitorado, que votou no político que cumpriu sete mandatos como deputado na expectativa de uma ruptura completa com o passado. Não é coincidência o fato de o filho do presidente, Eduardo, ter sido voluntário para chefiar uma comissão do congresso para questões de relações internacionais e segurança nacional.

É na política externa que Bolsonaro pode implementar uma pauta caótica e revolucionária, sem enfrentar tantos limites constitucionais quanto ao mexer na política doméstica, onde o congresso e a Suprema Corte representam obstáculos formidáveis à radicalização. Demonizar a ONU e o globalismo, orgulhar-se de não conversar com o presidente da Argentina ou duvidar da mudança climática ainda seriam atitudes muito populares entre os bolsonaristas, mas, com Biden na presidência dos EUA, o custo disso será muito mais alto no exterior. Com o recuo das preocupações globais com Trump, ao menos inicialmente, um Ocidente muito mais unido tentaria restaurar as relações transatlânticas e a cooperação multilateral.

Finalmente, uma vitória de Biden complicaria um terceiro trunfo político que ajudou Bolsonaro a conservar o apoio de seus seguidores radicais: uma recusa obstinada em ceder à pressão internacional e doméstica diante da mudança climática. A estratégia do presidente de manter o controverso ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em meio a incêndios descontrolados e aumento do desmatamento levou muitos a descreverem Bolsonaro como um estrategista imprevisível e incoerente.

Mas uma análise cuidadosa de sua estratégia política indica que o ex-capitão do Exército segue um conjunto de princípios bastante claro, acreditando que é preferível pagar o custo econômico da não ratificação de acordos comerciais ou mesmo de boicotes contra produtos brasileiros do que perder o apoio político do pequeno produtor rural, do garimpeiro, dos grileiros e madeireiros, parte da base de apoio mais leal a Bolsonaro, todos beneficiados pela desregulamentação ambiental.

Com os EUA de Biden mudando de lado e, possivelmente, alinhando-se à Europa no que tange ao desmatamento na Amazônia, o cálculo político de Bolsonaro provavelmente se tornaria insustentável. Ignorar os apelos dos europeus pelo combate ao desmatamento na Amazônia é uma coisa; enfrentar uma aliança entre EUA e Europa que ameaçaria isolar o Brasil economicamente em decorrência do seu fracasso em proteger a maior floresta tropical do mundo já é outra bem diferente. Tanto Salles quanto o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, são muito populares entre a base eleitoral de Bolsonaro, mas podem ter os cargos ameaçados.

À espera de novembro. Se eleições em outros países raramente afetam diretamente a dinâmica política no Brasil, as eleições americanas de 2020 têm um significado especial para a maior democracia da América Latina. Nunca antes um líder brasileiro fez de sua semelhança e amizade com seu equivalente americano um elemento tão central de sua personalidade política.

Apesar de suas muitas diferenças – Trump tem um relacionamento problemático com as forças armadas, enquanto Bolsonaro venera os militares – o presidente brasileiro estimulou ativamente a ideia segundo a qual ele seria um “Trump dos trópicos”. Em um gesto talvez simbólico dessa estratégia, Bolsonaro certa vez transmitiu um vídeo ao vivo pelo Facebook no qual assistia a uma hora de discurso de Trump. Assim, não surpreende que poucos líderes no mundo torçam tanto pelo presidente americano nas próximas eleições quanto o brasileiro Jair Bolsonaro. / Tradução de Augusto Calil

*É colunista da revista Americas Quarterly e professor de Relações Internacionais da FGV em São Paulo


Yascha Mounk: Força de Biden é ter afiado instintos políticos por muitas décadas

Ao evitar cair na armadilha de Trump, democrata vem sendo mais inteligente do que seus colegas

Ao longo das primárias Joe Biden foi retratado como um anacronismo, um homem cujo melhor momento ficara uma década ou três no passado. Ao mesmo tempo em que os veículos da grande imprensa publicavam perfis bajuladores de seus principais rivais, descartavam as chances de sucesso dele.

Mas Biden não apenas derrotou uma dúzia de concorrentes para se tornar o candidato indicado do Partido Democrata como também está persistentemente à frente de Donald Trump nas pesquisas de intenção de voto, lidando habilmente com a política extraordinariamente turbulenta de 2020.

A explicação mais simples é que as pessoas gostam de Joe Biden, e gostam dele por uma razão: diferentemente de Trump e de alguns setores do Partido Democrata, Biden de fato expressa o ponto de vista da maioria dos americanos.

Quando protestos de massa desencadeados pelo assassinato de George Floyd se alastraram pelos Estados Unidos, o público americano reagiu de modo muito menos dividido do que talvez sugira um olhar rápido para a paisagem da mídia polarizada.

De acordo com as pesquisas, a maioria dos americanos encara a brutalidade policial como um problema grave e pensa que precisamos fazer mais para combater o racismo. Segundo as mesmas pesquisas, a maioria dos americanos também considera que protestos violentos são ilegítimos e que “desfinanciar a polícia” é má ideia.

Mas esse consenso passou despercebido por muitas elites políticas e da mídia. O pior ofensor é, como sempre, Donald Trump, que parece ser incapaz de exprimir empatia por aqueles que sofrem com a injustiça e ainda parece pensar que pode fortalecer sua posição inflamando as tensões raciais no país.

Algumas pessoas da esquerda, porém, também se desviaram em direção aos extremos. Políticos progressistas abraçaram mensagens profundamente impopulares como “desfinanciar a polícia”. Alguns jornalistas conhecidos fizeram de conta que a turbulência e as depredações não estão ocorrendo em grande escala e que de qualquer jeito, se isso acontecesse, seria perfeitamente justificável. O senador democrata Chris Murphy, de Connecticut, chegou a ir ao Twitter para se desculpar por ter criticado a violência política.

Essas omissões vêm tendo consequências sérias em campo. Em todos menos os casos mais flagrantes, as autoridades de Portland têm se negado a processar manifestantes violentos. Um homem que se beneficiou dessa política é Michael Reinoehl, extremista branco que escreveu nas redes sociais que “toda Revolução precisa de pessoas dispostas e preparadas para lutar… Eu sou 100% ANTIFA até o fim!”

Reinoehl foi detido em um protesto local em julho por portar uma arma carregada e resistir à prisão. Mas foi solto em pouco tempo. Algumas semanas mais tarde, as acusações contra ele foram arquivadas. Então ele disparou contra um partidário de Trump, matando-o, em um protesto no centro de Portland.

Felizmente, a maioria dos líderes comunitários e políticos negros têm ignorado as expressões de angústia online sobre os perigos de criticar atitudes que desrespeitam as leis. Eles abraçaram plenamente o movimento de massa por justiça racial –e condenaram inequivocamente os extremistas e oportunistas que saqueiam lojas, incendeiam bairros ou se entregam a fantasias juvenis sobre revolução política.

Mais importante ainda, o candidato presidencial do Partido Democrata também tem condenado a violência, coisa que fez desde o início, com frequência e de modo inequívoco. Como Biden disse em um discurso recente: “Promover baderna nas ruas não é protestar. Saquear não é protestar. Atear incêndios não é protestar, é ilegalidade pura e simples. E quem pratica esses atos deve ser processado”.

Assim, se há poucos indícios de que os americanos estejam se voltando contra Biden em resposta à turbulência, é em grande parte porque Biden vem sendo muito mais inteligente do que muitos de seus colegas, ao evitar cair na armadilha de Trump. Diferentemente dos jovens e dos que vivem online, ele não aderiu à lição absurda de que criticar tumultos e depredações significa trair o movimento por justiça racial.

Longe de ser fonte de fraqueza, portanto, o fato de Biden ter afiado seus instintos políticos ao longo de muitas décadas é uma fonte de força eleitoral. Se ele conseguir tornar-se o 46º presidente dos Estados Unidos, não será apesar de sua falha em compreender o que muitos jornalistas e políticos acreditam ser o espírito do momento –será porque possui o bom-senso político para rejeitá-lo. (Tradução de Clara Allain)

*Yascha Mounk cientista social é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".


Eliane Cantanhêde: E se Joe Biden vencer?

Na ONU, Bolsonaro vai fazer dobradinha com Trump e listar os ‘sucessos’ do Brasil

O que pretende o presidente Jair Bolsonaro ao abrir, na próxima terça-feira, por videoconferência, a Assembleia-Geral da ONU? Defender os interesses nacionais, ou fazer o jogo dos Estados Unidos? Seguir a regra internacional de não ingerência em assuntos políticos de outros países, ou reforçar nas entrelinhas a campanha à reeleição de Donald Trump? Badalar o Brasil e seu enorme potencial, ou o seu governo e ele próprio?

Essas perguntas podem parecer sem sentido, pois os presidentes de todas as democracias usam os palcos internacionais para defender os interesses dos seus países. Mas tudo é peculiar com Bolsonaro, inclusive na política externa. Para piorar as coisas – e as expectativas – Trump falará logo depois do “amigo” brasileiro. Ora, ora, se não vai pintar uma dobradinha entre os dois, a um mês e meio da eleição americana…

O tema da assembleia-geral deste ano é multilateralismo, o que ajuda o pas-de-deux, com Trump e Bolsonaro metendo o sarrafo em organizações internacionais fundamentais para reduzir a desigualdade, ainda mais aguda na pandemia, entre regiões, entre países e nos próprios países. Ambos tendem a criticar a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e, por que não?, a própria ONU e seus organismos de direitos humanos e meio ambiente.

Se é para apostar, o presidente também vai entrar em questões internas, para dizer ao mundo, via ONU, que o Brasil é um sucesso no combate à pandemia, no controle das queimadas e na recuperação econômica. A covid-19 já praticamente acabou, ok? E é mentira o que os brasileiros, os EUA, a Europa e o planeta sabem e os satélites confirmam: que as queimadas cresceram mês a mês na Amazônia e estão dizimando a fauna do Pantanal.

O mundo poderá, assim, assistir ao vivo e em cores a aliança entre Bolsonaro e Trump, inclusive contra a realidade. O último lance foi o Planalto ceder à Casa Branca e manter por mais três meses a isenção de tarifas para o etanol americano, prejudicando os produtores brasileiros, mas ajudando o apoio dos americanos a Trump em 3 de novembro. Indiretamente, sem saber ou querer, o setor de etanol do Brasil está pagando um preço para reeleger o republicano.

E a lista de favores de Bolsonaro a Trump, contra o Brasil, não para aí. Essa decisão, contrária aos interesses nacionais e ao Ministério da Agricultura, não foi pragmática, foi ideológica, e não é nova nem única. O Brasil já tinha aceitado também uma cota de 750 mil toneladas de trigo americano sem Tarifa Externa Comum (TEC) do Mercosul.

Mais: o ministro Paulo Guedes havia lançado o brasileiro Rodrigo Xavier para disputar a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), mas foi surpreendido duplamente: quando Trump anunciou candidato próprio, seu assessor Mauricio Claver-Carone, e quando o Planalto e o Itamaraty passaram a trabalhar pela candidatura americana e contra o adiamento da decisão para depois da eleição à Casa Branca.

Além de ser mais uma derrota de Guedes, o que é só detalhe, essa manobra tem potencial explosivo. Rompe a tradição de que os EUA não entram no rodízio para a vaga, promove um assessor de Trump sem saber se ele fica ou não na Casa Branca. E o grande temor é de que os EUA, com ajuda do Brasil, usem o BID como instrumento de pressão para jogar os países da América Latina contra a China.

E o que dizer de Bolsonaro seguindo Trump, passo a passo, na pandemia? É uma “gripezinha”, não precisa máscara, não ao isolamento social, está “no fim” (quando nem tinha chegado à metade), a culpa é dos governadores e a cloroquina é a salvação da lavoura. Tudo errado, tudo copiado, e deixa não uma interrogação, mas um grito no ar: e se Joe Biden vencer.