eleições 2020

Bruno Boghossian: E se a esquerda se dividir em 2022?

Disputa municipal amplia afastamento entre partidos, e composição de frente fica mais distante

Apesar das experiências de união em algumas capitais, as eleições de 2020 aprofundaram a divisão que vem sendo cavada há alguns anos na esquerda. Sinais emitidos pelos principais atores desse campo indicam que a composição de uma frente para 2022 está mais distante.

O processo dos últimos meses cristalizou o distanciamento entre o PT e a aliança formada por PDT e PSB. A presidente petista, Gleisi Hoffmann, já disse que as eleições deixaram feridas e que ainda considera difícil um acordo com aquela dupla.

Já o presidente do PSB afirmou que o PT sempre viveu “na contramão da história” e que não vê uma reaproximação com a sigla. “Nós não somos obrigados a seguir o PT. Ele tem o direito de errar, errou muito a vida inteira, mas nós não somos obrigados a seguir”, declarou Carlos Siqueira ao jornal O Globo.

Por sua vez, Ciro Gomes (PDT) disse que o PT e seus aliados “não têm humildade nem capacidade de compreender e se reconciliar com o povo”. Sobrou também para o PSOL de Guilherme Boulos (“radical”) e o PC do B de Flávio Dino (“perderam um pouco a noção da realidade”).

Esse tom sugere que dois ou mais candidatos competitivos devem disputar o voto da esquerda em 2022. Essa divisão aconteceu na última eleição presidencial e não impediu que um desses nomes chegasse ao segundo turno contra Jair Bolsonaro.

Em 2018, a esquerda teve pouco mais de 42% dos votos válidos já no primeiro turno. Só uma pulverização dramática desse eleitorado ou a ocupação do espaço por outro candidato deixaria todos eles de fora da fase final. Na próxima disputa, os impactos dessa divisão vão depender do comportamento daqueles personagens dali por diante.

Se a briga por votos no primeiro turno aumentar o rancor que já se manifesta agora, deve deixar sequelas graves para o segundo turno. Esse afastamento tende a reduzir a mobilização de cabos eleitorais e o engajamento dos apoiadores dos candidatos derrotados. Num embate acirrado, isso pode fazer diferença.


Merval Pereira: Partidos em excesso

A fragmentação partidária brasileira resultou em que nada menos que 28 partidos dos 32 que concorreram às eleições municipais elegessem pelo menos um prefeito municipal. Mais que isso: quatro partidos não elegeram nenhum prefeito. Se as cláusulas de barreira fossem usadas para as eleições de vereador, quinze partidos não passariam: PROS, PV, Psol, PCdoB, PRTB, PTC, PMN, DC, Rede, Novo, PMB, UP, PSTU, PCB e PCO.

Basicamente os mesmos que, na eleição de 2018, quando as cláusulas de barreira começaram a vigorar, não conseguiram ter número de votos mínimo exigido pela nova legislação: Rede, Patriota, PHS, DC, PCdoB, PCB, PCO, PMB, PMN, PPL, PRP, PRTB, PSTU e PTC não conseguiram 2% de votos em todo o país, nem eleger pelo menos 11 deputados em pelo menos 9 Estados.

Deixaram de ter acesso ao fundo partidário, e direito a tempo de rádio e televisão na propaganda eleitoral. Esta foi também a primeira eleição em que a coligação proporcional foi proibida, o que dificultou ainda mais os partidos mais frágeis.

Justamente por isso, já existe um movimento de bastidores para a legislação voltar a permitir as coligações proporcionais, o que pode retardar a reorganização partidária, que seria fundamental para dar mais lógica às eleições. Cerca de 15 partidos estariam aptos integralmente a participar das eleições e das atividades congressistas, e não 32 como hoje.

As eleições de domingo sinalizaram muitas coisas para 2022, sobretudo que o extremismo de Bolsonaro não tem espaço hoje como teve em 2018. Ele terá que reforçar sua aparente inclinação recente para o centro, para obter o apoio dos partidos do Centrão que saíram vitoriosos, mas não acredito que consiga apaziguar os ânimos, porque é uma pessoa do embate.

Bolsonaro perdeu o timing ao não conseguir montar seu próprio partido político quando estava no auge da popularidade. Se a economia não melhorar, vai, no próximo ano, perder a capacidade de agregar apoios, e, com os resultados das eleições municipais, os partidos que ele esnobou no inicio de seu governo estão hoje mais robustos e não abrirão mão de seus controles internos para ceder a legenda ao presidente.

Os partidos do centro-direita ficarão no governo enquanto tiverem alguma coisa para ganhar, mas na hora H não irão apoiar um candidato que seja impopular, que esteja fora do espírito do tempo. Esses partidos do centrão são fisiológicos, muitos estão envolvidos na corrupção do petrolão e, antes, do mensalão, mas não são extremistas de direita.

Bolsonaro pode se transformar em um fator fora do clima geral e, apesar da força da presidência, uma aliança tóxica. A não ser que a economia dê um salto formidável, o que parece improvável a esta altura. Entre os partidos independentes do centrão e que têm uma posição crítica ao governo Bolsonaro, PSDB, MDB e DEM ganharam muita força e serão fundamentais para apoiar uma candidatura viável, que pode ser a do governador João Doria ou a de Luciano Huck.

O ex-ministro Sérgio Moro parece ter se decidido pela vida fora da política, tornando-se vice-presidente executivo da consultoria internacional Alvarez & Marsal. Não creio que o fato de a empresa estar contratada para a recuperação judicial da Odebrecht e OAS, empreiteiras que foram os principais alvos da Operação Lava-Jato, seja um empecilho ético. Ao contrário, o que as empreiteiras estão buscando é uma reorganização nos termos exigidos pela legislação, que evite justamente os esquemas de corrupção descobertos.

Se Luciano Huck decidir entrar realmente na vida partidária, será difícil haver apenas uma chapa do centro-direita na disputa presidencial, a não ser que o governador João Doria desista. Isto porque não há indicação de que Huck aceitaria ser vice de alguém.

A esquerda sofreu derrota fragorosa, está com grandes dificuldades, e será incomodada com a ascensão de Boulos como líder político nacional. Apesar da derrota acachapante, o PT continua sendo o mais organizado partido da esquerda, e vai insistir com Lula, se ele conseguir deixar de ser ficha-suja, o que é necessário, mas não suficiente, para ele ser candidato de união da esquerda.


José Casado: Acabou a moleza

Com voto facultativo na prática, candidatos terão de se virar para convencer o eleitor a sair de casa

Por lei, o voto continua obrigatório. Na vida real, está mais facultativo a cada eleição. Um em cada três eleitores decidiu não votar no domingo. A abstenção avançou na década e, agora, mais que dobrou em relação às eleições municipais de 2000. Na cidade do Rio, chegou a 35%. Somou 47% em Copacabana, o bairro de maior densidade demográfica.

A recusa voluntária de 1,7 milhão superou a determinação da escolha majoritária nas urnas: Eduardo Paes (DEM) se elegeu com 1,6 milhão de votos, 91 mil abaixo do volume de abstenção. Não ofusca sua vitória acachapante sobre o trêfego pastor-prefeito, desde ontem em súplica por vaga no Ministério de Jair Bolsonaro.

O vírus semeou medo. Foi real o temor da contaminação em Petrópolis. Há 15 dias, a cidade registrava a média de 100 infectados transmitindo para 110 pessoas. Na semana passada, a taxa saltou de 110 para 230. Resultado: abstenção de 35,6%, muito acima do primeiro turno (29,9%).

Mas a pandemia também disseminou empatia. Beneficiou quem ficou contra o pandemônio governamental, o negacionismo fomentado pelo Palácio do Planalto. Bruno Covas (PSDB) esgrimiu com o argumento da Ciência e acabou premiado em São Paulo com um milhão de votos de vantagem sobre o adversário e 400 mil acima do volume de abstenção.

Porém o mais notável efeito pandêmico foi deixar escancarado o desleixo pelo eleitor, que espertos chefes partidários embutem na lei eleitoral.

Há 33 partidos registrados — outros 77 em formação—, todos acomodados numa legislação que impõe bilionário financiamento anual dos partidos, o custeio extraordinário de cada eleição, a propaganda subsidiada em rádio e televisão, além da obrigatoriedade do voto. É dinheiro fácil do Erário e imposição do dever de votar ao cidadão.

Acabou a moleza. A pandemia motivou, e a tecnologia ajudou a facilitar a justificativa de ausência. Na prática, o voto obrigatório já é facultativo. Partidos e candidatos terão de se virar para convencer o eleitor a votar. Caso contrário, assumem o risco de declínio na representatividade eleitoral, fórmula certa para a crise permanente.


Bernardo Mello Franco: O PT diante da derrota

Foi um tombo histórico. Pela primeira vez, o PT não conquistou a prefeitura de nenhuma capital. Um desempenho ainda pior que o de quatro anos atrás, quando só venceu em Rio Branco.

Em 2016, o desastre era inevitável. O partido havia acabado de enfrentar o impeachment de Dilma Rousseff e as prisões espetaculares da Lava-Jato. Agora não há como culpar os outros. O petismo sucumbiu aos próprios erros — e parte da sua cúpula ainda está em negação.

A presidente Gleisi Hoffmann tentou dourar a pílula. Exaltou a vitória em quatro cidades no segundo turno, embora a sigla tenha perdido em nove. Ela classificou o fiasco como uma prova de que a esquerda “sabe lutar”.

“Não se pode converter derrota em vitória. Derrota é derrota”, reagiu Alberto Cantalice, do diretório nacional do PT. Ele disse em público o que outros dirigentes repetem em privado: sem uma renovação radical, o partido arrisca perder de vez a ligação com o eleitor.

“O antipetismo ficou maior do que o petismo”, desabafa um ex-ministro. Ele considera que houve um “erro grave de leitura” em 2020. O PT apostou tudo na imagem desgastada de Lula, subestimando sua rejeição nos grandes centros. Além disso, recusou-se a apoiar outras siglas para lançar candidatos pouco competitivos.

Em São Paulo, a tática deu errado. Jilmar Tatto ficou em sexto lugar, com menos de metade dos votos do PSOL. Em Belo Horizonte, Nilmário Miranda também acabou em sexto, com 1% dos votos. No Rio, Benedita da Silva amargou a quarta colocação.

“Nós envelhecemos”, admite outro ex-ministro que participou da fundação do PT. Ele ressalta que as novas caras da esquerda emergiram fora da legenda: Guilherme Boulos, do PSOL, e Manuela D’Ávila, do PCdoB. A exceção foi Marília Arraes, derrotada no Recife.

O veterano diz que o PT precisa se reciclar e entender as mudanças da sociedade. As fábricas se esvaziaram, os sindicatos perderam força e os trabalhadores foram empurrados para a informalidade. Um dos públicos a conquistar agora seriam os entregadores de aplicativos. “Nosso drama não é só eleitoral. Para sair do fundo do poço, temos que nos reconectar com o povo”, resume. 


Míriam Leitão: Recomeço ou nova direção

Os prefeitos eleitos terão que começar a trabalhar imediatamente, mesmo antes da posse. Há desafios enormes. A boa notícia é que a situação das contas públicas das cidades está melhor do que se imagina. Houve muita transferências do governo federal neste ano, as cidades são menos endividadas do que os estados e há prefeitura com dinheiro em caixa. O erro será usar isso para aumentar gastos que não sejam os destinados às muitas urgências do momento. Na educação, serão dois anos em um, na saúde há a pressão da pandemia, na arrecadação, o imposto sobre serviços não vai se recuperar facilmente.

Eleição sempre renova as esperanças de que os problemas sejam resolvidos mais facilmente pelo gestor reeleito por causa de uma administração bem avaliada ou pela eleição de um novo gestor que resgate a cidade de erros passados. Aqui na coluna conversamos com alguns economistas que falam sobre a situação municipal. Giovanna Victer é presidente do Fórum Nacional de Secretários Municipais de Fazenda, e ela mesma é secretária de Niterói, onde o prefeito Rodrigo Neves, do PDT, elegeu seu sucessor Axel Grael no primeiro turno.

— Houve um aumento significativo do volume de transferências da União para os municípios. O critério foi o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e sem relação com a pandemia. Então houve cidade que teve mais receita do que gasto com saúde e o contrário também aconteceu — diz.

Normalmente, cidades menores ou de regiões mais pobres têm um repasse relativamente maior pelo critério de distribuição. Houve também outra forma de socorro aos estados e municípios, que em alguns casos cobriu a queda de arrecadação.O ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida também diz que essas transferências feitas via FPM, ou o socorro para a pandemia, fizeram com que em muitas cidades o ano esteja fechando bem, e com dinheiro em caixa para investir em 2021. Além disso, houve as remessas em 2019 e começo de 2020, por causa da cessão onerosa.
No ano passado, os 4.958 municípios acompanhados pelo Tesouro fecharam com superávit de R$ 32 bilhões. Mas em algumas cidades os gastos precisam ser ajustados. O Rio de Janeiro tem uma despesa bruta alta de 79% da Receita Corrente Líquida. E é também o município com o maior serviço da dívida, que chega quase a 9% da Receita Corrente Líquida. As despesas com pessoal saíram de 48% do gasto total em 2016 para 60% em 2019. Há situações bem diferentes entre as cidades.

— Haverá município pequeno em que o novo prefeito vai encontrar dinheiro em caixa. Minha preocupação é que esses prefeitos avancem sobre esses recursos e contratem despesas permanentes — diz Giovanna.

O problema é que esse caixa é “fictício”, como ela diz, porque vem dessas transferências especiais. Mansueto também alerta que os recursos da cessão onerosa não vão se repetir.

O dinheiro que sustenta as grandes cidades é altamente dependente da atividade econômica, como por exemplo o que vem do Imposto sobre Serviços. O setor tem segmentos que não voltaram à normalidade. E dificilmente conseguirão no curto prazo. E há muito a fazer no curto prazo:

— Precisamos retomar as políticas habitacionais, porque isso cria emprego e são muitos anos sem ter política de habitação. Tem impacto social importante. Vamos ter urgências sociais, como a de trazer as crianças de volta às escolas, há muitas abandonando as aulas, principalmente no Fundamental II. Precisamos de logística para a vacinação. E temos o desafio da retomada econômica que depende das políticas nacionais — explica Giovanna Victer.

Ela acha que a prefeitura do Rio não está quebrada, ainda que tenha despesa corrente maior do que a receita. Giovanna acredita que o Rio poderá aumentar a arrecadação se suspender subsídios e se reorganizar a prefeitura com um freio de arrumação.

No resto do país, Mansueto lembra que 684 municípios têm nota A de crédito e 809 têm nota B. Podem pegar empréstimo com o aval do Tesouro. Mesmo assim, prefeitos preferem procurar linhas da Caixa que são muito mais caras, mas mais rápidas. O Rio, por exemplo, pegou cinco empréstimos em 2017 e 2018, quatro na Caixa e um no Santander. Todos sem garantia da União. Mas em geral os municípios estão em situação melhor do que os estados e têm espaço para recomeçar com boa gestão.


Francisco Góes: É o ‘emprego, emprego, emprego’, diz Covas

Incerteza é sobre a capacidade dos municípios de sustentar suas receitas

No discurso da vitória, no domingo à noite, o prefeito reeleito de São Paulo, Bruno Covas, deu ênfase à prioridade que dará, no segundo mandato, ao combate ao desemprego: “Nós temos que fazer da nossa gestão mantra na busca de emprego, emprego, emprego e busca de oportunidades”, afirmou. O foco, avisou, tem que estar sobretudo nos jovens da periferia, que são os que mais sofrem com a crise. Ontem, no dia seguinte à eleição, o tucano reconheceu as limitações que todo prefeito tem no manejo de políticas macroeconômicas, mas prometeu mais ações de inclusão e investimentos na economia criativa para estimular startups, cultura, esporte lazer e turismo.

A taxa de desemprego precisa mesmo ser uma das preocupações dos prefeitos que assumem os cargos a partir de 1º de janeiro, afinal as pessoas moram nas cidades, e costumam atribuir aos gestores municipais parte dos problemas que vivem no dia a dia. No terceiro trimestre, a taxa de desemprego medida pelo IBGE ficou em 14,6%, a mais alta da série histórica desde 2012. Até setembro, o país tinha 14,1 milhões de desempregados. Só no Estado de São Paulo, o mais populoso do Brasil, a taxa de desemprego ficou em 15,1% no terceiro trimestre.

Como disse Covas ontem, os prefeitos não têm ferramentas para mudar taxa de câmbio, controlar a inflação ou emitir moeda. Assim, dependem, em boa medida, da retomada da economia para garantir mais investimentos e geração de emprego e renda. O problema é que na situação atual, com a pandemia dando sinais de piora, o cenário é de incertezas. É voo quase cego considerando o efeito que eventual novo fechamento do comércio, por exemplo, poderia ter sobre as receitas municipais. E também porque as indicações são de que não haverá novo apoio do governo federal a Estados e municípios. No Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, a ajuda a Estados e municípios chegou a R$ 60,1 bilhões, além do diferimento de dívidas com a União de R$ 65 bilhões. Tudo leva a crer que a ajuda não vai se repetir em 2021.

“O clima é de total incerteza, o que vai acontecer ninguém sabe, é loteria”, diz François Bremaeker, gestor do Observatório de Informações Municipais. Se houver lockdown e restrições nas cidades, os municípios terão queda na arrecadação própria, sobretudo no recolhimento de ISS, que, em 2019, representou 48% da receita tributária das capitais. Haverá ainda redução nos recursos recebidos via transferências feitas por Estados, no caso do ICMS, e pela União, via Fundo de Participação dos Municípios (FPM), formado por receitas do IPI e do Imposto de Renda. Do total arrecadado, 22,5% ficam com os municípios. Na distribuição, aplica-se coeficiente que diz quanto cada um recebe.

A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) mostra que de janeiro a novembro houve queda de 7,34% na arrecadação do FPM sobre igual período de 2019. Nota técnica da entidade reconhece que a proximidade do fim do ano deixa os gestores municipais preocupados com o fechamento das contas: “Nesse ano atípico com pandemia da covid-19, essa preocupação é mais pertinente.”

A CNM conduz pesquisa sobre as condições financeiras das prefeituras para pagar o 13º salário, e a tendência da enquete é que o resultado não seja ruim, diz Eduardo Stranz, consultor da CNM. A instituição também vai fazer trabalho para saber quanto os prefeitos vão deixar de caixa em 31 de dezembro. Stranz estima que a queda na arrecadação do FPM, no acumulado do ano, deva ser de 5%. A recuperação deve ser puxada pelas vendas de Natal.

Ele diz que o fim do auxílio federal a Estados e municípios impõe, a partir de janeiro, desafio de emprego e renda aos prefeitos. “O município terá que ser um dos indutores da retomada. Esse será o desafio, junto com um quadro de queda da arrecadação, de pandemia e de fim de auxílio federal”, diz o consultor da CNM.

Stranz afirma que o poder municipal é ator importante na economia uma vez que costuma ser também o maior comprador. Na crise, o gestor municipal pode direcionar compras para a própria comunidade encomendando uniformes escolares, por exemplo, a fornecedores locais. Pode ainda fazer uma boa organização do território, com licitações para uso de locais por micro e pequenos empreendedores. O dono da carrocinha de cachorro-quente se cadastra na prefeitura, ganha alvará e pode se instalar na frente do estádio ou do fórum. O prefeito tem a opção de criar um fundo de aval, mesmo que pequeno, para que esse empreendedor compre os equipamentos para o negócio. São soluções simples que o poder público pode tomar para fomentar negócios no município. O economista Mauro Osório, especialista em temas regionais, acrescenta que uma forma de melhorar a gestão municipal é integrar o trabalho das secretarias. “É integrar as políticas sociais, de saúde e educação, ter um olhar interdisciplinar”, diz.

Parte das soluções para os municípios depende, porém, de medidas macroeconômicas que podem ser implementadas a partir das reformas tributária e administrativa. Jonathas Goulart, economista-chefe da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), entende que é preciso inserir os municípios e o ISS na reforma tributária e também aproveitar a oportunidade para rediscutir a distribuição do FPM “Hoje há má distribuição dos recursos do fundo”, diz. Ele prevê que em 2021 os pequenos municípios, cujos orçamentos dependem mais das transferências da União e de Estados, podem sofrer impacto menor com a crise. Mas os municípios maiores, que dependem mais da arrecadação de ISS, tendem a ficar em situação mais complicada.

Matheus Rosa, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que a preocupação para 2021 é a dependência dos municípios do ISS. É imposto ligado à prestação de serviços, segmento cuja recuperação é mais lenta do que a indústria e o varejo. Os serviços também são mais suscetíveis a restrições provocadas pela pandemia. “A grande incerteza é saber se municípios vão sustentar a arrecadação em 2021 e se isso será em nova onda de covid. “Um novo apoio federal [a Estados e municípios] não parece provável dada a preocupação do governo com teto de gastos”, diz Rosa. Ele fez estudo que avaliou a arrecadação de 26 capitais na pandemia. As seis com maior PIB (Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Manaus) apresentaram até agosto relativa estabilidade da receita tributária. Nenhuma teve perda de receita acima de 1% e algumas tiveram alta. É o que todos os prefeitos esperam para 2021, como Covas e seu mantra por geração de emprego e renda.


Andrea Jubé: Vai, Rodrigo!, ser “gauche” na vida

PT da Câmara vai se posicionar contra a reeleição na Mesa

A esquerda saiu derrotada das urnas - com ressalva ao desempenho de Guilherme Boulos (PSOL) em São Paulo -, numa disputa em que MDB, PP, PSD, PSDB e DEM elegeram mais de 3 mil prefeitos.

Apesar do revés eleitoral, as bancadas de esquerda retornam ao Congresso nesta semana com os passes valorizados para outra eleição: a sucessão nas Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, daqui a 63 dias.

Entusiasta de uma ampla frente “de centro” em 2022 - na qual incluiu Ciro Gomes e o PDT - o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), terá de fazer a curva à esquerda para conquistar os votos necessários para sua eventual reeleição, ou para fazer um sucessor de seu grupo.

Na Câmara, os 138 deputados dos partidos de esquerda cumprirão o papel de fiel da balança no desfecho da acirrada disputa entre Rodrigo Maia e Arthur Lira (PP-AL). Sabe-se que foram os votos da esquerda que viabilizaram a expressiva vitória de Maia no primeiro turno em 2018, com 334 votos.

Ontem durante uma reunião virtual, a bancada do PT - a maior da esquerda, com 57 deputados - estabeleceu pré-requisitos ao candidato que reivindicar os votos petistas. Dois deles inviabilizam, de saída, o endosso do PT ao próprio Maia, e ao relator da reforma tributária, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).

Falta a chancela do diretório nacional, mas a bancada do PT na Câmara vai se posicionar contra a reeleição dos atuais presidentes das Casas.

Os deputados não têm ingerência sobre os senadores, mas, ao menos em seu foro decisório, não avalizarão a eventual recondução de Rodrigo Maia, na hipótese de o Supremo Tribunal Federal (STF) declarar a constitucionalidade da postulação.

Os deputados do PT também só comprometerão os votos da bancada com um candidato apoiado oficialmente pelo seu partido. Essa posição é um complicador para Aguinaldo, na hipótese (remota) de ele lançar a candidatura avulsa pelo grupo de Maia. O presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), já declarou que o partido apoia Lira.

As diretrizes dos votos do PT na Câmara ainda serão submetidas ao diretório nacional, que se reúne na próxima semana para a primeira avaliação oficial do resultado das eleições.

As bancadas da Câmara e do Senado divergem, e o diretório terá de arbitrar o impasse. O líder no Senado, Rogério Carvalho (SE), já declarou publicamente apoio da bancada à recondução do presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP).

Maia já tem uma boa parcela dos votos da esquerda, mas terá de se desdobrar pelos votos do PT. O partido tem restrições a vários de seus possíveis candidatos. Rejeita o líder e presidente do MDB, Baleia Rossi (SP), pela proximidade de Michel Temer.

A melhor interface dos petistas entre os postulantes à cadeira de Maia tem sido, até agora, com o vice-presidente Marcos Pereira, e com o próprio Arthur Lira. Ambos, entretanto, são considerados muito próximos do presidente Jair Bolsonaro.

Aguinaldo seria uma solução menos amarga, mas dificilmente embarcará em uma candidatura avulsa. O exemplo mais recente dessa aventura, em 2005, acabou na eleição de Severino Cavalcanti (PP-PE), morto neste ano. Ele comandou a Casa por sete meses, até renunciar, diante das denúncias do “mensalinho”.

O racha no PT favoreceu a vitória do azarão. O candidato oficial da sigla era o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (SP), que venceu o primeiro turno. Mas o também petista Virgílio Guimarães (MG), que concorreu como avulso, obteve 117 votos, e empurrou o desfecho para o para o segundo turno.

Em suma, a dois meses da eleição, o cenário é nebuloso, e a disputa tende a ser voto a voto. Se vivo fosse, e acompanhasse a política nacional, Drummond diria a Maia: “Vai ser ‘gauche’ na vida”.

PT e o Acre

A derrota nas 26 capitais pela primeira vez desde 1985 é um dos piores revezes do PT desde a sua fundação, há 40 anos. Mas uma leitura mais detalhada dos números deveria acender mais luzes amarelas na cúpula da legenda.

Um decano do partido questiona, por exemplo, por que o PT não elegeu sequer um vereador em Rio Branco, capital do Acre. Em dimensão eleitoral, parece desimportante, mas esse resultado tem um simbolismo incômodo.

Somados os períodos em que o PT esteve no comando da Prefeitura de Rio de Branco e do governo do Acre, são 38 anos de administrações petista nas esferas municipal e estadual.

Foram 18 anos não consecutivos na prefeitura, e mais 20 anos consecutivos no governo estadual, entre 1999 e 2018, onde se revezaram os irmãos governadores Jorge e Tião Viana, e no intervalo entre eles, Binho Marques.

Pode-se argumentar que o eleitorado do Acre, assim como o da Região Norte, tornou-se majoritariamente bolsonarista. Mas a esquerda elegeu vereadores em Rio Branco. PDT e PSB fizeram seis dos 17 titulares da Câmara Municipal.

Se o Acre não tem expressão eleitoral, o PT pode direcionar a lupa para os quatro Estados do Nordeste, governados por petistas: Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte e Piauí. Nenhum desses governadores conseguiu levar candidatos do PT à Prefeitura das capitais ao segundo turno.

O caso da Bahia é alarmante: sem lideranças expressivas nos grandes centros (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), o PT pode perder em 2022 o comando do quarto maior colégio eleitoral do país.

O exemplo de Rio Branco aplica-se à Bahia do ex-governador Jaques Wagner, e de seu sucessor, Rui Costa, que tem 80% de aprovação popular. Após 14 anos no comando do Estado, o PT sai desta eleição com três vezes menos prefeituras do que seus futuros adversários. Dos 417 municípios baianos, o PT governará 32 prefeituras.

O PSD do senador Otto Alencar, pré-candidato à sucessão de Rui Costa, elegeu 108 prefeitos. O DEM do prefeito ACM Neto, também pré-candidato ao governo, fez 37 prefeitos, inclusive Bruno Reis, em Salvador. Se o senador Jaques Wagner não for candidato em 2022, o PT corre o risco de ceder a cabeça de chapa, e ficar sem o comando do Estado que entregou 72% dos votos para Fernando Haddad em 2018.


Ana Carla Abrão: Novos mandatos, velhos problemas

Problemas estruturais continuam presentes em todos os municípios – e os novos prefeitos precisarão enfrentá-los

Há o que comemorar nos resultados das eleições municipais. Se comparadas às eleições anteriores, tão marcadas pela intolerância e pela agressividade, fica claro que uma brisa de temperança dominou. Com ela, ressurgiu a ideia de que há caminho no centro e uma sensação de que a população se vê menos inclinada a mitos, radicalismos e extremos. Tudo isso a conferir, mas algum alento veio das notícias da última noite de domingo.

Mas isso infelizmente não significa que a vida será mais fácil para os novos prefeitos. Apesar das folgas de caixa geradas pelos socorros do governo federal, cujos números foram levantados pelo economista Marcos Mendes e publicados pelo Estadão em matéria de Adriana Fernandes, problemas estruturais de sempre continuam presentes (e maiores) em todos os municípios – e precisarão de coragem dos novos prefeitos para enfrentá-los.

O tamanho do desafio se reflete no Ranking de Competitividade dos Municípios, recém divulgado pelo Centro de Liderança Pública – CLP e elaborado em parceria com a Gove. O relatório com indicadores de 405 municípios serve de guia para os novos gestores entenderem onde estão e o quanto há para fazer se quiserem melhor atender e servir a população das suas cidades. E é o que se espera deles. Afinal, toda nova eleição tem algo de otimismo, de expectativa de melhora, de uso de capital político recém-conquistado para que se faça o que é preciso. Quiçá seja assim desta vez. 

O ranking de municípios é um filhote do ranking dos Estados, há anos publicado pelo CLP em conjunto com a Tendências Consultoria e a The Economist Intelligence Unit. A avaliação abrange municípios com população acima de 80 mil habitantes e se baseia em 55 indicadores, organizados em 12 pilares e 3 dimensões. As informações coletadas se referem a 2019, não incorporando, portanto, os efeitos da pandemia nem tampouco dos recursos recebidos e aplicados ou não no seu combate.

A primeira dimensão analisa as instituições do município, focando nos pilares de sustentabilidade fiscal e funcionamento da máquina pública. A segunda olha para o atendimento à sociedade, composta pelos pilares de saúde e educação, avaliando tanto acesso quanto qualidade, além de saneamento e meio ambiente. Por fim, indicadores de inserção econômica, inovação, dinamismo, capital humano e serviços de telecomunicação compõem o terceiro pilar, de avaliação econômica.

A concentração no Sudeste é consequência do corte mínimo de 80 mil habitantes, mas quase 60% da população brasileira está abrangida pelo conjunto de municípios avaliados. Os resultados dizem o que já sabemos – e sentimos no dia a dia: há cidades brasileiras cujas avaliações relativas são positivas e que apresentam bons indicadores. Mas, no absoluto, a totalidade delas tem uma agenda de avanços a cumprir se de fato os novos gestores quiserem melhorar a vida dos seus eleitores e munícipes. O ranking atual mostra o município de Barueri no topo da lista, seguido de perto por São Caetano do Sul (SP) e na sequência as capitais São PauloFlorianópolis e Curitiba. Na lanterna surgem cinco municípios do Pará: Marituba, Tucuruí, Abaetetuba, Tailândia e Moju. Os destaques dos primeiros são as mazelas dos últimos, com educação, saúde e saneamento como os grandes heróis e também os maiores vilões.

São Paulo, maior e mais rico município do País, se encontra em posição de destaque graças a alguns dos indicadores que medem as dimensões de economia e a qualidade das suas instituições. Nas avaliações de funcionamento da máquina pública e desempenho fiscal, como tudo é relativo, a capital paulista figura na 4.ª posição na primeira, mas está medianamente posicionada na segunda, ocupando a 31ª colocação. Essas dimensões representam, respectivamente, 10,7% e 8,0% de peso no índice geral e medem questões como dependência fiscal, taxa de investimento, despesas de pessoal e endividamento na dimensão fiscal e custo da função administrativa, tempo para abrir uma empresa e qualificação do servidor como critérios de avaliação da máquina. Em alguns desses, como taxa de investimento e nível de endividamento, a capital não brilha.

Mas é na dimensão de atendimento à sociedade que a capital surpreende negativamente – e muito. São Paulo não só não aparece entre os cinco melhores avaliados em nenhum dos indicadores de educação, saúde, segurança ou saneamento, como ocupa uma injustificável 72.ª colocação no ranking geral dessa categoria.

Esse é um excelente ponto de partida para o prefeito eleito, Bruno Covas, cujas juventude e renovadas energias poderão levar adiante esse que é o maior dos mandatos conquistados nas urnas: o de cuidar das pessoas. Para isso, há pedras a serem quebradas, dentre elas uma mudança estrutural no funcionamento da máquina municipal, cujas qualidades têm de estar voltadas para o cidadão e não para si própria. 


Joel Pinheiro da Fonseca: O Brasil optou pela política, mas será a velha ou a nova?

População mostra que os surtos revolucionários duram pouco

Nas eleições municipais, o Brasil voltou à velha política. Sei que o termo é criticado. Alguns propõem que a distinção seja entre "boa" e "má" política, e não "velha" e "nova". A palavra importa pouco, desde que estejamos de acordo sobre a coisa: o fato de que uma boa parte da classe política nacional vive de negociar interesses partidários e individuais por mais poder, mais verbas e mais visibilidade, deixando a população de fora (exceto para ganhar voto).

Diálogo, negociação, saber ceder aqui para obter ali; são virtudes necessárias para uma política que funcione. Querer substituir isso pelos gritos raivosos de um chefe intransigente pode alegrar uma parcela do eleitorado, mas é receita certa para, na melhor das hipóteses, frustração e ineficácia (e, na pior, violência e ditadura). Mas essas virtudes políticas precisam servir a um fim que não é a própria política. E isso ainda não conseguimos fazer.

A história brasileira mostra a preferência pela negociação e conciliação sobre a ruptura e o conflito. Isso não é, em si, bom nem mau; é a característica que salta aos olhos na história brasileira. Tem lado positivo: evitamos os piores derramamentos de sangue, os mergulhos em ideologias alucinadas e grandes líderes onipotentes. E tem o lado negativo: a mudança demora mais. É tudo feito parcialmente, para contemplar também os interesses de quem perdeu. Tanto o mal quanto o bem saem incompletos.

Nossa independência teve conflitos, mas nada que se comparasse à independência americana, da América hispânica ou do Haiti. Idem para a abolição da escravidão. Na hora de passarmos para a República, não matamos nosso monarca, como França ou México. Pelo contrário, sustentamos seus descendentes até hoje.

Nossos períodos ditatoriais, por mais brutais que tenham sido, não se comparam em violência com as ditaduras à direita e à esquerda do resto do continente. Tampouco nosso culto a grandes líderes tem algo que se aproxime de peronismo ou chavismo. Poucos estão dispostos a matar por uma causa ou líder. E absolutamente ninguém está disposto a morrer. Há espaço para todos os grupos que ambicionam o poder; menos para o grosso desarticulado da população.

Não foi à toa que a "classe política" ganhou reputação ruim. É claro que existem representantes sérios, mas um número grande o suficiente e visível o suficiente deu mostras de estar, ao longo das décadas, no jogo político apenas para melhorar sua posição. A corrupção é parte disso, mas não é todo o problema. Mesmo estritamente dentro da lei, uma política profissional que busque apenas os interesses de seus participantes está falhando gravemente na sua função primordial que é servir a sociedade.

É inútil sonhar com uma política na qual não haja, também, negociação de interesses. Na verdade, ela é em alguma medida desejável: sem poder, sem cargos, sem recursos, nenhum político ou partido conseguirá implementar as medidas que beneficiem os eleitores. Estamos fadados a fazer política. O próprio governo Bolsonaro, a essa altura, abandonou suas pretensões revolucionárias para deitar e rolar gostoso com o centrão. Mas faz a "velha" (ou "má") política: negocia sobrevivência, não propostas.

A população mostra que os surtos revolucionários duram pouco; logo buscamos líderes capazes de conversar e chegar a consensos. Mas se eles não entregarem resultados, o sonho de ruptura voltará. Num mundo que se rasga em meio à polarização e a atomização promovida pelas redes sociais, a preferência nacional por negociação e diplomacia vem bem a calhar. Mas apenas se seus líderes souberem conciliar essas virtudes com algo além de seu próprio interesse.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.


Fernando Abrucio: "Eleitor evangélico mostrou que não é voto de cabresto"

Para cientista político, PT ampliou o isolamento e bolsonarismo terá dificuldades em 2022. “Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou”

Aiuri Rebello, El País

Atuando como consultor na construção de candidaturas para as eleições de 2022 e com acesso a diversas pesquisas qualitativas junto a eleitores encomendadas por partidos, o cientista político Fernando Luiz Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas, está confiante em dizer que o tempo do bolsonarismo acabou, apesar de ainda haver mais dois anos de mandato para o presidente Jair Bolsonaro. Mais que isso, ele observa que a esquerda perdeu a hegemonia na discussão de questões sociais e que essa pauta definirá o próximo pleito presidencial e para governador nos Estados. “O grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo”, resume. Nessa entrevista ao EL PAÍS onde analisa o cenário político brasileiro com o resultado das eleições municipais de 2020, Abrucio fala ainda do isolamento do PT e da confirmação de que os eleitores evangélicos na enorme maioria dos casos não coloca a pauta dos costumes acima de questões concretas como emprego, saúde e educação. Leia abaixo.

Pergunta. O que chama atenção nos resultados das eleições municipais deste ano? Existe um padrão no segundo turno?

Resposta. Não só no segundo turno, também no primeiro, nas principais cidades do país vemos uma derrota muito forte do bolsonarismo. Ele teve derrotas muito claras em campanhas nas quais se envolveu, mas não é só isso. O discurso dos vencedores anuncia já um clima de opinião muito diferente do clima de 2018. A eleição municipal é importante não para dizer quem vai ganhar a eleição presidencial, mas para vermos o clima de humor, os assuntos, o clima de opinião. O clima de opinião que vimos em 2018 já estava colocado nas eleições de 2016. O candidato antissistema já estava lá. Pensemos no Doria quando dizia “eu sou gestor, não sou político”. Nessa campanha nenhum dos vencedores falou eu não sou político. Bruno Covas fez uma campanha muito certinha, quadradinha, e explorou o oposto. Dizia na TV, “eu sou político”.

Fora que a imagem do Bolsonaro está muito desgastada. Se pensarmos que o presidente da República e os filhos fizeram campanha pessoalmente para a Wal do Açaí ao cargo de vereadora em Angra dos Reis e ela não se elegeu... Ele teve um nível de superexposição nestes dois anos, lives no Facebook toda semana, tempo todo nas redes sociais. Para o eleitorado mediano em um contexto de crise, afetou ele fortemente, fica se oferecendo como alvo para a frustração das pessoas com a situação.

P. Bruno Covas se distanciou da imagem e discurso do padrinho político dele, no caso o governador João Doria.

R. Não foi só em São Paulo que isso aconteceu. Em todos os lugares o discurso de valorização da política, um discurso mais orgânico, de ativação com a sociedade, isso tudo veio muito forte. Na verdade é o contrário de tudo que foi o bolsonarismo em 2018, uma candidatura antissistema, polarizadora, baseada em chavões e não em discussão de programas. Ele fez uma campanha inteirinha sem falar em questões sociais em um país tão desigual e carente de soluções na área como o Brasil. Se pegarmos as campanhas a prefeito nas capitais agora, olha em Salvador e Rio o DEM, em São Paulo o Bruno Covas e o Guilherme Boulos, as principais candidaturas foram todas muito parecidas em suas temáticas. Especificamente as questões sociais, esse é o tema. E esse vai ser o tema de 2022. É muito diferente do humor eleitoral que a gente tinha em 2018. Eu pego muitas pesquisas qualitativas constantemente e uma coisa está muito clara: o grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo. Hoje não temos um ministro da Educação e nem da Saúde dignos do nome do cargo. Se você fizer uma enquete na rua ninguém vai saber quem são os dois, não conseguem nem gastar o pouco dinheiro que tem.

Na área social o Governo é uma nulidade e a agenda bolsonarista foi enterrada pela pandemia e pelas eleições municipais. Ainda tem a mudança de humor no cenário externo, com a eleição do Joe Biden e que ainda não foi sentida por aqui. A União Europeia agora vai atacar fortemente isso e a China e os EUA também. Vai juntar os três para pressionar o Brasil. A gente começa a perceber que existe uma mudança externa, a pandemia e as eleições municipais que fazem com que aquela agenda e clima de opinião que imperou em 2018 acabou já era.

P. O bolsonarismo está morrendo?

R. Não, mas vai diminuir progressivamente e chegar em 2022 bem menor. Em 23 das 26 capitais, aumentou muito a rejeição ao Bolsonaro nas últimas duas semanas. Isso é impressionante. Em São Paulo, tem pesquisa colocando ele com 17% de bom e ótimo... nunca teve isso e a tendência é piorar, não é melhorar. Não vai ter muito dinheiro para o ano que vem, os partidos do Centrão ali vão se afastar completamente do bolsonarismo para compor a eleição da presidência da Câmara e continuarem firmes, toda a oposição a ele vai começar a bater cada vez mais forte. É todo mundo contra ele. Vendeu-se uma ilusão de que seria um governo que antissistema, que derrubaria o sistema por completo, que acabaria com a corrupção, e essa bandeira o Bolsonaro não tem mais condições de carregar, não consegue mais se colocar como um arauto anticorrupção.

P. O peso do voto evangélico nesse cenário diminuiu?

R. Se você pegar no Rio de Janeiro, grande parte dos evangélicos votou no Eduardo Paes. Por que os evangélicos votaram nele? Em 2018, grande parte dos evangélicos foi nesse discurso bolsonarista de ser contra a corrupção, pela pátria e a família. Passados dois anos, boa parte desse grupo percebeu que precisa de mais alguma coisa. Não adianta ficar falando de pátria, família e religião se não tiver emprego, renda, escola, se parentes estiverem ficando doentes e morrendo de covid-19. Quem é o evangélico com perfil mais padrão na Baixada Fluminense, por exemplo? Homens e mulheres negros ou pardos, é o primeiro dado demográfico. Aí vem o presidente e o vice-presidente dizer que não existe racismo no Brasil? O cara já está sem emprego, vivendo da economia informal, o auxílio emergencial está acabando, percebe que seu filho está sem aula e tem algum parente ou amigo que morreu de covid? Esse cara não está para brincadeira nesse momento.

Para completar, sente-se uma inflação nessa mesma ponta. Embora esteja começando a se alastrar agora e o tamanho disso ainda tem de ser mesurado e vermos se o efeito será duradouro, até agora é principalmente uma inflação acelerada de alimentos. E quem é que sente mais isso? As famílias de baixa renda, boa parte delas evangélicas. A imagem do Bolsonaro está bastante desgastada inclusive dentre os evangélicos, não adianta tentar se desvincular de todos os problemas, as pessoas precisam de soluções. Ele tem um erro de estratégia e comunicação de privilegiar essa coisa ideológica ao invés de políticas públicas. Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou. Neste ano, o eleitor evangélico não é um voto de cabresto, que não obedece cegamente as orientações das lideranças das igrejas. No Rio e em São Paulo, para ficarmos só nesses exemplos, os candidatos da Igreja Universal e do bispo Edir Macedo, Marcelo Crivella e Celso Russomanno, perderam inclusive entre os evangélicos, mostram as sondagens.

P. É possível falar em um renascimento da esquerda, mesmo que incipiente?

R. Não sei. Na verdade o que a gente vê é que a agenda social tornou-se muito forte e não foi exclusividade da esquerda. Os candidatos de direita e centro-direita que abraçaram a pauta social se deram bem. Mais importante que falar no fortalecimento da esquerda é falar no fortalecimento da pauta social, que sempre foi prioritária da esquerda e agora foi incorporada por outros atores políticos. Se pegarmos a situação de Porto Alegre, por exemplo, tirando as fake news contra a Manuela D’Ávila que tiveram um peso importante na derrota dela, o Sebastião Melo começou a falar da questão social o tempo todo. Teve o bárbaro assassinato no Carrefour e ele rapidamente entrou no Twitter e já se posicionou, estava antenado com isso. Os conservadores mais empedernidos que insistem em não legitimar questões como o enfrentamento ao racismo estão de fora dessa nova onda. Isso mostra que apesar de resultados importantes em alguns lugares, mais do que o renascimento da esquerda é a ascensão da questão social, essa é a nova questão central.

P. O presidente e o bolsonarismo de uma maneira geral conseguem se reposicionar e entrar nessa onda?

R. Não, ficou muito ruim para o presidente, porque ele não está preparado para lidar com a questão social. Não tem essa agenda, não se preparou para isso. Não tem técnicos capazes de dar essas respostas, não tem gente que pensa a questão social no Governo federal. Para fazer isso tem de haver vínculos com a sociedade civil, de diversas formas, e o que o Bolsonaro fez desde que assumiu foi cortar essa ligação do Governo com o resto do país, ele está completamente desarticulado com a sociedade. Ele acha que fazer política é fazer live na Internet. Fechou conselhos de participação social, não conversa com ninguém. O retorno que a gente tem de empresários, políticos, representantes de entidades e organizações civis de reunião com o Paulo Guedes e com o Bolsonaro é de que eles não são ouvidos. Então essa ascensão da questão social, que vai se tornar mais forte em 2022, pegou o bolsonarismo de calça curta. Eles não contavam no meio do caminho com a pandemia. O auxílio emergencial é um acidente. Não existia no programa de governo do Bolsonaro nenhuma previsão de transferência de renda. Eles não tem como transformar isso em uma pauta social porque nunca tiveram essa preocupação, não sabem nem por onde começar.

O próprio entendimento sobre a segurança pública pública está mudando. Em 2022 vai ter muito candidato defendendo que a criminalidade é uma questão social. Aquele discurso linha dura do Doria, do Wilson Witzel, caiu. Em 2022 quem vier com esse papo de que bandido bom é bandido morto vai ter ali 15%, 20% dos votos e não passa disso, vai ser massacrado. Nessa campanha a gente viu policial para tudo quanto é lado nas candidaturas e, se olharmos os resultados com calma, não teve a mesma onda que rolou em 2018. Os caras pensaram que iam surfar. Em São Paulo elegeram dois vereadores da segurança pública e um deles foi eleito com a defesa dos cães e gatos. É uma piada. A questão social ganhou uma dimensão que não vai dar em 2022 para falar de segurança pública sem um ponto de vista mais amplo. Teve esse assassinato covarde em Porto Alegre que gerou uma onda forte de revolta ao redor do país, a questão racial está na pauta do dia no cenário externo. A morte do George Floyd nos EUA foi um divisor de águas nesse sentido. É uma onda muito forte essa, igual foi a Operação Lava Jato, o combate à corrupção e a linha dura na segurança pública em 2018. À direita e à esquerda, quem quiser ir bem nas eleições vai ter que modular o discurso e as ações de acordo com essa conjuntura toda que é uma novidade.

P. Qual o perfil do candidato “ideal”, de acordo com esse clima político?

R. Não existe um perfil ideal. Tanto Bruno Covas quanto Guilherme Boulos, por exemplo, com perfis completamente diferentes, foram bem em São Paulo. No caso do Covas, o que ainda prejudicou a imagem dele foi a associação com o vice e o governador João Doria. Não fosse isso ia ser mais parecido ainda. Do ponto de vista programático, não há nenhuma diferença frontal entre as propostas dos dois. Ninguém discorda das questões sociais e identitárias. Essa é uma onda que eu acho que vai vir avassaladora nas próximas eleições.

P. O que podemos dizer da situação do PT? Sai da eleição politicamente enterrado e sem nenhuma capital?

R. No cenário nacional, o que vemos é que o PT ficou mais isolado ainda no cenário político. O eleitor que tradicionalmente votava no PT preferiu o Boulos, o candidato do Ciro e em 2022 pode fazer mesmo ao invés de votar no Lula ou seu indicado novamente. Eu não diria que é um grande perdedor, por que na verdade quem já estava por baixo não tem como ser o grande perdedor. Grande perdedor é quem estava forte e perdeu espaço. Ele não sai maior ou menor, sai mais isolado.

P. E o papel do Novo nesse ciclo político que se inicia agora?

R. Qual é a grande marca do Novo em meio a pandemia? Processo seletivo para lançar candidatos. Não conseguiu oferecer nada de concreto para o país. Eles parecem completamente descolados da realidade brasileira. O resultado eleitoral é esse aí, pífio. A principal liderança eleita deles, que é o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, vai ter problemas para conseguir se reeleger. É engraçado como eclodiu uma nova agenda e muitos não se prepararam, incluindo o Novo. Eles não conseguiram entender até agora o que é fazer política pública. E fora isso perderam identidade. Eles eram a favor do Sergio Moro, da Lava Jato. O Moro saiu do jeito que saiu do Governo e o que eles fizeram? Nada. Estão completamente perdidos. Se você olhar as redes sociais, muito mais que o Novo quem tem ocupado o lugar de um partido liberal na economia e costumes é o Livres. O Novo se propôs a ser conservador nos costumes e liberal na economia. Não precisava de um partido novo para isso. Tem vários na praça com essa proposta. Talvez fosse em uma campanha em outro país, um muito rico. Eles perderam o bonde da história.

P. Com o resultado do Bruno Covas em São Paulo, o governador João Doria obteve uma vitória importante para lançar seu nome à presidência?

R. Eu vejo o Doria enfrentando muita dificuldade. Ele foi muito longe no discurso bolsonarista e agora está com problemas para voltar atrás. Você a aprovação do Doria e do Bolsonaro em São Paulo nessas últimas pesquisas, é ruim igual. É um negócio assustador ali na casa dos 15% de bom e ótimo. Disseram que a campanha em São Paulo ia ser uma prévia do embate entre Doria e Bolsonaro, e o Covas tem o dobro de popularidade dos dois. O eleitorado identificou nele sensibilidade social. O Doria vai ter muita dificuldade de fazer essa volta no discurso. As pessoas não perdoam ele em São Paulo. Se chegar em 2022 com essa rejeição em São Paulo, o PSDB não vai querer dar a cabeça de chapa presidencial para ele e, se fizerem isso, vão começar a ter problemas para eleger bancada legislativa. O Doria tem o ano que vem para mostrar que se redimiu e está dentro da nova agenda da sociedade brasileira. Nesse quadro, a vacinação prometida pode virar o jogo para ele.

P. O ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, fica onde nesse xadrez político e eleitoral?

R. Esse impulso de novas temáticas pode ser aproveitado pela centro direita e pela esquerda. A direita mais ligada ao bolsonarismo e a Lava Jato está muito distante dessa pauta. O Moro não entendeu em que país estamos. Não tem a menor ideia do que fazer em educação, saúde, combate à desigualdade, não sabia nem o que fazer na segurança pública. A única agenda dele é o combate à corrupção. O discurso de que isso vai salvar o país não cola mais. As pessoas continuam achando importante, mas perceberam que sem um conjunto de medidas mais amplo não resolve nada. Essa agenda específica hoje está lá embaixo na lista de prioridades. Então vejo muita dificuldade eleitoral para os dois salvadores da pátria, Bolsonaro e Moro, que brigaram e querem disputar entre si. Mesmo o eleitorado de classe média, mais conservador, percebeu que precisa de mais que isso. A situação social piorou demais no país, e todo mundo vê isso.


Fernando Gabeira: A tempestade passa

Se superarmos a barreira mental de Bolsonaro, a vacina pode representar o fim da pandemia

Coragem, o fim da tempestade está próximo. Tenho vontade de escrever isso, sem hesitações. Mas temo parecer muito otimista. No passado, velhos como eu muito otimistas me davam uma ligeira aflição.

Mas vamos aos fatos. Historicamente, costuma haver uma espécie de renascimento depois das grandes epidemias. A vacina está no horizonte. Podemos esperar alguma euforia e otimismo, caso seja eficaz e distribuída adequadamente.

O principal obstáculo é o governo negacionista, que minimiza a Covid-19 e duvida de vacinas. Tradicionalmente, o Brasil tem capacidade de produzir vacinas e realizar grandes campanhas de imunização.

O governo federal falhou nos testes, deixando 6,8 milhões deles esquecidos num galpão em São Paulo. O general Pazuello é considerado um especialista em logística. Fez um bom trabalho em Roraima, na Operação Acolhida, que recebeu os venezuelanos.

Ele vem sofrendo alguns desgastes. Contraiu Covid-19 e foi obrigado a se curvar diante de Bolsonaro. Não sei se o corpo mole é resultado da influência do próprio Bolsonaro, que, aliás, duvida de vacinas e acha melhor encontrar um remédio para o coronavírus.

Se conseguirmos ultrapassar a barreira mental de Bolsonaro e de seus subordinados, a vacina pode, sim, representar o fim da pandemia.

Com ela, é possível também pensar numa recuperação econômica, numa retomada das relações presenciais. Sem desprezar os ganhos da imersão no virtual, novas energias vão aflorar.

A política ambiental do Brasil é absurda; a política externa, um disparate inédito em nossa história. Num dia, Bolsonaro ameaça usar pólvora contra Biden; no outro, o filho Eduardo acusa os chineses de potencial espionagem na tecnologia .

Além das duas potências mundiais, restaram poucos alvos para o insulto bolsonarista. O próprio Bolsonaro fez referências criticas à Alemanha e à Noruega, comentários machistas sobre a primeira-dama francesa e previsões catastróficas sobre o governo argentino.

Os ultrarrealistas dirão: nada disso importa, se houver um pequeno crescimento econômico. A verdade é que o Brasil precisa de um crescimento econômico sustentado, e essa tarefa é mais complexa do que um simples voo de galinha.

Quando passar a tempestade sanitária, as pessoas que compreendem este governo como a grande pedra no caminho terão mais mobilidade. Talvez possam ir para as ruas, sem a preocupação de atrair grandes massas no princípio.

A imprensa brasileira acostumou-se a julgar manifestações de forma apenas quantitativa. É um equívoco. Dentro dessa lógica, se recebesse a notícia de que houve algo com os 18 do Forte, não mandaria ninguém a Copacabana. Ou mesmo com o grupo de intelectuais que protestou contra a ditadura diante do Hotel Glória: eram só oito resistentes diante de um poderoso governo militar.

A multiplicidade de protestos, a fermentação, tudo isso acaba conduzindo a movimentos mais amplos, desses que encantam os contadores de gente na rua e impressionam os políticos míopes.

Num texto anterior, afirmei que Bolsonaro estava derretendo. Baseava-me numa análise que está se confirmando nas pesquisas. Não sou otimista o bastante para supor que Bolsonaro vá se derrotar sozinho. Não basta se sentar na poltrona e acompanhar seus movimentos autodestrutivos.

Será preciso muito movimento, troca de ideias e, em caso de avanço, sensatez política para evitar que, no desespero, ele envolva as Forças Armadas numa trágica aventura.

Essa ideia não se relaciona diretamente com eleições. É possível votar em candidatos diferentes mas, simultaneamente, compreender o conceito de adversário principal.

A esta altura do processo, é possível afirmar que qualquer um representa um perigo menor para o Brasil. Os ultrarrealistas que me perdoem: Bolsonaro nunca mais. Nunca houve na história recente do Brasil uma sucessão de erros tão graves, embora o processo de redemocratização tenha sido marcado por alguns equívocos e escândalos de dimensão continental.

Uma das características de um governo voltado para a destruição ambiental é que pode levar alguns biomas a um ponto de não retorno.

Embora iniba política vitais, a roubalheira desvia o trabalho morto, simbolizado no dinheiro público desviado.

A cegueira ambiental atinge a vida diretamente: Bolsonaro extermina o futuro.


Demétrio Magnoli: A cidade de Crivella

Não há como fugir à constatação de que prefeito venceu no primeiro turno em territórios controlados por uma milícia específica

No primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, Bruno Covas (PSDB) obteve 33% dos votos, e Guilherme Boulos (PSOL), seu rival no segundo turno, 20%. A ampla diferença, de 13 pontos percentuais, refletiu-se no triunfo de Covas em todos os distritos da capital paulista. No primeiro turno do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM) conseguiu 37% dos votos, contra 22% de Marcelo Crivella (Republicanos). Mas a diferença, de 15 pontos percentuais, não se traduziu por vitórias de Paes em todos os distritos. O atual prefeito venceu em cinco zonas eleitorais, quatro delas situadas na Zona Oeste. O mapa eleitoral conta uma história sobre o Rio.

Há uma regra sociológica geral, violada pelo mapa do primeiro turno no Rio. No caso de eleições decididas por margens apertadas, é normal que se verifiquem vencedores distintos em diferentes regiões. Contudo, em pleitos muito assimétricos, o primeiro colocado triunfa em todas as grandes regiões. As exceções merecem análise específica, pois decorrem de cisões sociais marcantes. O mapa de Crivella inscreve-se nessa categoria.

A cisão de renda não explica o fenômeno. Certamente, o atual prefeito obteve suas escassas vitórias em áreas pobres da cidade — mas não em todas, nem na maioria delas. O cenário Leblon versus Campo Grande, tão atraente para analistas apressados, distorce radicalmente a realidade eleitoral do primeiro turno. Prova disso está nos triunfos de Paes em diversos bairros ainda mais pobres da própria Zona Oeste.

A influência neopentecostal da Igreja Universal explica apenas um aspecto do fenômeno. A Universal opera com força em quase todas as periferias da cidade, não apenas nos bairros que deram maioria ao prefeito. Não há como fugir à constatação de que Crivella venceu em territórios controlados por uma milícia específica.

A territorialização de grupos armados ilegais percorre duas etapas clássicas. Na primeira, os milicianos estabelecem redes de negócios, explorando o mercado compulsório formado pelos habitantes das áreas sob seu domínio. Na segunda, a fim de consolidar tais atividades econômicas, infiltram-se na esfera política, capturando instituições estatais. O mapa de Crivella evidencia o grau de progresso das milícias cariocas nessa direção.

No Rio, as milícias nasceram no interior da polícia, um aparato estatal, e já operam há tempo na política, elegendo vereadores e deputados. A impunidade prolongada dos grupos de milicianos, bem como a natureza explícita de seus negócios, indica a cumplicidade passiva ou ativa de sucessivos governos estaduais e municipais com essas organizações criminosas. Policiais-milicianos foram celebrados e agraciados por comendas parlamentares. As casamatas das milícias atravessaram, intocadas, o longo período de intervenção militar federal na segurança pública do estado. Hoje, em certas regiões da cidade, como revela o mapa de Crivella, as milícias sequestraram o direito de voto dos cidadãos.

Campo Grande, centro do mapa de Crivella, é a base da Liga da Justiça (hoje Bonde do Ecko), maior milícia carioca, fundada pelos irmãos Natalino Guimarães, ex-deputado estadual, e Jerominho Guimarães, ex-vereador. A milícia expandiu-se para a Baixada Fluminense e controla negócios variados e bem conhecidos, com um foco especial em condomínios do programa Minha Casa Minha Vida.

As empresas do grupo financiam campanhas eleitorais de inúmeros candidatos. Um inquérito policial apura o envolvimento de milicianos do Bonde do Ecko no assassinato de diversos pré-candidatos rivais às câmaras de vereadores da Baixada Fluminense, do ano passado para cá. Desde as eleições de 2016, a organização criminosa tem candidato a prefeito — e o nome dele é Crivella. A cruz do pastor e a arma do miliciano marcham juntas na Zona Oeste do Rio.

O conceito de “Estado falido” aplica-se aos países em que o poder estatal perdeu, total ou parcialmente, o monopólio da força. O Brasil ainda não pode ser rotulado como “Estado falido”, mas a classificação descreve à perfeição a paisagem de sua segunda maior cidade. O mapa eleitoral não mente.