eleição 2020

Zeina Latif: Responsabilidade nas promessas

Embora com tom mais moderado, Guilherme Boulos repete o nefasto e equivocado discurso populista

Os debates eleitorais têm muito a melhorar. Candidatos da oposição muitas vezes constroem a imagem de que é fácil resolver os problemas e que, se nada foi feito antes, foi por descaso ou desonestidade. A simplificação excessiva, como na campanha de Bolsonaro em 2018, atrapalha a decisão consciente e o amadurecimento do eleitor.

O discurso fácil e eloquente dá voto, pois segmentos da sociedade continuam em busca de “salvadores da pátria”. Porém, cedo ou tarde, chega a fatura, como na decepção de eleitores com o presidente.

É necessário ir além da superficialidade e afastar promessas descabidas, pois enfrentar os desafios do desenvolvimento requer maturidade política.

Os candidatos à reeleição, por sua vez, falham ao não explicitar problemas e diagnósticos, talvez por temerem críticas. Ao final, há uma cumplicidade perversa entre contendores no debate eleitoral, ao evitarem temas polêmicos.

A campanha para a eleição da Prefeitura de São Paulo não foge à regra.

Mal se discute, por exemplo, o grave desequilíbrio da previdência municipal. Em 2019, o rombo foi de R$5,4 bilhões, o que equivaleu a 16% da arrecadação tributária. O déficit atuarial estava em quase R$163 bilhões.

Depois da desistência de Fernando Haddad e o insucesso de João Doria, a reforma da Previdência foi aprovada no fim de 2018. A pressão do funcionalismo foi enorme e houve greve no início de 2019, data escolhida a dedo para coincidir com o calendário escolar, segundo os próprios sindicalistas.

A reforma, porém, foi tímida, prevendo praticamente apenas o aumento da alíquota de contribuição dos servidores de 11% para 14% e a previdência complementar para entrantes com benefício acima do teto do INSS.

Não foi alterada a idade mínima de aposentadoria, diferentemente da reforma federal, que, diga-se de passagem, foi atacada por Guilherme Boulos, candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo. Agora, ele defende mais contratações para aumentar a arrecadação previdenciária do município. Argumento incompreensível.

O jovem político reproduz o discurso da velha esquerda que não acredita em restrição orçamentária e acha que tudo se resolve com mais recursos. Nada se ouve sobre melhorar a gestão nas diversas áreas. A lista de promessas de campanha é inexequível, pela falta de recursos e por contemplar medidas tecnicamente equivocadas.

Para cobrar a dívida ativa, em boa medida irrecuperável neste País de crises frequentes, Boulos promete contratar mais procuradores. Para reduzir a população de rua, propõe usar a rede hoteleira e contratar mais agentes. Para a saúde, mais médicos. E por aí vai.

Promete uma “renda cidadã” paulistana, uma política onerosa e mais adequada para a União, e defende o que chama de economia solidária – por exemplo, a compra de alimentos de pequenos produtores no cinturão verde, fora de São Paulo, para prover escolas. No entanto, em uma grande metrópole, ganhos de escala são necessários para garantir a efetividade das políticas públicas e, ao mesmo tempo, evitar despesas em demasia.

Para financiar seus programas, o candidato diz contar com a recuperação da dívida ativa e com a suposta sobra de caixa – um recurso já comprometido e exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ele confunde fluxo com estoque (fluxo de despesa permanente pago com estoque finito de recursos), erro básico, que, de quebra, fere a LRF.

Faltam bons diagnósticos sobre os problemas da cidade, as prioridades e a realidade fiscal.

O próximo prefeito terá muitas outras missões, como povoar e adensar os bairros centrais com infraestrutura urbana, o que reduziria tempo no transporte, pressionaria menos o preço da terra – tema caro ao Boulos – e ajudaria a preservar o meio ambiente, em meio ao aumento de loteamentos ilegais.

Oxigenar o debate público, como fazem alguns candidatos “nanicos”, é saudável. O crescimento de Boulos exige, porém, maior responsabilidade nas propostas. Embora com tom mais moderado, ele repete o nefasto e equivocado discurso populista.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Celso Rocha de Barros: A eleição de 2020 será normal?

A Lava Jato, a antipolítica e o rescaldo de 2013, fatores que complicaram a eleição de 2018, parecem ter morrido

A próxima eleição para prefeito é especialmente difícil de prever: não tem nenhum modelo de ciência política que incorpore os efeitos de uma pandemia que matou 110 mil pessoas e impedirá a campanha de rua, ou a ressaca de uma tentativa de golpe de Estado frustrada, ou o desmonte aberto, sem resistência, do principal fator que explicou a eleição de dois anos atrás (a Lava Jato).

O presidente da República, que até outro dia tentava o autogolpe, não montou um partido para si, porque achava que não ia ter mais que se preocupar com essas coisas. O ciclo político de indignação que começou em 2013 parece ter terminado com o exercício do poder pelos que têm dinheiro e armas da maneira mais aberta, criminosa e impune possível.

E o impressionante é que a eleição de 2020 pode ser a mais “normal” desde 2013, justamente por isso. Os fatores que complicaram 2018 —a Lava Jato, a antipolítica, o rescaldo de 2013— parecem ter morrido no desabamento posterior.

Talvez por isso, pode haver um retorno à política mais pé no chão.

Muitos candidatos que lideram as pesquisas são administradores cujas gestões são, ou foram, razoavelmente aprovadas: Eduardo Paes, Alexandre Kalil, Bruno Covas. Mesmo onde a esquerda tem chances de vencer, trata-se de lugares onde ela é ou já foi poder várias vezes.

Se esses candidatos estabelecidos forem vencedores, 2020 pode ser o anti-2018, não, necessariamente, por ser anti-Bolsonaro, mas por ser anti-antissistema, do mesmo modo que o governo é anti-antifascista.

Nesse cenário, pode ser uma eleição “fria”, sem os grandes entusiasmos dos últimos anos, que, repito, parecem ter sido desperdiçados.

Mas é cedo para cravar isso. Em primeiro lugar, há a possibilidade de o auxílio emergencial reforçar Bolsonaro como cabo eleitoral. Se a eleição se nacionalizar, ela pode esquentar, e os bolsonaristas tentarão avançar sobre as posições da centro-direita com o populismo robusto de que falamos na última coluna. Se você confia que um Bolsonaro fortalecido dessa maneira não voltará a ser golpista, você é mais otimista do que eu.

A nacionalização da eleição poderia, em tese, ser boa notícia para a esquerda, que vai muito mal nas pesquisas até agora. A campanha pode ser a primeira grande chance para a esquerda denunciar Bolsonaro.

Mas a esquerda brasileira vive um momento difícil. A falta de campanha de rua é um problema para a militância. Mais do que isso, há uma disputa pela liderança do bloco da esquerda cujo resultado ainda é incerto, o que se reflete na fragmentação das candidaturas.

É perfeitamente possível que, em algumas cidades, a soma dos votos de esquerda seja significativa, mas os progressistas fiquem fora do segundo turno. Espero ter a chance de discutir as várias opções da esquerda nas próximas colunas.

No fundo, a eleição de 2020 será um bom momento para a centro-direita descobrir se valeu a aposta de não derrubar Bolsonaro. Se a eleição for normal, ela deve ser a grande vencedora da rodada. Aumentarão as chances de uma coalizão liderada por Doria, Moro ou Luciano Huck, mas, sobretudo, aumentarão as chances de estabilização institucional.

Por outro lado, se Bolsonaro sair vitorioso e ressurgir como fator de instabilidade, a turma do deixa-disso de 2020 pode se arrepender de suas escolhas.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)