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Jamil Chade: Nobel da Paz destaca democracia e jornalismo

Prêmio Nobel manda recado a líderes autoritários e coloca a liberdade de imprensa como pré-requisito para a democracia e a paz

Jamil Chade / El País

Em 1935, o prêmio Nobel da Paz foi para o jornalista Carl von Ossietzky. Seria ele quem iria revelar, numa reportagem publicada anos antes, como o governo alemão estava, de forma secreta, armando-se e violando o Tratado de Versalhes. Por fazer jornalismo, ele foi condenado por traição e cumpriu pena de prisão.

Quando os nazistas chegaram ao poder, em 1933, ele voltou a ser detido e enviado a um campo de concentração. Sua situação levou o Nobel a agir e conceder o prêmio ao jornalista, na esperança de pressionar Berlim.

Mas Adolf Hitler reagiu com fúria e proibiu todos os alemães de receber qualquer homenagem que viesse do Comitê do Nobel enquanto ele estivesse no poder. Ossietzky nunca foi autorizado a deixar a prisão para o evento em Oslo e, em 1938, morreu no hospital de sua cadeia. Um ano depois, o que ele revelou se traduziria no Holocausto.

Quase 100 anos depois, o Nobel volta a ser dado a jornalistas, num momento em que a imprensa está sob ameaça constante, tanto por parte de regimes autoritários como por líderes que usaram a democracia para chegar ao poder.

A lógica do Nobel é tão simples como poderosa. Democracias tendem a evitar conflitos, tanto internos como no exterior. Construir democracias, portanto, é um ato de resistência às tentações da guerra. Mas, como pré-requisito para a democracia, a liberdade de imprensa e de expressão é fundamental.

Em outras palavras: uma imprensa independente é a infraestrutura de uma democracia sólida que, por sua vez, é a maior garantia de paz.

Manipulada ou sequestrada, a imprensa também pode ser instrumento de guerra. Em Ruanda, a Radio Télévision Libre des Mille Collines teve um papel fundamental como braço de comunicação do governo Hutu, contra a etnia Tutsi. Ao despertar e incitar o ódio, ela passou a noticiar a campanha com um tom de triunfo. O resultado? Um genocídio.

Mais recentemente, a desinformação —nas redes sociais ou em estúdios sofisticados e fantasiados de “opinião”— passou a ser assumida por alguns como instrumento político, mesmo que o resultado seja a morte de cidadãos. A desinformação desestrutura sociedades, abala eleições, muda o rumo de países, cria rupturas entre membros de uma família e instala o ódio. Sempre com um objetivo: o poder.

Mas o Nobel sinalizou, de uma forma clara, nesta sexta-feira, que existe um antídoto, e ele se chama jornalismo.

Fiel aos princípios fundamentais dos direitos humanos, responsável e implacável, a imprensa tem a capacidade de transformar. E por isso é tão temida por líderes autoritários.

Quando se apela à proteção da imprensa, o objetivo não é apenas resguardar a vida de um profissional. Mas garantir o fortalecimento da cidadania e a capacidade de indivíduos de saber o que fazem com seu dinheiro e com o mandato que sua soberania concedeu.

Maria Ressa e Dmitry Muratov não são apenas jornalistas. Assim como tantos outros pelo mundo que fazem de seu trabalho uma profissão de fé, são pilares de liberdade de suas respectivas sociedades. Portam armas que servem de instrumento de paz.

No dia 8 de outubro de 2021, o jornalismo sai fortalecido e ganha um escudo simbólico de proteção. Num momento definidor para o destino de nossas sociedades, o Nobel deixa claro que atacar o jornalismo é ameaçar a democracia.

E, no Brasil, com um governo que realizou 331 ataques contra a imprensa apenas no primeiro semestre de 2021, o que está em jogo não é apenas a vida de jornalistas. Mas a paz.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-10-08/paz-democracia-e-jornalismo.html


El País: Carolina Maria de Jesus, para além dos clichês

Uma exposição no Instituto Moreira Salles e a reedição de seus textos pela Companhia das Letras devolvem à atualidade a autora de ‘Quarto de despejo’

Naiara Galarraga Gortázar / El País

Se fosse uma personagem de conto de fadas, seria uma Cinderela sem frescuras. Negra. Durante seis meses, em 1960, o livro mais vendido do Brasil foi um diário em que Carolina Maria do Jesus relatava com toda crueldade sua miserável subsistência, a batalha cotidiana contra a fome, a busca incansável de papelão no lixo para reunir alguns trocados com os quais alimentar seus três filhos. Quarto de despejo é um retrato das favelas iluminado por uma moradora com dois anos de escolaridade. Foi um fenômeno editorial, um best-seller. Uma exposição recém-inaugurada em São Paulo e a reedição de seus escritos sem a ingerência dos editores trazem novamente à atualidade uma obra que abrange crônica, romance, contos, teatro, letras musicais… e vai além do clichê.

Vista de uma das salas da exposição sobre Carolina Maria de Jesus no Instituto Moreira Salles de São Paulo.
Vista de uma das salas da exposição sobre Carolina Maria de Jesus no Instituto Moreira Salles de São Paulo. Foto: Lela Beltrão

Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é uma personagem extraordinária. Neta de um homem escravizado que tinha o apelido de Sócrates africano, era uma leitora voraz dos clássicos da literatura romântica e foi empregada doméstica antes de virar catadora de papelão. Centrada na sua missão de conseguir pão, leite, feijão e sapatos para a prole, ouvia valsas vienenses e sempre tirou tempo para ler.MAIS INFORMAÇÕESEstante EL PAÍS | Reedições de Carolina Maria de Jesus e mais mulheres nas leituras de agosto

Em 21 de julho de 1955 escreve no diário que serve de base a Quarto de despejo: “Quando cheguei em casa eram 22h30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei a comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Eu gosto de manusear um livro. O livro é a maior invenção do homem”. Estava decidida a que seus cadernos fossem publicados, como deixou anotado em 27 de julho: “Estou escrevendo um livro, para vender. Minha intenção é comprar um terreno com esse dinheiro e sair da favela”.

Carolina Maria de Jesus, fotografada em 23 de fevereiro de 1963, numa imagem pertencente ao Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Carolina Maria de Jesus, fotografada em 23 de fevereiro de 1963, numa imagem pertencente ao Arquivo Público do Estado de São Paulo. Foto: Arquivo Público/SP

Conseguiu se mudar quando os escritos que guardava foram descobertos pelo jornalista Audálio Dantas, que visitou a favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, para fazer uma reportagem. Com drásticos cortes para aliviar a onipresença da fome no original —Dantas dizia que “aparece com uma frequência irritante”—, publicou aquele relato. Causou sensação. A história dessa mãe solteira era um poderoso contraponto ao discurso do Brasil moderno, do futuro, que tinha em Brasília, a nova capital, inaugurada também 1960, o grande símbolo de seu progresso.

A partir da sua vida, a catadora analisa uma miséria que ainda hoje atravanca o caminho do país. Vendeu meio milhão de cópias. Ela e seus filhos deixaram para trás a favela, um mundo que descreve como uma luta constante, de moradores que se roubavam uns aos outros e vizinhas fofoqueiras. Mudou-se para um bairro de classe média. Autografava exemplares. Quarto de despejo foi traduzido em 13 idiomas (incluído o espanhol, em três versões, e o catalão), chegou a leitores soviéticos, japoneses… A Cinderela negra apareceu até mesmo na Time.

A exposição teve curadoria do antropólogo Hélio Menezes e da historiadora Raquel Barreto.
A exposição teve curadoria do antropólogo Hélio Menezes e da historiadora Raquel Barreto. Foto: Lela Bentrão

A exposição recém-inaugurada no IMS-SP se chama Um Brasil para os brasileiros. O museu quis abrir o foco para mostrar a autora em toda a sua diversidade e riqueza. “Foi uma leitora voraz e uma escritora com um projeto estético literário definido, que passou por vários gêneros. Escrevia diariamente”, diz uma das curadoras, da exposição, a historiadora Raquel Barreto, destacando que “em cada um desses gêneros é uma Carolina diferente, o que diz muito da sua complexidade como autora. A poeta não é como a narradora, nem como a cronista, nem como a contista. Também vemos isso no seu trabalho como compositora”.

Carolina Maria de Jesus, em outra imagem de agosto de 1960, incluída na exposição do Instituto Moreira Salles.
Carolina Maria de Jesus, em outra imagem de agosto de 1960, incluída na exposição do Instituto Moreira Salles. Foto: Arquivo público/SP

Na manhã de último domingo, Letícia Montsho, cantora e atriz de 26 anos, era uma dos dois únicos visitantes negros na exposição. Observava cada detalhe com emoção. Para ela, é algo pessoal. A escritora recorda as penúrias que sua avó sofreu, sua coragem, os desafios cotidianos. Descobriu Carolina Maria de Jesus já adulta, através do teatro, porque na escola não é estudada. “Foi necessário que ela existisse para que eu estivesse hoje aqui”, diz.

A antiga catadora de papelão publicou outros três livros em vida, mas com o tempo as vendas caíram, o dinheiro voltou a minguar, e morreu pobre. Barreto e o outro curador, o antropólogo Hélio Menezes, mergulharam num legado distribuído em vários arquivos públicos. Descobriram originais que mostram até que ponto os editores distorceram sua obra, 80% da qual permanece inédita. São 6.000 páginas manuscritas.

Por coincidência ou pelo impulso de renovação que os protestos antirracistas e o Me Too trouxeram também à cultura, a exposição, que fica em cartaz até 30 de janeiro, ocorre simultaneamente à reedição das obras de Carolina Maria de Jesus pela Companhia das Letras. São textos publicados agora com a grafia original, sem necessariamente seguir a norma culta da língua. Não é que ela tenha tido menos escolaridade que a média. Estudar apenas dois anos era o normal entre as mulheres negras da época, porque o futuro se limitava a catar papelão, lavar, passar ou criar os filhos dos outros…

Vista geral da exposição.
Vista geral da exposição.LELA BELTRÃO

Com o tempo, a autora de Quarto de despejo caiu num esquecimento quase generalizado. Mas algumas mulheres negras viram nela uma referência. “É a fundadora de uma linhagem, inspirou outras a escreverem”, destaca o curador Menezes. Abriu um caminho pelo qual nestas décadas transitaram escritoras como Conceição Evaristo, a literatura das periferias, mulheres rappers ou poetas do slam improvisado… Algumas delas também foram empregadas domésticas. Batalharam e batalham para serem levadas a sério. Carolina Maria de Jesus é mais estudada em universidades dos Estados Unidos que no Brasil, salienta Menezes.

A mostra também abre o foco no sentido literal, porque resgata fotografias inéditas ou pouco conhecidas que se chocam com as imagens mais difundidas, as de uma mulher cabisbaixa, com um lenço branco ocultando o cabelo crespo. Houve outra Carolina Maria de Jesus. A que posa com os vestidos elegantes que tanto ansiou possuir, colar de pérolas e os cachos ao ar, sorridente.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/cultura/2021-10-08/carolina-maria-de-jesus-a-escritora-da-favela-que-virou-fenomeno-editorial.html


O Brasil precisa olhar para as mulheres vítimas de violência

26% das vítimas de homicídio com emprego de arma de fogo em 2019 sofreram a agressão fatal em casa

Cristina Neme / El País

A violência contra a mulher é um fenômeno que afeta a sociedade globalmente, produz impactos do ponto de vista individual e social em diversas esferas, como saúde, educação, trabalho e renda, e cujos danos podem se estender por gerações. No âmbito da violência doméstica, prevalece aquela provocada pelo parceiro íntimo, que passa a se manifestar e a atingir as mulheres desde a juventude, avançando na fase adulta e comprometendo sua vida ao longo das fases reprodutiva e produtiva. Relatório global da Organização Mundial da Saúde estima que na região da América Latina e Caribe a violência provocada por parceiro íntimo atinge 25% das mulheres entre 15 e 49 anos.

No recente estudo elaborado pelo Instituto Sou da Paz, o comportamento dos indicadores criminais do estado de São Paulo durante o primeiro semestre de 2021, chama a atenção, por um lado, a redução geral de ocorrências violentas, como homicídios e roubos, e, por outro, o aumento de ocorrências de violência contra a mulher e de estupros, em comparação com o primeiro semestre de 2020. Se em 2021 os homicídios sofreram redução de 3% no estado, os homicídios de mulheres cresceram 2,6% e as lesões corporais dolosas contra mulheres, 5,4%. As ocorrências de estupro, que atingem majoritariamente as mulheres, também aumentaram, sobretudo as de estupro de vulneráveis, que correspondem a 77% desses casos de violência sexual e tiveram crescimento de 17,5% neste primeiro semestre em relação ao mesmo período do ano anterior.

É preciso observar esses indicadores no contexto da pandemia da covid-19, visto que o isolamento social afetou a dinâmica de crimes e violências. No primeiro semestre de 2020, quando tivemos o primeiro isolamento amplamente instituído, observou-se uma queda dessas ocorrências em relação a 2019, não só em São Paulo mas também em outros estados. Considerando que as agressões contra as mulheres e a violência sexual contra vulneráveis prevalecem no ambiente doméstico, nota-se que a queda nos registros de lesões corporais e de estupros durante o primeiro momento de isolamento social refletiu antes a subnotificação desses crimes do que sua redução. Com maior exposição e vulnerabilidade a violências que ocorrem dentro de casa e maior dificuldade de acessar canais institucionais para denúncia e atendimento dos casos, os registros sofreram uma redução expressiva no primeiro semestre de 2020.MAIS INFORMAÇÕESInstituto Sou da Paz: O acesso às armas é a única resposta de Bolsonaro para melhorar a segurança pública?

Assim, o aumento observado em 2021 sinaliza para uma retomada dos registros que vem resultar em estatísticas mais aproximadas da realidade, ou menos subnotificadas, dando visibilidade para a gravidade e recorrência desse tipo de violência. No Brasil, pesquisas de vitimização —como as realizadas pelo Datasenado, em 2019, e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021— indicam que ao menos 1/4 das mulheres já sofreram algum tipo de agressão, que seu parceiro, companheiro ou ex-companheiro, prevalece entre os agressores, assim como a casa permanece como o principal local onde ocorre o evento violento. E que não chegam a 30% as vítimas que recorrem a instituições como a polícia ou o Disque 180 para fazer a denúncia.). A denúncia é um passo importante para romper o ciclo de violência que caracteriza a violência doméstica e pode se agravar até chegar ao feminicídio, que é o assassinato de mulheres por razões de gênero.

Em relação à morte violenta de mulheres, a partir de dados da saúde, estima-se que no país 1/3 dos assassinatos estão relacionados à violência de gênero, visto que provocados por um parceiro ou ex-parceiro e ocorridos em residências. Os dados da segurança pública, que passaram a ser produzidos a partir da Lei do Feminicídio (2015), se alinham à estimativa ao indicar que os casos de feminicídio corresponderam a 34,5% dos homicídios de mulheres brasileiras em 2020 e, no estado de São Paulo, essa proporção chegou a a 42% (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2021).

Aqui um ponto merece atenção: a arma de fogo é o principal instrumento empregado no assassinato de mulheres, estando presente em cerca de 50% dos casos ocorridos nas últimas duas décadas, conforme indicado em outra análise do Instituto Sou da Paz sobre o Papel da Arma de Fogo na Violência contra a Mulher.

De modo geral a violência armada e os homicídios acontecem nas ruas, sobretudo no caso da vitimização masculina. Mas, entre as mulheres, chama atenção que 26% das vítimas de homicídio com emprego de arma de fogo em 2019 sofreram a agressão fatal em casa. Ainda, 40% das mulheres atendidas no sistema de saúde, vítimas de algum tipo de violência com arma de fogo que não resultou fatal, sofreram a agressão armada em casa —casa que se tornou em 2019 o principal local deste tipo de incidente, à frente da rua. Esses dados evidenciam o risco que a arma de fogo representa no agravamento dos conflitos interpessoais e domésticos ao contribuir para desfechos fatais e/ou danos graves à saúde das vítimas.

Frente à complexidade do problema, já temos grandes desafios para fortalecer e expandir as políticas públicas de enfrentamento da violência contra a mulher, garantindo a implementação de mecanismos de proteção e de acolhimento. No contexto atual, frente aos retrocessos na política de controle de armas, é preciso atentar para o risco que a facilitação do acesso às armas de fogo pode representar em relação ao agravamento dos conflitos interpessoais e da violência doméstica. Defender uma política responsável de controle de armas no país é também um requisito fundamental para avançarmos no enfrentamento da violência contra a mulher.

Cristina Neme é coordenadora de Projetos do Instituto Sou da Paz

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-10-05/o-brasil-precisa-olhar-para-as-mulheres-vitimas-de-violencia.html


CPI entra na reta final com cerco a planos de saúde

Para senadores, já há elementos para que o MP investigue empresas que adotaram cloroquina e omitiram mortes por covid-19

Afonso Benites / El País

CPI da Pandemia entra em sua reta final nesta semana e, por falta de tempo, deixará para o Ministério Público a conclusão das apurações sobre planos de saúde que omitiram óbitos de covid-19 e que pressionaram seus médicos a prescreverem o ineficaz kit covid. Parlamentares ouvidos pela reportagem entendem que não há tempo hábil para terminar essa investigação —a previsão é encerrar os trabalhos no próximo dia 20. Além disso, avaliam que já há elementos suficientes para que os ministério públicos federal e estaduais sigam nas apurações. Há ao menos três empresas na mira da CPI: Prevent Senior, Hapvida e Unimed Fortaleza. As duas primeiras são suspeitas de interferir na subnotificação de mortes por coronavírus e de ceder cloroquina para seus clientes —a terceira é suspeita apenas por este último caso.

No sábado, o EL PAÍS revelou que o Hapvida omitiu da declaração de óbito de um de seus pacientes o coronavírus. A operadora admitiu o erro, mas alegou que fez a correção na informação enviada às autoridades sanitárias. Os senadores vão solicitar que o Ministério Público apure se o mesmo erro, intencional ou não, ocorreu em outros casos.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula os planos de saúde, e o Conselho Federal de Medicina, que não se opôs à prescrição em série da cloroquina, também serão citados como investigados no relatório final. A ANS, na visão desses senadores, teria se omitido diante de diversas denúncias de que as operadoras de saúde estavam pressionando seus profissionais a entregarem o kit covid. Desde o segundo semestre do ano passado, diversos jornais brasileiros noticiaram os erros. Antes, em maio, uma denúncia chegou ao Ministério Público do Ceará, relatando a prática no Hapvida. Os promotores que receberam o documento entenderam que o caso deveria ser analisado na esfera do consumidor, não no âmbito da saúde pública. Uma multa foi aplicada ao plano de saúde, no valor de quase 500.000 reais, mas a empresa, a quarta maior do país, recorreu.MAIS INFORMAÇÕES“Há indícios significativos para que autoridades brasileiras, entre elas o presidente, sejam investigadas por genocídio”

Na reta final, a CPI da Pandemia costura o relatório que envolve o presidente Jair Bolsonaro não apenas com a crise sanitária e eventuais crimes de responsabilidade, mas também para mostrar que ele e seu entorno cometeram crimes comuns e contra a humanidade. Havia a expectativa de que o relatório fosse entregue até o dia 15 de setembro, mas as revelações de que a seguradora Prevent Senior, que tem clara proximidade com o bolsonarismo, promoveu o uso indiscriminado de medicamentos ineficazes contra covid-19 em sua rede de hospitais fez que os senadores postergassem o fim das investigações para o dia 20 de outubro. Por enquanto, o relatório tem 700 páginas e quatro anexos. Falta inserir um capítulo específico sobre as operadoras de saúde.

Esta será a última semana de depoimentos na CPI. Nesta terça-feira, os senadores ouvem Raimundo Nonato Brasil, sócio da empresa VTCLog, que é suspeita de ilícitos em contratos com o Ministério da Saúde; na quarta-feira, fala o presidente da ANS, Paulo Roberto Vanderlei Rebello Filho; e, na quinta-feira, dois médicos da Prevent Senior que fizeram parte da equipe que elaborou um dossiê para mostrar as práticas desumanas da companhia.

Segundo fontes com acesso aos documentos finais da CPI, não era possível encerrar as apurações ignorando as operadoras de saúde suspeitas de transformar seus pacientes em cobaias de testes macabros sem o conhecimento deles próprios ou das autoridades sanitárias. Entre as vítimas desse uso indiscriminado de medicamentos ineficazes contra covid-19 estavam o médico Anthony Wong, um dos defensores da cloroquina, e Regina Hang, mãe do dono das lojas Havan e influencer do bolsonarismo, Luciano Hang. Ambos foram tratados com kit covid e morreram no hospital Santa Maggiore, da Prevent Senior. Na última semana, um dos diretores da companhia admitiu na CPI que algumas das certidões de óbito de seus pacientes eram adulteradas e não constavam a real causa da morte: coronavírus. Entre eles estão Wong e Regina Hang.

Entorno familiar de Bolsonaro

Os trabalhos da CPI cercam também o entorno de Bolsonaro. Está em pauta a ligação da segunda ex-mulher de Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle, com lobistas que atuavam no Ministério da Saúde. Valle é mãe do quarto filho do presidente, Jair Renan Bolsonaro. Ela teve os sigilos fiscais e bancários quebrados pela Justiça do Rio de Janeiro no escândalo da rachadinha dos gabinetes parlamentares de Flávio e Carlos Bolsonaro, os filhos mais velhos do presidente, que entraram na política pelas mãos do pai. Esse esquema envolvia a retenção de parte dos salários dos funcionários do então deputado estadual Flávio e do vereador Carlos.

Até agora, sabe-se que no período em que Valle e Bolsonaro estavam casados e ela chefiava o escritório dos filhos dele, entre 1997 e 2008, o casal adquiriu 14 imóveis, sendo que cinco deles foram pagos com dinheiro em espécie. Os promotores que atuam no caso suspeitam que parte desses imóveis foi adquirida com o desvio dos vencimentos dos servidores. A CPI quer esmiuçar essas informações e entender qual é a relação da ex-mulher com o Ministério da Saúde. Atualmente, Valle é assessora no gabinete da deputada federal Celina Leão (PP-DF).

Nas últimas semanas, dados compartilhados pelo Ministério Público Federal com a CPI mostram que Valle tentou interferir junto ao lobista Marconny Albernaz de Faria para conseguir cargos para seus indicados no Ministério da Saúde. Faria já depôs na CPI e omitiu qual era o seu relacionamento com a mãe de Jair Renan. Valle, por sua vez, teve seu depoimento aprovado, mas, a princípio, não deve sobrar tempo para ouvi-la. Ainda assim, ela e Faria estarão entre as 300 pessoas que devem ser investigadas no âmbito da crise sanitária. Há ainda 150 empresas entre os alvos dos senadores.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-10-05/cpi-entra-na-reta-final-com-cerco-a-planos-de-saude-e-inacao-de-orgaos-de-fiscalizacao.html


DOI-CODI, as memórias do QG da tortura da ditadura precisam seguir vivas

Uma batalha avança em São Paulo para fazer do antigo endereço da tortura um espaço de dignidade para as vítimas

Marcelo Oliveira / El País

Quem caminha pelas ruas Tutóia e Tomás Carvalhal, na Zona Sul de São Paulo, a menos que conheça história profundamente, jamais saberá que naquele quarteirão funcionou o maior centro de tortura institucionalizada que existiu no país durante a ditadura militar (1964-1985). No Destacamento de Operações de Informação —Centro de Operações de Defesa Interna, mais conhecido como DOI-CODI do II Exército— foram mortas ou desapareceram 70 pessoas entre 1969 e 1976, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, a mando do regime militar. Outras centenas foram torturadas com requintes de crueldade por uma força tarefa que incluiu militares e policiais em nome da luta ao comunismo. Mulheres eram estupradas, crianças eram conduzidas para ver seus pais desfigurados após sessões de violência praticadas por agentes do Estado.

É uma memória quase perdida. Hoje funciona ali o 36º Departamento de Polícia de São Paulo e um laboratório de impressões digitais da polícia, que esconde um conjunto de edifícios baixos de cor acinzentada, hoje vazios. Era para lá que seguiam os presos políticos durante a ditadura. Apelidado de “açougue” entre os agentes que lá trabalhavam, o DOI-CODI deixou de existir em 1990. Não há sequer uma placa ou uma pintura em algum muro informando que aquele conjunto de edifícios é tombado pelo Patrimônio Histórico desde 2014.

Num momento em que o Brasil vive sob um Governo que atua para apagar os escombros que o regime militar deixou no país, uma batalha ganha espaço em São Paulo para tornar o antigo endereço do QG da tortura um espaço de dignidade para as vítimas que morreram ali e para o conhecimento das próximas gerações. Uma ação civil pública do Ministério Público de São Paulo, ajuizada em junho, solicita que a área ocupada por quatro prédios que faziam parte do DOI-CODI —exceto a delegacia— seja transferida da Secretaria de Segurança Pública para a Secretaria de Cultura do Estado. Esta deverá preservar os prédios tombados e elaborar um plano para instalar um centro de memória no antigo QG da repressão.

A demanda por um memorial já tem 11 anos. Em 2010, Ivan Seixas, que foi torturado ao lado do pai aos 16 anos, pediu o tombamento do antigo DOI-CODI e a criação do memorial quando ocupava a presidência do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana). Em novembro de 2013, integrantes das comissões Nacional, Estadual e Municipal da verdade estiveram com seis ex-presos políticos no DOI-CODI. Na ocasião, os ex-presos reiteraram o pedido de tombamento do antigo centro de torturas e sua transformação em um memorial.

Era no DOI-CODI do II Exército que despachava e onde morou com a família por um tempo um dos heróis às avessas do presidente Jair Bolsonaro: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou a “repartição” entre 1970 e 1974, e morreu de câncer em 2015, num hospital de Brasília, sem ter sido condenado em nenhum dos sete processos que o Ministério Público Federal tentou abrir contra ele.

A casa dos horrores torturou até a morte jovens opositores do regime militar. Outros viveram a perversidade de serem torturados na frente de filhos crianças, como Amélia e Cesar Teles. O casal, de pouco mais de 20 anos, foi preso em dezembro de 1972, e apanhou seguidamente. Amelinha, como é conhecida, chegou a ser colocada nua numa cadeira para tomar choques elétricos. Quando as descargas pararam, recebeu a visita dos dois filhos, então com 5 e 4 anos. Tudo sob a supervisão do comandante Ustra.

Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo.
Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo. Foto: MAURICIO PISANI

Para debaixo do tapete

O Brasil joga para baixo do tapete as evidências dos crimes daquela época. A única sentença criminal de primeiro grau contra um agente da repressão da ditadura foi anunciada no mês de junho deste ano: o ex-investigador Carlos Alberto Augusto, o Carlinhos Metralha, foi condenado a 2 anos e 11 meses de prisão pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte, em 1971, processo no qual Ustra foi réu até morrer, sendo excluído da ação. Foi a memória de Ustra que Bolsonaro escolheu homenagear ao votar a favor do impeachment de Dilma Rousseff, em abril de 2016, em vídeo que ele usou ostensivamente em sua campanha eleitoral em 2018.

Frequentadores da região do antigo DOI-CODI, que passam com seus cachorros ou param seus carros para buscar os filhos em uma das duas escolas infantis que ficam a menos de 100 metros do antigo QG da morte, desconhecem esse passado sombrio. No dia em que a reportagem esteve nos arredores, dois terços dos entrevistados (inclusive moradores) não sabiam do passado daquele quarteirão.

A aposentada Josefa Martins da Silva, de 89 anos, que mora num prédio na esquina das ruas Tumiaru e Tutoia, faz parte do grupo que não esqueceu. “Dava para escutar os gritos”, conta. Segundo ela, “ninguém podia ficar olhando o movimento” no local das janelas de seus apartamentos, pois eram advertidos pelos policiais e militares que tomavam conta do local. O taxista Sergio Naltchadjian, 64, não frequentava o bairro do Paraíso na época da ditadura, mas há anos tem um ponto de táxi na rua Tutoia e conta que moradores mais antigos já lhe disseram que era possível ouvir os gritos. “E, se alguém colocasse a cara na janela, já perguntavam o que estava olhando”, recorda.

Quem sobreviveu à tortura também não esquece. Ex-integrante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o ex-preso político Ivan Seixas, 66, preso aos 16 anos no DOI-CODI com o pai, o operário Joaquim Alencar de Seixas (assassinado em abril de 1971), sabe apontar exatamente o local onde foi torturado ao longo dos 50 dias em que esteve preso. “Foi naquele prédio nos fundos do 36º DP, no último andar. Eram duas salinhas e todo mundo via o que acontecia lá. Eu costumo dizer que nunca houve porões da ditadura, pois tudo era aberto. Era terrorismo de Estado”, conta. O MRT era adepto da luta armada, e seu pai teria integrado o grupo que matou Albert Hening Boilisen, empresário dinamarquês radicado no Brasil, acusado de financiar o regime militar. O documentário Cidadão Boilisen, que conta a sua história, relata que o empresário acompanhava pessoalmente as sessões de tortura de presos políticos.

Foi também no DOI-CODI que, num intervalo de três meses, foram mortos sob tortura o jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e o operário Manoel Fiel Filho, em 1976. Em ambos os casos, o Exército anunciou falsamente que se tratavam de suicídios. Herzog era diretor da TV Cultura, e foi convocado a se apresentar às autoridades depois de uma reportagem que falava do regime militar. Era um tempo em que jornalistas estavam na mira da ditadura, como contou seu filho, Ivo Herzog, a este jornal, em maio de 2018. Fiel Filho era um operário metalúrgico e foi preso por ter em casa panfletos contra a ditadura.

ex-presidenta Dilma Rousseff, segundo relatou, em 2001, ao Conselho Estadual de Direitos Humanos (Conedh) de Minas Gerais, foi torturada por policiais mineiros e da Oban (Operação Bandeirante, que antecedeu o DOI-CODI) por 22 dias seguidos no início de 1970. Um de seus torturadores foi o capitão Benoni de Arruda Albernaz, que atuou no DOI, e lhe arrancou um dente com um soco.

Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo.
Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo. Foto: MAURICIO PISANI

Em 10 de maio de 2013, o então vereador paulistano Gilberto Natalini contou à CNV que foi torturado pessoalmente em 1972 por Ustra. Ali, ele encarou o coronel, que prestou depoimento no mesmo dia. Natalini foi preso por ter cópias de publicações da Molipo (Movimento de Libertação Popular) quando militava no movimento estudantil e cursava medicina em São Paulo. “Fiquei três dias sendo interrogado, de dia e de noite, de noite e de dia, inclusive pelo coronel Ustra, que entrou várias vezes na sala”, contou Natalini, que revelou ter sido torturado por 60 dias, inclusive pelo comandante do DOI. “Tive a vivência de ter o coronel Ustra sempre presente nas salas de tortura, presenciando, participando, orientando (...) Eu apanhei dele pessoalmente, o coronel Ustra me bateu (...). Ele me despiu, me colocou em pé numa poça d´água, ligou fios no meu corpo e chamou a tropa para fazer uma sessão de declamação de poesias que eu escrevia contra o regime e ficou com um cipó, ele mesmo, me batendo durante horas”, contou Natalini à CNV.

Preservar o passado para não se repetir

No último dia 9 de setembro, às 14h, numa audiência histórica e carregada de simbolismo, o judiciário paulista reuniu integrantes do Ministério Público e representantes do Governo de São Paulo para decidirem se estas memórias continuarão pertencendo a poucos ou pertencerão a todos. Não houve acordo sobre a cessão de prédios para a Secretaria de Cultura, mas a conversa ficou em aberto. A ideia de preservar a memória para que não se repitam horrores é uma demanda urgente. A tortura desse período contamina até hoje as práticas policiais no país. O tombamento de locais onde ocorreram graves violações de direitos humanos e sua transformação em memoriais é recomendação expressa do relatório da Comissão Nacional da Verdade, “para a preservação da memória das graves violações de direitos humanos”.

O conjunto foi tombado em maio de 2014 pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico). Ao determinar a audiência do último dia 9 no DOI-CODI, o juiz José Eduardo Cordeiro Rocha, da 14ª Vara da Fazenda Pública, concedeu uma liminar obrigando o Estado de São Paulo a preservar todos os elementos estruturais e arquitetônicos dos prédios localizados no terreno do antigo DOI-CODI. Dos quatro prédios de que o MP pede a cessão para a Secretaria de Cultura, a SSP usa apenas duas salas no prédio da rua Tomás Carvalhal. Uma é ocupada pelo laboratório de datiloscopia (impressões digitais) da Polícia Civil, outra é o depósito de pneus de tratores e ônibus da polícia. No pátio ficam carros examinados pelo laboratório.

Os prédios em jogo incluem o edifício de três pavimentos nos fundos da delegacia que eram usados para interrogatórios e tortura; a casa do comandante, de dois pavimentos; um prédio de três andares com entrada pela rua Tomás Carvalhal, que era o alojamento dos policiais e militares; a garagem e o pátio do antigo DOI e o muro externo da rua Tomás Carvalhal, onde ficava a entrada do centro de tortura e onde até hoje se veem duas guaritas. O prédio e a garagem, pelo menos por fora, parecem estar em boas condições. O mesmo não se pode dizer dos dois prédios localizados atrás do 36º DP. As paredes externas de ambos os edifícios têm infiltrações.

A delegacia, inaugurada em 1960, é coadjuvante da ação. Por hora, o MP pede apenas que o Estado, caso condenado, apresente um “estudo para posterior desocupação das dependências da 36ª Delegacia de Polícia da Capital, integrando o prédio localizado na Rua Tutóia ao complexo do [futuro] Centro de Memória”.

A historiadora Deborah Neves, doutora em História pela Unicamp, e que atuou no processo de tombamento do DOI, coordena o grupo de trabalho criado pelo MP em 2016, quando foi aberto o inquérito civil público que resultou na ação. Para ela, mesmo antes do desfecho das negociações, é necessário dar andamento a pesquisas arqueológica e estratigráfica (que descasca uma parede, por exemplo, para saber quantas camadas de tinta ela tem). Há um projeto de pesquisadores para, inclusive, procurar restos humanos ali. Não há notícia de que corpos de desaparecidos políticos tenham sido enterrados no DOI-CODI, mas a ideia é procurar vestígios de sangue e dentes no local, antes da adaptação da área para um memorial.

O convênio para a realização das pesquisas já está nas mãos do secretário de Cultura, mas a ausência de cessão da área atrasa o projeto. Em 22 de maio deste ano, foi iniciada uma parceria entre a Secretaria de Cultura e o Memorial da Resistência para a preservação da memória oral do período. O primeiro depoimento colhido foi o de Ivan Seixas. A ideia é ouvir ao menos 100 pessoas presas e torturadas no local. “Já perdemos o [jornalista] Alípio Freire, o [sindicalista] Raphael Martinelli e o [operário e fundador do PT] Clóves de Castro e, por isso, iniciamos essa coleta de testemunhos. Fomos procurados por pessoas que não falaram nem para a CNV, nem para o Memorial da Resistência”, revela Neves, indicando que, passados tantos anos, ainda há muito a se revelar.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-28/doi-codi-as-memorias-do-qg-da-tortura-da-ditadura-precisam-seguir-vivas.html


Jamil Chade: A reinvenção do futuro

Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu o que pode ter sido um último sinal de alerta

Jamil Chade / El País

“Roma, lá fora, é uma cidade muito triste. Noite após noite, o país dorme desolado com a contagem, ainda às centenas, dos mortos, as cenas de terror se repetem nos hospitais”. O comentário é parte de um texto da escritora brasileira, Juliana Monteiro, radicada com sua família na capital italiana. Ela escrevia e descrevia o auge do primeiro confinamento vivido pela Itália, país que foi o primeiro epicentro da pandemia da covid-19 na Europa. “Que triste tantos italianos enterrando seus avós, aqui, onde são tão amados”, constatou, ainda nos primeiros meses de 2020.

O que a escritora de uma sensibilidade ímpar presenciava de seu balcão não era apenas uma impressão da dor que atravessava um continente. Mais de um ano depois daquele primeiro lockdown, dados confirmam o que ela sentia: a pandemia gerou a maior queda de expectativa de vida desde a Segunda Guerra Mundial.

A pesquisa, realizada pela Leverhulme Centre for Demographic Science, de Oxford, analisou dados de mortalidade em 29 países, incluindo Europa, EUA e Chile. Desse total, 27 deles registraram uma queda na expectativa de vida em 2020, numa escala que borrou o progresso objetivo durante anos na questão da mortalidade.

O que esses números revelam, no fundo, é uma enorme transformação na sociedade. Jamais, em épocas de paz, as mortes atingiram tais dimensões em economias ricas. A fome no mundo continua a matar mais que a covid-19. Mas, cinicamente, europeus consideravam essa outra pandemia como um problema distante e que, portanto, não merecia manchetes. E nem uma solução.

O que a pandemia revelou é que nada é inevitável, nem o futuro. Se as mortes atingiram níveis desconhecidos nesses países, algo parecido ocorreu com a taxa de natalidade. Os mais otimistas acreditavam que haveria um aumento de nascimentos nove meses depois do primeiro lockdown. Mas os números revelaram exatamente o oposto. Uma pesquisa na França e Alemanha em meados do ano passado indicou que 50% dos casais adiariam gravidezes.

Nos EUA, os números de queda começaram a aparecer de forma importante a partir de dezembro de 2020, nove meses depois da eclosão da crise. Segundo o CDC, a queda foi de 8% nos nascimentos no último mês do ano passado, uma tendência mantida em janeiro e fevereiro. Na Itália, a queda foi ainda maior, de 21%, contra 20% de redução na Espanha para o mês de dezembro. Já a França teve dezembro e janeiro com índices de natalidade mais baixos em 20 anos.


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Não apenas a vida foi suspensa. Alianças foram desfeitas e a quantidade de casamentos que chegaram ao final explodiu. Só no Reino Unido entre julho e outubro de 2020, o escritório de advocacia Stewarts registrou um aumento de 122% em reuniões com indivíduos iniciando consultas sobre possíveis divórcios.

Agora, com as vacinas para uma classe privilegiada, os planos podem voltar a ser feitos. Tanto na Europa como nos EUA, os primeiros sinais literalmente de vida também começam a aparecer, com a volta de casais em busca de filhos. Ou pelo menos voltando a falar sobre o assunto. O Instituto Max Planck de Pesquisa Demográfica na Alemanha constata, por exemplo, que a busca no Google por termos relativos à gravidez deu um salto nas últimas semanas.

Mas para milhões de famílias mais pobres ou em luto, o futuro terá de ser reinventado. Mesmo na rica Europa, a era pós-pandemia também aponta que ninguém sairá ileso. Nas clínicas e hospitais, a onda de pacientes de covid-19 começa a ser substituída por outra: a de pessoas com sinais de depressão, stress e casos psiquiátricos.

Perguntas existenciais também ecoam pelas estruturas do poder nos corredores das grandes capitais. Como, apesar de toda nossa tecnologia e peso econômico, permitimos que tantos mortos se acumulassem? E o que garante a soberania: respiradores ou helicópteros militares de última geração? Até que ponto podemos comemorar um dia da independência e aplaudir um desfile militar enquanto nosso sistema de saúde não atende sua própria população?

O futuro também exigirá lidar com um prejuízo de 13 trilhões de dólares deixado pela pandemia. Mas de quem cobrar quando a obscenidade da desigualdade foi escancarada?

Nas entidades internacionais, os cálculos confirmam que a crise sanitária abalou 30 anos de progresso no índice de desenvolvimento humanos e que o planeta contará, ao final do ano, com um exército de 318 milhões de novos miseráveis.

Quem tinha oxigênio conseguiu evitar um colapso social. A UE, por exemplo, destinou 2,3 trilhões de euros em medidas de apoio para garantir a liquidez das economias. Isso impediu uma onda de falências e, de fato, os números de empresas fechadas foi o menor desde 1999. De acordo com a UE, sem esse dinheiro, 25% de todas as empresas do bloco teriam fechado suas portas ao final de 2020, após exaurir seus caixas.

Mas essa aparente estabilidade pode não durar. No mercado, o temor é de que “empresas zombis” - que de fato não tinham mais atividade - comecem a fechar. “Muitas insolvências foram adiadas, e não impedidas”, alertou a francesa Coface SA, uma empresa de seguro de crédito.

A tendência de austeridade deve marcar também outros setores. Das 1.600 discotecas existentes na França, 100 nunca voltarão a abrir suas portas, com milhares de postos de trabalho fechados. E milhares de beijos que talvez nunca ocorram.

Se há uma lição que a pandemia deixa ao mundo é de que o modelo está esgotado, inclusive moralmente. Ou como explicar que, em plena pandemia, bilionários façam viagens pornográficas ao espaço? Há algo de podre quando países ricos começam a pensar em jogar fora 100 milhões de vacinas que vencerão em dezembro, enquanto os pobres não sabem nem sequer quando vão receber a primeira dose.

Numa catástrofe ética, o planeta recupera sua lógica colonial mais crua. Desta vez com vacinas. Fábricas de imunizantes na África passaram meses sendo obrigadas a fornecer doses para os países ricos, enquanto a população do continente implorava por doses.

Mais de seis meses após o início da vacinação, economias ricas tinham obtido 61 vezes mais doses que os países mais pobres. Neste mês, 300 milhões de vacinas estarão sentadas em depósitos na Europa e EUA, sem saber como serão usadas.

Alguns deixarão explícita a indignação diante dessa realidade. Outros guardarão segredos impublicáveis sobre a crise que definiu uma geração. Um grupo ainda lutará para impedir a ruptura de um status quo que os garante fortunas e privilégios.

Mas, para todos, a era do mundo infinito acabou de vez. O futuro que muitos imaginavam que existia se provou insustentável, insuficiente e intolerável.

A história irá nos olhar sem compaixão. Se uma mudança não ocorrer, estaremos nos livros como a geração que não ouviu – ou optou por ignorar - o que pode ter sido o último sinal de alerta antes de uma crise climática e social de proporções inéditas.

Nosso único presente é a reinvenção do futuro. Retornar ao passado é suicida. Num planeta mais quente, mais improvável, mais hostil e mais desigual, reimaginar o que será da sociedade e da coexistência não é uma opção. Mas um ato de sobrevivência.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-28/a-reinvencao-do-futuro.html


El País: Conservar a Amazônia é um bom negócio para o Brasil

Existem diversas frentes e iniciativas para extrair de maneira sustentável produtos da floresta e, assim, monetizá-la em pé

André Guimarães / Marcello Brito / El País

Polo financeiro mundial, Wall Street esteve à frente de diversas inovações no mercado de capitais, e hoje nada é mais urgente do que dedicar atenção e criar instrumentos que viabilizem o investimento e a transição para um mundo mais sustentável e resiliente.

Manter uma floresta em pé tem um custo, que não é pequeno. Encontrar maneiras de financiar a conservação é a solução pragmática para assegurar que as florestas remanescentes sejam protegidas, trazendo maior segurança climática, as chuvas das quais depende a agricultura, e o fluxo de água que necessitamos para a nossa economia e sobrevivência.

Nova York, endereço de Wall Street, é nesta semana o palco de um dos mais importantes encontros ambientais do ano. A Climate Week dedica tempo e espaço para debates que discutam as consequências das mudanças climáticas em todas as esferas, dos riscos econômicos aos socioambientais.

Embora a crise ambiental atinja a tudo e a todos, só na última década o mundo entendeu a correlação entre as florestas e o bem estar do planeta, reconhecendo os importantes serviços prestados pela natureza e aumentando assim a preocupação em conter o avanço do desmatamento e as queimadas. É hoje consenso que as florestas e a biodiversidade devem ser preservadas ou pagaremos, como já estamos pagando, um alto custo social e econômico. Resta saber qual o tamanho da perda, se nada fizermos, e quanto teremos que investir para evitarmos que o pior aconteça.


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Com quase dois terços da Amazônia em seu território, o Brasil tem um protagonismo natural nas conversas sobre a preservação das florestas, e o desmatamento que vem sofrendo ao longo dos anos, seguido de queimadas e estabelecimento de pastagens de baixíssima produtividade, tem colocado o país sob o escrutínio mundial. Isso se exacerbou nos últimos anos, quando passou a se discutir se a Floresta Amazônica teria atingido um “ponto de não-retorno”, a partir do qual o processo de savanização seria irreversível, com consequências catastróficas para todo o mundo.

O Brasil tem recebido críticas à sua política ambiental, e o agronegócio que abraça práticas responsáveis já manifesta sua preocupação com ameaças de boicote aos seus produtos no exterior. Devemos lembrar que este é um mercado que tem um forte protecionismo, e não podemos dar “pano para a manga” para que se formem barreiras contra os produtos nacionais, e hoje a bandeira de proteção ambiental encontra ressonância junto ao público consumidor, especialmente em países desenvolvidos.

A crescente preocupação ao redor do mundo com as mudanças climáticas, e a consequente crise de alimentos, podem se tornar uma oportunidade de o Brasil se tornar uma potência agroambiental, desde que consiga proteger suas florestas e sua biodiversidade, ao promover o crescimento da produção agrícola enquanto ajuda a alimentar o mundo.

O Brasil já demonstrou ao longo dos anos que sabe aumentar sua produtividade agrícola sem destruir nosso ativo florestal, que abriga a maior diversidade de plantas e animais do planeta. No entanto, manter a vegetação em pé e protegê-la tem um custo financeiro. Se o mundo manifesta angústia com a derrubada da floresta, deveria se dispor a contribuir financeiramente para impedir o desmatamento. Mas será que os governos dos países desenvolvidos e demais entidades internacionais estão de fato dispostos a bancar isso, ou se restringirão à retórica?

Cabe a nós criar canais de diálogo e viabilizar o investimento. Claro que precisamos também fazer o nosso dever de casa interno, acabando o quanto antes com a perda de nossa cobertura vegetal nativa, monitorando nossas florestas, evitando incêndios e mudando certas práticas agrícolas. Mas precisamos também engajar o capital internacional nesta empreitada.

Um hectare de floresta amazônica armazena pelo menos 100 toneladas de carbono, ou 360 toneladas de dióxido de carbono (CO2) equivalente. Hoje, cada tonelada de CO2 é comercializada a US$ 10 no mercado internacional. Portanto, devastar um hectare, o tamanho de um campo de futebol, significa queimar US$ 3,6 mil, ou mais de R$ 16 mil. Abrir mão de riquezas naturais é um desperdício de dinheiro, além de uma perda irreversível de valor biológico.

Não devemos nos contentar em erradicar a devastação ilegal da Amazônia. Mesmo as frações de reservas onde o desmatamento é permitido (equivalente a 20% da área de cada propriedade legal) poderiam ser mantidas intactas, se devidamente remuneradas pelo seu custo de oportunidade. Trata-se de mais do que preservação, é um investimento.

Existem diversas frentes e iniciativas para extrair de maneira sustentável produtos da floresta e, assim, monetizá-la em pé. Porém a grande maioria dos projetos e estudos ligados a bioeconomia da floresta ainda está em seus primórdios, exigindo alto investimento, inclusive em pesquisa. Demandarão muito tempo para chegarem a uma escala que reverta a perda da vegetação nativa.

É imperativo que o Brasil se torne um país atraente a esses investimentos. Nossas florestas em pé e preservadas podem servir de lastro, garantia financeira, para a atração dos capitais necessários para fazermos frente à exploração predatória atual. Conservar a Amazônia pode se tornar um ótimo negócio para o Brasil e para os milhões de pessoas que lá vivem.

Conciliar economia e meio ambiente é um passo crucial para a vitalidade do desenvolvimento brasileiro. O futuro do país depende de uma reflexão conjunta dos vários atores, de maneira pragmática e buscando a equação econômica que possa viabilizar a manutenção dos nossos preciosos ativos ambientais.

Temos que seguir a importante missão de alimentarmos o mundo através do nosso pujante agronegócio, mas de tal maneira a conciliar produção e preservação, produtividade e tecnologia de ponta, para também usufruirmos da riqueza biológica das nossas florestas. E o mercado financeiro deve ajudar a viabilizar instrumentos para fomentar esta revolução verde.

André Guimarães é diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia e integrante da Coalizão Brasil Clima, Agricultura e Florestas.

Marcello Brito é presidente do conselho da ABAG e co-facilitador da Coalizão Brasil Clima, Agricultura e Florestas.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-22/conservar-a-amazonia-e-um-bom-negocio-para-o-brasil.html


Eliane Brum: A ONU e o mundo se ridicularizam diante de Bolsonaro

Ao debochar da democracia em palco global, o presidente do Brasil cumpre sua agenda pessoal com louvor

Eliane Brum / El País

Ao comparecer a Nova York e abrir a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, Jair Bolsonaro foi apresentado no noticiário brasileiro e internacional como um pária do mundo, que comia pizza em pé na calçada porque não estava vacinado. Estou na contramão desta análise. O ultradireitista que governa o Brasil não envergonhou nem a si mesmo nem ao país. Me parece exatamente o oposto. Bolsonaro debochou da democracia em palco global, teve suas mentiras traduzidas em várias línguas e voltou para casa aclamado por seus seguidores pela sua autenticidade e coragem de afrontar a parte do planeta que despreza.

Ao receber um mandatário que ostenta o fato de não ter tomado vacinas como um troféu, e isso quando os Estados Unidos enfrentam uma piora na pandemia devido à variante delta, a vergonha é dos Estados Unidos de Joe Biden e da Nova York de Bill de Blasio. A vergonha é, principalmente, da ONU. Bolsonaro afronta o combate à pandemia com atos e fatos e atravessa a fronteira americana todo serelepe porque a ONU se mostrou incapaz de riscar o chão diante da Rússia de Vladimir Putin, que se contrapôs com veemência à intenção de barrar quem não estivesse vacinado. Bolsonaro também vai rir por muito tempo pela façanha de abrir a assembleia do mais simbólico pilar da ordem mundial após a Segunda Guerra disseminando mentiras explícitas. Aplicou na ONU um deboche em nível planetário.

De nada adianta estampar no noticiário um Bolsonaro patético, objeto de piadas e de charges na imprensa. Bolsonaro entrou nos Estados Unidos sem vacina e este é o fato principal. Também pouco adianta fazer matérias e análises provando que ele mentiu sobre quase tudo. Seus seguidores, assim como uma parcela de não seguidores, considera tudo o que a imprensa afirma como fake news e nem sequer a lê, assiste ou escuta. Parte do planeta, e não só do Brasil, acredita que pode escolher o que é a verdade se a mentira lhe convém. Também não está fácil, é necessário dizer, ouvir, assistir e ler setores da imprensa repetindo coisas como “contrariando a expectativa da ala moderada do governo, Bolsonaro não moderou o tom no discurso na ONU”. Sério que ainda tem gente para afirmar expectativas do gênero como se acreditasse nisso?

É assim que ditadores eleitos como Bolsonaro destroem a democracia desde dentro. Se os instrumentos democráticos e as instituições que os representam são incapazes de impedir alguém como Bolsonaro de discursar sem vacina, presencialmente, na ONU, para que servem? Do mesmo modo, se tudo o que as instituições brasileiras conseguem produzir são (mais) discursos sobre como Bolsonaro envergonha o país, em vez de usar os instrumentos democráticos previstos na Constituição para impedi-lo de seguir governando, para que servem, então?

Gostaria de afirmar que esse pesadelo acontece porque a democracia e suas instituições não previram criaturas como Bolsonaro, mas seria inaceitável ingenuidade sob qualquer ponto de vista, inclusive o histórico. Bolsonaro é produto das deformações de uma democracia que nunca alcançou as camadas mais desamparadas da população e é produto do cinismo do capitalismo liberal. A cena com Boris Johnson é um exemplo disso. Supostamente o primeiro-ministro britânico, um direitista caricato, teria dado um “puxão de orelhas” em Bolsonaro por não tomar vacina, mas é só jogo de cena. O que importa é que um sorridente BoJo apertou a mão de um sorridente Bolsonaro às vésperas da Cúpula do Clima de Glasgow, apesar de o presidente brasileiro estar levando a maior floresta tropical do planeta ao ponto de não retorno.

Bolsonaro está onde está porque as corporações e os governos que as representam ainda faturam e têm vantagens com ele na presidência. Bolsonaro está onde está porque grande parte do empresariado brasileiro, assim como dos especuladores, acredita que ainda pode obter mais lucro com ele no poder do que fora dele. Ao mostrar o dedo médio aos manifestantes contra Bolsonaro, Marcelo Queiroga afirmou a verdade mais profunda da Assembleia Geral da ONU. E agora o ministro da Saúde do país que beira os 600 mil mortos por covid-19 descansa em um hotel de luxo de Nova York enquanto faz quarentena por, claro, ter testado positivo para o vírus.

Assim caminha a democracia e seus pilares globais. E ainda há quem se surpreenda que morram, esquecendo-se que para morrer é necessário primeiro estar vivo.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de oito livros, entre eles ‘Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-22/a-onu-e-o-mundo-se-ridicularizam-diante-de-bolsonaro.html


Cercado pelo agronegócio, território Xavante tem alta letalidade pela covid-19

Pressão sobre territórios, poluição de rios por agrotóxicos e avanço de doenças crônicas deixam população vulnerável à pandemia

Fábio Zuker / Tatiana Merlino / InfoAmazônia / El País

Sob o sol do Planalto Central, com corpos pintados de tintas preta e vermelha —feitas de urucum e carvão— e adornados com brincos e pulseiras, indígenas Xavante carregam faixas. “Povo xavante não é agronegócio. Terra livre”, “Povo Xavante é contra o PL 490 e marco temporal”, são algumas das frases escritas nos cartazes.

Nem a pandemia da covid-19, que impactou os Xavante de maneira devastadora, nem os cerca de 800 quilômetros que separam a Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, um dos dez territórios reconhecidos pela União onde vive o povo Xavante, no Mato Grosso, intimidaram os indígenas de irem protestar, em agosto, na capital do país. A cacica Carolina Rewaptu, que vive na Marãiwatsédé, e a liderança xavante Hiparidi Top’tiro, morador da TI Sangradouro, estavam entre os indígenas que participaram do acampamento “Luta Pela Vida”, em Brasília, organizado em oposição à tese do marco temporal —que tenta condicionar a demarcação das terras indígenas do país ao momento de promulgação da Constituição de 1988.

Eles também foram manifestar oposição ao projeto Agro Xavante, de iniciativa de fazendeiros do Sindicato Rural de Primavera do Leste em parceria com o governo do Mato Grosso e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Intitulado de “independência indígena”, o projeto prevê a exploração agrícola nas terras indígenas e afirma que irá “levar desenvolvimento, segurança alimentar e qualidade de vida” aos Xavante. A escolha pelo uso de urucum e carvão para pintar a pele tem um motivo, relata Hiparidi. “Urucum e carvão eram usados para a guerra. Estamos em guerra com o Governo. Essa é a explicação”, afirma, referindo-se ao Governo de Jair Bolsonaro.


Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Jacqueline Lisboa / WWF-Brazil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
Indígenas aguardam "julgamento do século" - Marco temporal. Foto: Matheus Alves/WWF-Brasil
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Nas últimas décadas, com o agronegócio cercando as terras Xavante, houve uma diminuição das áreas para cultivo, pesca e caça. Hoje, o território corresponde a pequenas ilhas verdes, rodeadas de soja e gado e, em especial, soja. O projeto Agro Xavante representaria uma ameaça a mais à existência destes pequenos pontos verdes. “Com essa entrada do agro no nosso território, piorou de vez. Muita gente fala que é exagero, mas onde tinha refúgio dos animais, está sendo derrubado. E vamos perder os conhecimentos tradicionais milenares das ervas medicinais. Eles vão desaparecer”, preocupa-se Hiparidi.

De acordo com a cacica Carolina Rewaptu, com a intensificação dos plantios de soja no entorno das terras indígenas, hoje não há mais recursos naturais para se fazer artesanato, tampouco raízes medicinais para tratamentos de saúde. “Antes, a paisagem era mais fechada. Agora mudou muita coisa. Vimos essas mudanças”, explica Carolina, que nasceu em 1960 – década em que a tomada de terras por fazendeiros se intensifica, no âmbito do projeto de colonização incentivado pelo Estado brasileiro e que recebeu amplo apoio da ditadura militar.

O estrangulamento do território afetou também a alimentação tradicional dos Xavante, que foi sendo substituída por produtos industrializados. A vulnerabilidade alimentar e de saúde causadas pela degradação ambiental que acompanha o agronegócio ficou particularmente visível durante a pandemia de covid-19. A população Xavante foi uma das etnias que mais sofreu e perdeu vidas para o vírus.

Destruição territorial e alta taxa de letalidade

Um dado acerca da elevada taxa de mortalidade entre os Xavante chamou a atenção de pesquisadores da área da saúde. O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xavante apresentou uma taxa de 341 mortes por cem mil habitantes, entre a nona e a quadragésima semana epidemiológica —ou seja, no intervalo entre os dias 23 de fevereiro e 3 de outubro de 2020.

A título de comparação, neste mesmo período, a taxa de letalidade para a população geral brasileira foi de 69.5 mortes por cem mil habitantes. Isso significa que a mortalidade do novo coronavírus na população Xavante foi quase cinco vezes maior do que na população em geral. Essas informações constam em um estudo publicado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre outras instituições de pesquisa, que utilizou dados compilados pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

O estudo aponta também para uma enorme discrepância entre as mortes registradas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, e os dados compilados pela Coiab, o que indica uma elevada subnotificação nos dados oficiais sobre casos e mortes pela covid-19 entre indígenas. Enquanto a Sesai aponta que 330 indígenas morreram no período analisado, para a Coiab foram 670 mortes. Entre os fatores que explicam essa diferença, o estudo ressalta a negação da identidade dos indígenas mortos pela covid-19, que, principalmente quando se contaminam e vêm a óbito na cidade, são registrados como pardos.

Mas o estudo vai além de indicar as subnotificações dos dados do Ministério da Saúde. Para Paulo Basta, médico sanitarista especializado em epidemiologia e em saúde indígena e um dos responsáveis pelo trabalho, “conseguimos mostrar uma associação direta entre a devastação (de determinados territórios indígenas) e as taxas de incidência nos territórios avaliados”.

Para Basta, um dos pontos centrais do estudo é apontar “como ameaças externas podem contribuir para o espalhamento da pandemia nas terras indígenas”. Por ameaças externas o epidemiologista se refere a atividades madeireiras e garimpeiras ilegais, grilagem de territórios indígenas, mas também aos efeitos de queimadas e do próprio agronegócio.

Para ilustrar seu ponto, Paulo Basta explica como características específicas vivenciadas pelos territórios indígenas em quatro DSEIs influenciam a alta mortalidade identificada pelo estudo.


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Para o médico, no DSEI Alto Solimões, o fator que explica a alta letalidade é a precária infraestrutura hospitalar, que é dependente da cidade de Manaus. De Tabatinga (AM) para a capital do Amazonas, a distância é de 1.100 quilômetros, que levam 1h45 de voo para serem percorridos, ou, com valor muito mais acessível para a população, quatro dias de barco. Já nos DSEIs Xavante, Cuiabá e Kayapó do Pará, Paulo Basta ressalta que, além da também precária infraestrutura, “uma grande presença de comorbidades, como hipertensão e diabetes, estão associadas ao desfecho negativo da contaminação pela covid-19”.

O médico sanitarista explica que essas comorbidades teriam origem num fenômeno que ele considera chave: transição nutricional. “Essas populações, à medida que foi se estabelecendo o contato com a sociedade não indígena, marcado pela destruição do território e diminuição de disponibilidade de recursos naturais e disponibilidade de alimentos tradicionais (pesca, caça, roça ficam mais escassos), os indígenas passam a comer comida industrializada, de baixo valor nutricional, rica em açúcar, sal e gordura”, explica.

A transição nutricional a que Paulo Basta se refere está relacionada a transformações culturais, nas formas tradicionais de alimentação, um processo algo inevitável, que acompanha a intensificação do contato com a sociedade não indígena. Só que este contato, histórica e atualmente, está longe de ser pacífico. E, como ressalta, é um processo que vem acompanhado de uma série de destruições, que permitem a transformação da floresta e do Cerrado em locais aptos para gado e soja.

Pela ampla degradação ambiental causada, tanto indígenas que vivem essa situação na pele —e no prato— quanto epidemiologistas especializados em saúde indígena encontram no avanço do agronegócio uma chave de raciocínio para a alta letalidade de indígenas Xavante durante a pandemia de covid-19. O argumento é que a diminuição das áreas de caça e de roçado, e o impacto dos agrotóxicos nos rios que acompanha a intensificação do plantio de monocultivos nos últimos 36 anos criaram condições ambientais que aumentam a situação de vulnerabilidade dos Xavante.


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Com maior insegurança alimentar, alimentação de baixa qualidade e assistência médica precária, doenças circulam mais e têm maior letalidade entre os Xavante. E a covid-19 seguiu este padrão. Essa é a avaliação de Aline Alves Ferreira, epidemiologista especialista em nutrição, que realizou sua pesquisa de doutorado pela Fiocruz entre os Xavante. “A gente já tem indicadores de saúde e de alimentação que são muito piores quando comparados aos não indígenas no Brasil, e que se acentuaram no cenário do coronavírus.”

Ferreira coloca menos ênfase na pré-existência de comorbidades, e mais na baixa atenção médica, na falta de saneamento e nas condições ambientais criadas pelo agronegócio, que afetam, diretamente, as formas de alimentação. A descrição que ela faz do território Xavante é avassaladora: “Tem aqueles pastos, ali: soja, soja, soja, soja. Aí, de repente, quando começa a terra indígena, a vegetação muda completamente.”

A epidemiologista explica que, com um ambiente cada vez mais reduzido, com um ecossistema cada vez mais afetado, cresce a busca por alimentos ultraprocessados (o que significa uma piora na qualidade da alimentação). Mas há também uma piora na própria regularidade de acesso ao alimento.


Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
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Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
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Ato contra o Marco Temporal - 26/08/21. Foto: Gabriel Paiva/Fotos Públicas
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Comida de ontem, comida de hoje

De sua casa na TI Marãiwatsédé, a cacica Carolina Rewaptu conta que, à época em que era criança, cabia às mulheres a responsabilidade por coletar frutas do Cerrado, como pequi e buritizal. E também raízes, como batata, inhame, batata nativa, abóbora, mandioca.

“Era bom para nós”, diz a indígena, em entrevista por telefone, sobre a alimentação dos Xavante. “Esses alimentos de antigamente eram mais saudáveis. Era comida da roça. Era importante para a saúde das crianças, dos jovens, e das mães jovens na gravidez.” Carolina conta que eram as mais velhas que ensinavam esses costumes de alimentação, de como cuidar das crianças e preparar os alimentos e os rituais.

Nas últimas décadas, no entanto, o cenário mudou. “Hoje, colocam açúcar, sal e óleo em tudo. A gente não comia esses alimentos com açúcar”, explica a cacica da aldeia Madzabdzé. “No meu tempo”, as crianças eram muito sadias, com corpo físico estruturado. “Hoje, a gente vê as crianças muito gordas. Com essas mudanças, muitas pessoas estão com diabetes e obesidade com esse alimento que vem da cidade. Há muita preocupação com o povo Xavante”.


Eliane Brum: Como funciona o golpe de Bolsonaro

Não é necessário fechar nada, basta esvaziar as instituições e tornar a democracia irrelevante

Eliane Brum / El País

No golpe de Jair Bolsonaro, as instituições seguem funcionando sem funcionar contra ele. Uma Suprema Corte que, em vez de cumprir a Constituição quando o presidente a afronta em praça pública, faz mais um discurso. Uma Câmara de Deputados cujo presidente, Arthur Lira, está sentado sobre 130 pedidos de impeachment porque Bolsonaro garante a ele e a sua turma dinheiro público à vontade. Uma Procuradoria-Geral da República cujo procurador-geral, Augusto Aras, é um colaboracionista que espera ser premiado por Bolsonaro com uma cadeira no Supremo. Para que ter o trabalho de promover cenas de golpe clássico, que chamam a atenção do mundo, se é mais efetivo contar com a covardia de uns e a corrupção de outros?

O golpe usado por Bolsonaro desde que assumiu o poder, em 2019, é o da corrosão por dentro. Bem semelhante ao que sua base na Amazônia fazia ao desmatar a floresta quando ainda havia fiscalização. Em vez de fazer o que se chama de corte raso, aquele em que tudo é derrubado e vira terra arrasada —um similar aos tanques nas ruas ou aos caminhões arrebentando as portas do Supremo Tribunal Federal—, a opção é derrubar apenas as árvores nobres e manter a cobertura florestal intacta na aparência. Quem olha por cima, de um helicóptero, por exemplo, ou de uma aeronave pequena, só enxerga verde, mas por baixo a floresta está totalmente degradada. Ou, usando um exemplo urbano, mais familiar à maioria, Bolsonaro está fazendo da democracia o mesmo que acontece com alguns prédios antigos, em que a fachada neoclássica é mantida, mas o miolo foi colocado abaixo.

Bolsonaro já tinha aplicado estratégia semelhante com o Ministério do Meio Ambiente. Antes de assumir o poder, em 2018, lançou a notícia de que seu Governo não teria Ministério do Meio Ambiente. Era uma espécie de boi de piranha. Protestos surgiram de todos os lados. Ele então manteve o ministério, simulando acatar o clamor global, e colocou como ministro Ricardo Salles, um condenado por crime ambiental que promoveu a maior devassa da história da pasta, responsável pelo aumento do desmatamento e dos fogos na Amazônia. O mesmo acontece agora. Bolsonaro incita seus seguidores a se insurgir contra as instituições e especialmente contra o Supremo, mas descobre que vale mais a pena deixar funcionando o que não funciona contra ele.

Se em plena avenida Paulista, em manifestação convocada por ele no feriado de 7 de Setembro, Bolsonaro afirmou que não cumpriria decisões do Supremo Tribunal Federal e saiu impune, as instituições já dobraram os joelhos. Discurso “duro”, como fez Luiz Fux, o presidente do Supremo que depois andou por aí confraternizando com empresários golpistas, qualquer um faz. Eu mesma faço facilmente. Do Supremo se espera que faça valer a Constituição. Se não faz, já era. Bolsonaro testou e venceu. Rasgou a Constituição na Paulista e nada aconteceu. Mais uma vez, Bolsonaro pôde contar com a impunidade que o tornou presidente apesar de sua longa sequência de crimes contra o país.


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Tem muita gente empenhada em dar uma aparência decente ao que aconteceu no pós-7 de Setembro. Mas o que aconteceu foi um golpe na democracia e uma vergonha do tipo vexame máximo. De uma Câmara de Deputados liderada por Arthur Lira, que vai chantagear Bolsonaro com o impeachment até não sobrar um real nos cofres públicos, nada se esperava. De Augusto Aras, o envergonhador-geral da República, também já nada se espera. Pelo menos não enquanto ele achar que tem chance de ser recompensado com uma cadeira no STF por sua traição aos princípios que criaram o Ministério Público Federal.

A tragédia que conta a destruição de uma democracia que nunca chegou aos mais pobres ganhou tons de comédia com a carta assinada por Bolsonaro dias depois, mas escrita pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), aquele que, por sua vez, deu o golpe em Dilma Rousseff (PT). Na carta, Bolsonaro-Temer, a nova criatura missivista, dizia mais ou menos o seguinte: “Desculpa aí, pessoal. Me empolguei”.

Ávidos por seguir lucrando com Bolsonaro, políticos e empresários concluíram ao ler a carta que o presidente tinha subitamente se convertido em estadista. A maior parte dessa gente que chamam de “PIB do Brasil” são uns cretinos tão sem caráter que não consegui encontrar nenhuma palavra disponível no dicionário capaz de abarcar a grandiosidade de sua decadência. E, assim, no último domingo, uma manifestação de oposição botou apenas 6.000 pessoas na mesma avenida em que Bolsonaro tinha colocado 125.000 dias antes. Organizada pela direita e por aqueles que decidiram que agora são centro, grandes responsáveis pela ascensão de Bolsonaro ao poder, o protesto foi boicotado pelo PT, partido de Lula, e pela maior parte da esquerda. Resultado: não vingou, e os bolsonaristas rolaram de rir, no que não lhes tiro a razão. O presidente rasga a Constituição e toda a oposição que o Brasil consegue colocar nas ruas na primeira manifestação de oposição que se segue, e isso na maior cidade do país, são 6.000 gatos pingados.

É duro para a esquerda apoiar movimentos de direita que lideraram as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff . No caso da milícia digital chamada Movimento Brasil Livre, que no momento tenta fazer um greenwashing, é ainda mais difícil, já que o MBL destruiu reputações usando fake news, fechou exposições de arte e colocou artistas em risco de vida ao usá-los para açular seus seguidores. É duro, mas é o que temos para o momento. Sem o impeachment de Bolsonaro, não há nem como discutir divergências de fundo —ou mesmo de raso. Todo o noticiário, as ações e os debates públicos e privados foram sequestrados pelo bolsonarismo. Nada de importante se faz ou se discute no país desde que ele assumiu e, principalmente, neste último ano. Mas a destruição da legislação ambiental e dos direitos humanos e trabalhistas, ao contrário, avança velozmente.

É claro que não é apenas por exigência de companhias de mais qualidade e por bons princípios que grande parte da esquerda se recusa a se misturar com a direita nas ruas. Parte do PT e aqueles que apoiam a candidatura de Lula já calcularam que as chances de o ex-presidente ganhar em 2022 são maiores se a disputa for com Bolsonaro. Tem gente que chama isso de estratégia política, eu acho só triste, dado o fato de que o bolsonarismo mata gente. Também me parece um tremendo equívoco. Bolsonaro só pode agradecer por essa estratégia: tem mais um ano para exterminar toda a credibilidade do processo eleitoral e das urnas eletrônicas, executando com mais êxito o manual de seu ídolo Donald Trump.

Quero lembrar que, na Amazônia, e em vários outros biomas, a base de Bolsonaro está incendiando casas de camponeses e indígenas como rotina e várias lideranças estão escondidas para não morrer. Essa é a tática para manter os opositores apavorados, mas na prática, já quase não é mais necessária. O Congresso está legalizando toda a ilegalidade, e logo será possível apenas chamar a polícia contra aqueles que protegem a floresta, porque grileiros e outros destruidores serão os cidadãos dentro da lei. Este também é o golpe. E ele avança aceleradamente enquanto Bolsonaro faz pirotecnias públicas e autoridades dão vexame com suas palavras “duras”.


Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
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Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
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Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
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Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
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Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
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Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
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O século 21 trouxe a expansão da internet e suas redes sociais e várias outras mudanças na forma como tudo e também o autoritarismo operam. Não é necessário fechar o Supremo com caminhões —ou “com um cabo e um soldado”. Basta que não funcione contra o presidente. Não é necessário fechar o Congresso, basta ter um parlamentar da estirpe de Arthur Lira como presidente da Câmara de Deputados, com poderes para barrar o impeachment. Enquanto Bolsonaro tiver dinheiro público para abastecer Lira e o Centrão, nada acontece. O mesmo vale para a imprensa. Parte da imprensa liberal tem feito um trabalho razoável para documentar o que hoje acontece no Brasil, mas quem se importa? A credibilidade da imprensa está destruída no bolsonarismo. Os seguidores de Bolsonaro não acreditam em nada do que está escrito nos jornais. Assim, não é necessário censura, como nas clássicas ditaduras do século 20.

O bolsonarismo e seus assemelhados pelo mundo destruíram a própria linguagem, tanto que fizeram o 7 de Setembro em nome da “liberdade” e da “defesa da Constituição”. É assim que se enlouquece —e se perverte— todo um povo. Seguir compreendendo o século 21 com os instrumentos de interpretação que serviam para o século 20 não vai funcionar.

As instituições mostraram, por sua falta de reação à manifestação golpista de 7 de Setembro, que estão dominadas —seja por lucro ou seja por covardia. Só vão reagir se os opositores de Bolsonaro, venham de onde venham, se juntarem nas ruas. É impeachment ou impeachment.

Bolsonaro segue a cartilha de Donald Trump, num país institucionalmente muito mais fraco que os Estados Unidos e já tendo aprendido com os erros de seu ídolo. Se Bolsonaro não for barrado, até a disputa eleitoral de 2022 tudo o que constitui a democracia, inclusive as próprias eleições, correm o risco de se tornar irrelevantes. Tanto quanto a Amazônia, a democracia poderá já ter chegado ao ponto de não retorno.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de oito livros, entre eles ‘Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-15/como-funciona-o-golpe-de-bolsonaro.html


Um futuro na sombra: democracias na era digital

A transparência na era digital não é prioridade para os governos latino-americanos

fabrizzio Scrollini / El País

As promessas de reformas estruturais em prol da transparência que vários países latino-americanos —inclusive o Brasil— fizeram em fóruns internacionais parecem ter ficado muito longe. Em 2012, exercendo uma clara liderança internacional, o Brasil cofundou a Open Government Partnership—um grupo de Governos e organizações sociais dedicados a promover uma maior transparência. O Brasil prometeu uma série de reformas significativas e inovadoras na área de transparência e combate à corrupção. Entre suas primeiras conquistas está a aprovação de uma lei de acesso à informação pública e de uma política de dados abertos, permitindo a qualquer pessoa solicitar informações ao Estado e exigindo publicar informações fundamentais sobre sua gestão. A implementação deixou muito a desejar, mas nos últimos tempos contou com a oposição expressa do presidente do Brasil, que chegou a demitir funcionários por defenderem a veracidade dos dados sobre o desmatamento na floresta amazônica. O Brasil não está sozinho. No México, o presidente tem afirmado sistematicamente que não vê a necessidade de um órgão dedicado à promoção da transparência, sendo considerado caro e ineficiente. Em El Salvador, o Governo tem procurado limitar a lei de acesso como no Uruguai. A América Latina é uma região diversa, e nem todas as situações são comparáveis. Mesmo assim, as evidências do último Barômetro de Dados Abertos indicam que a transparência na era digital está, na melhor das hipóteses, pausada e, em muitos casos, diminuindo.

A situação da transparência nas sociedades latino-americanas apresenta vários desafios. Um primeiro aspecto básico é defender a relação íntima entre transparência e democracia. A democracia —por definição— implica o controle pelos cidadãos da execução dos recursos públicos, bem como limites ao poder do Estado. Graças à disponibilidade de dados, Ojo Público —meio digital no Peru— conseguiu criar um algoritmo para monitorar o risco de corrupção em mais de 200.000 contratos. No México, Poder e Serendipia monitoram os gastos do Governo na pandemia. No Paraguai, um simpático bot feito pela CED, uma empresa, tuíta sempre que vê uma irregularidade em um contrato. E no Brasil, a Fundação para o Conhecimento Aberto (uma ONG) monitora os gastos dos congressistas de forma automática. Esses tipos de projetos —criatividade, dados e tecnologia digital intermediários— aumentam a capacidade dos cidadãos de controlar o poder, e têm o potencial de gerar debates informados em nossas democracias. Em qualquer caso, Governos, empresas e mídia devem fazer um trabalho melhor no combate à desinformação. Os dados abertos são uma condição necessária, mas não suficiente, para democracias fortes na era digital.

Um segundo problema são as condições de desigualdade estrutural e complexidade social na América Latina. Os dados disponíveis não representam necessariamente a totalidade da sociedade nem tornam visíveis todos os problemas, como é o caso notório da violência de gênero. Na América Latina ainda é difícil saber a quantidade de feminicídios que ocorrem, e esta é apenas a ponta do iceberg desse fenômeno. A sub-representação em nossos dados de grupos indígenas, afro e outros grupos marginalizados significa que muitas vezes as decisões são tomadas às cegas. Por outro lado, a sua identificação em alguns casos, como o de pessoas LGTBQIA+, os coloca em claro risco de discriminação. É hora de levar a geração de dados mais a sério, quem você inclui e quem você exclui. E levar em consideração as consequências políticas dessas decisões.

Por fim, existe um desafio maior que requer a compreensão da complexidade para as democracias na era digital. Por um lado, a abertura de dados permite a criação de valor público, econômico e social. Mas nem todos os dados podem ser abertos e, à medida que a lacuna no acesso à internet diminui, uma geração inteira entra na era digital com seus direitos desprotegidos. A maioria dos países da América Latina não possui legislação adequada para proteger os dados das pessoas. As empresas —principalmente com sede no norte do mundo— coletam uma grande quantidade de dados e valores originários da região, sem que parte desse valor retorne para eles. A segurança dos dados de indivíduos, Governos e empresas ainda é um grande problema, abordada geralmente de uma perspectiva muito técnica. Muitos de nós investigamos novas maneiras de medir a aparência da governança democrática de dados no século 21. Esses desafios abrem uma oportunidade para que as democracias se reorganizem a partir de uma nova agenda baseada na geração de direitos, acordos institucionais e formas de participação cidadã. Um pacto renovado que considera novos desafios e aproveita a desestruturação social em benefício da maioria das pessoas. Em qualquer cenário futuro, a transparência deve continuar sendo uma marca registrada das democracias e daqueles que a defendem em tempos de incerteza.

Fabrizio Scrollini é diretor executivo da Iniciativa Latinoamericana por los Datos Abiertos (ILDA).

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-13/um-futuro-na-sombra-democracias-na-era-digital.html


STF e Congresso enterram tentativa de Bolsonaro de limitar combate às fake news

Devolução de Medida Provisória, como a do Senado, é ato contundente contra governos frágeis

Afonso Benites / El País

O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional impuseram nesta terça-feira uma previsível derrota ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Exatamente às 19h47, a ministra do STF Rosa Weber publicou no sistema da corte a decisão em que suspendia a tramitação da Medida Provisória 1.068. A medida foi publicada por Bolsonaro um dia antes das manifestações em que seus apoiadores atacaram o STF, e alterava o Marco Civil da Internet para dificultar a remoção de conteúdos que disseminam desinformação e discurso de ódio nas redes sociais. No mesmo momento em que a decisão de Weber era registrada, o presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), iniciava a leitura do ato em que oficializou a devolução dessa mesma medida provisória para o Executivo. Na prática, as mudanças determinadas por Bolsonaro deixam de existir.

A devolução de uma MP não é um ato político banal. Pelo contrário, é algo considerado forte e excepcional. Ocorre quando os legisladores notam que não há urgência ou relevância para se debater um tema proposto pelo Palácio do Planalto —mas principalmente quando o presidente da República passa por um momento de fragilidade. Bolsonaro está em um dos piores períodos de seu Governo, com a popularidade em decadência e ainda sob o efeito do recuo que foi obrigado a fazer para se manter no cargo. O presidente do STF sugeriu que ele cometera crime de responsabilidade ao anunciar que não cumpriria mais decisões assinadas pelo ministro do STF Alexandre de Moraes.

Em sua decisão, Weber disse que não havia urgência nem relevância na MP de Bolsonaro, que a edição da medida traria uma insegurança jurídica e que “estamos diante de hipótese na qual o abuso do poder normativo presidencial está, aparentemente, configurado”. “A propagação de fake news, de discursos de ódio, de ataques às instituições e à própria democracia, bem como a regulamentação da retirada de conteúdos de redes sociais consubstanciam um dos maiores desafios contemporâneos à conformação dos direitos fundamentais”, diz a ministra em sua decisão. A magistrada ainda ressaltou a responsabilidade do Estado brasileiro na garantia da liberdade de expressão. “A cidadania somente pode ser exercida de forma livre, desinibida e responsável quando asseguradas determinadas posições jurídicas aos cidadãos em face do Estado”.

O presidente do Senado também mencionou a insegurança jurídica ao devolver a MP. No entendimento dele, há um “prazo exíguo para adaptação e com previsão de imediata responsabilização pela inobservância de suas disposições, gera considerável insegurança jurídica aos agentes a ela sujeitos”. Segundo Pacheco, “a mera tramitação da Medida Provisória nº 1.068 de 2021 já constitui fator de abalo ao desempenho do mister constitucional do Congresso Nacional”.

A mudança no Marco Civil da Internet foi publicada no dia 6 de setembro, na véspera do ato radical promovido pelo presidente que, entre outras coisas, pedia o fechamento do Supremo. Naquela ocasião, em meio a um embate com a corte, Bolsonaro pretendia animar seus apoiadores radicais, que frequentemente divulgam fake news na internet.

Fake news faz parte da nossa vida”

O freio ao presidente ocorre no dia em que ele voltou a defender a disseminação de desinformação, desta vez em um discurso oficial no Palácio do Planalto. “Fake news faz parte da nossa vida. Quem nunca contou uma mentirinha pra namorada?”, afirmou em tom jocoso durante discurso na cerimônia de entrega do Prêmio Marechal Rondon de Comunicações.

Ao mesmo tempo, o presidente amenizou os ataques que tem feito aos outros Poderes. “O que seria do Executivo sem o Senado? Sem a Câmara? E também, por que não dizer, em muitos momentos, sem o nosso Supremo Tribunal Federal? Nós somos um só corpo. O nosso bom entendimento, alegria do nosso povo”, disse o presidente durante a cerimônia. O tom dava prosseguimento à Declaração à nação publicada no último dia 9, na qual recuou dos ataques que vinha fazendo ao STF.

Bolsonaro disse ainda nesta terça que seu tom antidemocrático, com o qual ameaçou descumprir decisões judiciais e xingou Alexandre de Moraes de canalha, foi um equívoco. “Quem nunca errou no palavreado? Às vezes, custa caro para a gente, mas é melhor viver. Assim como a imprensa, né? É melhor viver assim, em liberdade, do que não ter liberdade. Não tem como nós não acreditarmos no futuro dessa nação, tendo aí o Legislativo, tendo o Judiciário, cada vez se entendendo mais para o bem comum de todos nós”.

A aparente moderação de Bolsonaro tem uma razão. Após o 7 de Setembro, ele sentiu que crescia entre o Congresso e o Judiciário uma barreira aos seus atos. Em última instância, issopoderia resultar em seu impeachment. Neste momento, essa ainda é uma hipótese remota. Mas isso não significa que os outros poderes estejam dispostos a colaborar com as agendas do presidente, como ficou claro nesta terça-feira.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-15/stf-e-congresso-enterram-tentativa-de-bolsonaro-de-facilitar-desinformacao-nas-redes-sociais.html