edição número 12

Revista Política Democrática || Eros Roberto Grau: Nosso Armênio

Há uns dois anos --- após uma conversa fraterna com a Cecília Comegno, Marcello Cerqueira, Élio Gaspari e outros camaradas ---, a mim foi atribuída a organização de um livro lembrando nosso Armênio. Uma tarefa que encantou minha vida. Lá pela segunda quinzena de novembro será lançado, em São Paulo, pela Globolivros.

Armênio Guedes se foi para o Céu no dia 12 de março de 2015. No ano passado, 30 de maio, teria completado cem anos. Lá em cima será, no entanto, eterno.

Nascido em Mucugê, a capital baiana dos diamantes, Armênio era um deles. Sereno, aristotelicamente prudente. A serenidade ao alinhar-se à esquerda democrática europeia, ao opor-se à luta armada durante o regime militar cá entre nós e ao defender a aliança com o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) --- o único partido de oposição autorizado pela ditadura --- evidenciam ter sido ele, para sempre, um diamante de humanismo. A noite de 30 de março de 2012, quando recebeu o título de Cidadão Paulistano oferecido pela Câmara Municipal de São Paulo, é inesquecível.

Durante seu exílio no Chile e na França cultivou a fraternidade, ensinando-a a todos nós. Tento colher trechos que tudo dizem nos mais de trinta textos que compõem este livro, mas me perco, incapaz de escolher este ou aqueles no multiverso da amizade. Só me resta, portanto, a opção de transcrever, nas linhas que seguem, o que brotou do meu coração.

Lá se foi o tio!

Não sei por onde começar, de verdade.

Karin e Werner, meus filhos, passaram a conviver com Armênio, pelas mãos da Rosa, antes de nós. Com ele aprenderam, como nós, Tania e eu, que a vida não pode ser, a vida é maravilhosa!

Nossos jantares em Paris, em São Paulo, em Tiradentes e nos restaurantes da Ida Maria eram formidáveis. Armênio está/estará conosco sempre que nos reunirmos, Cecília, Ida Maria, frei Oswaldo, Tania e eu.

Não sei por onde começar, de verdade.

Ele nasceu em 1918, dois anos após meu pai, mas era como se fôssemos da mesma idade, como se fôssemos irmãos.

Todo o tempo durante o qual exerci a magistratura, o olhar de Armênio, iluminado pela phrónesis de Aristóteles, me inspirou. Nada de ciência, prudência. Armênio iluminou o voto que proferi, como relator, no processo no qual se discutia amplitude da anistia, a ADPF 153. Conversamos muito, longamente, e o Tio inspirou caminhos que me levaram ao correto.

Tenho inúmeras histórias a contar de meu irmão mais velho, mas vou me conter, relatando uma apenas.

No dia 14 de dezembro de 2011, arrematei em um leilão na Rua Oscar Freire, por uma ninharia [trinta reais], um bilhete manuscrito atribuído ao Prestes, assinado “CP[1]. Sabia que o bilhete não era dele, mas comprei. No dia seguinte, à tarde, fui visitar o Armênio, levando o bilhete comigo. Era dezembro, Tania e eu iríamos à França, eu desejava abraçá-lo.

Armênio confirmou imediatamente que não era de Prestes. Em seguida, abriu uma gaveta de sua escrivaninha e me deu, dobrado, acondicionado em um pequeno envelope de plástico --- destes para guardar CPF --- outro bilhete, este realmente a ele enviado pelo Prestes.

16 de fevereiro de 1974. Um bilhete enviado a André, codinome do Armênio. Fiquei encantado. E tanto que o Tio --- em gesto largo e demorado, moscovita --- disse-me que ficasse com ele.  Senti-me imensamente feliz e o guardei dentro de uma pasta de elástico, na qual trazia o papel arrematado no dia anterior.

Desci do apartamento do Armênio, na Rua Aracaju, caminhei até a Praça Vilaboim e tomei um táxi. Vinha comigo um segurança que, por conta de ter sido ministro do STF, ainda então me acompanhava.

Cheguei em casa um pouco antes de Tania, que saíra por outra razão. Assim que ela entrou no escritório, entusiasmado abri a pasta de elástico e o bilhete de Prestes desaparecera... Eu o havia perdido. Sentia-me perdido, tudo estava perdido. Desci até o lugar em que o taxi me deixara, procurei, na rua, no elevador, mas nada.

Iríamos a uma pizzaria, jantar com colegas da Faculdade. Tania insistiu em que fôssemos. Eu queria desaparecer do mundo. Estava desolado, como se para sempre desolado. De repente meu telefone celular tocou! Era o segurança, contando que voltara à Rua Aracaju (ele sentira que eu estava desolado) e, ao passar pela frente do prédio do Armênio, o zelador fez um psiu e disse “olha aqui, vocês deixaram cair quando saíram”.

O bilhete do Prestes recuperado, reencontrado, como se eu novamente o ganhasse de presente!

Conservo esta preciosidade em uma caixinha vermelha --- é óbvio! --- feita especialmente para que eu o conservasse!

Sinto um nó na garganta pensando nele e, como as palavras não dizem quase nada, permito-me em seguida reproduzir um pequeno texto meu publicado n'O Globo, no dia 17 de março de 2015, cinco dias depois da partida do Armênio:

Lá se foi Júlio, o “tio”.

Está lá, no céu --- “uma cidade de férias, férias boas que não acabam mais”, como diz, em um lindo poema, Álvaro Moreyra.

Armênio Guedes --- Júlio, o “tio” --- certa vez me contou de sua proximidade a Álvaro, que se foi há cinquenta anos. Armênio partiu na quinta-feira passada.

Agora é como se eu corresse os olhos, dominando o tempo, por inúmeros momentos do passado. Em Paris --- um jantar espetacular que Ida Maria, Cecília e Tania, minha mulher, prepararam para nós. Em nossa casa, em Tiradentes. Em São Paulo. Armênio ensinando o futuro a minha filha. A mim recomendando prudência, mais de uma vez.

Lá se foi o amigo mais sereno. Seu olhar desdobrava esperança, paz. Revolucionar o mundo, construir a fraternidade, mas em paz, harmonia e paz.

Um dos mais belos momentos que vivi aconteceu na quinta-feira que passou. Alguns amigos em volta do seu corpo, de repente o chão se abrindo para que a matéria fosse levada para sempre.

Antes, durante breves instantes, confraternizamo-nos. Estivemos mais próximos do que nunca, entre nós e a ele. Uns foram capazes de dizer algumas palavras. Faltaram-me forças para mencionar o quanto meu velho camarada me ensinou, para ao menos sussurrar a palavra amizade.

Alguém trouxera, para ser reproduzida, a gravação de uma canção que, naquele verso --- nesta luta final ---, ressoa em nossos corações.

Lá se foi o corpo de Armênio. A esperança refletida no fundo de seus olhos serenos resta entre nós. Iluminando os caminhos a serem experimentados pelos amigos que ainda cá estão. Um dia por certo nos reencontraremos na cidade de férias, férias boas que não acabam mais.

 

[1]  Posteriormente Ana Maria Martins afirmou-me que se trata do pintor Carlos Prado.