Dora Kramer

Dora Kramer: Recuo estratégico

Realista, a esquerda prefere negociar a marcar posição na Câmara

Coisa rara, a esquerda em geral e o PT em particular imbuíram-se de realismo na atual disputa pela presidência da Câmara. Outras raridades cercam esse que é o principal movimento na política nacional no momento. Ele dará o tom de estabilidade ou de instabilidade no Congresso daqui em diante e norteará o início das articulações dos grupos postulantes à sucessão de Jair Bolsonaro, muito embora os acertos de agora no Parlamento não valham para a presidencial de 2022.

É a primeira vez desde a redemocratização que a esquerda não apresenta candidatura ao comando da Câmara. O PSOL ainda insiste, mas está sendo convencido a desistir sob o argumento de que é hora de deixar a adolescência e entrar da idade adulta, abandonando veleidades de caráter quixotesco.

Isso porque também é a primeira vez que esse campo, sendo como diz um petista, “irritantemente minoritário”, é tão decisivo para a definição de vitória ou derrota dos grupos em disputa. Ambos, um mais outro menos identificado com Bolsonaro, residentes no espectro direito (do centro ao extremo) da cena política.

Dada essa equivalência no terreno da doutrina, prevalece na esquerda o entendimento de que não se pode perder a oportunidade de conquistar espaço no andamento dos trabalhos legislativos. Vale dizer, lugar na mesa diretora, influência na pauta de votações e participação relevante nas comissões permanentes e especiais da Casa.

Nada disso se consegue com candidaturas destinadas só a marcar posição, pois o gesto se esgota no dia da eleição. Aqui pesa também a avaliação de que o resultado sairá no primeiro turno, não havendo uma segunda chance para negociar compromissos e posições. A opção preferencial pelo pragmatismo, no entanto, não significa que haja unidade entre as legendas marcadamente de oposição. Muitíssimo ao contrário. Hoje prepondera a divisão interna nos partidos, com cada ala procurando vencer a guerra da comunicação de acordo com o respectivo interesse. Há apoios significativos tanto a Arthur Lira, do PP, apoiado por Bolsonaro, quanto ao oponente respaldado pelo atual presidente, Rodrigo Maia.

Embora a imposição de uma derrota a Bolsonaro seja uma variável do jogo e muito usada para inibir publicamente os apoios a Lira, a esse argumento se contrapõe o seguinte raciocínio: seja quem for o eleito, não terá condições de atuar em consonância absoluta com os interesses do Planalto, pois não teria o respaldo do conjunto dos parlamentares hoje convencidos das vantagens da autonomia experimentada nos últimos dois anos. Tanto para os ideológicos quanto para os fisiológicos.

Portanto, o essencial para a esquerda serão os compromissos firmados pelos antagonistas do centro à direita, a avaliação sobre o grau de firmeza de cada qual na palavra empenhada e a consciência de que na Câmara dissidência em eleição não dá camisa a ninguém.

Publicado em VEJA de 23 de dezembro de 2020, edição nº 2718


Dora Kramer: Fogo na Corte

Nunca se formou unanimidade tão contundente contra posições de magistrados supremos

Decisões do Supremo Tribunal Federal sobre temas políticos costumam gerar polêmicas. Não obstante devam ser cumpridas, habitualmente são amplamente discutidas. Sejam os debatedores os ditos especialistas ou não, sempre há os que veem razões substantivas nos votos vencidos e vencedores.

Exceção ocorreu agora, quando os cinco ministros que deram um escandaloso peteleco na Constituição para permitir reeleição vedada a presidentes do Legislativo ficaram falando sozinhos, reféns da evidência de que atuaram na jurisdição política.

Nunca, nem mesmo quando o então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, permitiu a preservação dos direitos políticos de Dilma Rousseff, ao arrepio das regras legais do impeachment, se formou unanimidade tão contundente contra posições de magistrados supremos.

O dano à confiabilidade jurídica do tribunal teria ficado por aí não fosse a reação captada nos bastidores da Corte por parte dos vencidos, acusando de traição ministros cujos votos consideravam certos em prol da urdidura anticonstitucional. Mais grave foi que daí decorreram ameaças de criar obstáculos ao exercício da presidência de Luiz Fux, um dos presumidos “traidores”.

Queira o bom senso que tais manifestações se esgotem no calor da derrota e não se configurem como atos de fato. Do contrário, as cordas vocais desses ministros ficarão muito enfraquecidas. Perdem força para, por exemplo, impor limites a atitudes antidemocráticas como as que já foram cometidas com o incentivo do presidente da República.

Perverter o texto constitucional, ainda mais quando se é dele o guardião, não deixa de ser um atentado à democracia. Assim como criar uma crise interna de óbvias e graves repercussões externas por motivo fútil não fará bem à já alquebrada reputação do colegiado.

Embalados pelo extremo desconforto de terem sido expostos e isolados na condução de um acerto político, ministros vencidos naquela votação se dizem, em privado, dispostos a atrapalhar o andamento das pautas propostas por Fux e recorrer a manobras regimentais a fim de impor empecilhos ao trabalho do atual presidente da Corte.

Esse tipo de embate faz parte da dinâmica do Poder Legislativo, mas no Judiciário recende a desvio de função. Ultrapassa o limite do dissenso, da divergência natural entre magistrados e entra no terreno da picuinha vingativa, cujo prejuízo institucional atinge o país justamente numa quadra em que o equilíbrio é não apenas essencial ante o desequilíbrio reinante no Executivo, como foi valor reivindicado pela população nas recentes eleições municipais.

Rumo oposto tomarão as excelências contrariadas se levarem adiante o plano de transformar o Supremo Tribunal Federal numa arena de vale-tudo em nome de vaidades e agendas pessoais que em nada interessam ao Brasil.

Esquerda em foco. Por incrível que possa parecer, diante da clareza do veto expresso na Constituição, causou surpresa aos parlamentares a manifestação do Supremo contrária à reeleição dos atuais presidentes da Câmara e do Senado. Com isso, o jogo em andamento foi zerado.

E ainda por mais incrível que possa parecer, a esquerda — do centro ao extremo —, a despeito de minoria, passa a ter um papel de destaque na Câmara. Com seus pouco mais de 130 votos num universo de 513, será o fiel entre os dois pratos da balança ocupados pela centro-direita liderada por Rodrigo Maia e por aquela direita identificada com o presidente Jair Bolsonaro.

Por enquanto as peças estão embaralhadas. Basta ver que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, lista seis nomes entre seus preferidos e o da Câmara inclui cinco candidatos no rol dos prediletos. Normal. Eleições no Congresso costumam ser decididas na última hora.

No Senado, o fator de definição será o MDB, dono da maior bancada. Já na Câmara, a esquerda será decisiva e, nesse campo, o PT é o mais cortejado, com seus 54 votos. Lula anda aconselhando o partido a não apresentar candidato. Negociar é a palavra de ordem, levando em conta as seguintes variáveis: imposição de derrota a Bolsonaro, influência na pauta de votações e se vale a pena fortalecer Rodrigo Maia e o projeto político do centro para 2022.

Essa é a agenda sobre a qual se desenvolvem as conversas na esquerda, cujos parlamentares estão cientes de que, quanto mais unidos estiverem, mais influentes serão sem descartar nada. Nem mesmo adesões a candidato governista.

Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717


Dora Kramer: Cai uma estrela

O PT reluta em aceitar que não é mais o dono da bola na esquerda

Das cinco fases do luto, a primeira é a negação, a segunda é a raiva e, reza a psicologia, antes da aceitação há que passar pelos estágios da negociação e da depressão.

A julgar pela reação de petistas ao desempenho ruim do partido nas eleições municipais, ainda prevalece entre eles a negação. Embora existam manifestações de raiva, tentativas de negociar com a situação adversa e os deprimidos (se houver) não mostrem a sua face, no conjunto o PT dá sinais de quanto é difícil aceitar que o partido perdeu relevância e já não é o dono da bola no campo de esquerda.

Ninguém, partido, político ou indivíduo, gosta de admitir derrotas, não obstante seja esse o ponto de partida para o início de qualquer recuperação. No terreno das autocríticas francas é que são semeadas as soluções. O PT vem se recusando a enfrentar seus fantasmas desde que se sentou no banco dos réus dos escândalos de corrupção, perdeu o comando do poder central e entrou em estado de desprestígio junto à sociedade.

De lá para cá recebeu inúmeros recados da população, sendo o mais recente — não necessariamente o último, se persistir no vacilo — das urnas municipais deste ano: ficou sem prefeitos nas capitais e reduzido a estar à frente de cidades correspondentes a 3% do eleitorado nacional. Essa proporção já foi de 19%, mais do que os cerca de 16% obtidos agora pelo PSDB, primeiro colocado nesse quesito entre os partidos.

“Nada, a não ser o autoengano, impede o partido de voltar a ter a importância que já teve na política”

E como reagiu o PT? Seu líder maior, Luiz Inácio da Silva, não deu uma palavra ao público. Relativamente recolhido esteve durante a campanha, completamente recolhido ficou ao menos até quatro dias após a divulgação dos resultados, quando escrevo. Lula não avalizou as manifestações dos defensores da autocrítica (os mesmos, habitualmente ignorados), tampouco disse qual a avaliação dele ou indicou o rumo a tomar.

Não houve tempo ainda para uma análise mais precisa? O argumento valeria caso a trajetória descendente não tivesse sido sinalizada há uns quinze anos e se aprofundado há pelo menos quatro, a partir do impeachment de Dilma Rousseff. A ida ao segundo turno em 2018 deve-se a uma situação anômala, a um pico de polarização que parece ter cansado o eleitor. A corda não cedeu, mas afrouxou-se. Voltará a ficar esticada quando o próximo processo eleitoral pegar velocidade, mas o PT não será mais o centro de gravidade.

Não ajudam a insistência no culto à personalidade de Lula, o discurso persecutório como forma de fugir às próprias responsabilidades e o aguardo de que o circo pegue fogo na esperança de, assim, voltar a brilhar num ambiente de conflito permanente sem precisar prestar contas internas e externas das mazelas que produziu para si.

Nada, a não ser a reverência ao autoengano, impede que o PT volte a ter o protagonismo de antes. Afinal, é como se diz: na política o fundo do poço tem mola. Mas ela só funciona mediante a rendição seguida de impulso e esforço.

Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716


Dora Kramer: Vai ser diferente

A próxima eleição presidencial terá desafios que Bolsonaro não enfrentou naquela que passou

Muito mais importante que o resultado do segundo turno das eleições municipais deste domingo para definir posições e articulações preparatórias ao embate nacional de 2022 é a escolha dos presidentes da Câmara e do Senado.

Na verdade, o mundo político considera importante mesmo a escolha dos deputados, porque em fevereiro eles definirão quem será a pessoa com poder de vida ou de morte sobre pedidos de impeachment contra o presidente da República.

Um presidente da Câmara fidelíssimo ao Palácio do Planalto tende a arquivar os pedidos, enquanto outro não alinhado se inclina a deixar essas solicitações na prateleira, ou “sentar em cima”, no jargão algo vulgar corrente no Parlamento. Assim fez Rodrigo Maia, em cuja gaveta se acumulam mais de cinquenta contra Jair Bolsonaro. Já Lula e FH contaram com aliados para levar semelhantes intenções e ideias ao arquivo.

Essa é a chave do início da corrida. Não porque haja no horizonte dos opositores do atual presidente uma intenção real e premente de lhe interromper o mandato. A ideia é muito mais manter ativa a espada de Dâmocles.

Isso além do controle da pauta de votações e da liderança sobre o andamento das relações entre Executivo e Legislativo, fundamental para um cenário de estabilidade ou de instabilidade política no desenrolar do processo eleitoral. O mandato dos comandantes do Legislativo eleitos em fevereiro de 2021 vai até fevereiro de 2023.

Nada ou muito pouco disso interessa ou interfere na decisão do eleitor. É fato. Contados os votos de domingo 29 de novembro, para partidos e políticos começa o processo de montagem de estruturas e estratégias que não inclui o eleitorado, embora tenha como finalidade mobilizá-lo para outubro de 2022 com dois objetivos opostos: Jair Bolsonaro tentando se reeleger e seus adversários querendo tirá-­lo do poder.

Do lado do presidente ainda não é possível enxergar movimentos além do empenho de eleger o presidente da Câmara, num plano até então concentrado na figura do deputado Arthur Lira, agora dificultado pela formação de maioria para mantê-lo como réu na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, em denúncia de corrupção passiva.

Já os oponentes se movimentam com mais nitidez, não obstante o façam em ritmo de compasso de espera para ver como fica o equilíbrio de forças entre Planalto e Congresso. Tanto na esquerda quanto ao centro e à direita agora desgarrada de Bolsonaro há dois tipos de consenso: a necessidade de aglutinação dos competidores e as diferenças entre as eleições de 2018 e 2022.

Por aglutinação não se entenda uma frente tão ampla a ponto de juntar campos ideológicos opostos. É inexequível. Há que levar em conta afinidades e respeitar as visões de mundo a fim de não termos sacos de gatos no lugar de chapas com projetos de país minimamente coerentes naquilo que apresentarão ao eleitorado.

A tentativa será evitar a fragmentação absoluta. Na base do cada um por si, todos concordam (em tese), o resultado será a reeleição de Bolsonaro. A divisão considerada ideal é esquerda e área de influência de um lado e centro de outro atraindo aquela direita dita civilizada. União de conveniência, só no segundo turno.

O essencial, também há concordância geral (na teoria), é não começar a discussão impondo vetos a nomes. Se o pré-requisito for pautado pela intolerância, não haverá entendimento. E por isso mesmo a escolha de candidaturas deve ser uma etapa posterior à do acerto de convergências sobre os programas de governo. Tudo muito bonito no universo das ideias a ser submetido ao crivo do mundo real.

Mais exatamente à nova realidade, muito diferente daquela vivida em 2018. O desafio da oposição é se organizar, coisa que não fez dois anos atrás e acabou transformando a eleição num embate de ressentimentos. Já Bolsonaro terá de superar obstáculos que não enfrentou na ocasião: agora não há a descrença quanto à sua vitória como havia; ele não é mais uma hipótese a ser confrontada com os fatos; terá de responder a cobranças por resultados de governo, estando sob um escrutínio que não esteve; não contará com o contraponto do PT para amedrontar o eleitor.

Sobra ainda a questão dos militares. Estarão com ele, abraçarão outra candidatura ou vão se recolher ao silêncio? Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa e interlocutor constante de oficiais da ativa e da reserva, se tivesse de apostar, cravaria a terceira opção. Por quê? “Acabou o encantamento.”

Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715


Dora Kramer: Pé no chão

Uma coisa é certa: em 2022 a política tradicional não embarca outra vez na canoa de Bolsonaro

A notícia do encontro de Luciano Huck com Sergio Moro levou de volta à cena da sucessão presidencial o apresentador que andava sumido desde a eclosão da pandemia. Outro efeito foi expor o ex-juiz ao frio e à chuva dos ataques à direita e à esquerda e enquadrá-lo na moldura de companhia questionável: um tanto tóxica no meio político, mas bem-aceita na sociedade.

Por ora, fica por aí o andamento da construção de uma candidatura de centro capaz de enfrentar Jair Bolsonaro em 2022. Isso no tocante ao que os artífices da empreitada estão dispostos a revelar ao público, porque nos bastidores a coisa segue o ritmo das conversas, aproximações e lances antecipados para futuras alianças que vêm acontecendo desde o ano passado.

Huck recolocado, Moro testado e João Doria instigado, mas mais interessado em se firmar como contraponto a Bolsonaro do que em disputar espaços internos na articulação de uma alternativa ao presidente. Este é o quadro e dele não veremos grandes evoluções até que se possa dar por encerrada a crise sanitária, definida a troca (ou repetição) do comando no Congresso e delineados os rumos da economia, para o bem ou para o mal.

Aqui o mapa do resultado do primeiro turno da eleição municipal tem importância relativa. Para antecipar definições sobre vencedores e perdedores em 22, o peso é zero. Temos exemplos a mancheias de derrotados numa e vitoriosos na seguinte, e vice-versa. Importa sim o tamanho do eleitorado que sairá representado por essa ou aquela força política, aí sim projetando uma tendência do estado de espírito do eleitorado.

Pelas pesquisas, o desenho revela uma inclinação ao já conhecido e/ou testado: Bruno Covas em São Paulo, Eduardo Paes no Rio de Janeiro, o atual prefeito em Belo Horizonte, os herdeiros de Eduardo Campos e ACM Neto no Recife e em Salvador, respectivamente. Se confirmadas as intenções de voto, teremos a prevalência do ânimo conservador (não no sentido ideológico) sobre humores pautados por revolta e ressentimento.

É verdade que não temos nada parecido com figuras de escol em matéria de experiência e biografia. Temos de desconsiderar perfis ideais e trabalhar com as hipóteses postas. No campo da candidatura dita de centro, Sergio Moro não agrega e Luiz Henrique Mandetta não passa pelo crivo dos interesses do partido dele (DEM). Restam Luciano Huck e João Doria. Numa avaliação crua, Huck por enquanto se situa na desvantagem em relação a Doria.

Pelo seguinte: o governador é do PSDB e já compôs uma aliança com o DEM e o MDB que inclui a eleição municipal em São Paulo e outras capitais (Rio e Salvador, por exemplo), a composição da chapa de 2018 com a cessão ao DEM da vice e a chance de assumir o governo a partir de abril de 2022, além da escolha dos próximos presidentes da Câmara e do Senado. Fechou, assim, com as forças políticas de maior peso.

Esse pessoal pode mudar e se transferir para uma candidatura de Luciano Huck? Até pode, mas não fará isso antes de o apresentador mostrar capital eleitoral/partidário e transformar-se de celebridade popular em candidato competitivo. Uma coisa é este ou aquele político demonstrar simpatia e posar para fotos com Huck, outra é ver esses personagens embarcar na canoa dele para valer.

Receba as novidades e principais acontecimentos, bastidores e análises do cenário político brasileiro. Inscreva-se aqui para receber a nossa newsletter

Doria, contudo, tem obstáculos fortes para ultrapassar: o pouco conhecimento em âmbito nacional, uma certa antipatia país afora com a supremacia paulista e a desconfiança do eleitorado do próprio estado pelo fato de ter abandonado a prefeitura para concorrer ao Palácio dos Bandeirantes depois de ter prometido cumprir o mandato.

Para vencer essas dificuldades, Doria se posiciona como um contraponto a Bolsonaro a fim de ganhar projeção e firmar imagem de governante civilizado e eficaz. Ciente do peso do quesito aversão a “paulistices”, no lugar de se referir aos “paulistas”, adota a expressão “brasileiros que moram em São Paulo”. Por sua vez, Huck e até Ciro Gomes não têm responsabilidades governamentais e podem se movimentar com mais liberdade.

A despeito da indefinição do panorama hoje mais calcado em hipóteses a ser definidas a partir de meados de 2021, uma coisa é certa: os políticos tradicionais que em 2018 ficaram com Bolsonaro de modo utilitário e entraram na eleição desarticulados não vão repetir a dose.

E o papel do Centrão? É como diz um dos donos da voz da experiência na política tradicional: “o centrão é o primeiro na fila dos cumprimentos ao vencedor”.

Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713


Dora Kramer: Agora é cinza

O fracasso dos intentos autoritário não quer dizer que o governo Bolsonaro não tenha imposto grandes malefícios ao nosso país

Nada como os fatos. No devido tempo deram razão à percepção de que eram infundados os temores sobre a possibilidade de Jair Bolsonaro golpear a democracia ao molde venezuelano, a fim de governar a plenos e absolutos poderes. Em um ano e meio, de maneira mais acentuada nos últimos quatro meses, o presidente, filhos e súditos passaram de intimidadores a intimidados.

Sinal eloquente do retraimento típico de gente acossada foram a suspensão do espetáculo, em duas sessões diárias, na porta do Palácio da Alvorada e a ausência do presidente nas performances dominicais nas cercanias do Palácio do Planalto logo após a prisão de Fabrício Queiroz.

O presidente & filhos foram acometidos de um súbito gosto por modos razoáveis, enquanto aqueles ministros ditos ideológicos perderam a loquacidade. Faz algum tempo que Damares e Araújo já não dão vazão em público a suas ideias reacionárias. Os ativistas do extremo digital reduziram drasticamente sua presença nas redes e trataram de apagar vídeos no YouTube para eliminar rastros e não facilitar a coleta de provas nas investigações acerca dos patrocínios e da organização de atos atentatórios à verdade e à Constituição.

Não foi preciso nada além da estrita observância das normas em vigor e do repúdio social aos abusos por eles mesmos cometidos para que lhes fosse cortado o fornecimento de oxigênio. Consideram-se injustiçados, vítimas de perseguição, ignorantes que se mostram a respeito de uma pergunta retórica que Sigmund Freud registrou na história da psicanálise: “Qual a sua responsabilidade na desordem da qual se queixa?”. A resposta é de essencial utilidade para uma correção de rumos.

Bolsonaro pode não estar perto de perder o mandato, mas já perdeu a condição de abalar Bangu (sem referência outra, só força de expressão) com a estridência de suas cordas vocais. Dizem que a luz do sol é o melhor detergente. Aqui a substância responsável por imprimir clareza ao cenário tem sido o olho e as mãos da lei.

Não são fortes o bastante para impedir o retrocesso civilizatório cujas bases foram plantadas nos governos do PT com o menosprezo do então presidente Luiz Inácio da Silva pela educação formal, pelo uso correto do idioma e pelo respeito à ética na política e com a introdução da dinâmica do “nós contra eles” na sociedade, e seriamente agravados por Bolsonaro. Mas, se é real a ocorrência do atraso, é verdadeira também a consolidação dos mecanismos de contenção a ilegalidades. Vários deles, diga-se, reforçados na era petista.

“Bolsonaro e companhia passaram do papel de intimidadores à condição de intimidados”

Jair Bolsonaro não contava com o peso dessa engrenagem na imposição de limites ao exercício do poder. Felizmente é com esse aparato legal que o país conta para dissipar apressadas e inapropriadas comparações com o regime de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Lá, Judiciário, Legislativo e Forças Armadas foram tomados de assalto como pré-requisito para transformar a Venezuela numa democracia de fancaria. Aqui, fica a cada dia, a cada fato, a cada reação mais patente: isso é impossível.

Portanto, que se recolham de um lado esperanças e de outro temores. Não vai ter golpe. Entre os motivos já explicitados, porque o candidato a golpista está identificado e queda-se refém dos próprios blefes. A cada dobra de aposta nesse jogo o presidente perde mais espaço no tabuleiro onde se posicionam as instituições, a massa crítica de setores organizados e a maioria da sociedade, conforme atestam as pesquisas de opinião.

O fracasso dos intentos autoritários, contudo, não significa que esteja tudo bem. Não quer dizer que o governo Bolsonaro não tenha imposto grandes malefícios ao nosso país. Impôs enormes. Em decorrência do já citado retrocesso civilizatório tivemos o prejuízo das vidas perdidas por causa da atitude negacionista em relação à pandemia, a perda de importância no campo diplomático, os monumentais riscos ao comércio exterior e aos investimentos devido ao desprezo pela preservação do meio ambiente e à depreciação de questões relativas a direitos humanos. O Brasil era um, hoje é outro bem pior aos olhos do mundo, motivo de piadas e lamentações.

Assalta-nos, então, a dúvida: a situação tem remédio ou remediada está? Nenhuma das duas hipóteses. Para a segunda, que implicaria o impedimento, ainda não se encontrou um caminho eficaz. Para a primeira, dependeríamos de uma mudança radical nos atos e no pensamento de Jair Bolsonaro, num repente transmutado em líder. Resta, portanto, o aguardo de um milagre.

Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693


Dora Kramer: Encravado nas estrelas

O desafio das Armadas é evitar o contágio do vírus do descrédito

Militares com assento em gabinetes do Planalto e adjacências estão vendo como é difícil fazer parte de governos quando o ato de governar é presidido pela democracia. Panorama visto também por seus pares sem postos no Executivo, a serviço apenas do Estado. Uma boa experiência tanto para os remanescentes do regime autoritário quanto para as novas gerações lotadas no Exército, Marinha e Aeronáutica. Ressalvadas as exceções de praxe, para todos eles tudo indica serem pontos pacíficos a prevalência do poder civil resultante da escolha livre do voto e a normalidade institucional da Constituição de 1988. Nessa condição, depois de 21 anos no comando da nação, enquadraram-se ao ditame familiar à vida nos quartéis: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Nos últimos 35 anos não houve dúvida quanto ao imperativo de obediência devida à Carta Maior. Nesse período não se discutiram coisas como a hipótese de golpe militar.

O problema começou quando quem assumiu o topo da linha de comando mostrou não ter um pingo de juízo. Nessa hora, a de agora, as Forças Armadas passaram de instituição benquista a alvo de suspeições golpistas. E por quê? Grosso modo porque subverteram a ordem dos fatores e altas patentes aceitaram se submeter às ordens de um capitão. Reformado por indisciplina, acrescente-se. Na vigência de um regime de liberdades, garantia dos direitos individuais e submissão aos deveres constitucionais tudo tem um preço. Caríssimo e cobrado com juros da desmoralização quando se avalizam atos e palavras que extrapolam aqueles preceitos. Seja pelo compartilhamento do mesmo espaço, seja por ação e/ou omissão. No caso da junção dessas duas situações, o efeito dificilmente deixa de ser desastroso.

“Ajuizados, militares têm problemas quando quem manda não tem um pingo de juízo”

É o risco que correm as Armadas com o desgoverno de Jair Bolsonaro. Versão corrente reza que há resistência à manutenção de Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde a fim de evitar levar ao colo dos militares a crise sanitária. Se verdadeira, a precaução é inútil. Primeiro, porque foi ignorada pelo presidente ao anunciar a permanência do general “por muito tempo” no cargo e pelo próprio ao incorporar mais treze militares à equipe, assumindo o papel de testa de ferro da obsessão presidencial pela cloroquina. Segundo, porque não são só os desacertos no combate à pandemia que lhes pesarão sobre os ombros, mas também toda sorte de atitudes erráticas do governo no qual estão envolvidos para muito além do colo, ultrapassando a linha do pescoço.

Definitivamente não foi um bom negócio para os fardados esse mergulho sem barreiras de proteção. A despeito da compreensão de que generais que dividem mesa de reunião ministerial onde se fala aos palavrões não traduzem o pensamento majoritário no contingente das corporações armadas, aos olhos da sociedade não se estabelece essa separação. Não moderaram, como era a expectativa, os modos do presidente. Resta saber o que farão, além de comunicados oficiais de afirmação democrática, para evitar o alastramento do contágio e, com ele, a perda da indispensável credibilidade.

Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688


Dora Kramer: Novidade no front

Bolsonaro, em campanha, vai tentar eleger o maior número possível de prefeitos de partidos simpatizantes para depois filiá¬-los ao Aliança pelo Brasil

Seria um exagero dizer que 2020 será um ano de grandes e essen¬ciais mudanças na política, porém é correto afirmar que os próximos 300 e tantos dias nos reservam novidades na área. Não necessariamente porque haverá eleições (graças aos ventos da democracia isso é notícia velha), mas também por causa delas acho que dá para começar por aí, falando de algo que soa maçante embora seja importante: o fim das coligações proporcionais.

Explico. Será a primeira eleição sob a égide da nova regra que proíbe os partidos de se aliar para eleger vereadores. Isso quer dizer que não existirão mais aquelas chapas mistas, mediante as quais se elegiam pessoas na carona de outras, muitas vezes inadequadas sob os aspectos político, ético, social, moral e cultural, e se faziam todos os tipos de escambo. Sem tais alianças, cada partido que quiser garantir boas vagas nas Câmaras Municipais terá de ir à luta com candidato próprio à prefeitura.

A norma deixa de fora os caroneiros e torna sem efeito o aluguel do tempo de televisão e rádio de legendas menos expressivas que trocavam essa benesse financiada com dinheiro público por apoio a candidaturas majoritárias (a prefeito, senador, governador e presidente) dos partidos maiores. Ah, mas que importância tem isso no destino do país? Toda. Feito o teste municipal, valerá a mesma regra em 2022, com óbvias e substantivas repercussões nas campanhas e depois nas composições das Assembleias Legislativas e na Câmara dos Deputados.

Ao prezado leitor e à estimada leitora, um apelo: antes de me abandonar pelo meio do caminho por acharem o assunto árido e desinteressante, tentem prestar atenção nos efeitos. Têm a ver com as suas vidas e até com a maneira como se posicionam nas respectivas redes sociais. Informação é útil para não incorrer no pecadilho do analfabetismo político, da precipitação, do chute, enfim, do vexame cívico.

Para tanto, convém também estar atento à entrada em cena dos candidatos oriundos dos movimentos civis suprapartidários. Tiveram pouca importância relativa nas eleições de 2018, mas já despertam interesse significativo e, ao que tudo indica, aumentarão sua presença nos mais variados partidos, reforçando a atuação para 2022, em que serão atores de peso e presença crescente.

No quesito novidades de 2020, temos também o posicionamento explícito de pretendentes às candidaturas presidenciais de 2022. Como atuará cada um deles? Lula carrega o PT ao mundo da fantasia, pois está impedido legalmente de concorrer. O presidente Jair Bolsonaro, em campanha aberta, vai tentar eleger o maior número possível de prefeitos de partidos simpatizantes para depois filiá¬-los ao Aliança pelo Brasil, aproveitando que prefeitos não perdem o mandato por mudar de agremiação, podendo fazê-lo quando a legenda de Bolsonaro obtiver registro no Tribunal Superior Eleitoral.

O governador de São Paulo, João Doria, já avisou que fará campanha para todos os candidatos do PSDB e aliados do partido a fim de se tornar conhecido país afora com vista à campanha presidencial. Luciano Huck, também pretendente, mas de atua¬ção mais discreta, ainda hesita entre as recomendações dos conselheiros.

Alguns acham que ele deve ficar de fora para se preservar, outros o aconselham a já se mostrar como candidato. Na dúvida, Huck parece atender a ambos: não assume a candidatura, mas vai trilhando os caminhos da política com conversações naquelas áreas ditas de centro e centro-direita que arquitetaram politicamente a candidatura de Fernando Henrique em 1994. Tiveram êxito. A dúvida é: só por causa do Plano Real ou por expertise? Desse dilema talvez esteja prisioneiro Luciano Huck.

Em armadilha parecida, em termos de prós e contras, poderá se ver o Congresso em 2020, que terá também uma grande novidade: o Orçamento da União impositivo. Quer dizer que o Parlamento passa a ser o responsável pelo ordenamento de despesas da União. Acaba aquele negócio de troca de votos de deputados e senadores por liberação do dinheiro das emendas e, com isso, o Executivo perde poder no quesito barganha.

O Legislativo fica mais independente, o debate sobre a distribuição do Orçamento ganha nova importância (de onde merece mais atenção das senhoras e dos senhores), mas suas excelências não terão mais esse velho colo para chorar, vão ter de se virar. É como diz o presidente da Câmara, Rodrigo Maia: “A gente vai precisar fazer bonito pelo próprio esforço. Se não fizermos, não teremos a quem culpar”. É isso, que venha 2020. Se possível, fagueiro.

 


Dora Kramer: Forte apache

O Congresso é melhor em levar na conversa que em bater continência

Com seus quase trinta anos de mandato como deputado, Jair Bolsonaro não é alguém a quem se possa atribuir desconhecimento sobre os caminhos em que as cobras andam no Congresso. Tendo sido o presidente eleito durante aquele período de sócio atleta do clube de um baixo clero catedrático nas manhas e artimanhas do Parlamento, por mais razão não se devem subestimar seus conhecimentos na matéria.

Mais do que você, eu ou qualquer um dos brasileiros tidos como expertos no tema, Jair Bolsonaro tem ciência de que a guarda compartilhada das relações com deputados e senadores entre o deputado Onyx Lorenzoni e o general Carlos Alberto dos Santos Cruz não é uma aposta necessariamente certeira.

Portanto, ele deve ter um plano cujas informações essenciais garantidoras da eficácia do projeto ainda reserva para si. Se não tiver, pior para todos nós, tripulantes do mesmo barco, sobretudo considerando que o novo mandatário passou muito menos tempo no quartel do que na Câmara e, por isso, percebe (ou deveria perceber) com nitidez que na vigência da democracia é mais fácil o Congresso levar o general Santos Cruz na conversa que os parlamentares aceitarem submeter-se à disciplina militar.

A nomeação de quantidade inédita de militares em governo civil em si não configura risco ao regime nem uma ameaça ao estado de direito, reconquistado a penas duríssimas. É evidente que militares formados (alguns até nascidos) nos anos posteriores à ditadura são diferentes daqueles forjados em critérios anteriores à reformulação constitucional que desde 1988 sustenta o Brasil democrático e que o submeteu a reiterados e exitosos testes de firmeza institucional.

O problema pode vir a ser o método. Militares têm uma dinâmica própria, cuja pedra de toque está fundada na obediência cega à hierarquia. Outra muito diferente (para não dizer oposta) é a lógica condutora do sistema de poder predominantemente civil. Neste, a palavra de ordem é negociação; naquele, a base reside na garantia da ordem pela obediência cega aos ditames da hierarquia.

Militar algum negocia coisa nenhuma com superiores ou com subalternos. Pois bem: parlamentar nenhum presta reverência a ordens-unidas sem que a isso corresponda uma contrapartida, seja ela lícita, ilícita, programática ou de mera conveniência. É da natureza da função, assim como é inerente ao militar o respeito irrestrito à hierarquia funcional.

Na complexidade das relações democráticas entre Poderes, mais importante que a obediência ao comandante é a submissão ao abecedê da mandante de campo hoje, e de modo consolidado para sempre, que responde pelo nome de Constituição do Brasil.

O mantra do avô.
Tão atual quanto inesquecível é a frase que ouvi ainda bem jovem de Roberto Campos em 1999, cujo neto ocupará o Banco Central a partir de 2019: “Minha filha, não é a lei que precisa ser forte, é a carne que não pode ser fraca”.


Dora Kramer: Ilusão verde-oliva

A força das Forças Armadas é menor do que supõem alguns civis

Constatação provada e comprovada: gente fraca (governante ou governada) vivencia a própria fraqueza na ilusão de que possa importar fortaleza da gente autorizada e legalmente armada na sociedade, seja tal força oriunda da polícia, do Exército, da Marinha e/ou da Aeronáutica.

Daí termos hoje não só um governo fraco, mas também uma boa parcela da sociedade frágil, aquela que acredita no chamado “ao general” para resolver as coisas. No que tange ao Planalto, ele não resolveu a situação do Rio de Janeiro nem deu o jeito esperado na esquisitíssima greve dos transportadores de insumos essenciais ao funcionamento das cidades.

No tocante a boa parte do eleitorado que aparece nas pesquisas justificando a intenção de voto em Jair Bolsonaro pelo desejo de “volta dos militares” ao comando do país, a História conta a história de um equívoco, como a recente divulgação dos documentos da CIA que revelam o envolvimento direto do presidente-ditador Ernesto Geisel no assassinato de dezenas de brasileiros combatentes do regime militar.

Garotos e garotas precisam ser muito bem ensinados a respeito disso. Esse pessoal não viveu nem sofreu os horrores dos medonhos anos da ditadura. Algo diferente ocorre com os integrantes do atual governo, todos contemporâneos dos anos duros; embora nem todos tenham sofrido torturas, todos sabiam o que acontecia. Entusiastas do regime, colaboradores voluntários ou involuntários, quando não entusiastas do regime fechado.

É o caso dos integrantes da cúpula do atual governo. Quase todos filiados ao MDB, mas não praticantes do MDB de Ulysses Guimarães e companhia. Alguns são oriundos da Arena, outros emedebistas de ocasião, nenhum deles herdeiro da luta contra a ditadura. De onde se relacionam sem medo nem limites com os militares, dando a eles mais poderes do que seria aconselhável.

Por anos o Brasil precisou se igualar a nações civilizadas em que não havia Ministério do Exército, mas Ministério da Defesa sob o comando civil. Mediante intensas negociações, no final dos anos 90 o então presidente Fernando Henrique Cardoso conseguiu criar o Ministério da Defesa, a fim de que ficasse patente o poder civil sobre a circunstância de atos e fatos atinentes ao mundo dos militares. Houve resistência, mas prevaleceu a persistência.

De modo muito rápido, o presidente Michel Temer deu fim a esse conceito ao nomear como interino e depois manter um militar no comando da pasta da Defesa, na condição de titular. Era o que os militares queriam, não era o que o agora deslocado para o Ministério da Segurança, Raul Jungmann, achava o mais adequado, não é o melhor para a democracia de supremacia civil.

Deu-se, portanto, um retrocesso. Mas sempre podemos transformar o reverso em progresso, desde que a opção seja pôr para andar a carruagem da vida, avançando na direção do viver melhor, até que a sociedade como um todo se convença das vantagens da liberdade, ativo imprescindível das boas democracias, e das desvantagens da maneira autoritária dos regimes de força militar.


Dora Kramer: Um fantasma na ópera

Eduardo Cunha não foi o primeiro nem será o último político de destaque a ser preso pela operação Lava Jato. Sequer pode ser apontado como aquele que maior poder e/ou volume de informações reuniu na República. As presenças de José Dirceu e Antônio Palocci em Curitiba – chefões da era em que o PT mandava (e principalmente desmandava) no País – dão por si tal testemunho. Pode ser que ele venha a fazer uma delação devastadora que comprometa do baronato ao cardinalato da política? Pode ser que haja vida em Marte. No terreno das possibilidades criam-se, entre outras coisas, fantasmas. Tudo é possível embora nem tudo seja provável.

Para dirimir quaisquer dúvidas, o melhor método é o exame das condições objetivas. A principal delas esteve registrada no placar eletrônico da Câmara no dia 12 de setembro último, quando o então deputado afastado de suas funções legislativas pelo Supremo Tribunal Federal teve o mandato cassado por 450 votos a favor e 10 contra. No início, quando o processo foi aberto no Conselho de Ética, a avaliação preponderante era a de que Eduardo Cunha sairia ileso. Segundo essa versão, teria poderes ilimitados para impedir o andamento dos trabalhos e um embornal de informações a respeito de seus pares tóxico o suficiente para garantir votos a favor da manutenção de seu mandato. No campo da suposição, isso parecia fazer sentido. Mas a realidade tem componentes menos esquemáticos.

No caso, a opinião pública, a revelação de novas e cada vez mais contundentes acusações, o comportamento excessivamente ousado de Cunha, a decisão do STF de afastá-lo do cargo, a impossibilidade de contar com ajuda do governo, o instinto de sobrevivência eleitoral dos deputados, uma série de fatores que desmontou a presunção inicial e produziu um resultado surpreendentemente desfavorável a ele. A prisão menos de quarenta dias depois provocou alvoroço, não obstante fosse algo esperado, líquido e certo. Fez-se o silêncio em Brasília. Pudera, dizer o quê? Lamentar, comemorar? O governo e mundo político em geral não poderiam fazer uma coisa nem outra. Até o PT se manteve discreto, dada sua impossibilidade de falar de corda em casa de enforcado.

Enquanto na capital federal a palavra de ordem era não passar recibo, no restante do País estabeleceu-se a gritaria em torno dos presumidos efeitos de uma delação premiada. Por ora apenas um fantasma nessa ópera composta pela operação Lava Jato. Não que seja um equívoco supor que Cunha faça delação e provoque com ela uma devastação em massa. Mas é preciso medir e pesar as circunstâncias. E estas não lhe são necessariamente favoráveis. Não é ele quem dita as regras muito menos o rumo dos acontecimentos como, de resto, já ficou demonstrado. A faca e o queijo estão nas mãos do Ministério Público e da Justiça.

Ainda que o ex-deputado tenha disposição de delatar não significa que os procuradores se interessem pela contrapartida ou que as condições estabelecidas em lei para a obtenção de benefícios se apliquem a Eduardo Cunha. A força tarefa da Lava Jato trabalha há mais de dois anos, período em que reuniu uma montanha de informações a respeito das quais seguramente o País ainda não sabe da missa a metade. De onde é possível que o ex-deputado não tenha dados que os investigadores considerem novos e/ou necessários ao esclarecimento dos fatos.

Se não pôde controlar seu destino quando presidente da Câmara nem se utilizar do arsenal intimidador de maneira eficiente, não será preso que Eduardo Cunha terá êxito no manejo da figura de assombração. Ademais, terá de ter muito cuidado com o que disser para não piorar sua já sofrível situação.(O Estado de S. Paulo)


Fonte: pps.org.br


Dora Kramer: Uma eleição sem derrotas nem derrotados

À exceção do já previsto desastre petista, não houve derrotas nem derrotados fragorosos na eleição de ontem. Tampouco ocorreram vitórias ou se registraram vitoriosos absolutos na escolha de prefeitos e vereadores nas capitais do País. Foi tudo meio morno. Portanto, de baixa intensidade também foi o impacto sobre os preparativos para 2018. É tradição se tomar o desempenho de cada partido no pleito municipal como uma espécie de ensaio para a disputa presidencial dali a dois anos, embora tal versão quase nunca corresponda aos fatos. Desta vez, podemos dispensar o “quase” e assumir na totalidade a negativa.

Não haverá correspondência alguma entre as duas eleições, notadamente pela peculiaridade de ambas. A de agora, realizada com regras até então inéditas, em ambiente de crises, escândalos, prisões, delações, reações algo desesperadas e um altíssimo grau de rejeição aos políticos. O paradoxo é que o interesse pela política cresceu na proporção inversa. O sumiço dos caciques partidários das campanhas deu-se justamente porque não há quem possa dizer que esteja bem na fotografia no momento. Fernando Henrique e Aécio Neves fizeram aparições fortuitas em prol do candidato do PSDB a prefeito de São Paulo, João Doria, e ainda assim só depois de ele dar sinais de saúde eleitoral.

O ex-presidente Lula bem que tentou. Apareceu aqui e ali, no Nordeste e em São Paulo, para ter o desgosto de ver candidatos nordestinos dispensando sua presença e Fernando Haddad desistindo de apresentá- lo no horário eleitoral depois de as pesquisas qualitativas o apontarem como fator de perda de votos. O presidente Michel Temer não deu o ar da graça. Verdade que ele havia anunciado distância a fim de não provocar atritos entre partidos dos quais depende de votos no Congresso. Mas é fato também que não se viu ninguém no PMDB e área de influência a clamar por sua presença.

Por esses e outros motivos, não se pode enxergar em 2016 um ensaio para 2018, quando o esperado e o inesperado cuidarão de proporcionar cada qual a respectiva surpresa. Nada está garantido e a obra do futuro com desfecho em aberto. Mesmo o desempenho surpreendente de João Doria em São Paulo não representa um passaporte para o governador Geraldo Alckmin na disputa presidencial. Entre outros motivos, porque nossa história recente demonstra que criaturas nem sempre fazem bem aos criadores. (O Estado de S. Paulo – 03/10/2016)


Fonte: pps.org.br