Donald Trump

RPD || Marcos Sorrilha Pinheiro: O sistema eleitoral norte-americano e as eleições de 2020

No Brasil, quem tiver mais de 50% dos votos válidos vence a eleição e leva a Presidência. Nos Estados Unidos, vence quem alcançar a maioria absoluta no colégio eleitoral

Para o brasileiro, é difícil entender o sistema eleitoral dos Estados Unidos, porque lá a escolha do presidente não se dá pelo voto direto, mas pelo colégio eleitoral.

A origem data da Constituição de 1787, quando o país ainda não era uma nação, ao reunir treze Estados organizados em uma confederação destituída de um poder central. Foi justamente durante a Assembleia Constituinte que o modelo federativo foi desenhado e, com ele, a maneira pela qual o chefe do Executivo seria escolhido.

A elaboração do sistema de escolha do mandatário atendeu a alguns interesses que estavam em jogo naquele evento, como, por exemplo, a necessidade de se estabelecer um mecanismo de mediação que pudesse deliberar sobre os votos populares, impedindo que a escolha da maioria fosse motivada por paixões momentâneas capitaneadas por líderes demagogos. Vale dizer: o sistema eleitoral da maior democracia do mundo foi elaborado para impor limites à democracia, reduzindo a participação da população na escolha direta de seu presidente.

Outro interesse em pauta dizia respeito à autonomia dos Estados que se congraçariam em uma nação. Temia-se que o voto direto beneficiasse os Estados mais populosos, ao passo que os Estados do Sul contavam com número maior de pessoas escravizadas, ou seja, menos eleitores. Um candidato que representasse os interesses da porção Norte do país ou concentrasse sua campanha nos Estados mais populosos, poderia, assim, sagrar-se vitorioso e pôr em risco a capacidade de representação das demais unidades da Federação.

O colégio eleitoral apresentou-se, portanto, como uma solução capaz de atribuir maior representatividade aos Estados menores, uma vez que a vitória nas eleições já não seria daquele que obtivesse um número maior de votos, mas de quem conseguisse garantir a maioria dos delegados no colégio eleitoral.

O colégio eleitoral, por sua vez, é formado por delegados indicados pelos partidos e escolhidos pelos eleitores no dia da eleição. No modelo atual, ele é composto por 538 delegados, número equivalente ao total de assentos no Congresso americano (100 senadores e 435 deputados), mais 3 delegados advindos do Distrito de Colúmbia. A distribuição dos delegados entre os Estados se dá de acordo com sua densidade demográfica. Daí porque a Califórnia possui o maior número de delegados, 55.

De tal maneira, seguindo o modelo estabelecido, o candidato que vence em um Estado, mesmo que seja por diferença mínima de votos, leva para sua conta todos os delegados que estavam em disputa, tendo ou não votado nele. Isto é: o vencedor leva tudo.

Esse formato permite algumas anomalias. Poe exemplo: um candidato pode ser eleito sem que obtenha um único voto em 39 Estados da Federação, desde que vença, mesmo que pela margem mínima de votos, em pelo menos 11 desses 12 Estados: Califórnia, Nova York, Texas, Flórida, Pensilvânia, Illinois, Ohio, Michigan, Nova Jersey, Carolina do Norte, Geórgia ou Virgínia.

Existem algumas barreiras para impedir o êxito dessa estratégia de privilegiar os Estados populosos, com vistas à construção da maioria no colégio eleitoral. Por conta de peculiaridades em sua cultura política, algumas unidades da Federação se consolidaram como eleitoras históricas de um dos dois grandes partidos nos EUA. São os chamados Safe States. Existem, também, aqueles Estados que não possuem seus votos consolidados e que mudam de lado a cada uma ou duas eleições. São os chamados Swing States. Esta característica pendular faz com que seja justamente nesses locais onde a eleição “realmente acontece”, conhecidos pela alcunha de “Campos de Batalha”.

Nas eleições deste ano, ao menos três dos chamados Swing States aparecem como campos de batalhas: Wisconsin, Flórida e Pensilvânia. A novidade são os Estados que historicamente votam com os republicanos e que, agora, aparecem em disputa: Georgia, Arizona e Carolina do Norte. Desses, o Arizona é aquele em que Joe Biden aparece com melhor chance de vitória.

Neste exato momento, a corrida eleitoral ganha contornos de indecisão. Após três meses de muitos tumultos em torno da figura de Donald Trump – causados pela derrubada do PIB, pelas mortes causadas pela Covid-19 e pelas manifestações antirracistas –, em que uma vitória esmagadora de Biden parecia se desenhar, o atual presidente se recuperou nas pesquisas, aumentando sua vantagem em Estados ameaçados, como o Texas, e aproximando-se de seu opositor em dois campos de batalha: Flórida e Pensilvânia.

De certa maneira, a economia começa a dar sinais de recuperação e isso pode ser bom para Trump. Além disso, o aumento das tensões em torno das manifestações étnicas é uma carta que ele mobiliza com frequência, tentando plantar o medo, vendendo a imagem de Biden como se fora a marionete da ala radical do partido, atrelada àqueles movimentos. Por outro lado, o candidato democrata sai-se bem em temas que são tidos como muito importantes entre os eleitores independentes – a questão climática e a crise do coronavírus – com as quais, estimam, Biden saberá lidar com mais competência.

Hoje, dos temas centrais que norteiam a escolha do próximo presidente, cinco despontam com particular importância: pauta étnica, economia, relações com a China, coronavírus e questão climática. Biden parece ter dois pontos seguros a seu favor, ao passo que Trump luta para consolidar seu posicionamento em ao menos dois deles também. Apenas a China está em aberto. Ambos os candidatos coincidem em que a China é um problema para a América.

Trump tem acrescentado pauta própria e muito sensível ao eleitor de direita do país, a ênfase na lei e na ordem, sua plataforma preferida na tentativa de alertar a população do país contra os efeitos da campanha de Biden, de maior aproximação com as minorias étnicas. Que, para o candidato republicano, são precisamente os agentes principais das ameaças à segurança interna dos Estados Unidos. O dia das eleições dirá de que lado se alinhará o eleitorado do país.

*Marcos Sorrilha é professor Doutor do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista, Campus de Franca.


El País: Impeachment de Trump chega a clímax com desfecho previsível e impacto eleitoral incerto

Advogados da Casa Branca alertam contra a destituição do mandatário: “Estão pedindo algo muito perigoso”

Os advogados de Donald Trump começaram no sábado seu turno de fala e defenderam que as manobras do presidente sobre o Governo da Ucrânia, a quem pedia investigações prejudiciais aos seus rivais democratas, eram de interesse legítimo e não foram apoiadas em coação. O advogado da Casa Branca, Pat Cipollone, acusou os democratas de usar um procedimento excepcional como o impeachment, que os Estados Unidos realizam pela terceira vez na história, para retirar o mandatário da reeleição em 2020. Cipollone tentou dessa forma dirigir a acusação que pesa sobre o acusado aos promotores. “Estão pedindo que façam algo muito perigoso”, alertou.

Trump tem o caminho à absolvição livre uma vez que a destituição precisa de dois terços da Câmara e os republicanos, que são maioria com 53 das 100 cadeiras, cerraram fileiras em torno ao mandatário. Os democratas têm problemas para conseguir convencer até mesmo quatro deles, com os quais somam 51 votos, para poder pedir a declaração de testemunhas no julgamento. Foi a maioria democrata na Câmara baixa que tornou possível a abertura do julgamento, mas o peso agora está na alta, território amigo do mandatário. O veredito do Senado é previsível, o efeito nas eleições presidenciais de 2020 é mais incerto.

A manhã começou com um gesto teatral por parte dos gestores do impeachment, os sete congressistas democratas que lideram a acusação e na sexta-feira concluíram sua exposição pedindo a destituição do presidente. Pouco antes das 10h, quando começava a sessão, marcharam em procissão da Câmara dos Representantes ao Senado para entregar um total de 28.578 páginas de transcrições e outros documentos divididos em caixas. Procuravam reforçar a solidez do caso diante do que estava por vir: a tentativa da defesa do presidente de dar uma guinada na acusação.

“Estão pedindo que revertam não só os resultados da última eleição, como pedem que retirem o presidente Trump de eleições que ocorrerão em nove meses”, afirmou Cipollone no começo de uma exposição de duas horas, breve, pelos parâmetros em que se move o impeachment. “Seria um abuso de poder completamente irresponsável fazer o que lhes estão pedindo que façam: interferir em uma eleição e excluir o presidente dos Estado Unidos das urnas”, afirmou ao concluir.

Trump é acusado de abuso de poder, em seu benefício eleitoral, por pressionar Kiev para que anunciasse duas investigações, uma relacionada ao pré-candidato presidencial que lidera as pesquisas, Joe Biden, e seu filho, Hunter, pelos negócios deste último na Ucrânia quando o pai era vice-presidente; e outra sobre uma teoria desacreditada segundo a qual o país europeu havia planejado uma campanha de ingerência nas eleições de 2016 para favorecer a vitória democrata. O próprio presidente norte-americano pede explicitamente as duas investigações a seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, na conversa de 25 de julho, cujo conteúdo se tornou público. A acusação também afirma que ele usou o congelamento de ajudas militares e um convite à Casa Branca como moeda de troca.

O insistente pedido de Trump não só fica corroborado pela ligação de julho, como por múltiplos depoimentos e documentos que mencionam o interesse do republicano pelo assunto, mas os advogados o apresentaram no sábado como uma preocupação legitima pela corrupção e negaram o quid pro quo. Cipollone frisou que Trump não mencionou na conversa nenhuma moeda de troca e atribuiu a retenção de quase 400 milhões de dólares (1,7 bilhão de reais) em ajudas militares, que haviam sido aprovadas pelo Congresso, à irritação da Administração pelo escasso apoio vindo da União Europeia. Em relação à reunião entre Trump e Zelensky, os advogados lembraram que ela acabou não ocorrendo.

O encontro aconteceu, entretanto, em 25 de setembro em Nova York, quando o escândalo já havia explodido e com investigação na Câmara dos Representantes já em andamento. E Gordon Sondland, embaixador norte-americano na União Europeia, que recebeu de Trump um papel importante nas manobras com a Ucrânia, admitiu em seu depoimento na Câmara dos Representantes que, “na ausência de uma explicação crível”, acabou concluindo que as ajudas militares não seriam entregues “enquanto não ocorresse uma declaração pública da Ucrânia comprometendo-se com as investigações de 2016 e com a Burisma”. Em um relatório oficial, o Escritório de Controle do Governo, uma agência independente dentro da Administração, chamou o congelamento de ajudas de ilegal.

O advogado adjunto da Casa Branca, Mike Purpura, se expressou em linha semelhante a Cipollone em relação à teoria da conspiração sobre as eleições de 2016, frisando que “não há absolutamente nada de errado em pedir ajuda a um líder estrangeiro para se chegar ao fundo de qualquer forma de interferência nas eleições americanas”. Essa teoria da conspiração já não tinha fundamento quando o presidente pediu a Kiev que anunciasse as investigações. Toda essa campanha de pressão foi orquestrada através de uma espécie de diplomacia extraoficial e paralela, em que o advogado pessoal de Trump, Rudy Giuliani, desempenhou papel essencial.

Também pesa sobre o republicano a acusação de obstrução ao Congresso por obstruir a investigação. O congressista Adam Schiff, na liderança dos gestores nomeados pela Câmara dos Representantes para comandar a acusação, concluiu na sexta-feira três dias de argumentos com um pedido final aos republicanos: “Sabem que não podem confiar em que esse presidente faça o correto para o país”.

Vários veículos de comunicação norte-americanos adiantaram na sexta-feira que a defesa se centraria em aprofundar as suspeitas sobre os Biden como maneira de justificar as manobras de Trump. Pode ser que seja a bala reservada para segunda, quando o julgamento continuar. Cada parte possui 24 horas divididas em três dias, mas os advogados de Trump indicaram que não esgotarão seu tempo, ao contrário do que fez a acusação. O republicano, mais do que o prazo, se preocupa pelas horas, como bom animal midiático que é. “Meus advogados começarão no sábado, que é o que em televisão se chama o Vale da Morte”.


Luiz Sérgio Henriques: O caos ao redor

A esquerda abdicou da renovação do sistema político, contribuindo para sua deterioração

Os sinais de alarme agora soam com estridência e vêm das mais variadas partes: a democracia política, tal como a conhecemos, está submetida a tensões talvez inéditas, ameaçada por inimigos inesperados e considerada por muitos como incapaz de se expandir e garantir uma vida cívica à altura de suas promessas. A eleição de Donald Trump em 2016, mesmo descontado o fato não irrelevante de sua derrota no voto popular, como que acentuou brechas até então pouco percebidas: aqui e ali, vozes que se supunham definitivamente ultrapassadas ou, quando muito, com vocação minoritária adquiriram novo fôlego e, como se tornou comum dizer a partir de então, passaram a amplificar o mal-estar dos “perdedores” da globalização.

Na desorientação não só política, mas sobretudo cultural, que nos marca a todos e encurta nossos horizontes, houve quem, à esquerda, saudasse a ascensão do novo presidente americano como um revés fatal para o neoliberalismo globalista, tal como, algum tempo antes, a queda do Muro de Berlim havia selado a sorte do socialismo real. O nativismo e o protecionismo econômico de Trump seriam uma estratégia a ser imitada, com as devidas alterações, pela esquerda dita soberanista, que pressupunha assim as fronteiras nacionais como as mais adequadas para a defesa da cidadania política e social. Nenhuma reminiscência, nessa esquerda, do clássico internacionalismo do Manifesto marxiano, que cantava em prosa e verso a capacidade capitalista de arquivar provincianismos, dissolver barreiras nacionais e unificar, ainda que contraditoriamente, a sociedade dos homens e das coisas.

E talvez mais grave ainda: subestimava-se o impacto que a nova presidência teria, como tem tido, sobre a democracia na América e, consequentemente, em todo o mundo. De fato, as pulsões extremistas que sustentaram o triunfo de Trump, com sua carga de racismo, sexismo e xenofobia, inevitavelmente produziriam um efeito corrosivo sobre a coesão social. A polarização destrutiva viria a se confirmar como o novo padrão de enfrentamento político, amplificado, ainda por cima, por “guerras de cultura” em desfavor da mais recente geração de direitos, ambientais e de gênero, que pouco a pouco abria caminho. Projetando-se para além dos Estados Unidos, o trumpismo reforçaria tendências francamente reacionárias um pouco por toda parte, como nos é dado ver até bem perto de nós, entre outras coisas, com a instrumentalização irresponsável de valores familiares e religiosos.

Uma após outra, e já com exceções contadas, as democracias europeias entraram em sofrimento, arrastando nisso o extraordinário projeto da casa comum. A social-democracia alemã agora refaz sua aposta, não isenta de riscos, na grande coalizão com os democratas-cristãos de Angela Merkel, uma dirigente de exceção, como se viu no acolhimento dos fugitivos das guerras no Oriente Médio em 2015. Não fosse o fenômeno Emmanuel Macron, a repropor um “centro” que queremos ver ousado e renovador, a velha França de 1789 seria palco, hoje, de aventuras irresponsáveis. E na Itália, país de rica tradição de esquerda, duas modalidades relativamente distintas de populismo, uma das quais de extrema direita – a Liga de Matteo Salvini –, amealharam os votos de expressiva maioria. Ainda que por ora não se saiba o que farão exatamente com o largo consenso obtido, trata-se de uma mudança de tal ordem que faz do notório Silvio Berlusconi um exemplo de “moderação”. E a esquerda, quer a reformista do Partido Democrático, quer as formações radicais, terá de se reconstruir em condições críticas, com déficits programáticos e dificuldades de inserção, dada a mudança verdadeiramente epocal das estruturas econômicas e sociais.

O ciclo da esquerda latino-americana no poder não foi a luz no fim do túnel. A transição exemplar no Chile, com a passagem de bastão entre Michelle Bachelet e Sebastián Piñera, entre o centro-esquerda e o centro-direita, é acontecimento a ser saudado efusivamente na perspectiva de uma regular democracia de alternância. Processos muito diferentes entre si – eleições no Equador e na Argentina, impeachment no Brasil – sofrem o estigma do “golpe”, palavra que se vulgariza no pensamento único de uma certa esquerda populista e autoritária, que, como mostra o caso chileno, está longe de ser a única possível. Na Bolívia, reeleições indefinidas para sagrar o mesmo mandatário, ainda que contra o veredicto formal de um plebiscito, são justificadas como expressão de respeito aos direitos humanos do mandatário: nada mais do que um acinte. E a infeliz Venezuela, à beira de tragédia humanitária, contribui para desonrar o conceito de esquerda aos olhos dos democratas de todos os matizes. A insanidade, com efeito, não se detém diante de limites ideológicos. Será, ao contrário, uma das propriedades mais bem distribuídas entre dramas e atores de qualquer orientação.

A esquerda latino-americana, na floração mais recente, deu sua chancela à polarização que destrói o terreno comum representado pelas democracias constitucionais. Fugiu do tema crucial do centro político, apostando na contraposição entre povo e “elites”, aí incluídas as modernas classes médias e as profissões liberais, que seriam reacionárias por definição. Ou, então, considerou aquele tema de modo matreiro, acionando mecanismos de cooptação dos adversários/inimigos a partir do controle das alavancas estatais. Como mostrou o exemplo brasileiro, abdicou do papel histórico de renovação do sistema político, contribuindo antes para sua deterioração e ruína.

Os sinais são múltiplos e contraditórios – e nem todos auguram bom desfecho. Na falta de uma gazua ideológica, só por tentativa e erro será possível lê-los. Em outras ocasiões de risco extremo, houve uma esquerda, inclusive comunista, que soube interpretar o mundo real e acorrer em defesa da civilização. Só venceremos o caos ao redor se assim for também desta vez.

 


El País: O obscuro uso do Facebook e do Twitter como armas de manipulação política

As manobras nas redes se tornam uma ameaça que os governos querem controlar

Por Javier Salas

Tudo mudou para sempre em 2 de novembro de 2010, sem que ninguém percebesse. O Facebook introduziu uma simples mensagem que surgia no feed de notícias de seus usuários. Uma janelinha que anunciava que seus amigos já tinham ido votar. Estavam em curso as eleições legislativas dos Estados Unidos e 60 milhões de eleitores vieram aquele teaser do Facebook. Cruzando dados de seus usuários com o registro eleitoral, a rede social calculou que acabaram indo votar 340.000 pessoas que teriam ficado em casa se não tivessem visto em suas páginas que seus amigos tinham passado pelas urnas.

Dois anos depois, quando Barack Obama tentava a reeleição, os cientistas do Facebook publicaram os resultados desse experimento político na revista Nature. Era a maneira de exibir os músculos diante dos potenciais anunciantes, o único modelo de negócio da empresa de Mark Zuckerberg, e que lhe rende mais de 9 bilhões de dólares por trimestre. É fácil imaginar o quanto devem ter crescido os bíceps do Facebook desde que mandou para as ruas centenas de milhares de eleitores há sete anos, quando nem sequer havia histórias patrocinadas.

Há algumas semanas, o co-fundador do Twitter, Ev Williams, se desculpou pelo papel determinante que essa plataforma desempenhou na eleição de Donald Trump, ao ajudar a criar um “ecossistema de veículos de comunicação que se sustenta e prospera com base na atenção”. “Isso é o que nos torna mais burros e Donald Trump é um sintoma disso”, afirmou. “Citar os tuítes de Trump ou a última e mais estúpida coisa dita por qualquer candidato político ou por qualquer pessoa é uma maneira eficiente de explorar os instintos mais baixos das pessoas. E isso está contaminando o mundo inteiro”, declarou Williams.

Quando perguntaram a Zuckerberg se o Facebook tinha sido determinante na eleição de Trump, ele recusou a ideia dizendo ser uma “loucura” e algo “extremamente improvável”. No entanto, a própria rede social que ele dirige se vangloria de ser uma ferramenta política decisiva em seus “casos de sucesso” publicitários, atribuindo a si mesma um papel essencial nas vitórias de deputados norte-americanas ou na maioria absoluta dos conservadores britânicos em 2015.

O certo é que é a própria equipe de Trump quem reconhece que cavalgou para a Casa Branca nas costas das redes sociais, aproveitando sua enorme capacidade de alcançar usuários tremendamente específicos com mensagens quase personalizadas. Como revelou uma representante da equipe digital de Trump à BBC, o Facebook, o Twitter, o YouTube e o Google tinham funcionários com escritórios próprios no quartel-general do republicano. “Eles nos ajudaram a utilizar essas plataformas da maneira mais eficaz possível. Quando você está injetando milhões e milhões de dólares nessas plataformas sociais [entre 70 e 85 milhões de dólares no caso do Facebook], recebe tratamento preferencial, com representantes que se certificam em satisfazer todas as nossas necessidades”.

E nisso apareceram os russos

A revelação de que o Facebook permitiu que, a partir de contas falsas ligadas a Moscou, fossem comprados anúncios pró-Trump no valor de 100.000 dólares colocou sobre a mesa o lado obscuro da plataforma de Zuckerberg. Encurralado pela opinião pública e pelo Congresso dos Estados Unidos, a empresa reconheceu que esses anúncios tinham alcançado 10 milhões de usuários. No entanto, um especialista da Universidade de Columbia, Jonathan Albright, calculou que o número real deve ser pelo menos o dobro, fora que grande parte de sua divulgação teria sido orgânica, ou seja, viralizando de maneira natural e não só por patrocínio. A resposta do Facebook? Apagar todo o rastro. E cortar o fluxo de informações para futuras investigações. “Nunca mais ele ou qualquer outro pesquisador poderá realizar o tipo de análise que fez dias antes”, publicou o The Washington Post há uma semana. “São dados de interesse público”, queixou-se Albright ao descobrir que o Facebook tinha fechado a última fresta pela qual os pesquisadores podiam espiar a realidade do que ocorre dentro da poderosa empresa.

Esteban Moro, que também se dedica a buscar frestas entre as opacas paredes da rede social, critica a decisão da companhia de se fechar em vez de apostar na transparência para demonstrar vontade de mudar. “Por isso tentamos forçar que o Facebook nos permita ver que parte do sistema influi nos resultados problemáticos”, afirma esse pesquisador, que atualmente trabalha no Media Lab do MIT. “Não sabemos até que ponto a plataforma está projetada para reforçar esse tipo de comportamento”, afirma, em referência à divulgação de falsas informações politicamente interessadas.

O Facebook anunciou que contará com quase 9.000 funcionários para editar conteúdos, o que muitos consideram um remendo em um problema que é estrutural. “Seus algoritmos estão otimizados para favorecer a difusão de publicidade. Corrigir isso para evitar a propagação de desinformação vai contra o negócio”, explica Moro. A publicidade, principal fonte de rendas do Facebook e do Google, demanda que passemos mais tempos conectados, interagindo e clicando. E para obter isso, essas plataformas desenvolvem algoritmos muito potentes que criaram um campo de batalha perfeito para as mentiras polícias, no qual proliferaram veículos que faturam alto viralizando falsidades e meia-verdades polarizadas.

“É imprescindível haver um processo de supervisão desses algoritmos para mitigar seu impacto. E necessitamos de mais pesquisa para conhecer sua influência”, reivindica Gemma Galdon, especialista no impacto social da tecnologia e diretora da consultoria Eticas. Galdon destaca a coincidência temporal de muitos fenômenos, como o efeito bolha das redes (ao fazer um usuário se isolar de opiniões diferentes da sua), o mal-estar social generalizado, a escala brutal na qual atuam essas plataformas, a opacidade dos algoritmos e o desaparecimento da confiança na imprensa. Juntos, esses fatos geraram “um desastre significativo”. Moro concorda que “muitas das coisas que estão ocorrendo na sociedade têm a ver com o que ocorre nas redes”. E aponta um dado: “São o único lugar em que se informam 40% dos norte-americanos, que passam nelas três horas por dia”.

A diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandberg, braço direito de Zuckerberg, defendeu a venda de anúncios como os russos, argumentando que se trata de uma questão de "liberdade de expressão". Segundo a agência de notícias Bloomberg, o Facebook e o Google colaboraram ativamente em uma campanha xenófoba contra refugiados para que fosse vista por eleitores-chave nos estados em disputa. O Google também aceitou dinheiro russo para anúncios no YouTube e no Gmail. Não em vão, o Facebook tem pressionado há anos para que não seja afetado pela legislação que exige que a mídia tradicional seja transparente na contratação de propaganda eleitoral. Agora, o Senado pretende legislar sobre a propaganda digital contra a pressão dessas grandes plataformas tecnológicas, que defendem a autorregulação. Tanto o Twitter quanto o Facebook expressaram recentemente a intenção de serem mais transparentes nesta questão.

A responsabilidade do Twitter

Em meados deste ano, o Instituto de Internet da Universidade de Oxford publicou um relatório devastador, analisando a influência que as plataformas digitais estavam tendo sobre os processos democráticos em todo o mundo. A equipe de pesquisadores estudou o que aconteceu com milhões de publicações nos últimos dois anos em nove países (Brasil, Canadá, China, Alemanha, Polônia, Taiwan, Rússia, Ucrânia e Estados Unidos) e concluiu, entre outras coisas, que “os bots [contas automatizadas] podem influenciar processos políticos de importância mundial”.

Nos EUA, os republicanos e a direita supremacista usaram exércitos de bots para “manipular consensos, dando a ilusão de uma popularidade on-line significativa para construir um verdadeiro apoio político” e para ampliar o alcance de sua propaganda. E concentraram seus esforços nos principais estados em disputa, que foram inundados com notícias de fontes não confiáveis. Em países como a Polônia e a Rússia, grande parte das conversas no Twitter é monopolizada por contas automatizadas. Em estados mais autoritários, as redes são usadas para controlar o debate político, silenciando a oposição e, nos mais democráticos, aparecem as cibertropas para intencionalmente contaminar as discussões. As plataformas não informam nem interferem porque colocariam “sua conta em risco”.

“Os bots utilizados para a manipulação política também são ferramentas eficazes para fortalecer a propaganda on-line e as campanhas de ódio. Uma pessoa, ou um pequeno grupo de pessoas, pode usar um exército de robôs políticos no Twitter para dar a ilusão de um consenso de grande escala”, afirma a equipe da Oxford. E concluem: “A propaganda informática é agora uma das ferramentas mais poderosas contra a democracia” e é por isso que as plataformas digitais “precisam ser significativamente redesenhadas para que a democracia sobreviva às redes sociais”.

Zuckerberg diz que é “loucura” pensar que o Facebook pode definir eleições, mas se gaba de fazer isso em seu próprio site

O Twitter também deletou conteúdo de valor potencialmente insubstituível que ajudaria a identificar a influência russa na eleição de Trump. Mais recentemente, pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia alertaram sobre o desenvolvimento de um mercado paralelo de bots políticos: as mesmas contas que antes apoiaram Trump, tentaram mais tarde envenenar a campanha na França a favor de Le Pen e, depois, produziram material em alemão colaborando com o partido neonazista Afd. Zuckerberg prometeu fazer o possível para “garantir a integridade” das eleições alemãs. Durante a campanha, sete das 10 notícias mais virais sobre a primeira-ministra alemã Angela Merkel no Facebook eram falsas. O portal ProPublica acaba de revelar que a rede social tolerou anúncios ilegais que espalhavam informações tóxicas contra o Partido Verde alemão.

Galdon trabalha com a Comissão Europeia, a qual considera “muito preocupada” nos últimos meses em dar uma resposta a esses fenômenos, pensando em um marco europeu de controle que, atualmente, está muito longe de ser concretizado. “Há quem aposte pela autorregulação, quem acredite que deve haver um órgão de supervisão de algoritmos como o dos medicamentos e até mesmo quem peça que os conteúdos sejam diretamente censurados”, diz a pesquisadora. Mas Galdon destaca um problema maior: “Dizemos às plataformas que precisam atuar melhor, mas não sabemos o que significa melhor. As autoridades europeias estão preocupadas, mas não sabem bem o que está acontecendo, o que mudar ou o que pedir exatamente”.

SAIR DA BOLHA
Tem sido muito discutido o verdadeiro impacto do risco das bolhas de opinião geradas pelas redes, depois do alerta do ativista Eli Pariser. “Esse filtro, que acaba reforçando nossos próprios argumentos, está sendo decisivo”, alerta Galdon. Recentemente, Sheryl Sandberg, do Facebook, disse que a bolha era menor em sua plataforma do que na mídia tradicional (embora tenha negado categoricamente que sua empresa possa ser considerada um meio de comunicação). Cerca de 23% dos amigos de um usuário do Facebook têm opiniões políticas diferentes desse amigo, de acordo com Sandberg.

“Sabemos que as dinâmicas do Facebook favorecem o reforço de opiniões, que tudo é exacerbado porque buscamos a aprovação do grupo, porque podemos silenciar pessoas das quais não gostamos, porque a ferramenta nos dá mais do que nós gostamos. E isso gera maior polaridade”, diz Esteban Moro. Um exemplo: um estudo recente do Pew Research Center mostrou que os políticos mais extremistas têm muito mais seguidores no Facebook do que os moderados. “Vivemos em regiões de redes sociais completamente fechadas, das quais é muito difícil sair”, afirma. E propõe testar o experimento de seus colegas do Media Lab, do MIT, que desenvolveram a ferramenta FlipFeed, que permite entrar na bolha de outro usuário do Twitter, vendo sua timeline: “É como se você fosse levado de helicóptero e lançado no Texas sendo eleitor de Trump. Assim você percebe o quanto vivemos em um ecossistema de pessoas que pensam exatamente como nós”.

 

 


José Monserrat Filho: Primeiro tratado da história que proíbe armas nucleares

“Nada é mais perigoso para a paz do que a existência de um conflito não resolvido e para cuja solução não se prescreve nenhum procedimento obrigatório.” Hans Kelsen (1881-1973), jurista austríaco que se mudou para os EUA em 1940, autor de “A Paz pelo Direito”, publicado em 1944.

O primeiro Tratado Internacional de Proibição das Armas Nucleares surge em tempos de altíssima tensão global. Foi aprovado pela Assembleia das Nações Unidas por 122 países membros da ONU, em 07 de julho deste ano, e lançado à assinatura e à ratificação dos países em 20 de setembro. O Brasil foi o primeiro a assinar. A iniciativa é inédita desde a criação da energia nuclear e a produção das primeiras bombas atômicas – lançadas em 06 e 09 de agosto de 1945 sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Nos primeiros quatro meses, os ataques nucleares mataram de 90 mil a 166 mil pessoas, em Hiroshima, e de 60 mil a 80 mil, em Nagasaki. Cerca de metade das mortes em cada cidade ocorreu já no primeiro dia.

Donald Trump, presidente dos EUA, ousou usar a tribuna das Nações Unidas para ameaçar com a destruição total um país membro da organização, sem o apoio de seu Conselho de Segurança. Essa ameaça não resistiria a um julgamento imparcial e justo.

A Organização das Nações Unidas – criada em 1945 – é a primeira organização política mundial com o objetivo inédito, na história do Direito Internacional, de proibir tanto a ameaça quanto o desencadeamento de novas guerras mundiais.

A Coreia do Norte, é verdade, tem construído armas nucleares (que seriam defensivas), em ações condenadas pelo Conselho de Segurança. Mas um bombardeio nuclear sobre esse país teria consequências trágicas incalculáveis não só para a Coreia do Norte, mas também para a Coreia do Sul, o Japão, a China, a Rússia e, certamente, para ampla região da Ásia, além de causar imenso trauma global. A desproporção entre as duas hipóteses é alarmante. Essa crise toda, disse muito bem o ministro do exterior da Rússia, Serguei Lavrov, “tem de ser resolvida de forma cuidadosa.” Ou seja, com diplomacia, inteligência, espírito público, e sem loucuras.

As armas biológicas e químicas já foram proibidas, respectivamente em 1972 e 1993, por tratados internacionais. O Tratado agora criado busca proibir a terceira e última categoria das armas de destruição em massa. As armas nucleares são as mais cruéis e indiscriminadas das três.As principais razões do Tratado de Proibição das Armas Nucleares estão expostas no Preâmbulo. Seus Estados-Partes se declaram “profundamente preocupados com as consequências humanitárias catastróficas que resultariam de qualquer forma de uso de armas nucleares” e “reconhecem a necessidade decorrente de eliminar por completo tais armas, pois esse segue sendo o único caminho para garantir que as armas nucleares nunca sejam usadas novamente, sob qualquer circunstância”.

Consideram-se “conscientes dos riscos causados pelo fato de que continuem existindo armas nucleares, inclusive detonações de armas nucleares por acidente, por erro de cálculo ou de modo deliberado”, e salientam que “esses riscos afetam a segurança de toda a humanidade e que todos os Estados compartem a responsabilidade de prevenir qualquer emprego de armas nucleares”.
Sabem muito bem que “as consequências catastróficas das armas nucleares não podem ser atendidas adequadamente, transcendem as fronteiras nacionais, incidem gravemente sobre a sobrevivência humana, o meio-ambiente, o desenvolvimento social e econômico, a economia mundial, a segurança alimentar e a saúde das gerações presentes e futuras, e tem efeito desproporcional sobre mulheres e crianças, inclusive como resultado da radiação ionizante.” Frisam ainda “o impacto desproporcional das atividades com armas nucleares sobre os povos indígenas”.

Reconhecem “os imperativos éticos para o desarmamento nuclear e a urgência de criar e manter um mundo livre de armas nucleares, mundo que é um bem público mundial de primeira ordem e responde a interesses tanto nacionais quanto de segurança coletiva.

Reafirmam “a necessidade de todos os Estados de cumprirem permanentemente o Direito Internacional aplicável, inclusive o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Baseiam-se “em princípios e normas do Direito Internacional Humanitário, em especial no princípio pelo qual o direito das partes num conflito armado de eleger os métodos e meios de combate não é ilimitado, os padrões de distinção, a proibição de ataques indiscriminados, as normas sobre a proporcionalidade e as precauções a serem tomadas num ataque, a proibição do uso de armas nucleares, que, por sua natureza, podem causar sofrimentos supérfluos ou desnecessários, e as normas de proteção do meio-ambiente”.

Estão também preocupados com “a lentidão do desarmamento nuclear, a contínua dependência das armas nucleares nos conceitos, doutrinas e políticas militares e de segurança, e o desperdício de recursos econômicos e humanos em programas de produção, manutenção e modernização de armas nucleares”, sobretudo levando em conta a desigualdade hoje existente no planeta.

As proibições do Tratado Conforme o artigo 1º, cada Estado-Parte compromete-se a jamais e sob nenhuma circunstância:

a) Desenvolver, testar, produzir, fabricar, adquirir de qualquer outro modo, possuir ou armazenar armas nucleares ou dispositivos de explosão nuclear;

b) Transferir a nenhum destinatário armas nucleares e outros dispositivos de explosão nuclear, ou o controle sobre tais armas e dispositivos explosivos, direta ou indiretamente;

c) Receber a transferência ou o controle de armas nucleares e outros dispositivos de explosão nuclear, de forma direta ou indireta;

d) Usar ou ameaçar usar armas nucleares e outros dispositivos de explosão nuclear;

e) Ajudar, estimular ou induzir alguém, de qualquer modo, a realizar qualquer atividade proibida aos Estados-Partes pelo presente Tratado;

f) Solicitar ou receber ajuda de alguém, por qualquer meio, para realizar qualquer atividade proibida aos Estados-Partes pelo presente Tratado;

g) Permitir o estacionamento, a instalação e o lançamento de armas nucleares ou de outros dispositivos de explosão nuclear em seu território ou em qualquer lugar sob sua jurisdição ou controle.

A reação das grandes potências nucleares Nove são hoje os países detentores de armas nucleares: EUA, Rússia, China, França, Reino Unido, Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte. Nenhum deles assinou o Tratado, e alguns dos mais poderosos dentre eles se opuseram à aprovação do Tratado, argumentando que a proposta ignora “a realidade” do mundo atual, é “idealista”. O fato novo é que, pela primeira vez na história das Nações Unidas, uma maioria de 122 países (o total de membros é de 193) conseguiu se unir e derrotar um pequeno número de grandes potências, cuja liderança tem sido marcada por ameaças de emprego de armas nucleares a quem se atrever a enfrentá-las.

Claro que há algo de irrealismo no Tratado de Proibição das Armas Nucleares. Seus Estados-Partes, obviamente, não contarão tão cedo com o apoio das grandes potências nucleares. Mas algo precisava ser feito, apesar da poderosa oposição minoritária. E foi feito. A longa e tradicional ausência de democracia nas relações internacionais já não funciona com a amplitude de antigamente. Algo parece estar mudando. Ainda bem.

* José Monserrat Filho, mestre em Direito Internacional, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), ex-Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (2007-2011) e da Agência Espacial Brasileira (AEB) (2011-2015), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica. Ex-diretor da revista Ciência Hoje e editor do Jornal da Ciência, da SBPC, autor de “Política e Direito na Era Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?”, Vieira & Lent Casa Editorial, 2017. E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.


Murillo de Aragão: A renovação política nas Eleições 2018

Caminho para alavancar uma candidatura não alinhada com o antigo será o das redes sociais

Uma das perguntas mais recorrentes em minhas palestras é como e se o novo prevalecerá nas eleições de 2018. A pergunta parte do pressuposto de que existe um notável sentimento antipolítico na sociedade e que, a partir dessa constatação, seria mais do que natural uma grande renovação do sistema político.

No entanto, existem condições muito duras para que o novo prevaleça. A primeira barreira para a disseminação do novo, que chamarei de novos entrantes, são as regras atuais. O marco regulatório das eleições estabelece regras para a distribuição de fundos partidários e para o uso de tempo de televisão. Ambas são críticas para a campanha eleitoral e estabelecem uma situação de privilégio para as estruturas partidárias tradicionais.

Grandes partidos ganham mais verbas, mais tempo de televisão e, na maioria das vezes, mais prefeituras. Ora, numa competição em que haverá escassez de recursos – pela ausência de financiamento empresarial e pela debilidade das doações individuais – o maior financiador da campanha será o Fundo Partidário.

Sabendo disso, o relator da minirreforma política na Câmara, deputado Vicente Cândido, está prevendo uma verba de R$ 3 bilhões para os partidos. Ainda que tamanha indecência não seja aprovada, grandes partidos continuarão a ser fortes financiadores da campanha eleitoral.

Apenas no primeiro trimestre deste ano o PT recebeu mais de R$ 23 milhões do fundo. Já legendas como o Partido Novo, que não tem nenhum deputado federal, recebeu pouco mais de R$ 300 mil. Ou seja, o sistema privilegia quem está no poder.

Outro fator crítico é a máquina pública. Somente o PMDB tem mais de mil prefeitos eleitos no Brasil. O PSDB tem pouco mais de 700. Entre os novos partidos, somente o PSD tem desempenho importante: 539 prefeituras.

Existem duas saídas para os novos entrantes: aliar-se às estruturas tradicionais ou buscar caminhos completamente inovadores. A fórmula novo-antigo foi testada com sucesso em São Paulo com João Doria. Com um discurso novo, uma campanha inovadora e uma estrutura partidária tradicional e poderosa venceu com certa facilidade. No Rio de Janeiro, a dupla finalista na disputa pela capital apresentou comportamento semelhante. Marcelo Crivella e Marcelo Freixo disputaram apresentando-se como o novo, ainda que os dois não representem nada de novo em termos políticos.

Faltando pouco mais de um ano para as eleições gerais, o sentimento antipolítico não se organizou para se expressar de forma competitiva. As especulações abrangem poucos nomes que poderiam aglutinar a sociedade em torno de um projeto político alternativo. Fala-se de Joaquim Barbosa, Luciano Huck e até mesmo de Sergio Moro. Porém como torná-los competitivos?

A resposta está no trinômio participação-mobilização-redes sociais. Os críticos do sistema político devem transformar sua crítica em participação e a participação em mobilização. Sem uma tomada de posição o sistema continuará mais ou menos como está – mudando pouco para não ter de mudar muito.

Pesquisa recente do Ibope aponta que pela primeira vez eleitores consideram a internet o maior influenciador para eleger um presidente da República. Ainda que o resultado seja apertado em relação à televisão, as mídias virtuais estão em ascensão, conforme pondera José Roberto Toledo (Estado, 12/6). Destaca-se, ainda, o fato de a internet ser fundamental para os eleitores jovens.

Dados do Facebook indicam que 45% da população brasileira acessa a rede social mensalmente. Seriam mais de 92 milhões de brasileiros acessando regularmente as redes. O Instagram tinha 35 milhões de usuários no Brasil em 2016. E o aplicativo de mensagens Whats-App já é utilizado por mais de 120 milhões de brasileiros!

Nos Estados Unidos, na eleição de Donald Trump, segundo seus estrategistas, a vitória se confirmou com a opção de privilegiar as redes sociais, em detrimento da mídia tradicional. Na França, Emmanuel Macron abandonou um partido tradicional, organizou um movimento e usou as redes para alavancar a campanha.

Considerando que as redes sociais assumem papel preponderante na formação da opinião política, pela primeira vez na História do Brasil poderemos ter eleições nas quais as estruturas tradicionais podem não ser decisivas para o resultado final. Em especial se um novo entrante chegar ao segundo turno, em que o tempo de televisão destinado à propaganda eleitoral gratuita é igual para os dois concorrentes.

Poderemos ter um fenômeno Macron no Brasil? Sim e não. Para responder afirmativamente à questão volto às duas peças iniciais do trinômio que propus. Sem participação e mobilização nada de novo acontecerá. A indignação com a política será estéril. Ficará nas intenções vagas de sempre. Porém, se a sociedade civil se mobilizar em torno de um projeto que seja aglutinador e expresse uma nova forma de fazer política, tudo pode mudar. E o caminho para alavancar uma candidatura que não esteja alinhada com o antigo será as redes sociais.

A conjunção de fragilidade financeira das campanhas – sem as doações empresariais – com desmoralização do mundo político e a emergência das redes sociais pode proporcionar uma surpresa eleitoral que ainda não tem cara nem nome. No entanto, justamente por não ter nome é que o tradicional pode prevalecer. Outro fator importante é que a indignação com a política ainda não se traduziu em participação e mobilização. O tempo está passando. Nem a política tradicional dá sinais de querer renovar-se nem os novos entrantes ainda dão sinais de querer, efetivamente, participar.

*Advogado, consultor e jornalista, é mestre em ciência política e doutor em sociologia pela universidade de brasília

Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-renovacao-politica-em-2018,70001875569

 


Tio Sam

Monica De Bolle: Assim começa

“Desse momento em diante, será América primeiro. Todas as decisões sobre o comércio, a tributação, a imigração, assuntos externos, serão tomadas para beneficiar os trabalhadores americanos e as famílias americanas. Temos de proteger nossas fronteiras da devastação que outros países causaram ao produzir nossos produtos, roubar nossas empresas, destruir nossos empregos. Proteção trará maior prosperidade e força (…). América começará a vencer novamente, a vencer como nunca antes (…) E, sim, juntos faremos América great again.”


“Primeiramente, vocês querem empregos, certo? Esse é o único e principal objetivo (…) – trazer empregos para todos. Esse país pertence a nós e temos de lutar para mantê-lo assim. Para que a América seja great again, precisamos que a classe média revolucionária triunfe (…) Temos de purgar o país de todos os elementos e ideias que hoje infestam nosso país. América para os americanos!”


Proponho um desafio aos leitores. Como muitos devem ter acompanhado, a primeira citação é do discurso de posse de Donald Trump. Mas, e a segunda? Seria de algum de seus inúmeros rallies de campanha? Ou talvez do tour da vitória depois das eleições de novembro?

Como era de se esperar, Trump iniciou seu mandato com um discurso populista, nacionalista, protecionista. Quem imaginava que a retórica de campanha era apenas um punhado de palavras vazias enganou-se tanto quanto os que previram derrota Trumpista. Nos últimos dias, muitos comentários vi no Brasil de gente questionando qual o problema de Trump falar, e repetir, que será a América em primeiro lugar – não seria isso, afinal, o que todo líder quer para sua nação, seus interesses primeiro? Sim. E não. Não porque os EUA não são nação qualquer, mas a maior economia do planeta, o país cujo posicionamento geopolítico tem a maior influência sobre a ordem mundial.

Não à toa, todos os presidentes americanos do pós-guerra – todos – salientaram em seus discursos de posse o compromisso com seus aliados mundo afora, com a manutenção da ordem global, com a sustentação da economia mundial como algo que a todos interessa. Trump nada disse sobre a prosperidade global como algo que interessa aos EUA. Trump repudiou o mundo ao acusar a devastação causada por países que destroem empregos e roubam indústrias. Trump disse que proteção trará prosperidade.

Há muito o que dissecar sobre a integração global e seus efeitos nas economias maduras. Há tanto quanto o que dissecar sobre o advento de novas tecnologias e seus efeitos sobre a indústria tradicional, o encolhimento da economia do rust belt americano, o achatamento da classe média nos EUA. Algo, entretanto, está comprovado há tempos: o protecionismo não é o caminho nem para o resgate desses empregos, nem para a prosperidade. Os resultados do isolacionismo brasileiro estão aí para mostrar a falácia desse pensamento simplório. O protecionismo é reducionista, não expansivo. O protecionismo americano propalado por Donald Trump na melhor das hipóteses haverá de piorar as condições de vida dos “homens e mulheres esquecidos”. Na pior das hipóteses – porque o Brasil apequenado não é a América – levará à percepção de que a maior potência do planeta já era. Os vácuos serão preenchidos, aumentando as incertezas sobre os rumos da economia mundial diante da ausência de líderes com visão clara.

Os mercados, até recentemente, acreditavam, não sem alguma ingenuidade, que Trump faria bem para a economia americana, promoveria o crescimento por meio de cortes de impostos e mirabolantes planos de infraestrutura. Ignoraram o protecionismo e o nacionalismo, relegando-os à categoria de meros instrumentos retóricos de campanha. Pois foi sobre o protecionismo e o nacionalismo que Trump discursou em seu primeiro pronunciamento. Nada disse sobre o resto.

Líderes como Trump são velhos conhecidos na América Latina e na literatura. A segunda citação é de Nathanael West, em A Cool Million, romance publicado em 1934. Quem discursa é o líder populista Shagpoke Whipple em um rally de campanha. Whipple, Trump. A vida de fato imita a ficção.


FMI reduz a previsão de crescimento para o Brasil e a América Latina

Fundo confirma que a América Latina deve superar a recessão, mas diminui previsão de crescimento

O Fundo Monetário Internacional tenta ser mais otimista ao afirmar que o crescimento ganha mais vigor neste ano após um 2016 decepcionante. Segundo a última revisão dos números da economia global, a América Latina superará dessa forma a recessão, ao se expandir 1,2% nesse ano. Mas também será menor do que o esperado. São quatro décimos a menos em relação ao projetado há três meses e o órgão alerta sobre o impacto negativo da incerteza política em um cenário de baixa produtividade, investimentos frágeis e comércio internacional sem incentivo.

A saída da recessão na região é atribuída ao salto dado pela economia brasileira, a maior do subcontinente. A diminuição das tensões políticas internas e a recuperação do mercado das matérias-primas ajuda. Isso permitirá que ao invés de se contrair 3,5%, cresça um tímido 0,2% nesse ano e acelere a 1,5% no próximo. Mas a expansão é três décimos menor do que o esperado — em outubro a previsão do Fundo para o Brasil era de um crescimento de 0,5%.

As economias latino-americanas terminaram o ano com uma contração de 0,7%, um décimo pior do que o previsto no final do ano. Dessa forma, já se adiantou o pior cenário e que o índice cairia dois pontos percentuais ao longo de 2017. O de 2018 se mantém em 2,1%. O crescimento para a região nesse ano fica assim a menos da metade do caminho do 3,4% esperado para a economia global. As economias emergentes e em desenvolvimento crescerão 4,5%.

O Banco Mundial publicou a atualização de suas projeções há uma semana. O órgão calcula que a expansão da economia global irá acelerar 2,7% nesse ano. O crescimento no grupo dos países emergentes e em desenvolvimento subirá de 3,4% em 2016 a 4,2% em 2017. A América Latina crescerá 1,2%. Mas o Banco Mundial alerta que, apesar a da melhoria, a incerteza domina.

A equipe liderada por Maurice Obstfeld, o economista chefe do FMI, faz uma análise semelhante. A conjuntura global enfrenta um panorama mutável. “Os riscos são significativos e de difícil previsão”, indicam. Citam expressamente o impacto das políticas isolacionistas e protecionistas. Na América Latina, dizem, a revisão para a queda reflete uma menor expectativa de recuperação a curto prazo na Argentina e no Brasil e os problemas que o México enfrentará em relação aos EUA.

Represálias comerciais

O México, pelo contrário, estancou. A expansão passará de 2,2% em 2016 a 1,7% nesse ano. É uma diminuição de seis décimos na previsão, a segunda maior depois da Arábia Saudita. O pessimismo é atribuído à vitória de Donald Trump e ao fato das condições financeiras serem mais restritivas pelo enfraquecimento da taxa de câmbio. A previsão para 2018 também é de queda, 2%. Na espera de que as reformas estruturais comecem a dar frutos, o temor é o impacto da nova direção da política comercial nos EUA.

Os efeitos da mudança de governo em Washington vão em duas direções. Por um lado, o incremento dos investimentos em infraestrutura e o corte de impostos podem acelerar o crescimento dos EUA. Isso, a princípio, é bom para os países que fazem negócios com a maior economia do mundo. Mas o protecionismo de Donald Trump pode acabar com esse impulso e criar tensões, o que se soma a uma aceleração do aumento da taxa de juros.

O impulso do plano econômico do presidente eleito ainda demorará dois anos para ser sentido e dependerá, de qualquer forma, do que for adotado no Congresso. A maior potência do planeta crescerá 2,3% nesse ano, saindo de um anêmico 1,6% em 2016. É uma revisão com aumento de um décimo em relação ao previsto há três meses. E crescerá dois décimos em 2018, até 2,5%, quase meio ponto percentual a mais.

O FMI volta a afirmar que as reformas estruturais são a prioridade por conta do fraco ritmo de crescimento da produtividade. Na maior parte dos casos vê a possibilidade de apoiá-las com incentivos fiscais. Ao mesmo tempo, defende uma maior integração econômica pela via da formação dos empregados para assim conseguir enfrentar o desafio da globalização e da mudança tecnológica, que se intensificará no futuro.


Fonte: brasil.elpais.com


Fernando Henrique Cardoso: O algoritmo da política mudou

As propostas para o futuro devem olhar as necessidades concretas das pessoas

A eleição de Donald Trump confirma o que já se pressentia. Na França, mesmo sem vencer, é provável que Marine Le Pen aumente sua votação. Será o temível “direita volver”? Sim e não.

É indiscutível que a onda contemporânea é de rechaço aos “males da globalização”. Os que simbolicamente representam a “globalização feliz”, na expressão do sociólogo Pascal Perrineau, estão colhendo o repúdio dos deserdados dela. Mas isso é só parte da história. Ao mesmo tempo a sociedade está refazendo liames de solidariedade e definindo formas de comportamento orientadas por valores que se afastam do padrão anterior. As razões desse sacolejar não podem ser reduzidas às consequências, negativas para alguns, da integração global dos mercados, da alta produtividade das novas tecnologias e do consequente drama do desemprego.

Nossos modelos mentais se formaram, a partir do século 19, de modo pós-iluminista: menos do que a razão, contariam os interesses. Estes, desigualmente distribuídos graças às heranças das famílias e às regras de êxito nos mercados, davam sustentação mais ou menos sólida aos laços de classe, que se espelhavam em ideologias. Foi esse mundo que Karl Marx levou ao extremo ao definir a luta de classes como o “motor da História”.

A partir daí, aproveitando resquícios da Revolução Francesa, podiam-se classificar as posições políticas entre esquerda e direita e um centro “amorfo”, ou, como o qualificou Maurice Duverger, um pântano eterno. Por quê?

Porque o proletariado e seus aliados simbolicamente eram a “esquerda” revolucionária (posição na Assembleia Nacional onde tomavam assento os militantes mais ardorosos) e se contraporiam à burguesia, que defendia os interesses de conservação da ordem (a “direita”).

Esse mundo se transformou profundamente. Novas formas de produzir, com a disseminação das inovações tecnológicas da automação, miniaturização e, especialmente, comunicação em rede, criaram uma economia de alta produtividade e baixa empregabilidade, com o encolhimento do setor fabril e a expansão dos serviços. As sociedades capitalistas acrescentaram à estrutura de classes (sem desfazê-las) mecanismos de mobilidade ocupacional e formas de interação e de eventual coesão social, que se fazem e desfazem rapidamente dispensando estruturas organizacionais intermediárias. As pessoas juntam-se e se separam pelas redes intercomunicadas. Estas de tempos em tempos levam à ação coletiva: as paradas, os protestos, as “ondas eleitorais” que se formam independentemente dos partidos políticos. Tudo isso assusta os membros do establishment tanto da esquerda quanto da direita: organizações multinacionais, sindicatos, mídia tradicional, partidos, igrejas, etc., sentem-se inseguros e frequentemente partes deles se voltam “contra tudo isso que está aí”.

Às consequências sensíveis da globalização em momentos de crise (estagnação, deslocalização e desemprego), portanto, se somam também tensões em torno a padrões de comportamento. Há novos parâmetros quanto ao que seja aceitável numa sociedade crescentemente diversa (paradas de orgulho gay, ascensão política de migrantes, presença ativa de minorias, lutas pró-direito de aborto, regulamentação do uso das drogas, etc.). Há também reações tradicionalistas contra todas essas mudanças.

Se a isso somarmos os conflitos pela hegemonia mundial e as ameaças inquietantes do terrorismo, completa-se o quadro no qual, mais que “de direita” (no sentido clássico), as reações são de medo. Refletem o desejo de retorno ao que foi ou se imaginava ter sido bom no passado (“make America great again”) e de proteção e segurança (protecionismo, nacionalismo xenófobo, etc.) diante das ameaças do presente.

O assunto não se esgota, portanto, em dizer: é a direita que está vitoriosa – embora seja. Não é qualquer direita, é a direita do orgulho nacional xenófobo, do fora imigrantes, do protecionismo e do personalismo autoritário, valores em parte compartilhados por certa esquerda. Mais correto diante da vitória de Trump seria repetir Angela Merkel e dizer: nós temos princípios, amamos a liberdade, temos respeito à dignidade humana e à democracia. As regras desta se aplicam a todos, independentemente da cor da pele, da orientação sexual, religiosa ou partidária. Ao mesmo tempo não se devem fechar os olhos às consequências da “globalização assimétrica”, que põe à margem regiões inteiras do mundo e setores internos das sociedades, mesmo das mais prósperas.

Diante das transformações sociais e culturais que estão acontecendo, o pensamento progressista não deve cantar loas à débâcle da globalização, que arrasta com ela os princípios “iluministas”, que Marx acolhia (com a pretensão de superá-los). Tampouco cabe torcer o nariz com repugnância para o que está ocorrendo. O mal-estar precisa ser entendido para se recriar a esperança.

As propostas para o futuro devem olhar as necessidades concretas das pessoas. Foi isso que os “brancos, pobres e pouco educados” (o proletariado...) viram na demagogia de Trump. Não basta denunciá-la como enganosa, embora seja: é preciso escutar o drama dos perdedores, dar-lhes uma resposta efetiva, não fechar os olhos aos efeitos negativos da globalização e, não menos importante, reafirmar ao mesmo tempo os princípios fundamentais da liberdade, da dignidade humana e da igualdade democrática.

Diversamente do progressismo do século 18, centrado no indivíduo, e do século 19, centrado na classe, o atual deve se centrar em pessoas que nascem e vivem “em redes”. Não repudiam o coletivo: querem existir dentro dele mantendo suas autonomias, sua liberdade de escolha.

O algoritmo é outro. Há os interesses, mas os valores também contam.

 * Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República.


Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2016/12/o-algoritmo-da-politica-mudou-fernando.html

Luiz Sérgio Henriques: Depois do choque

A era Trump abre a possibilidade de se entenderem variadas forças e personalidades

Passada a primeira onda de choque, permanece impossível discutir política em qualquer canto do mundo sem mencionar o resultado eleitoral norte-americano, impensável há apenas alguns meses. Inútil qualquer consolo, como o de que a candidata democrata terminou à frente no voto popular: as idiossincrasias do sistema estavam dadas desde o começo e era com elas que se devia contar para eleger a contendora que prometia dar seguimento ao legado de Barack Obama e garantir um pouco mais de previsibilidade às coisas do mundo.

A “resistível ascensão” de Donald Trump só pode ser explicada por uma multiplicidade dos fatores. Se nos limitarmos à ideia, não de todo errada, de que ele conseguiu canalizar a raiva dos perdedores da globalização, não ultrapassaremos a fronteira da explicação da política pela economia. O mal-estar na globalização, que ora atinge o centro do sistema, tem dimensões valorativas e existenciais, remete à insegurança diante de uma economia-mundo que aparentemente se movimenta por si só, sem controles adequados ou suficientes.

A fórmula, imaginada para estágios anteriores da mundialização, continua eficaz para indicar sinteticamente o dilema contemporâneo: a economia torna-se crescentemente interdependente e só pode ser entendida em seu conjunto. A política, ao contrário, resta basicamente confinada ao espaço nacional, alimentando com isso perigosas fantasias regressistas. Os esforços de construção de realidades supranacionais, acima das “velhas” nações, ou tomam um rumo torto e demagógico, como no caso da integração latino-americana deste início de século, ou se veem submetidos a tensões fortíssimas, como no caso da integração europeia.

Conhecemos com exatidão o poder explosivo de nacionalismos, fanatismos e rancores a ele associados. Basta cancelar o historicamente curto, mas simbolicamente denso, período de construção e expansão dos Estados de bem-estar social para ver a sucessão de confrontos a que tais nacionalismos deram origem, a ponto de se poder falar, até a derrota do nazi-fascismo, de uma só e ininterrupta guerra civil europeia.

Pois bem, o setor regressivo das elites recorre ao repertório “nacional” de sempre, como se enormes carnificinas pudessem ser “narradas” de forma antes heroica do que bárbara, antes épica do que trágica. Por sua vez, as elites economicamente liberais não conseguem dar alguma resposta crível aos problemas de homens e mulheres comuns. Não conseguem dar uma direção intelectual e moral à integração da parte europeia do mundo: aparecem como tecnocracias distantes da cidadania, insensíveis à penúria dos países periféricos de sua própria área, para não falar da ausência de iniciativas que apaguem a “linha de fogo” que ronda o continente, da África à Ásia.

A atitude de Angela Merkel diante dos refugiados de guerra foi uma breve lufada de ar fresco, logo interrompida pelas dificuldades internas e pelos arreganhos da extrema direita. Apesar disso, Merkel lembrou-nos que conservadores podem perfeitamente elaborar uma versão decente do bem comum. Aos desatentos convém dizer que a presidência Obama, do outro lado do Atlântico, representou o mesmo movimento positivo, reinterpretando a liderança americana como soft power e adequando-a, tanto quanto possível, às novas condições, que registram evidente declínio relativo da força econômica e política de seu país.

Interrompidos ou frustrados tais movimentos, restam de pé basicamente a força, a confrontação, a afirmação bruta do próprio interesse. A política democrática passa a conviver com obstáculos difíceis de superar: desaparece, ou fica gravemente ameaçada, a esfera da argumentação racional e dos interesses legítimos, substituída pela dos mitos irracionais e das ideias anacrônicas de nação, raça, etnia. Em última análise, é daí que vai extrair substância o conjunto diversificado de correntes que costumamos unificar, genericamente, com o termo “populismo”.

Parte considerável da esquerda flertou com aventuras desse tipo. Não é preciso de modo algum ir longe no tempo ou no espaço para identificar líderes e partidos que cultivaram efetivamente (como na Venezuela) ou sobretudo retoricamente (como no Brasil) ambições “antissistema”, como se a cotidiana recriação da vida pudesse prescindir das instituições democráticas formais. E não faltaram teóricos de toda parte – afinal, o mundo é um só, a circulação de ideias é fato corriqueiro da vida globalizada – que não só exaltaram o “populismo” latino-americano, como também o incluíram na limitada pauta de exportações da região, como mercadoria dotada do misterioso dom de reativar a luta de classes e abrir caminho para o socialismo ou certa ideia autoritária de socialismo.

Nessa forma de ver as coisas, os populismos de extrema direita conduziriam ao racismo, à xenofobia e à guerra – o que, diga-se de passagem, está basicamente certo, tanto quanto se pode prever. Os de esquerda, não se sabe bem a razão, conduziriam a resultados distintos – a uma “democracia de alta intensidade”, substantiva e não formal, desdenhosa dos valores “liberais”, que, no entanto, particularmente em nossa região e em nosso país já deviam ser patrimônio adquirido depois das experiências ditatoriais.

A emergência da era Trump, com seus desastres anunciados – os muros materiais e espirituais de contenção, o recuo em temas vitais, como energia e clima, a sintonia com líderes “providenciais” –, abre a possibilidade de entendimento entre forças e personalidades da mais variada inspiração, inclusive uma esquerda majoritariamente renovada. Em outros tempos cultivou-se a ideia do diálogo e do respeito, que nos permitiu atravessar o “deserto do real”, preservando os valores das modernas democracias. Os bárbaros parecem estar de novo às portas, o que reatualiza estratégias semelhantes às que nos levaram a vencê-los antes.


Fonte: estadao.com.br


ONU e França pedem que Trump respeite acordo do clima

O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, disse nesta terça-feira (15) que as ações contra as mudanças climáticas se tornaram inevitáveis e expressou esperanças de que o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, desista do plano de abandonar um acordo global que visa diminuir a dependência do mundo dos combustíveis fósseis.

Em uma reunião de quase 200 nações realizada no Marrocos para buscar formas de implementar o acordo de Paris de 2015 para limitar as emissões de gases de efeito estufa, Ban disse que empresas, Estados e cidades dos EUA estavam buscando limitar o aquecimento global.

"O que antes era impensável tornou-se inevitável", disse sobre o Acordo de Paris, aprovado pelos governos em 2015, ratificado em tempo recorde neste ano e adotado formalmente por mais de cem nações, incluindo os Estados Unidos.

Ban disse esperar que o republicano Trump, eleito na semana passada, abandone sua visão de que a mudança climática provocada pelo homem é uma farsa e sua promessa de cancelar o Acordo de Paris.

"Estou certo de que tomará uma decisão rápida e sábia", disse Ban. Ele observou que este ano está rumo a se tornar o ano mais quente desde que os registros começaram no século 19.

"Espero que ele realmente ouça e compreenda a gravidade e a urgência de lidar com as mudanças climáticas. Como presidente dos Estados Unidos, espero que ele entenda isso, ouça e avalie as observações de sua campanha", disse ele.

Ban disse que empresas como General Mills e Kellogg, Estados como a Califórnia e cidades como Washington, Nashville e Las Vegas estavam trabalhando para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa.

Ele disse que a Trump, como uma "pessoa de negócios muito bem sucedida", entenderia que as forças do mercado já estavam agindo para guiar a economia mundial para energias mais limpas, longe dos combustíveis fósseis.

FRANÇA

O presidente francês, Francois Hollande, também afirmou que os Estados Unidos deveriam respeitar o acordo global para limitar as mudanças climáticas após a eleição de Donald Trump como presidente do país, dizendo que o acordo era irreversível.

Hollande disse em uma conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre mudanças climáticas que o acordo de 2015 para limitar as emissões "é irreversível legalmente e de fato. Além de ser irreversível em nossas mentes."

"Os Estados Unidos, a maior potência econômica do mundo, o segundo maior emissor de gases de efeito estufa, precisam respeitar os compromissos que eles assumiram", disse Hollande.
Trump, que chamou mudança climática de uma farsa, quer abandonar o acordo.

Matéria publicada na Folha de S. Paulo.


‘Trumpeconomics’, um salto no vazio

Programa econômico de Trump coloca em perigo o comércio mundial

O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, apresentou um programa econômico contraditório, mal-alinhavado e construído fundamentalmente sobre as ideias, claramente nocivas para o crescimento econômico norte-americano e mundial, do protecionismo mais arcaico e da negação do multilateralismo. Não surpreende, pois, que hoje muitos economistas — e também mercados e investidores — queiram se proteger por trás do argumento, fraco mas plausível, de que as declarações incendiárias de campanha e as propostas desatinadas tropeçarão em breve no realismo que qualquer ação de governo impõe. A pergunta pertinente é se o isolacionismo hostil defendido pelo candidato Trump é compatível com uma economia globalizada onde o presidente Trump teria que operar.

Existem razões para um otimismo moderado. O protecionismo proposto pelo candidato, suas investidas contra a globalização e suas ameaças de tarifas e barreiras são ideias de difícil execução. Não é possível desvencilhar-se dos acordos econômicos e ambientais firmados pelos EUA, e dentro do Partido Republicano tampouco existe um acordo monolítico sobre essa neurose protecionista que afeta o presidente eleito. Isso embora seja evidente que o instrumento comercial decisivo para a Europa, o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), sofrerá importantes atrasos ou um congelamento quase definitivo.

O protecionismo é um grave risco para os EUA, a zona do euro e os países emergentes

A concepção protecionista de Trump multiplica o risco de uma recessão global justamente porque cerceia a raiz de qualquer possibilidade de crescimento do comércio internacional; sem o TTIP, a zona do euro perde um instrumento básico para recuperar taxas de crescimento, emprego e renda do euro. Para os países emergentes, as expectativas são ainda piores: dependendo de cada caso, o protecionismo planejado atrasará suas respectivas recuperações durante trimestres ou até mesmo anos.

Como os interesses das empresas norte-americanas no mundo vão além do fundamentalismo isolacionista do novo presidente, é provável que os lobbies intercedam para mitigar as arestas mais radicais do discurso. Convém contrastar a violenta antiglobalização de Trump com a experiência dos que tomariam as decisões econômicas reais no novo Governo. Os temores fatalistas gerados por programas incendiários talvez sejam mitigados depois, quando se leva em conta que a nova equipe econômica tende mais ao realismo. Ainda que as ameaças lançadas contra Janet Yellen, a presidente do Federal Reserve (o banco central norte-americano), não sinalizem nada positivo.

Washington não pode nem deve romper seus compromissos econômicos internacionais

Os mercados mundiais, no momento, optaram por esperar e ver o que acontece. Após uma reação inicial de temor, os investidores ponderam que as propostas do presidente eleito não são disparatadas quando se leva em conta o crescimento econômico interno, mas são contraditórias. Trump propõe ao mesmo tempo reduzir os impostos — algo que Reagan fez com maus resultados, embora a economia vudutenha atraído seguidores na Europa e, sobretudo, na Espanha — e desenvolver um ambicioso plano de investimento em infraestrutura. Gastar mais dinheiro contando com menos receita implica, de forma imediata, elevar o déficit e o endividamento do país; é muito elevada a probabilidade de que sejam necessárias novos aumentos de impostos no médio prazo. O plano estratégico carece de nuances. Uma aposta no petróleo e no carvão é simplesmente regressiva, pois solapa a criação de postos de trabalho com maior valor agregado nas novas energias.

Há outra consequência previsível: as taxas de juros terão que subir (nova pressão sobre a Fed) e também terá de haver uma apreciação do dólar. Para a Europa, o efeito pode ser uma melhora na competitividade — num mercado mundial não protecionista — e, se a expansão fiscal e monetária consolidar o crescimento americano, um incentivo poderoso para que Bruxelas, Berlim e Frankfurt aceitem finalmente a expansão fiscal.

A trumpconomics parece hoje um perigoso salto no vazio. Rompe a fraca relação do comércio mundial, cujo fortalecimento era uma das esperanças para uma recuperação mais pujante; materializa a ameaça de uma guerra comercial entre as áreas monetárias; quebra o ajuste gradual das taxas de juros dos EUA, tendência que era — e já é — um reconhecimento dos compromissos de Washington com a economia global; expõe o mundo a uma nova recessão e propõe o agravamento da desigualdade nos EUA. Washington não pode nem deve se retirar dos compromissos com o equilíbrio econômico geral e com a arquitetura das instituições multilaterais. Essa é a ameaça iminente que Trump representa.


Fonte: brasil.elpais.com