Donald Trump

Alon Feuerwerker: Para a defesa de interesses, manobras complexas

Governos que se mantêm apesar das crises induzem a celebrar e elogiar a institucionalidade; já governos que fracassam e caem têm sempre a tentação das teorias conspiratórias. Mas a realidade, em última instância, é uma só: cabe a qualquer governo cuidar de suas bases de sustentação, sem elas está fadado à ruína. Seja qual for a "institucionalidade".

E quando a ruína vem, abre-se a possibilidade de uma ofensiva do inimigo, que costuma ser implacável e brutal. E que só freia quando se estabelece uma nova correlação de forças, mais equilibrada. Ainda não chegamos a esse ponto nos Estados Unidos. A coalizão política, social e cultural organizada pelo Partido Democrata contra Donald Trump só começou seu avanço.

E com a ordem de não fazer prisioneiros.

E a ofensiva ali se espalhará por todos os fronts. A guerra cultural será particularmente cruenta, na tentativa de ajustar as contas com as raízes mesmo da formação nacional norte-americana e daí buscar uma legitimidade de tipo completamente novo. Até chegar o dia em que tudo isso vai cansar e os robespierres de hoje forem encaminhados à guilhotina.

Claro que em pleno século 21 essa é apenas uma figura de linguagem. Mas os precedentes históricos são vários.

E o que temos a ver com isso, tirando o óbvio interesse pelo espetáculo? O que os americanos vão fazer com o país deles é assunto deles, mas o problema é se tratar de uma superpotência, a maior, e com armamento capaz de destruir a civilização algumas vezes. E qual será o melhor meio para os novos detentores do governo ali buscarem mais apoio num país fraturado?

Além de fazer a revolução interna, tentar restabelecer a liderança planetária que vai escorrendo pelo ralo do fantasma da decadência econômica.

A política de Donald Trump para fazer a América grande de novo sustentava-se no resgate das raízes nacionais e, principalmente, no buy american and hire american. Os americanos comprarem produtos americanos e produzirem em casa. Joe Biden repete o buy american, mas a ambição dele é maior: remontar a hegemonia planetária.

Aí cada país, dos maiores aos menores, precisará entrar num jogo de manobras complexas, buscando no todo e em cada situação defender seus próprios interesses, e ao mesmo tempo adaptar-se aos interesses de quem tem a vantagem da força. Porque, novamente, nunca é prudente subestimar a correlação de forças.

E qual o desafio maior do Brasil na nova conjuntura? Talvez saber qual é exatamente o interesse nacional neste momento da nossa história. Dificuldade que aliás começa pela dúvida, espalhada sistematicamente na periferia do sistema global: faz sentido falar em “interesse nacional” já passadas duas décadas deste novo século?

Fazendo um certo reducionismo caricatural, o Brasil parece estar dividido entre quem preferia engatar incondicionalmente nosso vagão na locomotiva trumpista e quem agora está pronto a bater continência à nova ordem, também de modo incondicional, desde que receba de fora o apoio suficiente para fazer aqui dentro seu próprio ajuste de contas.

Não chega a ser animador.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Paulo Fábio Dantas Neto: A República na América

“(...) Pois os fatos são renitentes; não desaparecem quando os historiadores ou sociólogos se recusam a tirar algum ensinamento deles, embora isso possa ocorrer quando todos os esquecem(...)”. (Hannah Arendt, “Da Revolução”)

É paradoxal que a traumática experiência dos quatro anos de agressiva passagem de Donald Trump pela Presidência dos Estados Unidos tenha feito com que o destino daquele país passasse a importar mais ao mundo do que já importava antes. Assim como tornou os EUA menos auto centrados e mais permeáveis e sensíveis ao que acontece fora dele. A pretensão isolacionista de Trump produziu efeito oposto. Ele não entregou o muro que prometeu, contra o México e o mundo. Contra o seu muro, construíram-se pontes e pistas que atravessaram continentes para ajudar a república norte-americana a se defender.

Uso de propósito o termo república e não democracia – embora esteja entre os que não conseguem pensar uma instituição sem a outra – porque vejo na instituição republicana, tal como se firmou nos EUA, a fonte principal da empatia que a fórmula norte-americana suscita, mesmo em presença de crise em vários aspectos de sua democracia e de tantos motivos de antipatia historicamente enraizados por ações da política externa de seu Estado.  Hannah Arendt, cujo pensamento serve não só de epígrafe como de inspiração para este breve texto, frisou a originalidade da experiência fundacional norte-americana, a um só tempo revolucionária e criadora de um tipo de governo fiel ao espirito da revolução da qual partiu, isto é, governo limitado pela lei. A proteção de direitos de cidadãos contra a opressão do poder político institucionaliza a liberdade, causa da revolução.

Contraste significativo, mostra Arendt, com rebeliões modernas que libertaram povos de opressões - como a do Antigo Regime da bastilha e a da grande Rússia dos czares (e às quais podemos acrescentar a de títeres cubanos de plutocratas e mafiosos e tantos outros exemplos) – mas após as quais o sentido de revolução foi perdido quando seus processos políticos não construíram a liberdade, seu fundamento. Cair sob o jugo de algum tipo de “Conquistador” seria a sina de rebeliões que não se fazem acompanhar de uma revolução, no sentido político de restauração/recriação da liberdade como experiência e/ou razão.

Em contraste com tais experiências agonísticas esteve sempre a realidade de contra revoluções que, sobre o fogo fátuo das insurreições desacompanhadas de política positiva, viabilizaram governos limitados como opções pacificadoras da violência de revoluções refratadas. Nesses casos, pontua Arendt, constituições levam a governos limitados que não são sinais de vitória moderada de aspirações revolucionárias, mas da sua derrota.   

Como coisa distinta de ambas as situações sumariadas, levanta-se o caso singular da República norte-americana. A forte conexão de sentido, tanto no campo dos argumentos racionais, quanto no da análise histórica, entre o momento-libertação (a guerra da Independência) e o da construção da liberdade (da Declaração da Independência à Constituição, passando pelo amplo debate popular da questão federativa) deixa claro, para nossa autora inspiradora, que os fundadores da República americana não cometeram o equívoco de imaginar que poder e lei poderiam emanar da mesma fonte. O poder popular concilia-se com a liberdade política quando a lei - sua elaboração, aplicação e guardiania – provém de diferentes poderes derivados de uma autoridade política constituída e fundada no princípio representativo. Autoridade cujo mister é proteger o cidadão da opressão do poder, inclusive do poder que emana direto da fonte legitimadora da própria República.   Numa palavra, na República norte-americana não há poder soberano, nem o do povo, pois a premissa é que a liberdade requer governo e governo legítimo é governo limitado.

É sobre esse estuário institucional (governo da lei, não de pessoas), compactado como tradição por uma cultura política associativa, que a democracia americana trafega como presente continuo, entre avanços e recuos, tendo como resultante um processo cumulativo de inclusão política.  A violência, que todos apontam (alguns com desagrado, outros com admiração) como marca de um modus operandi da história daquele país, comparece nos vários momentos dessa construção democrática bissecular, mas encontra no estuário republicano uma força de atenuação, que é civilizatória. Sua eficácia pode ser percebida quando se compara a violência em estado bruto, de guerra, que marcou o fim da escravidão, há um século e meio, com enfrentamentos de uma década de conquista de direitos civis, há meio século, daí com lutas que permitiram a significativa eleição de Barack Obama há uma década e com vitoriosas frentes políticas de agora, pacientemente construídas para enfrentar o trumpismo, impulsionadas por gigantescas manifestações de protesto pelo assassinato de George Floyd.  A visão dessa floresta é a da República como hardware seguro ao qual de acopla a democracia como software em constante atualização.

Foi contra esse edifício monumental, sediado na história e na cultura política de seu país, que Donald Trump jogou seus apoiadores no último dia 6.  O Capitólio é o edifício símbolo do hardware que os norte-americanos construíram para se fazerem representar e serem protegidos de efeitos malévolos de dissensões sempre presentes entre eles. Ao arremessar contra o Capitólio uma parcela radicalizada de pessoas desatentas à dimensão protetiva do edifício, quis induzi-las a destruir/desmoralizar um hardware sem o qual eles próprios seriam inimigos vencidos e destituídos de qualquer direito. E como poderiam, de algum modo, na ausência desse hardware, tentar introduzir seu software extremista? Contra quem e contra o que poderiam mobilizar seu pathos destrutivo? Se por acaso não fossem tão fragorosamente fracassados, como foram, ficariam parados no ar, rebelião seguida de anomia, não de novo poder. Agora que a República prevaleceu, eles continuarão tendo a chance de tentar, desde que respeitem o hardware. Chance condicional, não excluindo que insuflador e insuflados respondam pelo atentado, já que o governo é da lei.

Mas eles quem? Todos os cara-pálida? É outra pergunta pertinente depois desses eventos. Prever o que será e como se comportará o trumpismo findo o governo Trump é, ainda, um exercício para videntes e dele me pouparei porque me falta esse talento. Entretanto, há uma questão correlata que pode ser aqui arranhada por uma evidência que salta aos olhos. Já começou a disputa de narrativas no campo oposto ao de Trump. O desfecho que o isola (ao menos momentaneamente) significa, para certos analistas politicamente engajados, a implosão do Partido Republicano ou o seu enfraquecimento a ponto de perder capacidade de polarizar com os Democratas, que tenderiam a ocupar bases do rival desorientado. Como não há ambiente propicio a partido único e atribui-se a Trump uma atitude anti-sistêmica cada vez mais ostensiva, vislumbra-se, à esquerda, a chance (ou o desejo) de que o Partido Democrata venha a ser a nova força conservadora na política norte-americana, abrindo espaço, a médio prazo, para-o surgimento de uma “nova” esquerda.  Até porque, conforme essa narrativa, a nova polarização política tende a estar impregnada pela questão racial e a noção de pluralismo – caríssima à tradição política do país - passa a assumir, nesse registro, uma conotação mais societal, enfatizando clivagens. A tese parece ser que hoje saem derrotados o trumpismo e o supremacismo radical. Amanhã será a banda moderada com a qual se identifica Biden e que será chamada a defender a herança da “sua” democracia branca. Não se distingue, no discurso, lugar para a “nossa” República. Deve-se assinalar que boa parte do movimento político anti racista parece estar evitando esse consequencialismo identitário e tem apostado firme na via eleitoral, formando frentes amplíssimas. A ver se é uma atitude política sustentável ou mais uma tática defensiva motivada pelo fator Trump. 

Para outros analistas, o isolamento de Trump conduziria a uma retomada, pelo seu partido, agora na oposição, do lugar de direita democrática que lhe cabe. Até porque a tendência da política de Biden, tendo ao lado a vice Kamala Harris, seria reforçar uma inflexão “à esquerda”, justamente para evitar que, nesse quadrante político, algo de relevante se descole do partido e passe a querer polarizar com ele. É jogo futuro, mas essa segunda hipótese guarda maior sintonia com a interpretação de que quem derrotou Trump foi o instinto de República e não o clamor por uma democracia de novo tipo. Em vez de uma “nova democracia”, uma democracia que se renova graças à robustez da República. Quanto mais atores políticos relevantes - no Capitólio, na Casa Branca, em Wall Street e na malha associativa de movimentos sociais em geral e de movimentos políticos anti-racistas  se deixarem persuadir por esse segundo caminho, mais laços haverá com o mundo exterior, para o qual a República que há na América segue sendo referência.   

Desdobramento lógico e prático dessa discussão é perguntar o que tudo isso tem de fato a ver com o mundo externo aos EUA, Brasil incluído. Tema de outra coluna, provavelmente a da próxima semana, se fatos do nosso próprio país não furarem a fila. Como gancho, deixo a sugestão de reflexão sobre se o fim da aventura trumpista inspira mais dúvida ou mais confiança na hipótese de que instituições robustas e atitude política republicana possam domar um populista de extrema-direita no poder e o impeçam de detonar o edifício.

*Cientista político e professor da UFBa.


O Globo: ‘Populistas autoritários nem sempre ganham’, diz Steven Levitsky

Steven Levitsky afirma que desfecho do governo Trump deve servir de exemplo para oposição a Bolsonaro

Henrique Gomes Batista, O Globo

SÃO PAULO — Mundialmente famoso por seu livro “Como as Democracias Morrem”, o cientista político e professor de Harvard Steven Levitsky afirmou que o desfecho da invasão ao Capitólio e da tentativa de Donald Trump continuar no poder de qualquer maneira é uma prova que populistas autoritários podem ser parados. Em entrevista por e-mail ao GLOBO, ele afirma que o fim do governo do republicano deveria inspirar a oposição brasileira e que Trump não conseguiu se manter no poder porque não contou com o apoio dos militares.

O desfecho do governo Trump é marcado pela tentativa de reverter o resultado das urnas com acusações falsas, pressão a funcionários públicos e incentivo à invasão do Capitólio, que fez Trump ficar mais isolado no fim dos eventos. Qual a lição para o mundo?

Bem, talvez a lição seja que os populistas autoritários nem sempre ganham. Eles podem ser parados.

Líderes populistas que copiaram claramente Trump, como Jair Bolsonaro, podem tentar repetir esse caminho e ter sucesso, ao contrário do republicano?

Bolsonaro é talvez o líder que mais claramente copiou Trump. Minha esperança é que o fracasso de Trump os desencoraje, e talvez inspire a oposição brasileira. Os democratas pararam Trump em parte porque uniram a esquerda e o centro. Se a oposição do Brasil não se unir, acho que Bolsonaro pode ter sucesso (na reeleição). A outra grande questão no Brasil são os militares. O exército poderia se recusar a cooperar com uma aventura autoritária, como nos Estados Unidos, ou ajudar Bolsonaro a ter sucesso?

Por que o golpe de Trump, que começou a elaborar maneiras de se manter no poder mesmo perdendo as eleições, não funcionou?

Primeiro, Trump era inepto, desorganizado e indisciplinado. Não houve nenhum esforço coordenado sério, ele foi tímido. Em segundo lugar, muitos funcionários públicos, como autoridades eleitorais, burocratas e  juízes se recusaram a cooperar com o republicano. E, o que é crucial, é muito difícil realizar um golpe sem armas. E Trump nunca teve os militares atrás dele.

Qual é a cumplicidade do Partido Republicano em tudo isso?

O Partido Republicano nomeou Trump, apesar de seu comprometimento limitado com a democracia, permaneceu em silêncio enquanto ele abusava do poder, protegeu-o do impeachment e permaneceu em silêncio enquanto ele mentia sobre a fraude eleitoral e tentava derrubar a eleição. Na verdade, muitos líderes partidários cooperaram no esforço de roubar a eleição. Em suma, o Partido Republicano foi altamente cúmplice. O partido protegeu e habilitou Trump.

Qual foi o papel da Justiça e da Suprema Corte?

O poder judiciário, que permanece poderoso e independente, desempenhou um papel crítico no bloqueio do esforço de Trump para derrubar a eleição. Assim como Trump não podia contar com os militares, ele não podia contar com os tribunais.


Alon Feuerwerker: Free speech e controle

O Facebook e o Twitter cortaram temporariamente a possibilidade de o presidente Donald Trump postar nas redes sociais dos dois conglomerados. É um dos mais nítidos sinais de já haver, na prática, um novo governo em Washington.

Ao longo do mandato de Trump, as redes conviveram bem com a utilização desses canais pelo presidente, inclusive quando ele propagava informações não comprovadas, ou não comprováveis. As sobre a pandemia são um exemplo. A preocupação com o combate às fake news só apareceu depois que ele perdeu a reeleição.

Seria ingenuidade imaginar que mesmo os maiores conglomerados econômicos não precisem, em algum momento, bater continência para o poder. Mais confortável é quando podem fazer isso alegando a "defesa da democracia e das liberdades". É o best-case scenario de agora.

Do episódio, fica pelo menos uma preocupação. Quem define o que pode ou não ser postado nas redes? Dar esse poder aos governos parece excessivo? E dar esse poder às próprias empresas, é aceitável? E como o direito ao free speech sobreviverá a tudo isso?

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Elio Gaspari: O maior espetáculo da Terra

EUA vão ao triste patamar das repúblicas latino-americanas

Donald Trump começou o espetáculo da sua partida deixando “House of Cards” no chinelo. Seu telefonema de uma hora para o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger (um republicano), seria rejeitado por qualquer roteirista de séries de TV. Foi desconjuntado, alternou momentos de prepotência e delírio. Ao seu estilo, puxou a carta do Apocalipse: “O povo da Geórgia está zangado, o país está zangado”. Falou três vezes em “tumultos”. Ameaçou e fez-se de vítima, queixando-se do que “vocês fizeram com o presidente”.

Na essência, Trump acha que ganhou a eleição na Geórgia por mais de cem mil votos e telefonou para que Raffensperger contasse o resultado, arrumando-lhe 11.779 votos. Repetiu 11 vezes esse número ou o milhar arredondado. Numa das últimas menções foi patético: “E agora? Eu só preciso de 11 mil votos. Pessoal, eu só preciso de 11 mil votos. Tenham paciência”.

O telefonema termina de uma forma bizarra.

Raffensperger: “Obrigado pelo seu tempo, presidente”.

Trump: “Ok. Obrigado, Brad”.

(Não cabe a um interlocutor encerrar uma conversa com o presidente dos Estados Unidos.)

Raffensperger sabia com quem estava lidando. Não deu outra. No domingo, Trump soltou um tuíte dizendo que ele não sabia de nada porque não queria ou porque não podia. O secretário de Estado respondeu: “Respeitosamente, presidente Trump, o que o senhor está dizendo é falso. A verdade aparecerá”. Horas depois o áudio apareceu no “Washington Post”.

Faltavam 18 dias para a posse de Joe Biden e terminara o primeiro capítulo da série “Os últimos dias de Trump”. Começou o segundo, menos pitoresco e muito mais grave. Dez ex-secretários da Defesa mandaram uma carta ao “Post” dizendo que a eleição já acabou e que os militares devem ficar fora dessa encrenca. Entre os signatários, Richard Cheney e Donald Rumsfeld. A dupla tem mais de 40 anos de experiência em Washington e patrocinou as guerras de George W. Bush. Dois republicanos que não comiam mel, comiam abelha. Suas assinaturas mostram que o núcleo tradicional do partido afastou-se de Trump.

Atitude inédita, o manifesto colocou os Estados Unidos no triste patamar das repúblicas latino-americanas. Como nenhum dos signatários tem biografia de vivandeira, é razoável supor que havia algo no ar além dos aviões de carreira. Sabe-se, por exemplo, que um general da reserva, integrante do pelotão palaciano, circulou a ideia de colocar os Estados Unidos sob lei marcial, e um assessor de Trump falou num possível adiamento da posse de Biden.

O que está acontecendo em Washington é o maior espetáculo da Terra. Coisa nunca vista, com promessa de novas emoções.

Felizmente, o comportamento do secretário de Estado da Geórgia e dos ex-secretários de Defesa mostra que as instituições dos Estados Unidos funcionam. Vai daí que no dia 20 de janeiro irá ao ar o último capítulo. Não se sabe o que Trump fará. Ele pode imitar John Adams, que foi-se embora da cidade na noite da véspera da posse de Thomas Jefferson.

Poderia também sair da Casa Branca para um prédio que fica a uns poucos minutos de carro. Lá funciona a Associação Americana de Psiquiatria.


João Gabriel de Lima: A comédia Donald Trump pode estar perto do fim

Se previsões se confirmarem, americanos interrompem peça enquanto se pode ir dela

Comédias têm três atos, ensinam os clássicos da dramaturgia. Tragédias têm cinco. Se as projeções se confirmarem num país dividido, a comédia Donald Trump terá chegado à última cena com o esperneio final – e patético – do presidente dos Estados Unidos.

É possível delinear os três atos da comédia Trump a partir da leitura de O Povo Contra a Democracia, do alemão Yascha Mounk. O livro disseca esse tipo de político que, sem ser propriamente de esquerda ou de direita, fustiga uma e envergonha a outra: o populista.

O primeiro ato de um populista típico é vender soluções simples – e erradas – para problemas complexos. No mundo globalizado, governar não é trivial. Não é possível, por exemplo, criar empregos por decreto, tampouco evitar que eles migrem para outros países. Nem combater pandemias com poções mágicas. Líderes modernos – como Angela Merkel, Emmanuel Macron ou António Costa, para citar exemplos de vários lados do espectro político – são aqueles que conseguem explicar os limites de um governo a seus eleitores. Tratam-nos como adultos.

Um populista, por seu turno, infantiliza os que votaram nele. Trump prometeu tornar os Estados Unidos novamente grandes – e, ao longo de sua presidência, tratou os cidadãos americanos como crianças a quem se promete um chocolate para que parem de chorar. Inventou um muro para evitar que imigrantes mexicanos disputassem postos de trabalho nos Estados Unidos – e seu governo acabou sendo aquele em que mais americanos perderam seus empregos desde a Segunda Guerra. Eis o segundo ato da comédia populista. Os embustes vendidos na campanha eleitoral são esmagados pela realidade.

No terceiro ato, o populista diz que a culpa não é dele. Se algo deu errado, é porque os inimigos não deixaram o governante trabalhar. Por “inimigos” entendam-se a ONU, o Congresso, os “comunistas”, a imprensa, os chineses, os mexicanos. Ou, ainda, os cientistas que sugeriam medidas sensatas contra o coronavírus. Se as projeções se confirmarem, será porque a maioria dos americanos não engoliu a fake news dos inimigos e escolheu Joe Biden presidente da República, encerrando o terceiro ato. Fim da comédia. Cai o pano.

Trump já é, e continuará sendo, um caso de estudo em ciência política. Poucos o entenderam melhor que Mounk, intelectual que milita contra o populismo. Suas trincheiras são o site “Persuasion”, uma rede de defesa da democracia, e um podcast com o nome sugestivo “The Good Fight”, “O Bom Combate”. Nos episódios, Mounk entrevista expoentes da reflexão política num gradiente amplo de convicções, de Anne Applebaum a Francis Fukuyama.

O maior risco de um país governado por um populista é a reeleição. Neste cenário, o ciclo continua: o governante diz que a culpa não é dele, os eleitores acreditam e o reconduzem ao cargo. A peça evolui para um quarto ato, em que o populista dobra a aposta nas soluções simples e erradas. As cenas finais mostram a corrosão das instituições. Temos aí os cinco atos de uma tragédia. As cortinas da democracia se fecham.

Se as projeções se confirmarem, será porque a maior parte dos americanos, cansados de ser tratados como crianças, decidiram que a América deveria ser, novamente, gente grande no mundo. Se as projeções se confirmarem, os americanos terão evitado que a comédia se transformasse em tragédia, ao interromper a peça enquanto ainda era possível rir dela.

*Jornalista, escritor e professor da Faap e do Insper


Ascânio Seleme: O fim de um pesadelo

A iminente derrota de Donald Trump, muito mais do que a vitória de Joe Biden, tranquiliza o mundo e acalma os sentidos da humanidade

A iminente derrota de Donald Trump, muito mais do que a vitória de Joe Biden, tranquiliza o mundo e acalma os sentidos da humanidade. Esta talvez seja a única boa notícia de 2020 até aqui. Melhor do que isso, quem sabe, pode ser o desenvolvimento final de uma vacina eficiente contra o coronavírus. Mas ainda assim, e apesar de a vacina ter o poder de salvar milhares de vidas que seriam perdidas prematuramente, a saída de cena do megalomaníaco Trump produz um grau também muito elevado de relaxamento, porque era grande o risco dele permanecer infernizando o mundo por mais quatro anos.

A saída de Trump representaria um recomeço para o mundo. Desaparecera a espada que pairava sobre o globo presa apenas nas mãos de um líder errático, egocêntrico e mentiroso. Se o mundo respirar aliviado com a vitória de Biden, os Estados Unidos terão de procurar entender o recado das urnas. O mais importante deles talvez seja a mensagem de respeito absoluto à democracia, onde quem manda é o eleitor, e ponto final. Mesmo com as imperfeições do modelo eleitoral americano, quem votou e deve eleger um novo presidente foi o eleitor.

Outra vencedora desta eleição foi a verdade. O maior mentiroso que já ocupou o Salão Oval deve deixar o poder acumulando extraordinárias 20 mil mentiras contabilizadas pelo jornal “The Washington Post” até agosto. Embora metade do país tenha votado em Trump, e destes muitos compraram e seguirão comprando as lorotas do presidente derrotado e seus alucinados seguidores, o fato é que a maioria foi às urnas e votou também massivamente num partido que absolutamente não é socialista, como Trump insistia em proclamar.

Restabelecida a verdade, falta ainda aos EUA recuperarem sua dignidade. Trump transformou o país numa chacota global, como Bolsonaro fez com o Brasil. A diferença entre os dois é que um é periférico e outro comanda a maior potência econômica e militar do planeta. Joe Biden é muito bem talhado para esta tarefa. Não importa como seja a saída de Trump, confirmada sua derrota, se esperneando como um menino mal-educado ou de modo civilizado, quem deverá mandar a partir do dia 20 de janeiro de 2021 será um homem educado, tolerante e conciliador.

Mesmo que Trump bata o pé e faça birra, insistindo com suas diversas ações nos tribunais regionais e na Suprema Corte, o resultado final será mais uma derrota para ele. Sem qualquer evidência que sustente as acusações de fraudes eleitorais que fez, as ações são ridículas e serão desconsideradas pela Justiça. Nesta empreitada, Trump já perdeu o apoio da sua maior aliada na mídia, a Fox News, que condenou a iniciativa. Falta perder o suporte do seu partido.

Ao ser retirado do ar na noite de quinta-feira por emissoras de TV americanas, quando fazia um pronunciamento na sala de imprensa da Casa Branca, Trump mentia descaradamente sobre como as alegadas fraudes se processavam. Os veículos que o silenciaram disseram que não podiam permanecer trazendo ao público americano mentiras que desinformavam quando sua missão é exatamente o contrário, bem informar a população.

Se a onda azul esperada não aconteceu, é verdade também que a vitória desenhada de Biden não será por pequena margem como se chegou a imaginar. O número de delegados no Colégio Eleitoral de Biden pode ser exatamente igual àquele que levou Trump para a Casa Branca em 2016. As filas de votação em plena pandemia, onde pessoas passaram até dez horas para votar, provam que os americanos entenderam o que estava em jogo. Por isso também esta eleição teve recorde de eleitores e o vencedor passa a ser o presidente com o maior número de votos da História.

No Brasil temos um problema interessante a ser considerado a partir de agora. Confirmada a vitória de Biden, o presidente Jair Bolsonaro terá de se adaptar aos novos tempo. Vai ser difícil. Por ora, o governo do Brasil pode se tornar em adversário das duas maiores potências globais, a China e agora os EUA. Para se reposicionar globalmente, terá de dar uma guinada de 180° na política externa e demitir o aloprado chanceler Ernesto Araújo. São novos tempos, absolutamente diferentes do que vivemos até aqui. Quem não se recolocar rapidamente, vai comer poeira.

Escapamos, Lenin

“A democracia alimenta os germes da sua própria destruição”. A frase é de Vladimir Ilyich Ulyanov, o Lenin, líder máximo da revolução soviética de 1917. “A democracia dá a cada um o direito de ser o seu próprio opressor”. Esta é do poeta, escritor, diplomata e abolicionista do século XIX James Russell Lowell. O que ambos queriam dizer é que é bem possível transformar uma democracia numa outra coisa qualquer através do voto. Basta votar errado. Os Estados Unidos tiveram tempo e clareza e estão prestes a impedir que o erro cometido em 2016 seja consolidado este ano.

Não sonhe

Quem acha que o presidente Jair Bolsonaro vai se reagrupar globalmente se Donald Trump for derrotado é melhor colocar as barbas de molho. Se internamente houve um reagrupamento, ele se deu em razão da habilidade do centrão e da fraqueza política do capitão. No plano externo, o Brasil vai precisar retomar o caminho da lucidez e do bom senso, no caso de Biden vencer. Além de demitir o chanceler Ernesto Araújo, o Brasil terá também de rever sua política ambiental, se quiser construir um entendimento com a nova Casa Branca. Neste caso, Ricardo Salles também terá de pirulitar.

Era da lorota

Eles se parecem até nisso. O filho de Donald Trump é tão primário quanto os três zeros de Bolsonaro. Não é necessário citar as besteiras que Eric Trump escreveu no Twitter, que as apagou por atentarem contra a democracia. No Brasil, você viu, o zerinho Eduardo Bolsonaro atacou a eleição americana e acusou Biden de fraudá-la. Claro que sem provas. O que os iguala é a impressão que têm de que as pessoas vão engolir todas as mentiras e invenções que colocam nas suas redes sociais. Pelo que se viu nos EUA, a era da lorota parece estar chegando ao fim.

Biden e as artes

Diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos a arte não precisa necessariamente do dinheiro de empresas privadas e muito menos de dinheiro público para sobreviver. Os negócios da cultura são muito bem consolidados, e o público americano é mais maduro que o brasileiro. Mas ainda assim, é reconfortante saber que o provável presidente eleito Joe Biden é um entusiasta e um estimulador da arte. Segundo reportagem de Graham Bowley, do jornal “The New York Times”, Biden sempre viu a arte como “um instrumento importante para a economia, um gatilho para a ação política e um agente de construção comunitária”. De acordo com depoimento ao “NYT” feito por Robert L. Lynch, presidente do movimento “Americans for the Arts”, a atitude de Biden em relação à arte “é menor do ponto de vista do consumidor de cultura e mais de acordo com os valores inspiracionais e de transformação” que ela pode produzir na sociedade.

O que vale mais

“Em campanha eleitoral não importa apenas o que você apoia, mas também o que você é contra”. A frase é do personagem Eli Gold, um estrategista político da série “The Good Wife”. Ele explica a Alicia Florrick, a estrela da série e candidata a um cargo eletivo, que não basta apenas você apontar os bons caminhos que pretende percorrer se eleito, mas também os caminhos que vai necessariamente evitar na jornada. Biden deve ganhar porque disse claramente aos eleitores americanos que não seguiria pela trilha do moribundo Trump.

Bom para o Brasil

A eleição dos Estados Unidos prova a força do eleitor. Mesmo em meio a uma pandemia letal, milhões de eleitores bateram recorde e foram às urnas para julgar o governo de Donald Trump. O mesmo vigor que rejeitou Hillary Clinton há quatro anos, pode sabotar agora o homem que a derrotou. O exemplo americano precisa ser observado mundo afora, e especialmente aqui, porque todos sabem que o que é bom para os EUA é bom para o Brasil.

Gota a gota

Você pode dizer tudo sobre a eleição presidencial americana, menos que ela não foi emocionante.


Bernardo Mello Franco: Medo e delírio na Casa Branca

Donald Trump já havia indicado que não deixaria o poder facilmente. Ontem, ele mostrou que é capaz de implodir a democracia americana para não reconhecer uma possível derrota.

Em desvantagem na apuração, o presidente dos Estados Unidos atentou contra o sistema que o elegeu em 2016. Sem qualquer base factual, ele alegou que a disputa deste ano estaria sendo roubada.

Em mais um abuso de poder, o republicano fez as declarações falsas na sala de imprensa da Casa Branca. Usou a estrutura e os símbolos da Presidência para difundir mentiras em interesse próprio.

Trump alegou que os votos enviados pelo correio, de acordo com as regras do jogo, seriam “ilegais”. O motivo é conhecido: os eleitores democratas aderiram em peso a essa modalidade de voto.

As grandes redes americanas interromperam a transmissão do discurso pela metade. Ainda assim, as mentiras do presidente atingiram milhões de americanos pela TV e pelas redes sociais.

Mais cedo, Trump já havia tuitado, em maiúsculas: “PAREM A CONTAGEM!”. Foi uma confissão de desespero. A cada hora que passava, Joe Biden reduzia a distância na Pensilvânia e na Georgia.

O presidente age como um sabotador da democracia. Sua ofensiva mina a confiança nas eleições e o respeito às regras do jogo. A esta altura, a judicialização da disputa parece ser o menor dos riscos. Trump encorajou os extremistas e acendeu um pavio que pode incendiar as ruas americanas.

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Em setembro de 1992, um deputado subiu à tribuna da Câmara e anunciou: “Tenho dignidade e vergonha na cara e não subirei jamais em palanque em que esteja o atual presidente”.

O presidente era Fernando Collor. O autor da promessa, Jair Bolsonaro. Ontem, os dois subiram no mesmo palanque em Piranhas, no sertão de Alagoas. Sorridente, o capitão definiu o novo aliado como “um homem que luta pelo interesse do Brasil”.


Ruy Castro: O futuro sem Bolsonaro

Mas e se o bolsonarismo já não precisar dele para existir?

Um dos pesadelos dos americanos é que, mesmo que Donald Trump seja derrotado na eleição de terça-feira e varrido de volta para a Idade Média, o trumpismo continue a existir nos EUA. Era uma inflamação que só esperava um furúnculo para estourar, e esse furúnculo foi Trump. Já o nosso pesadelo é que o mesmo possa acontecer aqui, quando Jair Bolsonaro for levado a responder por seus crimes contra as instituições, a democracia e a vida —que o bolsonarismo não dependa mais da existência do seu Führer.

Se pensarmos bem, ele já existia antes da candidatura de Bolsonaro à Presidência, da facada em Juiz de Fora e de sua vitória nas urnas. Claro que Lula foi decisivo para essa vitória, ao sabotar outras candidaturas para que Bolsonaro —“fácil de derrotar”— chegasse à final contra o PT. Lula subestimou a aversão ao lulismo, alimentada durante 13 anos pelos desmandos de seu partido. A prova dessa aversão é que, com toda a demência e bestialidade do governo Bolsonaro, o PT está à beira da extinção.

Um indício da sobrevivência do bolsonarismo sem Bolsonaro é que, para seus fanáticos, não importa que Bolsonaro minta, alie-se aos corruptos que fingia combater, proteja genocidas e incendiários ou troque o país por sua miserável reeleição —o que sobrar do país depois de seu primeiro mandato. O Exército, que ele desmoraliza aos olhos da nação, continua a apoiá-lo. Os empresários, cujos negócios são prejudicados pela imagem de pária do Brasil no exterior, não o abandonam. O Congresso, que ele já ameaçou fechar, fecha com ele. E, a depender dos juízes, os zeros não se sentarão no banco dos réus.

Tudo isso é bolsonarismo e, se tantas categorias se sujeitam a ser corrompidas por ele, é porque não é mais Bolsonaro que importa.

Bolsonaro, por incrível que pareça, às vezes nos dá saudade da ditadura. Imagine se, no futuro, o Brasil chegar a ter saudade dele.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Dorrit Harazim: Uma eternidade de nove dias

Não existe superlativo capaz de traduzir tudo o que está em jogo neste 3 de novembro de 2020

Os murmúrios se adensam, a respiração mundial acelera, mas ninguém ousa se fazer ouvir a plenos pulmões. Até porque ainda é cedo — falta uma eternidade de 9 dias até o 3 de novembro. A insensatez arrogante que levou o Partido Democrata e Hillary Clinton à implosão em 2016 ainda sangra. Melhor represar o otimismo e concluir o aprendizado de como não menosprezar o poder feroz de Donald Trump.

Após o debate de quinta-feira, é razoável achar que o presidente dos EUA perdeu uma grande chance de ressurgir competitivo. Em seu derradeiro confronto ao vivo e na veia com o adversário, Trump pode ter desperdiçado a última oportunidade para mudar a dinâmica eleitoral em curso. Como se sabe, os números têm sido francamente favoráveis a Joe Biden. Mas, como também se sabe, as pesquisas eleitorais que dão uma vantagem nacional de 8% a 12% ao candidato democrata valem pouco no labiríntico sistema eleitoral indireto do país. Se três ou quatro dos 50 estados americanos não votarem democrata (os “estados-pêndulos”), Donald Trump não arreda pé da Casa Branca.

Não existe superlativo capaz de traduzir tudo o que está em jogo neste 3 de novembro de 2020. Tampouco é exagerado falar em consequências planetárias para a democracia, o progresso, a solidariedade de gerações futuras. Levando em conta o peso mastodôntico dos Estados Unidos no mundo, o resto da aldeia global será afetada pelo resultado, inclusive na sua essência mais elementar — a humanidade.

Vale relembrar a pergunta final dirigida aos dois candidatos pela moderadora Kirsten Welker (que deu uma sólida master class em jornalismo na condução do debate). A pergunta era previsível, e ambos tiveram tempo de sobra para ensaiar a resposta que melhor espelhasse seu DNA. E assim foi. Trump nada tem a dizer a quem não o segue. Foi estreito, tribal, ominoso em sua busca perpétua por “sucesso”. Biden foi Biden:

Mediadora: “No seu discurso de posse, o que o senhor gostaria de dizer àqueles que não lhe deram o voto?”.

Trump: “Precisamos fazer nosso país voltar a ter o mesmo sucesso total que tinha antes da praga vinda da China”.

Biden: “Sou presidente dos Estados Unidos, não de estados vermelhos (republicanos) ou azuis (democratas). Represento todos vocês, tenham votado a favor ou contra mim. Vou lhes dar esperança. Vamos dar preferência à ciência sobre a ficção, à esperança sobre o medo”.

Como escreveu a autora Zadie Smith em ensaio sobre otimismo e desesperança, o progresso humano nunca é permanente, estará sempre sob ameaça e, para sobreviver, precisa ser constantemente reimaginado, reafirmado, reforçado. Biden parece saber que a esperança lúcida é uma forma de resistência contra os desvios da democracia. Já Trump nunca entendeu que a timeline do progresso humano não começa nem termina na sua timeline pessoal, cujo único norte é o “sucesso”.

Dias atrás o jornalista do New York Times Mark Leibovich relembrou um episódio que testemunhou em 2015, quando Trump arrombou com estrondo a disputa pela Casa Branca. Afundado na limusine que o transportava pelas ruas de Nova York, o magnata-celebridade pôs-se a falar do desprezo que sentia por Jimmy Carter. O motivo do desdém pelo ex-presidente democrata de um só mandato (1979 a 1981) não era o fato de Carter ter sido escorraçado nas urnas por Ronald Reagan. “Carter tinha a mania de embarcar no avião presidencial carregando a própria bagagem. Não quero um presidente que desembarca carregando seu saco de cuecas sujas”, explicou. No seu entender, isso transmitia uma mensagem péssima, cabendo a um comandante em chefe ser mais imperial, superior, jamais se comportar como um servidor qualquer.

Há uma ironia embutida no episódio. A se confirmarem as pesquisas atuais, o mesmo Trump que conseguiu transformar a Casa Branca num palácio de dourados ofuscantes corre o risco de ser defenestrado após um só mandato, como Carter. E, se assim for, de uma coisa pode-se ter certeza: não há a mais remota chance de o 45º presidente vir a evoluir como espécime humano a ponto de se tornar um ex de hombridade semelhante à do “carregador de cuecas”. Aos 98 anos, o cidadão Jimmy Carter é atuante e produtivo na vida cívica, respeitado dentro e fora de seu país.

Mas e se as pesquisas estiverem fora de prumo? Segundo estudo da Associação Americana de Psicologia, mais de dois terços da população adulta dos Estados Unidos descreve a eleição de novembro como “forte motivo de ansiedade em suas vidas” — muito além, portanto, dos 63 milhões que instalaram Donald Trump na Casa Branca. À Covid-19 veio se juntar a Angst-2020.


Cláudio de Oliveira: Eleições presidenciais nos Estados Unidos

Leio que Joe Biden, o candidato do Partido Democrata, está na frente da corrida presidencial nos Estados Unidos.

Ao que parece, a tática eleitoral dos democratas está mostrando eficácia ao atrair eleitores conservadores moderados para Joe Baden, isolando Donaldo Trump, que vai se restringindo aos eleitores conservadores mais radicais, sensíveis à polarização fabricada pela campanha republicana.

Joe Baden é da ala mais moderada do Partido Democrata, talvez um liberal-democrata centrista com viés social. Ele conseguiu o apoio das outras alas do partido, como aquela representada por Barack Obama, que seria um social-democrata de terceira como Tony Blair, e a do senador Bernie Sanders, um social-democrata clássico, mais à esquerda.

A união do Partido Democrata completou-se com a indicação da ex-procuradora e senadora democrata Kamala Harris, primeira mulher negra a disputar o cargo.

Joe Biden representa, assim, com apoio de diversos políticos do Partido Republicano, a Frente Ampla dos setores democráticos norte-americanos contra o populismo de direita. Trump tem colocado em xeque as instituições do país, ameaçando não reconhecer os resultados eleitorais e não entregar o poder ao vencedor.

*Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista e autor dos livros “Era uma vez em Praga – Um brasileiro na Revolução de Veludo” e “Lênin, Martov a Revolução Russa e o Brasil”, entre outros.


Ruy Castro: Perguntas à queima-roupa

Ver os repórteres em ação nas eleições americanas é um espetáculo instrutivo

A sucessão presidencial nos EUA tem oferecido um espetáculo instrutivo: ver repórteres americanos em ação. Ao entrevistar os candidatos ou assessores, eles não vacilam —um de cada vez, disparam à queima-roupa uma pergunta de, se tanto, dez palavras. O entrevistado não tem tempo para pensar. O ritmo da pergunta determina o ritmo da resposta. E esta nem sempre é a que o entrevistado pensava dar.

Entre nós, com respeitáveis exceções, é diferente. Nenhuma pergunta leva menos de um minuto. É precedida de um introito que esmiúça a questão, estende-se nos prolegômenos e sugere alternativas. O entrevistado escuta com a maior atenção. Quando a pergunta parece estar chegando à sua formatação final, com o esperado ponto de interrogação —“O que o senhor diria disso ou daquilo?”—, o repórter, para arredondar, envolve-a com duas ou três outras, que ele próprio responde, e só então cede a palavra ao entrevistado. O qual já teve tempo para burilar seu discurso e adequá-lo ao que sabe ser a forma ideal: falar sem dizer nada.

Bem, essa é só uma variação. Há outra, não menos comum: a das duas ou três perguntas feitas em sequência, cada qual sobre um assunto. Esse é o formato favorito de todo entrevistado —permite-lhe responder apenas a última pergunta ou a que lhe for mais conveniente. E, quando isso acontece, raramente se ouve uma insatisfação com a resposta ou um repique. Fica por isso mesmo, como se o importante não fosse a resposta, mas a pergunta.

Alguns entrevistados se dão ao trabalho de tentar responder a essa série de perguntas, indo ao fundo da memória para se lembrar de qual tinha sido mesmo a primeira, depois a segunda, a terceira etc. Mas só porque sabem que isso lhes garantirá mais tempo de câmera.

Os repórteres americanos podem aceitar como resposta um simples “Sim” ou “Não”. É o que basta para, às vezes, até derrubar um presidente.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.