ditadura militar

Ruy Castro: Noite de 13 de dezembro

Um disco de Charles Mingus tornou-se a triste trilha sonora do AI-5

Às 20h30 de 13 de dezembro de 1968, Alberto Curi, locutor da Agência Nacional, leu em rede de rádio e TV o comunicado do governo anunciando o Ato Institucional nº 5. Naquele momento eu estava naModern Sound, loja de discos em Copacabana, aonde ia todas as sextas depois de sair do Correio da Manhã, em cujo 2º caderno trabalhava com Paulo Francis. Comprara um LP de Charles Mingus, e já estava saindo quando alguém veio me contar: “Acabei de saber. Os militares baixaram um ato para fechar tudo. Agora é sério”. Não vacilei. Tomei um táxi e voltei para o Correio, na Lapa.

Meia hora depois, já chegara lá. Havia uma multidão na porta do jornal. Desci do táxi, mas ninguém podia entrar. De repente, Osvaldo Peralva saiu do saguão imobilizado por dois homens. Passou a um metro de mim e foi jogado dentro de um carro. Peralva fizera parte da elite comunista na Europa, mas largara tudo em 1956, ao se convencer dos crimes de Stálin denunciados pelo sucessor Kruschev. Então escrevera um livro, “O Retrato”, em que revelava as táticas dos partidos comunistas, inclusive o brasileiro. Com isso, fora jurado pela esquerda. E, agora, por dirigir um jornal liberal e de oposição, era preso pela direita.

Paulo Francis estava num avião naquela noite, voltando de Nova York. Desceu de manhã no Galeão. Foi para seu apartamento em Ipanema e eles o pegaram pouco depois, ainda de pijama. Uma colega do jornal me ligou dizendo que meu nome estava numa lista que ela vira por lá. Mandou-me sumir por uns tempos.

Fiquei longe também do Solar da Fossa, onde morava, um ninho de anarquistas facilmente confundíveis com “subversivos”. Passei uns dias na casa dos tios de uma namorada, no Flamengo. Lá finalmente escutei o LP, “Mingus Revisited”. Achei muito triste.

Nunca me desfiz do disco, mas levei 30 anos para conseguir ouvi-lo de novo. Para mim, ele se tornara a trilha sonora do AI-5.

*Ruy Castro é jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Zuenir Ventura: AI-5, um ato obsceno

Há quem não acredite que houve um golpe militar no Brasil. Tem razão. Houve dois, um em 1964 e o outro que vai completar 50 anos amanhã, chamado de golpe dentro do golpe. Assinado pelo marechal Costa e Silva e referendado pelo Conselho de Segurança Nacional, o Ato Institucional nº 5 pôs fim aos “anos rebeldes” e inaugurou os “anos de chumbo”.

Era tão radical que o próprio ditador desabafou na hora da assinatura: “Eu confesso que é com verdadeira violência aos meus princípios e ideias que adoto uma atitude como esta”. De fato, em uma década de vigência, o chamado AI-5 fechou o Congresso, cancelou o habeas corpus, censurou cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, incontáveis programas de rádio, cem revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos de telenovelas.

Além desse expurgo nas obras de criação, foram punidos mais de mil cidadãos com suspensão de direitos políticos, demissão, cassação de mandatos. Entre os funcionários públicos atingidos por delito de opinião, estavam três ministros do STF — Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Vítor Nunes Leal — e professores universitários como Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e muitos outros.

O AI-5 foi assinado por 22 dos 23 membros do CSN, composto pelos ministros civis e militares, numa sessão que lembrava uma peça do Tropicalismo, então na moda. Os ministros atuaram como encarnações alegóricas da hipocrisia e da pusilanimidade. O auge da encenação foi quando o ministro Jarbas Passarinho pronunciou sua famosa fala: se era inevitável a ditadura, “às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”.

O único a se portar corretamente foi o vice-presidente Pedro Aleixo, que disse “não”, apontando uma solução constitucional para a crise, o estado de sítio, que pelo menos tinha prazo de validade de 60 dias.

O AI-5 não instituiu a pena de morte, e teve gente que sentiu falta. O futuro presidente Bolsonaro, por exemplo, reclamou em entrevistas: “o erro da ditadura foi torturar e não matar (...). Devia ter fuzilado uns 30 mil corruptos, a começar por FHC”.


Folha de S. Paulo: 'Creio que o AI-5 passou para não voltar', diz FHC sobre o decreto de 1968

Por Laura Mattos, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Fernando Henrique Cardoso estava em sua casa, no bairro do Morumbi (zona sul de São Paulo), quando escutou o anúncio do Ato Institucional número 5, na noite de 13 de dezembro de 1968. Lembra-se perfeitamente da voz do ministro da Justiça, Gama e Silva, que havia sido seu colega no Conselho Universitário da USP, informando em cadeia nacional de rádio e televisão as medidas que iriam endurecer a ditadura militar.

Fazia apenas dois meses que Fernando Henrique voltara ao Brasil e a ministrar aulas na Universidade de São Paulo, após um exílio imposto pelo golpe de 1964. Percebeu o que estava por vir, pegou o carro e se dirigiu à Cidade Universitária (zona oeste), onde se organizavam protestos. O AI-5, que fechou o Congresso, acabou com o habeas-corpus e concedeu poderes ilimitados ao Presidente, teria logo consequência mais direta em sua vida: em abril de 1969, com 37 anos, seria aposentado compulsoriamente da universidade. Aos 87, o ex-presidente do Brasil relembra nesta entrevista à Folha esse "clima horroroso" de 50 anos atrás.

De que movimentos o sr. participava para ser considerado pelos militares um "subversivo" e ter sido obrigado a se exilar após o golpe de 1964?
Na época de 1964, eu era professor da USP, só participava do debate público. Era acusado pelas ideias, não pela ação. Exercia certa liderança, fundara no passado a associação dos docentes e havia sido eleito, então, representante dos professores assistentes.

O sr. foi oficialmente expulso ou recebeu algum tipo de ameaça e decidiu partir?
Fui obrigado a deixar o país em 1964 porque tentaram me prender e a Justiça militar abriu um processo contra mim. Em Santiago, trabalhei na Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e Caribe], da ONU [Organização das Nações Unidas], e fui professor na Universidade do Chile, de 1964 a 1967. De lá fui para a França a convite de Alain Touraine [sociólogo] para criarmos um departamento na Universidade de Paris (Nanterre), onde fiquei entre 1967 e 1968.

O sr. e dona Ruth já tinham filhos quando foram para o exílio?
Sim. Um tinha nove anos e as outras, meninas, sete e cinco.

Por que decidiram voltar em 1968? Foi consequência do aparente fortalecimento dos movimentos de oposição, marcado pelas grandes passeatas?
Voltei porque um catedrático da USP morrera deixando uma vaga. Eu estava, desde 1964, fora da USP, pois a reitoria se negou a conceder-me licença. Além disso, o clima político parecia desanuviar-se, o que com o AI-5 não ocorreu.

Da sua volta até o anúncio do AI-5, como foi a vida em São Paulo, as aulas na USP e o clima na universidade?
Eu morava no Morumbi [zona sul] em uma casa que começamos a construir quando fui para Santiago. Ganhei o concurso para a cadeira de ciência política da USP em outubro de 1968. Nessa época não sofri qualquer processo. Houve sim acusações internas à USP, por parte de outros professores. Logo depois, em abril de 1969, fui aposentado compulsoriamente pelo AI-5, aos 37 anos.

O sr. se recorda do momento do anúncio? Onde estava e qual foi a sua sensação?
Recordo-me perfeitamente da leitura do decreto do AI-5 e da voz do ministro Gama e Silva, da Justiça, o Gaminha, que havia sido meu colega no Conselho Universitário. Eu estava em minha casa e logo percebi o que aconteceria. Peguei o carro e fui para a faculdade. Em seguida começaram as aposentadorias compulsórias.

Com o AI-5, o que mudou na sua vida? As consequências foram imediatas ou o sr. só seria afetado a partir do seu afastamento compulsório da USP?
As consequências gerais foram imediatas. Até a minha compulsória, eu fora eleito por alunos e professores diretor do Departamento de Sociologia, estávamos fazendo uma reforma curricular, mas o clima passou a ser de protestos abafados e mesmo abertos. Um dia fomos cercados pela polícia na Cidade Universitária. Mas disso já havíamos provado em 1964 na rua Maria Antonia [sede na USP na Vila Buarque, região central]. Basta dizer que houve "guerra" entre provocadores e alunos da filosofia, com coquetéis molotov -um atingiu minha sala e queimou documentos. A partir do AI-5, eram notícias vagas de reações, medo e repressão. Embora voltasse a ser convidado a dar aulas na França e em Yale, resolvi ficar em São Paulo e fui um dos fundadores do Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], instituição que continua existindo. Posto para fora da USP e trabalhando no Cebrap [que reuniu intelectuais afastados de suas funções pela ditadura], o clima era horroroso. Qualquer carro que parasse em frente à casa já se pensava na polícia política. Sabia de pessoas, às vezes amigos, presos e mesmo torturados ou mortos, como o [jornalista Vladimir] Herzog.

O sr. nunca mais voltou a ser professor da USP?
Só voltei a dar um curso, durante um semestre, depois da lei de anistia [1979]. Não regressei mais à carreira pois estava dirigindo o Cebrap, dando aulas eventualmente no exterior (École des Hauts Etudes [França], Cambridge [Inglaterra], Stanford e Berkeley [Estados Unidos], em períodos distintos) e meus ex-alunos ocupavam, com brilho, as funções que eu e outros deixáramos. Eu sempre gostei de não repetir experiências, buscar novos desafios.

O sr. já tinha àquele momento alguma intenção de entrar na carreira política?
Não tinha, embora a política não fosse experiência distante: meu pai, que era militar (chegou a general), era também advogado e foi deputado federal por São Paulo. Minha participação foi consequência das lutas contra a ditadura (SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], jornais "nanicos" como "Movimento" e, sobretudo, "Opinião", a Comissão de Justiça e Paz etc.). Foi Ulisses Guimarães quem me levou a ser candidato ao Senado em uma sublegenda do MDB, não para ser eleito, mas para somar votos a quem seria reeleito, Franco Montoro. Eu nem sabia que o segundo colocado, como fui, seria o suplente do titular... Montoro eleito governador, tornei-me senador. Na época estava dando aulas em Berkeley.

O AI-5 é algo enterrado ou ainda corremos o risco de passar por algo assim?
Espero e creio que sim, o AI-5 passou para não voltar. E ainda bem.


Folha de S. Paulo: AI-5 atingiu pelo menos 1.390 pessoas nos dois primeiros anos

Capítulo 1

Por Rubens Valente, Naief Haddad, Marco Rodrigo Almeida e Laíssa Barros, da Folha de S. Paulo

BRASÍLIA E SÃO PAULO

Por volta das 23h de 13 de dezembro de 1968, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, Gama e Silva, ministro da Justiça, e o locutor Augusto Curi anunciaram o texto do Ato Institucional nº 5, o AI-5. Minutos antes, Gama e Silva tinha participado de reunião com o presidente da República, Costa e Silva, e os integrantes do Conselho de Segurança Nacional, formado pelos ministros e pelos principais chefes militares.

Nesse encontro, o governo federal havia sacramentado as medidas do decreto. Quatro anos e oito meses depois do golpe, começava o período mais duro da ditadura.

O AI-5 conferia ao presidente poderes quase ilimitados, como fechar o Congresso Nacional e demais casas legislativas por tempo indeterminado e cassar mandatos.

Também poderia suspender direitos políticos e demitir ou aposentar servidores públicos. Suspendia-se ainda a garantia de habeas corpus em casos como crimes políticos.

Nenhuma dessas medidas estava sujeita à apreciação da Justiça. "Foi uma radicalização que elevou em muito o patamar de arbítrio do regime", diz o historiador José Murilo de Carvalho. "O AI-5 representou uma vitória da linha dura militar, cujas medidas afetaram profundamente direitos civis e políticos considerados básicos numa democracia."

No dia 13 de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeiras, é editado pelo então presidente Artur da Costa e Silva o Ato Institucional nº 5. Com o AI-5, o regime militar passava a ter o poder de fechar o Congresso. Credito Arquivo / Folhapress
No dia 13 de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeiras, é editado pelo então presidente Artur da Costa e Silva o Ato Institucional nº 5. Com o AI-5. Foto: Folhapress

 

Documentos produzidos pelos militares e relatórios da Comissão Nacional da Verdade (CNV) mostram que o endurecimento promovido pelo AI-5 atingiu pelo menos 1.390 brasileiros até 31 de dezembro de 1970 em diversos setores e diferentes escalões da vida pública no país.

De três ministros do Supremo Tribunal Federal (Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva), aposentados à força, a dois auxiliares de portaria do Ministério do Trabalho (Gumercindo Libório Morais e José Zacarias da Silva), que foram demitidos sumariamente.

De cinco senadores (Aarão Steinbruch, João Abrahão Sobrinho, Arthur Virgílio Filho, Mário de Souza Martins e Pedro Ludovico Teixeira), cujos mandatos foram cassados, a um encanador demitido pelo Exército (Aloisio Rocha).

Em relação aos documentos militares, a Folha compilou os dados que constam de papéis guardados no Arquivo Nacional, em Brasília, e produzidos pelo extinto CSN (Conselho de Segurança Nacional), órgão de assessoramento direto do presidente da, e pelo Ministério da Aeronáutica.

Ao longo desse período, foram atingidas 80 mulheres, incluindo professoras, advogadas, deputadas, militantes da esquerda armada e até duas militares das Forças Armadas. Elas representam 6% do total.

Os efeitos do ato envolvem diversas patentes, de soldados do Exército a um almirante da Marinha (Ernesto de Mello Baptista), transferido de unidade. Além dos ministros do STF, outros 27 magistrados foram atingidos, incluindo oito da área trabalhista e o ministro do STM (Superior Tribunal Militar) Pery Constant Bevilacqua (1899-1990), aposentado à força por ser considerado adversário do governo.

Em 1976, o ex-ministro disse a escritores que o entrevistaram: "O AI-5 foi o maior erro jamais cometido em nosso país e comprometeu os ideais do movimento de 31 de março [de 1964]. Os fatos a que nos referimos levam à conclusão de que será sempre preferível suportar um mau governo a fazer uma boa revolução".

Em janeiro de 1969, a jornalista e dona do "Correio da Manhã", Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), teve os direitos políticos suspensos e foi presa. Além dela, que estava à frente de um jornal crítico da ditadura desde o golpe militar, em 1964, seis jornalistas foram afetados nos dois primeiros anos da vigência do AI-5.

Também em 1969, em abril, os direitos políticos de um dos mais importantes jornalistas e romancistas do país Antonio Callado (1917-1997) foram suspensos. O autor de "Quarup" também acabou sendo preso -a cassação foi revogada posteriormente.

O poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980) foi aposentado à força no Itamaraty em abril de 1969, no mesmo dia em que foi punido, com a aposentadoria na USP, Caio Prado Júnior (1907-1990), político, historiador e considerado um dos principais intelectuais do país.

Os expurgos ocorriam em ondas, após decisões sumárias tomadas pelo CSN a partir de processos administrativos que não abriam espaço para defesa e duravam poucos dias ou semanas.

Para provar que a pessoa merecia ser punida, o CSN se valia de todo tipo de informação produzida pela repressão, como informes confidenciais produzidos pelo SNI (Serviço Nacional de Informações), peça da máquina de espionagem criada logo após o golpe de 1964.

Os informes eram feitos sem o conhecimento da pessoa sob investigação e podiam ser alimentados com meros boatos não confirmados, distribuídos por adversários do político.

As listas dos punidos eram publicadas no Diário Oficial e anunciadas pela imprensa. Em 15 divulgações de dezembro de 1968 a abril de 1969, 452 pessoas foram atingidas de alguma forma, incluindo 93 deputados federais em exercício do mandato. A maioria teve os direitos políticos suspensos por dez anos, o que implicava a perda imediata do cargo.

"Na fase inicial do AI-5, havia muito improviso na organização do sistema repressivo. Era um trabalho por espasmos", diz à Folha David Lerer, à época deputado federal do MDB paulista. O nome de Lerer, 81, apareceu na primeira lista de cassações após a decretação do ato.

O AI-5 também abriu caminho para o recrudescimento da repressão militar contra opositores à ditadura e integrantes dos grupos de esquerda que haviam adotado o caminho da guerrilha.

Guerrilheiros trocados em 1969 pelo embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, posam para foto em frente ao avião Hércules 56, da FAB. Foto: Divulgação
Guerrilheiros trocados em 1969 pelo embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, posam para foto em frente ao avião Hércules 56, da FAB. Foto: Divulgação

 

Sete meses depois do ato, em julho de 1969, o 2º Exército e o governo de São Paulo criaram, com apoio financeiro de empresas privadas, a Oban (Operação Bandeirante), unidade formada por policiais civis e militares para perseguir militantes da esquerda.

A ditadura ainda estava abalada pelo ataque, em janeiro, liderado pelo capitão Carlos Lamarca (1937-1971) ao quartel de Quitaúna, em Osasco, na Grande São Paulo, de onde levou armas e munições.

No ano seguinte, em outubro de 1970, o modelo criado pela Oban foi difundido pelo interior do país, mas agora sob o guarda-chuva do próprio Exército, com a criação de unidades do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), que deu sequência à caçada aos integrantes da esquerda armada, com muitos episódios de tortura e execução de presos já dominados.

Da edição do AI-5 a dezembro de 1970, ao menos 44 militantes de esquerda foram mortos, incluindo um dos nomes mais procurados pelos militares, Carlos Marighella (1911-1969), abatido a tiros em São Paulo, e outros 11 foram presos e dados como desaparecidos.

O total de 55 em dois anos corresponde a 13% de todos os mortos e desaparecidos nos 21 anos de ditadura militar, segundo o número da Comissão Nacional da Verdade.

Fusca com vidros quebrados por tiros em que foi encontrado o corpo do guerrilheiro Carlos Marighella após ação da polícia em 04 de novembro de 1969
Fusca com vidros quebrados por tiros em que foi encontrado o corpo do guerrilheiro Carlos Marighella
após ação da polícia em 04 de novembro de 1969 - Reprodução

 

Como se sabe, o ano de 1968 foi um período marcado pela contestação política e comportamental em todo o mundo. No Brasil, a resistência civil também exibia um fôlego crescente.

O enterro do estudante Edson Luís, assassinado por policiais no Rio, atraiu dezenas de milhares de pessoas a um protesto contra o regime militar, em março. Três meses depois, ocorreu a manifestação contra o governo e a violência policial, que ficou conhecida como a Passeata dos Cem Mil.

Os movimentos estudantis e operários ganhavam força ao longo do ano.

No campo oposto, a chamada linha dura (os militares mais radicais) defendia medidas enérgicas para fazer frente ao que via como uma "guerra revolucionária".

"Havia em 1968 um movimento gigantesco de contestação nas ruas. Era um ambiente de grande tensão", diz Delfim Netto, à época ministro da Fazenda do governo Costa e Silva. Entre os 24 membros do Conselho de Segurança Nacional que participaram da reunião no Rio, Delfim, 90, é o único que está vivo.

O ex-ministro critica a linha dura ("extremamente nacionalistas, de uma visão muito curta"). No entanto, ele pondera que a situação do país naquele momento era "bastante complicada".

Para o ex-deputado David Lerer, a tensão poderia ter sido contornada. "O limiar do ponto de ebulição dos militares era extremamente baixo. Ferviam com qualquer coisa."

De qualquer modo, o atrito entre o Planalto e os parlamentares da oposição cresceu em 12 de dezembro com a decisão da Câmara de negar a licença pedida pelo governo para processar o deputado Marcio Moreira Alves (1936-2009).

Pouco mais de três meses antes, em discurso na Câmara em 3 de setembro, Moreira Alves (MDB-RJ) havia protestado contra a violência dirigida a estudantes e a outros ativistas da oposição e convocado a sociedade a boicotar os desfiles militares de Sete de Setembro. "Quando o Exército deixará de ser um valhacouto de torturadores?", indagou.

075801_0.tif. Policiais prendem 920 estudantes durante congresso clandestino da UNE, em Ibi?na (SP), em 11 de outubro de 1968. (Folhapress)
Policiais prendem 920 estudantes durante congresso clandestino da UNE, em Ibiúna (SP), em 11 de outubro de 1968. Foto: Folhapress

 

Para Delfim, "foi uma provocação inteiramente despropositada". O discurso "caiu muito mal entre os militares. Foi a gota d"água para o endurecimento do regime", recorda-se David Lerer, colega de partido e amigo de Moreira Alves.

Em uma sessão marcada pela fala do deputado Mário Covas (1930-2001) em defesa da autonomia do Poder Legislativo, o pedido pela punição de Moreira Alves foi rejeitado por 216 votos a 141.

Era a pior derrota política do regime militar desde a tomada do poder em 1964. Mais de 90 parlamentares do partido governista, a Arena, votaram a favor de Moreira Alves.

No plenário, a vitória foi celebrada ao som do Hino Nacional e com vivas à democracia. Estava criada uma crise institucional, opondo o Congresso às Forças Armadas.

No dia seguinte, uma sexta-feira 13, o presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969) convocou a reunião do Conselho de Segurança Nacional. Surgiram poucas objeções, mesmo que veladas, às medidas propostas pelo ato.

"O que me parece, adotado esse caminho, o que nós estamos é [...] instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura", afirmou o vice-presidente, Pedro Aleixo, o único integrante da mesa a revelar uma preocupação clara com as novas propostas.

É preciso "acabar com estas situações que podem levar o país não a uma crise, mas a um caos de que não sairemos", declarou Augusto Rademaker, ministro da Marinha.

Delfim, que também apoiou enfaticamente as medidas durante a reunião do conselho, diz não se arrepender da posição tomada 50 anos atrás.

"Quando o futuro virou passado, você adquire uma outra visão. Com a situação que eu via naquele instante e com o conhecimento que tinha, eu repetiria o fato", afirma Delfim, colunista da Folha.

"Mais tarde, eu assinei a Constituição de 1988, com todos os direitos do artigo 7º [abrange direitos dos trabalhadores urbanos e rurais]."

No texto do AI-5, Costa e Silva alegava que seu governo resolvera editar o decreto em concordância com os propósitos da "revolução brasileira de 31 de março de 1964", que visavam dar ao país "autêntica ordem democrática".

Era imperiosa, dizia, a adoção de medidas que impedissem que tal ordem e a tranquilidade fossem comprometidas por processos subversivos.

No livro "A Ditadura Envergonhada", primeiro dos cinco volumes de série sobre o governo militar, o jornalista Elio Gaspari assim resume o encontro no Laranjeiras:

"Durante a reunião falou-se 19 vezes nas virtudes da democracia, e 13 vezes pronunciou-se pejorativamente a palavra ditadura. Quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e 18 dias."

O Congresso Nacional foi fechado e só reabriu em 21 de outubro de 1969.

Manifestantes fazem protesto contra a ditadura militar, no centro do Rio de Janeiro (RJ); ato conhecido como Passeata dos 100 Mil, em 1968.
Manifestantes fazem protesto contra a ditadura militar, no centro do Rio de Janeiro (RJ); ato
conhecido como Passeata dos 100 Mil, em 1968. - AJB

 

Três meses depois da decretação do AI-5, permitiu-se a encarregados de inquéritos políticos prender quaisquer cidadãos por 60 dias, 10 dos quais em regime de incomunicabilidade. Segundo Gaspari, colunista da Folha, esses prazos se destinavam a favorecer o trabalho dos torturadores.

Há registros de tortura desde os primeiros dias da ditadura militar, mas a repressão ganhou intensidade após o AI-5, sobretudo no governo de Emílio Médici (1969-1974).

Rompia-se, a partir daí, parte expressiva do apoio civil ao regime. "O AI-5 aumentou a repressão e fez com que setores da oposição recorressem também a ações armadas. Criou-se um círculo vicioso de violência, tortura e assassinatos de dimensão nunca antes vista no país", afirma o historiador José Murilo de Carvalho.

Em artigo recém-publicado pela Revista Brasileira de História, Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, examina as origens do ato.

De acordo com ele, a perda de prestígio e o isolamento político da ditadura, materializados na derrota na Câmara no caso Moreira Alves, estimularam a resposta autoritária dos agentes militares.

Pressionado à esquerda e à direita, vendo ruir os pilares de seu governo, Costa e Silva aceitou a demanda dos grupos militares mais radicais.

O governo já dispunha de instrumentos para reprimir revolucionários de esquerda. O novo ato autoritário, conclui Sá Motta, se prestava sobretudo a enquadrar dissidentes da própria ditadura, segmentos da elite (Congresso, Judiciário, imprensa, universidades) que apoiaram o golpe de 1964, mas se distanciaram em seguida.

"Se havia ainda dúvida de que o regime era uma ditadura governada por militares, isso cai em 68. Os militares foram ainda mais preponderantes no governo, e os parceiros civis tiveram papel mais apagado. A Arena, que servia para dar algum verniz democrático ao regime, entrou em ostracismo nos anos seguintes."

O AI-5 teve seu fim em 31 de dezembro de 1978, no governo Ernesto Geisel, em meio ao processo de abertura política. A ditadura, porém, resistiu por mais seis anos.

Colaborou EDMIR FARIAS

 

Cronologia do AI-5
Antes, durante e depois

28 de março de 1968 - O estudante Edson Luís é morto pela Polícia Militar durante protesto no Rio. Sucedem-se manifestações contra a violência policial

16 de abril de 1968 - Trabalhadores de siderúrgica de Contagem (MG) fazem a primeira grande mobilização operária no país desde o golpe de 1964. Acordo põe fim ao movimento no dia 26

17 de abril de 1968 - 68 municípios são considerados áreas de segurança nacional e proibidos de realizar eleições municipais

12 de junho de 1968 - Brigadeiro José Paulo Burnier revela ao capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho o plano de explodir o gasômetro do Rio, atentado que mataria milhares de pessoas. O objetivo era atribuir a culpa à esquerda. O plano não se consuma devido à recusa do capitão de levá-lo adiante; mais tarde, Carvalho é preso e reformado. O episódio passa a ser conhecido como caso Para-Sar

25 de junho de 1968 - Na manifestação que ficou conhecida como Passeata dos 100 Mil, no Rio, estudantes, artistas e representantes da classe média e da Igreja Católica se opõem à violência policial e pedem a volta da democracia

16 de julho de 1968 - Três meses depois de Contagem, acontece a greve de Osasco (SP). Metalúrgicos e estudantes ocupam a Cobrasma (Companhia Brasileira de Material Ferroviário). Três dias depois, mais de 400 são presos, e reivindicações não são atendidas

2 de setembro de 1968 - Márcio Moreira Alves, deputado federal pelo MDB, faz discurso enfático na Câmara. "Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?", questiona. Também sugere que a população boicote a parada militar de 7 de setembro

3 de outubro de 1968 - Acontece a Batalha da Maria Antônia. Com bombas, tiros e coquetéis molotov, estudantes do Mackenzie (alguns deles ligados ao CCC, Comando de Caça aos Comunistas) atacam os estudantes da Filosofia da USP. Esses últimos reagem, mas têm menor poder de fogo. Um jovem, que estava no prédio da Filosofia, é morto

Batalha da Maria Antônia - 1968: Da mesma forma que a esquerda enraizava-se na USP, grupos paramilitares de direita encontraram abrigo no Mackenzie. Nessa universidade, estudavam membros da Frente Anticomunista, do Movimento Anticomunista e do mais famoso e estruturado grupo, o CCC (Comando de Caça aos Comunistas). A presença deste foi decisiva para o confronto que aconteceu no dia 2 de outubro. Foto: Acervo UH/Folhapress
Batalha da Maria Antônia - 1968. Foto: Acervo UH/Folhapress

 

12 de outubro de 1968 - Polícia invade sítio em Ibiúna (SP), onde acontece o 30º Congresso da UNE. Mais de 900 estudantes são presos

12 de dezembro de 1968 - Em votação no plenário, marcada por discurso de Mário Covas (MDB-SP), Câmara não suspende a imunidade parlamentar de Moreira Alves. Decisão desagrada ao governo militar, que pretendia processar o deputado

13 de dezembro de 1968 - Após reunião do presidente Costa e Silva com membros do Conselho Nacional de Segurança, entra em vigor o AI-5 (ato institucional número 5), que impõe o recesso do Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmara dos Vereadores. A partir daí, o presidente pode intervir em estados e municípios e suspender os direitos políticos de qualquer cidadão. Habeas corpus também é suspenso

30 de dezembro de 1968 - Sai a primeira lista de cassações, que inclui 11 deputados federais, como Márcio Moreira Alves (MDB-RJ). Ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda tem seus direitos políticos suspensos

16 de janeiro de 1969 - Mais 35 deputados federais são cassados, entre eles Mário Covas (MDB). Lista também inclui dois senadores, Aarão Steinbruck e João Abraão, e três ministros do STF, Hermes Lima, Vítor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva

25 de janeiro de 1969 - O capitão do Exército Carlos Lamarca foge do 4º Regimento de Infantaria, em Osasco (SP), levando dezenas de fuzis e metralhadoras

1º de julho de 1969 - Governador Abreu Sodré cria a Oban (Operação Bandeirantes), centro de repressão em São Paulo

31 de agosto de 1969Depois da saída da presidência de Costa e Silva, incapacitado por uma trombose, junta de ministros militares assume o poder

7 de setembro de 1969 - O embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, é libertado após passar quatro dias em poder dos sequestradores, integrantes de movimentos da luta armada. Os 15 presos políticos libertados embarcam para o México

O embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, sequestrado em 1969. Foto: ANODE1969
O embaixador norte-americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, sequestrado em 1969. Foto: Acervo

 

18 de setembro de 1969 - O governo aprova nova Lei de Segurança Nacional, que prevê pena de morte e prisão perpétua

30 de outubro de 1969 - O general Emílio Garrastazu Médici assume a presidência

4 de novembro de 1969 - Carlos Marighella, líder da ALN (Aliança Libertadora Nacional), é morto a tiros em São Paulo

15 de março de 1974 - Ernesto Geisel assume a presidência

25 de outubro de 1975 - O jornalista Vladimir Herzog é morto sob tortura nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Seis dias depois, mais de 10 mil pessoas participam de ato ecumênico na Catedral da Sé em memória de Herzog

17 de janeiro de 1976 - O metalúrgico Manuel Fiel Filho morre nas dependências do DOI-Codi. Como ocorreu com Herzog, versão oficial indica suicídio; mais adiante, fica comprovada a morte sob tortura

1º de abril de 1977 - Geisel fecha o Congresso Nacional

13 de outubro de 1978 - Sob o governo Geisel, é promulgada emenda constitucional que revoga todos os atos institucionais e complementares contrários à Constituição. Emenda passa a vigorar em 1º de janeiro de 1979. O AI-5 durou pouco mais de dez anos

Veja as nove páginas do Ato Institucional nº 5

Documento original está no Arquivo Nacional em Brasília

O primeiro ato institucional foi decretado nove dias após o golpe militar de 1964. O segundo foi editado em 1965, e outros dois em 1967. O mais radical e abrangente deles, o AI-5, é de dezembro de 1968. Foi seguido por outros 12 atos, todos decretados em 1969.

pág. 1
O preâmbulo indica a necessidade de manter a "ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana" e a "luta contra a corrupção" como meios para atingir "reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil"

pág. 2
Cita o AI-2 e o AI-4 para justificar um novo ato a fim de continuar a "Revolução" iniciada em 1964. Embora não haja referência explícita, umas das motivações do AI-5 foi o discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves (MDB-RJ), em que fez críticas duras aos militares

pág. 3
Ao mencionar "fatores perturbadores da ordem", refere-se à votação na Câmara no dia anterior, contrária ao governo, aos movimentos estudantis e grevistas, aos atentados de grupos de esquerda, entre outros pontos. Dá aval ao presidente para decretar o recesso do Congresso

pág. 4
Já no primeiro item do artigo 2, o regime impõe o recesso parlamentar. O presidente ganha poder para enviar interventores para estados e municípios

pág. 5
Um dos trechos mais duros do documento. A partir de então, "para preservar a Revolução", o presidente pode suspender direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos, além de cassar mandatos eletivos

pág. 6
Gama e Silva, ministro da Justiça, ganha poder no governo Costa e Silva para vigiar os cidadãos e limitar seu acesso a determinados lugares

pág. 7
O artigo 8 dá poderes para que o presidente, após investigação, decrete "o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública"

pág. 8
O ponto central da penúltima página é o artigo 10, que suspende o habeas corpus em casos como crimes políticos e crimes contra a segurança nacional

pág. 9

Nas duas últimas páginas, estão as assinaturas de Costa e Silva e de 16 dos 24 membros do Conselho de Segurança Nacional

Capítulo 2

"Sacrificamos algumas coisas não fundamentais", disse Costa e Silva aos EUA sobre o AI-5

Arthur da Costa e Silva em 1965. Foto: FolhapressArthur da Costa e Silva em 1965. Foto: Folhapress

 

Por Rubens Valente e Marco Rodrigo Almeida

BRASÍLIA E SÃO PAULO

Em janeiro de 1969, menos de um mês após o AI-5, o então presidente brasileiro, o general Costa e Silva (1899-1969), reconheceu numa conversa com o embaixador norte-americano em Brasília, John Tuthill (1910-1996), que a ditadura havia "sacrificado algumas coisas não fundamentais" com o Ato para "preservar as fundamentais", conforme argumentou. Ele tachou a imprensa de "irresponsável", os políticos como adversários das "realizações da Revolução", referindo-se ao golpe de 1964, mas reconheceu que o Brasil entrava para o grupo de países latinoamericanos (ao lado de Peru, Bolívia e Argentina) que viviam sob "regimes de exceção".

O documento mostra que Costa e Silva procurou ganhar tempo com o embaixador americano: pediu que ele dissesse ao governo dos EUA que havia uma "completa tranquilidade" no Brasil e que as coisas voltariam "ao estado de normalidade oportunamente", com a cautela necessária. O AI-5, contudo, só foi revogado quase dez anos depois, em outubro de 1978.

Ocorrida no palácio presidencial de verão em Petrópolis na presença do chanceler Magalhães Pinto (1909-1996), a conversa de meia hora foi registrada num telegrama, então classificado como confidencial e atualmente disponível para consulta no arquivo virtual do Departamento de Estado dos EUA, produzido pelo embaixador, que se despedia do Brasil.

Costa e Silva recebeu Tuthill com "cumprimentos efusivos" e logo "se lançou em um de seus longos monólogos", ao qual deu um fim abrupto, quando soou "o toque de recolher", às 18h00. O embaixador reclamou depois que "mal conseguiu encaixar uma palavra".

Depois de uma introdução "longa e desconexa" sobre os méritos das lentes de contato, o general comentou que Tuthill deixava a América Latina num momento "confuso" para a região, com a Colômbia em estado de sítio e outros quatro países, nos quais incluiu o Brasil, em "regime de exceção". O Uruguai era "um bom vizinho", mas estava "virtualmente "entregue aos comunistas"", escreveu o embaixador.

O presidente brasileiro, segundo Tuthill, demonstrou estar "consideravelmente cônscio das críticas dos EUA" sobre o AI-5 e "aparentemente as compreende". Em defesa da decisão brasileira, Costa e e Silva argumentou que os EUA têm uma "vida estratificada" e que "não se pode esperar que compreendam os problemas dos países em fase de desenvolvimento".

Foi a deixa para uma das poucas intervenções do embaixador. Ele afirmou a Costa e Silva que os EUA não desejavam "impor seu padrão a qualquer outro país", mas apontou que antes de sua eleição indireta, em 1967, escolhido de forma simbólica pelo Congresso, o presidente havia falado "três coisas que eu precisava ter em conta": "1) As Forças Armadas são a instituição mais importante do Brasil; 2) as Forças Armadas queriam que Costa e Silva fosse presidente; e 3) ele, Costa e Silva, trabalharia por um retorno a uma situação na qual um civil ou militar poderia ser escolhido como presidente".

Tuthill contou ter usado essas declarações em seus relatórios para o governo dos EUA em Washington, que agora "vinha acompanhado os atuais desdobramentos com preocupação". O embaixador indagou à queima-roupa: "O presidente gostaria que eu transmitisse alguma mensagem?"

Costa e Silva demonstrou preocupação sobre o imagem que o Brasil passava aos EUA naquele momento com o AI-5. Pediu que que o embaixador explicasse "toda a situação" para seus superiores e pontuou que havia "completa tranquilidade" no Brasil, em uma de suas expressões favoritas, que repetiu "diversas vezes" na conversa. O general falou do sacrifício "de algumas coisas não fundamentais" e culpou basicamente dois setores para o estado de coisas: os meios de comunicação e "a classe política", a exemplo do que já havia feito dias antes em seu discurso de Ano Novo.

"Ele [general] disse ter trabalhado por um entendimento entre os políticos e os militares, mas que os políticos não querem um entendimento. Se estivéssemos [EUA] cientes de todos os fatos, saberíamos que os políticos desejam desmantelar todas as realizações da Revolução. "Ninguém trabalhou com mais afinco do que eu [general] junto aos políticos, mas eles se recusaram a compreender"", escreveu o embaixador.

Sobre a imprensa, Costa e Silva reclamou "das dificuldades que enfrentou", citando como exemplo o "Correio da Manhã", jornal do Rio fundado em 1901 que fazia uma cobertura crítica sobre o regime militar desde o golpe. Sua proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), naquele mesmo mês teria seus direitos políticos cassados e depois seria presa e processada pela ditadura. Ficou num cárcere em Bangu, no Rio, em uma ala reservada a ladras e prostitutas, segundo texto de 2009 do escritor e jornalista Ruy Castro. Niomar foi absolvida em 1970 mas o jornal, sob intensa pressão política e financeira, faliu em 1974. O jornal fora invadido por agentes da repressão na mesma noite do AI-5, 13 de dezembro de 1968.

Na conversa, Costa e Silva reclamou com o embaixador que "desejava afrouxar a censura, mas tão logo o fez o "Correio da Manhã" imprimiu uma carta que ele [general] estaria supostamente enviando ao presidente eleito [Richard] Nixon". "Não existe uma carta como essa. Uma coisa desse tipo não seria permitida nos EUA, e o "Correio" teria sido processado, mas nossas leis não são fortes o suficiente para lidar com uma imprensa irresponsável ("a de vocês nos EUA é mais responsável"). O "Correio" publicou até todas as críticas na imprensa americana e europeia. Por isso o governo confiscou a edição de ontem do jornal", escreveu Tuthill.

Costa e Silva encerrou a conversa pedindo ao embaixador "para garantir ao governo americano que o Brasil hoje é um amigo verdadeiro dos EUA. Isso talvez não fosse verdade sob "os outros" (ele estava se referindo presumivelmente ao grupo de [João] Goulart antes de 1964)".

Em um balanço do encontro, o embaixador não ficou convencido. "É difícil saber até que ponto ele mesmo acredita no que diz. É evidente que agora está ciente das forças irrequietas entre os militares brasileiros, mas pode ser que esteja convencido (ou tentando se convencer) de que é capaz de contê-las. A impressão geral que ele nos deu foi a de que, a despeito de sua astúcia natural, talvez esteja subestimando as forças que estão em ação em seu país."

"Direitos deixaram de existir"
As críticas que os EUA tinham sobre o AI-5, referidas por Costa e Silva a Tuthill haviam sido dirigidas pessoalmente pelo americano ao então chanceler brasileiro, Magalhães Pinto, cerca de 20 dias antes da visita ao presidente e seis dias depois do Ato.

Na conversa de 20 de dezembro de 1968, acompanhada pelo secretário-geral e futuro ministro do Itamaraty, Gibson Barboza, segundo telegrama dos EUA, Magalhães Pinto deixou claro que seu interesse principal era como os EUA lidariam "com os programas de assistência" entre os dois países.

Tuthill respondeu que "não havia problema de reconhecimento e que o governo americano não cortaria suas assistência", mas deixou claro a Magalhães Pinto que "a reação em Washington aos acontecimentos recentes havia sido muito forte".

O embaixador pontuou que era necessária "uma indicação melhor de se o Brasil revolveria na direção da restituição de direitos democráticos básicos". Nesse momento, Magalhães Pinto "concordou rapidamente que esses direitos deixaram de existir".

Tuthill disse que governo americano cumpriria suas obrigações contratuais, mas ""esperaria para ver" quando a futuros programas da AID [Agência de Desenvolvimento Internacional] e quanto aos programas em negociação no momento".

Magalhães Pinto ofereceu uma lona explicação sobre os acontecimentos que, segundo ele, conduziram ao AI-5. Afirmou que "as pressões vinham crescendo há algum tempo" e que o discurso do então deputado Marcio Moreira Alves, considerado o estopim do Ato, "não representava mais que 10% ou 15% do problema, mas seu caso foi mal conduzido e mal resolvido". Depois da votação no Congresso que negou autorização para processar Moreira Alves, segundo o chanceler, "ficou claro que as Forças Armadas desejavam que o presidente agisse".

O chanceler disse que "o presidente resistiu". Tuthill escreveu no telegrama que "outras fontes confirmam". "Na primeira noite, ele [Costa e Silva] disse aos militares que não haveria solução naquele dia. Pelo segundo dia, já estava claro que se ele não agisse seria "ultrapassado". Assim, ele escolheu o caminho menos pior, que foi promulgar o Ato Institucional número 5."

O chanceler brasileiro argumentou que "a intenção do presidente é usar os imensos poderes de que dispõe de maneira firme mas moderada. O maior medo dos militares é a subversão, que também afetaria o desenvolvimento econômico. Parte disso é imaginário mas parte representa fatos sólidos. A intenção do presidente é resistir a grupos radicais e evitar a imagem de um governo militar".

Tuthill tinha muitas dúvidas sobre a promessa do chanceler de um rápido retorno à normalidade. "O presidente deseja o retorno da plena liberdade de imprensa o mais breve possível, "mas a poeira do ato institucional ainda não se assentou". O maior problema é que as forças armadas consideram a imprensa responsável pela agitação estudantil. Fica claro que o FonMin [Magalhães Pinto] enfrenta dificuldade para explicar exatamente como a liberdade de imprensa poderá ser restaurada, agora", escreveu Tuthill. O Ato só seria extinto dez anos depois.

 

SÃO PAULO CINQUENTA ANOS DEPOIS, O PAÍS ESTÁ LIVRE DO RISCO DE UM NOVO AI 5?

Num exercício teórico -que, se espera, nunca chegue ao plano da prática- a Folha ouviu especialistas em direito e comunicação para especular de que maneira um decreto tão arbitrário poderia ser implantado hoje.
Os entrevistados foram unânimes em dizer que um novo AI 5 teria como um de seus principais alvos o ambiente digital.

O decreto militar de 13 de dezembro de 1968 permitia ao presidente censurar a imprensa, correspondências, telecomunicações e diversões publicas. "As emissoras de televisão, as rádios e as redações de jornais foram ocupadas por censores recrutados na polícia e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais", escreveu o jornalista Elio Gaspari, colunista da Folha, no livro "A Ditadura Envergonhada".

Hoje o controle da informação exigiria uma atuação mais ampla e intensiva que ocupar órgãos de comunicação.

"A experiencia com países autoritários demonstra que a primeira coisa a ser controlada é a internet. Foi o que ocorreu no Egito e, mais recentemente, na Turquia e na Ucrânia. Um dos efeitos imediatos poderia ser o bloqueio à internet em todo o país", diz Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e colunista da Folha.

Não seria algo muito complexo de realizar, explica -o país já teve amostras disso nos episódios em que o servio de mensagens instantâneas WhatsApp foi interrompido por conta de ordem judicial. O bloqueio em toda a rede seria efetuado por meio de uma ordem coercitiva ilegal, que coagiria as empresas de telecomunicação a suspender a conexão.

"Seria um rompimento institucional muito grave e as empresas deveriam resistir a qualquer tipo de ordem nesse sentido, sob pena de cumplicidade com uma medida de exceção."

Pablo Ortellado, professora da USP que se dedica ao estuda das redes sociais, lembra o caso da China. Lá os principais sites e aplicativos sociais do Ocidente foram banidos e substituídos por similares desenvolvidos por empresas chinesas subordinadas ao poder do Estado. Dessa maneira é possível vetar conteúdos e proibir buscas a respeito de determinados temas e palavras.

"Se o país não desenvolver programas nacionais, é muito difícil controlar esses serviços, pois essas grandes empresas operam todas nos EUA, estariam fora do alcance do governo de um determinado país. Num caso extremo, o mais fácil seria suspender sites e redes sociais".

Ele destaca o nefasto processo de submissão pelo qual passaria a sociedade civil após uma ação absolutista como essa, uma vez que as redes sociais cumprem uma função de informação e mobilização social.
Daniel Fink, engenheiro de telecomunicação, cita outros modelos externos totalitários. Na Síria, conta, houve investimento em espionagem na rede para identificar usuários influentes que estimulassem ações contra o governo.

"Na verdade, a internet até ajuda na perseguição, pois acaba sendo uma ferramenta informatizada de delação premiada. Tudo o que se faz gera um registro. Tecnicamente é muito simples identificar o usuário", diz.
Esse método, diz ele, permitiria uma perseguição mais velada, dando ao país a oportunidade de ostentar um pretenso verniz democrático, em contraposição ao ato escancarado de vetar a internet. Exemplo mais extremo é o caso da Coreia do Norte, cujos cidadãos são proibidos de usar a internet. Lá só é liberada uma rede interna, com informações autorizadas pelo governo.

Para o advogado Diogo Rais, uma novo de AI 5 teria uma roupagem mais diversa. No lugar da informação, o Estado totalitário controlaria a desinformação. As forças da ditadura teriam um setor de distribuição em massa de notícias falsas.

"Uma propagação intensa de notícias falsas teria o efeito de ludibriar a população em favor do governo, criando um ambiente de desconfiança em relação às instituições, à imprensa tradicional. Poderia levar a uma erosão perigosa dos princípios democráticos", especula.

Um novo AI 5 parece ser um cenário apocalíptico demais para ser concretizado, mas a prudência sugere a eterna vigilância em relação ao Estado.

"A democracia é um processo de construção permanente, incessante, não é um dado posto e estático. Por isso é que devemos defendê-la radical e incondicionalmente", afirma o advogado constitucionalista Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

"Os meios de resistência contra o arbítrio são lutar para manter nossas instituições fortes, independentes e imparciais, e a garantia da possibilidade do dissenso democrático, de organizações da sociedade civil e da liberdade de expressão."

 

 

Capítulo 3

'Brasil perdeu um pedaço da história', diz deputado cassado na 1ª lista do AI-5

Naief Haddad
SÃO PAULO

Em 1978, o ex-deputado federal pelo MDB paulista David Lerer voltou ao país depois de jornadas pela América do Sul, Europa e África. Havia deixado o Brasil uma década antes com medo de ser preso.

"Nas semanas anteriores ao AI-5 [ato institucional número 5], todos [no Congresso] já sabiam que algo iria acontecer. O ministro Gama e Silva circulava com um rascunho do ato. Era um segredo de polichinelo", conta ele, também médico aposentado.

David foi um dos primeiros deputados federais cassados pela ditadura militar após a decretação do AI 5. Ele ficou exilado 9 anos e meio. Foto: Eduardo Knapp

David foi um dos primeiros deputados federais cassados pela ditadura militar após a decretação do AI 5.
Ele ficou exilado 9 anos e meio. Foto: Eduardo Knapp - Folhapress

 

No dia 13 de dezembro de 1968, poucas horas antes da reunião da cúpula do governo que sacramentou o AI-5, ele esteve na Câmara, em Brasília. Foi uma passagem rápida porque Lerer e os raros parlamentares que estavam na capital temiam que os militares invadissem o Congresso Nacional a qualquer momento.

Com seu fusca, Lerer saiu em direção a uma agência do Banco do Brasil para sacar todo o dinheiro que tinha. Em seguida, foi ao hotel onde se hospedava para fazer a mala.

Decidiu permanecer em Brasília, mas agora instalado numa casa de estudantes, que estava vazia àquela altura.

Três dias depois, os jipes da Polícia Militar estacionaram em frente à residência. "A PM arrombou a porta e me deu uns tabefes. Eu estava de cueca, me pegaram de samba-canção [risos]. Botei a calça do pijama, peguei minha mala e fui com eles".

Ele estava na carceragem em Brasília quando saiu a primeira lista de cassações, em 30 de dezembro de 1968. A relação divulgada pelo governo federal trazia dez nomes de deputados federais, entre eles o de Lerer. Além dele, estão vivos Gastone Righi e José Lurtz Sabía, ambos pertencentes ao MDB paulista.

Nas semanas seguintes, outras listas com cassações foram anunciadas pelo regime.

Além das cassações, o endurecimento promovido pelo AI-5 resultou em aposentadorias compulsórias, direitos políticos suspensos e demissões, além de mortes de militantes da esquerda armada.

Liberado pelos policiais em 31 de dezembro, Lerer pegou um ônibus na rodoviária de Brasília dias depois e retornou a São Paulo, onde viviam seus pais. Proibido de atuar na política, voltou a trabalhar como médico.

Não manteve, contudo, uma rotina normal. "Eu via uma farda militar na rua e já ficava aflito", recorda-se. Era obrigado a se apresentar à Polícia Federal uma vez por semana.

Após a prisão de Hélio Navarro, deputado da oposição cassado como ele, Lerer se deu conta que a sua detenção estava prestes a acontecer. Embora seu passaporte tivesse sido confiscado pelos policiais, ele estava determinado a deixar o país.

Depois do AI-5, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de dois países africanos, Moçambique e Angola. Foto: Eduardo Knapp

Depois do AI-5, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de
dois países africanos, Moçambique e Angola. Foto: Eduardo Knapp -Folhapress

 

Com a ajuda de um amigo advogado gaúcho, passou por Canoas (RS) e Porto Alegre até desembarcar em Santana do Livramento (RS), na fronteira com o Uruguai. De lá, incomodado pelo frio intenso, mas não pelos guardas, atravessou a divisa caminhando e chegou a Rivera, no país vizinho.

Nos anos seguintes, Lerer morou, além do Uruguai, no Peru e na França. Atuou como médico em zonas de conflitos de dois países africanos, Moçambique e Angola.

Hoje vive com a mulher, Katia, em São Sebastião, no litoral paulista. Está afastado de atividades partidárias, mas se mantém atento à política.

"Houve um grande desestímulo à juventude [com o AI-5], o sentimento de "podemos mudar o mundo" foi perdido. Entre 1968 e 1978 [período em que vigorou o ato], o Brasil perdeu um pedaço da história", afirma Lerer. "O vício do autoritarismo se reforçou nessa época."

 


Valor: AI-5 faz 50 anos em país polarizado; general Heleno defende decreto da linha-dura

Traumas demoram a passar. Cinquenta anos depois daquela sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, ainda causam emoção e controvérsias os motivos que levaram o então presidente Arthur da Costa e Silva (1899-1969) a editar o Ato Institucional nº 5, o AI-5, marco do início dos anos de chumbo.

Por Helena Celestino, do Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Quando, numa tarde ensolarada, o marechal-presidente abriu a reunião com as 24 autoridades mais poderosas do país, em volta da mesa de jantar do Palácio das Laranjeiras no Rio, já estava tomada a decisão de armar o Estado de poderes extraordinários, libertando o regime, por tempo indeterminado, das já tênues amarras legais.

Durou dez anos, foi o período mais duro da mais longa ditadura brasileira (1964-1985) e, mais de três décadas após a redemocratização, muitas das ideias consagradas sobre a radicalização do regime foram derrubadas com a abertura de novos arquivos, profusão de livros, filmes e teses a revisitar o período. Mas a interpretação do passado ainda reflete a polarização política de ontem e de hoje.

"Assinei e, se as condições fossem as mesmas e o conhecimento fosse aquele que a gente tinha naquele instante, assinaria outra vez", diz Delfim Netto, o único sobrevivente da histórica reunião, da qual participou aos 40 anos como ministro da Fazenda ainda apagado, mas já com passagem bem-sucedida como secretário de São Paulo e autor de tese de doutorado sobre café, na época o produto que mais mexia com a economia brasileira. (Leia entrevista na página 12)

A fidelidade ao passado não impede Delfim de ridicularizar, duas décadas depois, o solene pronunciamento feito, em cadeia nacional de televisão, pelo então ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva (1913-1979) horas depois da decretação do AI-5. Em nome do governo, ele justificava o fechamento do Congresso, a cassação de mandatos, a prerrogativa de demitir funcionários públicos, a suspensão do habeas corpus, o cancelamento da liberdade de expressão e de reunião, pela necessidade de poderes extraordinários contra a ameaça comunista.

O perigo seria representado pelas manifestações estudantis, as ações armadas da esquerda e, como cereja no bolo da insubordinação, o discurso do deputado Marcio Moreira Alves (1936-2009) na tribuna da Câmara, em que se referia ao Exército como santuário de torturadores. "Naquela época do AI-5, havia muita tensão, mas, no fundo, era tudo teatro… Era teatro para levar ao ato", disse Delfim ao jornalista Elio Gaspari, autor de cinco livros com minuciosa reconstituição da ditadura.

Foi prosaico assim, concorda a maioria dos historiadores. "Os protestos estudantis acabaram em junho e nem havia ainda as ações armadas. O Estado brasileiro tinha todas as condições para cuidar de alguns assaltos e meia dúzia de protestos", afirma Carlos Fico, historiador, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e reconhecido como grande pesquisador do período.

O alvo principal do ato não era a esquerda armada, mas antigos aliados de 64, afirma o historiador Rodrigo Patto. O governo temia que o Congresso votasse uma Lei de Anistia, acusava os professores de estimular a revolta dos estudantes, via na imprensa simpatia com os protestos e, nos juízes, impedimento para a "justiça revolucionária" agir livremente. O AI-5, analisa, forneceu ao Estado meios para punir segmentos do seu campo, grupos de centro ou liberais flertando com a rebeldia.

A interpretação do professor é reforçada por enquete do então embaixador dos EUA John Tuthill (1910-1996), recuperada em um arquivo americano, em que ele expressa o desconforto da diplomacia de seu país com o fim das garantias institucionais no Brasil e ouve de políticos, intelectuais e empresários brasileiros previsões de tempos difíceis pela frente.

"A sensação era de que o novo Ato Institucional liberava as feras, que saíram à caça com mais vontade do que em 64", diz Patto, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "As Universidades e a Ditadura" (Zahar).

A partir daí, a ditadura tornou-se mais militar, mais autoritária, reduziu o espaço para atuação de aliados civis e botou os políticos em situação ainda mais subalterna. O "milagre econômico" já começara, mas a velha máxima "é a economia, estúpido" não ajudou a melhorar o clima político. Depois de um longo ajuste fiscal promovido pelo governo de Castello Branco (1897-1967), a liberação de crédito ao consumo estimulava a economia e já em 1968 o país cresceu 10%, iniciando um ciclo de taxas recordes de aumento do PIB até 1973. Só que a sensação de melhoria na qualidade de vida ainda não chegara à elite brasileira e, muito menos, aos mais pobres, dizem alguns especialistas.

"A crise foi estritamente política. O propósito que unificava os militares era transformar o Brasil em uma grande potência por meio de uma ação autoritária. O AI-5 não foi um fato episódico, foi a vitória da tendência saneadora, que achava necessário prender subversivos, corruptos e opositores para levar o projeto adiante", diz Fico, autor de livros importantes sobre o período.

Era a vitória da chamada linha-dura. A outra corrente, mais moderada, tinha uma dimensão pedagógica, acreditava na força da propaganda política para conquistar apoios e da censura para resguardar a moral conservadora. Ambas as tendências partiam do princípio de que a sociedade era despreparada, não sabia votar e cabia aos dirigentes o papel de "Messias". Os dois grupos se confrontaram ao longo da ditadura, às vezes ganhava força a corrente saneadora, outras, a pedagogia autoritária. "Eram dimensões distintas que expressam um propósito unificado, que chamo de utopia autoritária: tornar o Brasil um país rico ainda que a custo de direitos individuais, liberdade", afirma Fico.

 

O general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, próximo ministro do Gabinete da Segurança Institucional, olha o passado de uma maneira semelhante à de Jair Bolsonaro (PSL) e ao discurso oficial da época. O homem que vai assessorar o presidente eleito em assuntos militares e de segurança acha que é fácil criticar agora o AI-5, longe do que qualifica de cenário de guerra revolucionária alastrando-se pelo país.

"Não era possível seguir permitindo que as forças da 'comunização' seguissem ganhando espaço por falta de instrumentos legais", diz o general, em defesa das medidas de exceção, consideradas como uma maneira de "partir para a ignorância" pelo diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI) da época, o depois presidente João Baptista Figueiredo (1918-1999).

"O AI-5 começou a censurar antes mesmo de ser editado e a prender antes de ser anunciado publicamente", escreve o jornalista Zuenir Ventura no livro "1968: O Ano que Não Terminou". Nos dias seguintes ao 13 de dezembro, oficiais fizeram arrastões pelas cidades levando centenas de intelectuais, estudantes, artistas e jornalistas para as celas dos Departamentos de Ordem Política e Social (Dops) e quartéis. Estavam nessa turma de Caetano Veloso e Gilberto Gil ao ex-presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), capturado enquanto descia as escadas do Teatro Municipal do Rio. Aos 75 anos, o jurista Sobral Pinto (1893-1991) foi levado de chinelos e meias para um quartel; o antigo aliado dos militares Carlos Lacerda (1914-1977) se viu na mesma cela que o seu arqui-inimigo Mário Lago (1911-2002), histórico comunista vestido de vilão, o figurino da novela que gravava ao "cair".

"Vivemos um terrorismo cultural", classificou Alceu de Amoroso Lima (1893-1983), pensador católico importante nos anos 60. A suspensão do habeas corpus, princípio do direito para dar proteção ao cidadão contra arbitrariedades do Estado, devastou uma geração de brasileiros e deixou uma herança trágica: em documento entregue à então presidente Dilma Rousseff (PT) em 2014, a Comissão Nacional da Verdade contabilizou 434 mortos ou desaparecidos, 7 mil exilados e 20 mil torturados.

"A partir do AI-5 monta-se a repressão política, organizada nacionalmente por setores de espionagem, setores da polícia política, setores de censura", diz Fico. O general Heleno contesta: "Apenas os excessos das forças do Estado são invariavelmente maximizados, enquanto as forças que desejavam transformar o Brasil em uma ditadura comunista são romantizadas".

As denúncias de abusos contra os direitos humanos afetaram as relações externas do Brasil com as grandes democracias ocidentais, mas não só da maneira esperada pela rede de solidariedade aos exilados, organizadas por ativistas e parlamentares na Europa e nos EUA. Documentos revelam que interesses comerciais falaram mais alto do que as palavras de ordem dos manifestantes nas ruas e, secretamente, Reino Unido e França colaboraram com os oficiais brasileiros em ação nos porões.

"Os brasileiros foram cobaias das técnicas de tortura usadas depois pelo Exército britânico contra o IRA [Exército Republicano da Irlanda]", diz o historiador João Roberto Martins Filho.

Professor da Universidade Federal de São Carlos, ele teve acesso a uma carta confidencial, de 1972, enviada pelo então embaixador britânico em Brasília, Sir David Hunt (1913-1998), ao Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido, na qual comenta que os "métodos mais sofisticados de interrogatórios no Brasil foram influenciados por sugestões e recomendações do Exército inglês". Pelo texto, presume-se que os britânicos estariam sendo procurados de novo por brasileiros, e o diplomata escreve que, como seu interlocutor deve saber, a "colaboração com o Brasil já acabara há um ano e meio, ou seja, em agosto de 1971".

"Os britânicos construíram três salas de tortura no DOI-Codi na Barão de Mesquita, antes de fazer isso na Irlanda, perto de Belfast", diz Martins Filho, autor do livro "Segredos de Estado - O Governo Britânico e a Tortura no Brasil". Eram cubículos pintados de preto ou completamente brancos, hermeticamente fechados, mantidos sob frio intenso ou calor escaldante, bombardeados com sons em alta frequência, variações de luz e ameaças gritadas em alto-falantes.

Uma réplica dessa sala escondia-se numa prisão na Irlanda, onde os membros do IRA também conheceram a arquitetura e os métodos de interrogatórios do Exército britânico, exportados depois para a prisão de Abu Ghraib, onde os EUA torturavam prisioneiros no Iraque. "O prisioneiro ficava no escuro muitas horas, perdia a noção do dia e da noite, começava a ouvir vozes e não sabia mais se eram deles ou não", afirma o professor.

Para a rua Barão de Mesquita eram levados os ativistas nos anos 70. O jornalista Álvaro Caldas esteve lá duas vezes e constatou a modernização da tortura entre a primeira e a segunda prisão. Na primeira, era pau de arara e choque elétrico, juntos ou separados. Na segunda, foi deixado numa das salas especiais e viu que era tudo novinho, notou que os fios elétricos eram importados e achou tudo parecido com consultório de dentista. "Fiquei sozinho, ouvindo o barulho, até que entrou um cara e, de um púlpito, dizia: 'Agora não torturamos mais', como se não estivesse me torturando", relembra Caldas. A história abre o livro "Tirando o Capuz".

O "Times" de Londres foi o primeiro a denunciar o uso das "técnicas do Ulster [Norte da Irlanda]" e, por exigência do arcebispo ao primeiro-ministro britânico, a tortura foi proibida logo depois. Em relatório secreto consultado pelo pesquisador, um general citava enviados de muitos países, a Alemanha Ocidental entre eles, para aprender as técnicas britânicas de interrogatório. O Brasil não estava na lista, mas há registros de militares brasileiros em Londres e vice-versa.

"O documento comprova a participação direta do Reino Unido na construção da tortura no Brasil", diz Martins Filho. Contatada, a embaixada do Reino Unido em Brasília não respondeu ao pedido de informações sobre o assunto.

 

Após o AI-5, ficaram mais complexas as relações diplomáticas do Brasil. Os EUA, aliados ativos no golpe de 64, agora estavam reticentes e divididos. O Conselho Nacional de Segurança propunha o esfriamento das relações com o Brasil e senadores defendiam o corte da ajuda externa aos brasileiros. Documento do Departamento de Estado mostrava a preocupação do então secretário Dean Rusk (1909-1994) com o rumo da política, mas, na Casa Branca, prevalecia o pragmatismo. Só que o Congresso, em conflito com governo de Richard Nixon (1913-1994) desde 1965, impusera ao Executivo a apresentação de um relatório anual sobre a situação dos direitos humanos nos países compradores de armas, restrições que dificultavam negócios com os militares brasileiros interessados em reequipar as Forças Armadas.

O Reino Unido percebeu a oportunidade de bons negócios. A moeda de troca para passar tecnologia a ser usada contra opositores da ditadura foi a compra de seis fragatas da Marinha inglesa, um negócio de 100 milhões de libras financiado por um consórcio de oito bancos britânicos, diz Martins Filho. As relações comerciais entre os dois países eram públicas e provocavam protestos na cidade-sede da Anistia Internacional. O apoio aos porões, naturalmente, era secreto lá e aqui. "Provavelmente, os primeiros-ministros não sabiam", diz o pesquisador.

Padrão semelhante tiveram as relações entre França e Brasil. Paris honrava a fama de pátria dos exilados políticos do mundo: recebeu bem os brasileiros expulsos pela ditadura, mas foi igualmente acolhedora com as autoridades que os perseguiam. Negociava-se com a Força Aérea Brasileira 16 caças Mirages, um negócio com cacife para evitar as críticas oficiais do país dos direitos humanos às torturas nas prisões brasileiras. "Generoso no asilo, o governo francês era severo na vigilância dos exilados e cordial nas relações com a embaixada", resume Elio Gaspari, em "A Ditadura Escancarada".

As denúncias ecoavam em jornais, nas universidades e materializavam-se em protestos no Parlamento e nas ruas, com apoio de sindicatos e da esquerda francesa. Só dom Helder Câmara (1909-1999), arcebispo do Recife, numa passagem por Paris, reuniu no Palácio dos Esportes 10 ml pessoas para ouvi-lo pedir que denunciassem ao mundo que no Brasil se torturava.

O governo brasileiro rotulava esse movimento de "campanha de difamação do Brasil no exterior" e chegou a contratar um escritório para publicar textos elogiosos ao país num obscuro jornal, "East Ouest". O historiador Paulo César Gomes encontrou documentos da embaixada brasileira relatando artifícios arquitetados para fazer o arcebispo perder o passaporte e, no Ministére des Affaires Étrangeres, teve acesso a dossiês completos sobre a vida em Paris do crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981), do escritor Josué de Castro (1908-1973) e do jornalista Samuel Wainer (1910-1980).

"O governador Miguel Arraes [1916-2005], na época morando na Argélia, só recebia visto de entrada na França se o cunhado francês, Pierre Gervaiseau, assinasse termo de responsabilidade por ele", diz o pesquisador, autor de livro sobre o tema que será lançado em 2019.

Quase oficial foi a exportação para a América Latina da doutrina militar francesa, batizada de guerra antissubversiva. O método, cuja arma principal era a tortura, foi sistematizado após a derrota do Exército francês contra a Frente de Libertação Nacional da Argélia e, nos anos 60, foi ensinado a brasileiros, argentinos, chilenos e uruguaios. Em 1972, quando o Brasil enfrentou a guerrilha do Araguaia, um ex-general da batalha de Argel, Paul Aussaresses (1918-2013), veio servir como adido militar em Brasília e deu aulas no Centro de Instrução de Guerra na Selva, com sede em Manaus.

"Antes de morrer, ele me contou que ensinou tortura aos militares brasileiros", diz Marie-Monique Robin, autora de "Escadrons de la Mort: L'École Française" [Esquadrões da Morte: A Escola Francesa], livro e filme sobre o tema.

 

 

"Essa estrutura de repressão política trouxe um prejuízo generalizado à sociedade brasileira", diz Fico. Ele dá o exemplo da rede de espionagem criada para monitorar autarquias, estatais e universidades, fazendo com que todas as ações da esfera pública passassem a ser pautadas pela comunidade de informações, a essa altura o grupo mais poderoso do aparelho de Estado. "Muita gente foi vítima dessa comunidade de informação", afirma o historiador.

O general Heleno rechaça as críticas. "A história do Brasil, durante o que chamam de regime militar, jamais foi contada com imparcialidade, a começar pela falsa afirmativa de que a tortura, os sequestros e os assassinatos foram institucionalizados", diz.

Essa tragédia política brasileira, desenrolada com mais intensidade durante os dez anos de AI-5, poderia ter sido abreviada se não fosse mais um desses acidentes que pontuam a história do país. Arquivos revelam a intenção de Costa e Silva de outorgar uma nova Constituição, em que o presidente teria poder de revogar "qualquer ou todos os artigos do AI-5". O vice, Pedro Aleixo (1901-1975), e juristas trabalharam no projeto. O marechal participou de reuniões e fez anotações. Marcou para 1º de setembro a reabertura do Congresso (fechado desde o AI-5), ocasião em que promulgaria a emenda constitucional para revogar o AI-5.

Mas Costa e Silva teve uma trombose em agosto de 1969. Fico relata seus últimos movimentos no poder: "Estava muito pressionado pela linha-dura, aconselhavam-no a não abrir mão de parte dos poderes do AI-5. Na última reunião, o homem autoritário e tido como burro, faz um desabafo dizendo que nunca quis impor a tirania ao Brasil. Já era doente, mas provavelmente o estado dele se agravou pela pressão política".

A sequência dessa história é arquiconhecida: na sequência, os três ministros militares dão um golpe e impedem Pedro Aleixo de assumir a Presidência. "Aí, sim, acontece o golpe dentro do golpe. A junta promulga a Constituição sem o artigo 182", diz Fico.

O general Heleno vê o periodo como a consolidação da vitória do Brasil contra o comunismo: "Concordo com o general Leônidas [Pires Gonçalves], quando afirma que o Brasil se transformaria em um verdadeiro continente sócio-marxista, se não fosse o regime militar. O AI-5 aconteceu dentro desse contexto". Tudo indica que as profundas cicatrizes e divisões da sociedade deixadas por esses anos ainda atravessarão novas gerações. (Colaborou Monica Gugliano)

Nota da Redação: Esta reportagem foi publicada na edição impressa com o título Uma utopia autoritária.

A relação entre arte, democracia e utopia

Todos estão em torno dos 70 anos, os cabelos são grisalhos, os corpos têm as marcas do tempo. São 12 ao redor de uma mesa, as vozes às vezes se quebram num choro contido. A plateia, uma maioria de companheiros de geração salpicada por muitos jovens, enxuga as lágrimas, em meio a sorrisos ternos provocados pelas lembranças. É uma leitura dramática, mas não como as outras que marcam o início de ensaios. "O Mutirão", nome provisório desse espetáculo, está sendo construído há dois anos em um trabalho de criação coletiva. É uma arqueologia sentimental do Tuca, grupo de teatro universitário da década de 60, entremeada com a memória dos 50 anos de vida dos então jovens atores amadores, trazendo junto meio século da história do Brasil.

As apresentações aos sábados de manhã, na UFRJ, e as sessões especiais para estudantes universitários comovem. Remexem num passado doloroso, revisitado também em documentários como "Torre das Donzelas", em que Susanna Lira retrata as presas políticas durante a ditadura militar no presídio Tiradentes, ou na transposição para o cinema de "Rasga Coração", peça-símbolo da luta contra a censura escrita por Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) e filmada agora por Jorge Furtado. O Teatro Oficina de José Celso Martinez Correa estreou nesta semana a remontagem de "Roda Viva" e mostras no Instituto Tomie Ohtake de São Paulo (encerrada no mês passado) ou no Museu de Arte do Rio (MAR) discutem, respectivamente, os custos da retirada dos direitos no imaginário cultural do país e a relação entre arte, democracia e utopia.

Lembrar para não repetir está no espírito de todas essas manifestações culturais. Talvez a mais despretenciosa, mas não menos poderosa, seja a memória do engajamento cultural contra a ditadura e a reflexão sobre o tempo político vivido, encenada pelos agora envelhecidos atores amadores, para comemorar os 50 anos do Tuca. "Ficamos atrevidos, achamos que nossa geração tem algo a dizer", reforça um deles para o público. "Estamos criando algo novo, tudo tem uma ressignificação", diz Amir Haddad, o diretor do passado e do presente, em mais um ensaio na semana passada.

Esse tempo revivido começa com a formação do grupo em 1966, tem o momento de glória com a montagem de "Coronel de Macambira" em 67 e a fase feliz acaba em dezembro de 68 com o AI-5. Foram dois anos que deixaram marcas na trajetória de cada um e na história do teatro. "Pouco mais do que um adolescente, fiquei encantado com a encenação. Ali, em plena ditadura, o Brasil era o boi, que afinal ressuscitava, e dele se ouvia o rumor dos passos", disse o deputado Chico Alencar (PSol), num depoimento ao "Globo" em 2016.

A vida brasileira desfilava na grande praça montada no palco, nesta adaptação de "Bumba Meu Boi", criada pelo poeta Joaquim Cardozo (1897-1978), o também famoso engenheiro dos projetos de Oscar Niemeyer (1907-2012). As músicas, compostas por Sérgio Ricardo, eram todas originais e jamais foram gravadas. Haddad, um homem de teatro já confirmado, largou tudo para, encantado, trabalhar com aquele bando de jovens: eles eram 36 no palco, revezando-se em 45 papéis, mas eram muito mais atrás das cortinas, ajudando, aplaudindo e discutindo, registrou Arthur Poerner, no "Correio da Manhã", em 1966: "O Tuca é fundamentalmente o movimento estudantil".

O trabalho teatral era parte da luta pela democracia. O projeto do grupo era levar o teatro à periferia, aos sindicatos, às cidades pequenas. Eram apenas estudantes contra a ditadura, mas, após o AI-5, muitos deles foram presos, torturados, exilados e demitidos dos empregos.

E se a gente lesse de novo o "Macambira"? A ideia foi lançada no primeiro reencontro do grupo há três anos e resultou no espetáculo de agora. Nesse "Mutirão", trechos do texto e das músicas originais são intercalados com o relato do processo de criação e depoimentos dos atores sobre como eram no passado, por onde andaram e como são agora. "Tudo que é dito aqui foi intensamente vivido ou testemunhado por nós. Nada é ficção", diz Amir Haddad, narrador do espetáculo.

Ninguém conta para o público a sua história, mas todos reconhecem como seus os sentimentos vividos por cada um dos outros. Por exemplo, a dor e o medo na cadeia. "Não dá para esquecer. O barulho das chaves na Ilha das Flores, cada vez que o guarda ia buscar alguém para o interrogatório. Esse barulho a gente carrega pela vida toda", diz uma delas.

Ou a solidão do exílio para os que foram e o clima opressivo criado pela desconfiança e a repressão para os que ficaram. "Essa atmosfera que asfixia a liberdade dificulta a respiração", diz um deles.

O humor e a ironia permeiam os relatos. "Chegamos [as três exiladas] a Santiago do Chile, e, talvez por ver uma de nós carregando um violão, um jornalista perguntou: 'Ustedes no son el trio Bangu?'." Na volta ao Brasil, com a Anistia, a alegria se mistura ao estranhamento. "Reencontrar os amigos traz um sentimento ambíguo. Eles estão diferentes, mudaram. Descubro que eu também", reconhece.

Com o fim da ditadura, a vida retomou uma certa normalidade, e a maioria seguiu as profissões para as quais se preparavam. Haddad criou o Tá na Rua e continua dando aulas. Três deles se tornaram atores profissionais: Márcia Fiani, Renata Sorrah e Roberto Bonfim, outros são economistas, químicos, engenheiros, professores. Para todos, é importante contar os sonhos, as derrotas e as vitórias. A emoção do público parece demonstrar que é importante ouvir. No ano que vem o espetáculo volta ao mesmo lugar, no mesmo horário.

Produção artística era vista como uma grande ameaça

"Fecha esta exposição." Era 1969, a Petite Galerie expunha as obras de Carlos Vergara, já naquela época um nome importante nas artes visuais brasileiras. Em exibição estava "Berço Esplêndido", instalação de caixotes com um manequim como um corpo morto enrolado na bandeira dos Estados Unidos e do Brasil. Pelo chão da sala, uma palavra repetida muitas vezes: penso, penso, penso.

Um general morava perto da galeria, em Ipanema. Passou por ali, ficou irritado com o que viu e deu a ordem. "O general não disse nem o nome. Mandou fechar, simples assim, simples como um bom-dia", afirma Vergara, 50 anos depois. Franco Terranova (1923-2013), dono da Petite Galerie, ligou para o artista, contou a história, e os dois desmontaram a exposição.

"Nasci em 1941, vivi toda a época libertária juscelinista. Para quem teve um início assim, foi muito violento. Pensei em ir para a clandestinidade, mas achei que minha arte poderia ser mais útil. Com trabalhos que não fossem das musas, fossem mais perigosos, que contivessem dados do real, como os músicos faziam, o teatro fazia, todos tentando manifestar uma visão libertária do mundo", diz o artista.

Com um público mais reservado, as artes plásticas foram menos afetadas pelo Ato Institucional nº 5, o AI-5, do que a música, o cinema e o teatro, mas algumas manifestações criaram enormes polêmicas no país, como as trouxas ensanguentadas espalhadas pela cidade por Arthur Barrio, numa referência à violência da repressão. Ou a performance de Antonio Manuel nu, apresentando-se como obra de arte no Salão Nacional de Artes Plásticas, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio. Estava conectado com a "body art", um dos caminhos da arte no mundo. Mas aqui foi proibido, estávamos em 1970.

"Depois ele construiu um belo trabalho com a foto dele nu numa caixa", diz Paulo Sérgio Duarte, crítico de arte, curador e professor. Duarte mostra como o desdobramento da política na produção artística nessa época se dá por uma obra mais reflexiva, uma tendência internacional que faz uma crítica forte da arte como mercadoria. "São trabalhos muito importantes, mas que não se entregam sem o pensamento, você é obrigado a pensar", diz.

No Brasil ocorre com Waltercio Caldas, Antonio Dias (1944-2018) e, um pouco mais tarde, Tunga (1952-2016), um grupo de artistas com trabalhos de muita potência que repercutem hoje em todo o mundo. "O interesse em não produzir uma obra comercial é político", afirma.

Fazer pensar ficou perigoso nos anos de chumbo. O poder público foi usado como polícia pedagógica, destinada a perseguir desviantes, rotulados de comunistas e acusados de pregarem ideias para destruir os pilares da civilização ocidental: a família, a moral sexual e as bases do direito penal e civil. Só depois da Lei da Anistia (1979), foram reintegrados à universidade os 66 professores expulsos com o AI-5, entre eles Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), a historiadora Maria Yeda Linhares (1921-2011). Para combater o pensamento marxista que teria se infiltrado nas instituições culturais, o Estado abriu inquéritos policiais e militares contra "think tanks" (Iseb, por exemplo) e centros de cultura, como o CPC da UNE. Interveio nas escolas e universidades, com uma legislação repressiva forte, aulas de moral e cívica do ensino fundamental às faculdades e incentivos à espionagem. E usou a censura sem moderação.

"Criou-se um clima de medo e revolta. Uma situação muito violenta contra as atividades intelectuais e culturais. A censura, instituída por lei em 1970, vai ser muito pesada contra artes e espetáculos regidos por essa lei", diz Marcelo Ridenti, professor do Instituto de Filosofia da Unicamp e autor de livros sobre cultura e ditadura.

As histórias são conhecidas, mas os números impressionam. Em dez anos, os censores examinaram em torno de 22 mil peças de teatro, das quais 700 foram proibidas na íntegra e outras centenas tiveram trechos cortados, contabiliza a pesquisadora Miliandre Garcia.

Cerca de 500 filmes (muitos estrangeiros) foram banidos das telas brasileiras, a maioria por questões morais ou religiosas - um exemplo foi "Último Tango em Paris" (1972), clássico do cinema de Bernardo Bertolucci (1941-2018). A literatura foi um pouco menos afetada, mas 430 livros não puderam chegar às livrarias, dos quais 92 escritos por brasileiros. Centenas de letras de canções foram vetadas pela censura, levando Chico Buarque a recorrer a pseudônimos e sair do país, mesmo caminho seguido por Caetano Veloso e Gilberto Gil. A imprensa foi controlada de modo severo entre 1969 e 78, sujeita a arbitrariedades de censores, já que não havia regulamentação específica para jornais e noticiários em televisões e rádios.

Em muitos jornais, sob mordaça, estampava-se o ufanismo do Brasil Grande e a família tradicional, imagens só contestadas mais tarde com a criação da imprensa alternativa iniciada com "O Pasquim" e depois o "Opinião" - este teve 5 mil páginas publicadas e 5 mil vetadas.

"A cultura é muito flexível e sobrevive. Quem falou muito depois do AI-5 foi a poesia marginal", diz Heloisa Buarque de Hollanda, a primeira a chamar atenção para os poetas do mimeógrafo.

Lentamente um reflorescimento cultural se inicia, com o surgimento da contracultura, não diretamente política, mas muito crítica à situação do país. Os movimentos de vanguarda reaparecem, os exilados culturais começam a voltar. "É uma reação ainda à meia voz, foi se criando uma cultura alternativa muito viva que só fez crescer", diz Ridenti. Era o início da distensão, lenta e gradual.


El País: Magistrados ignoram testemunhas e citam laudo forjado da ditadura para isentar Ustra

Apreciação de desembargadores do TJ de São Paulo se deu em sessão que extinguiu, por julgar prescrita, ação que pedia indenização para familiares de jornalista assassinado no DOI-CODI

Por Felipe Betim, do El País

Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) extinguiu nesta quarta-feira, 17 de outubro, um processo que condenava o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido torturador da ditadura militar brasileira (1964-1985) e idolatrado pelo presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) e seu vice, o general Hamilton Mourão, a pagar uma indenização de 100.000 reais a família do jornalista Luiz Eduardo Merlino. Ele foi torturado e morto nos porões do DOI-CODI em 1971, com apenas 23 anos. Em julgamento da 13ª Câmara Extraordinária Cível, os três desembargadores da segunda instância —Luiz Fernando Salles Rossi, Milton Carvalho e Mauro Conti Machado— entenderam que encontra-se prescrita a possibilidade de que família processasse Ustra e obtivesse compensação, uma vez que a lei civil prevê um prazo de 20 anos neste tipo de ação. O crime ocorreu em 1971 e o processo foi movido pela família em 2010, 22 anos após a promulgação da Constituição de 1988, usada como marcado temporal. Ainda cabe recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF).

A ação por danos morais está sendo movida pela irmã do jornalista, Regina Maria Merlino Dias de Almeida, e sua ex-companheira, Angela Mendes de Almeida, desde 2010. Em 2012, a 20ª Vara Cível, primeira instância da Justiça, reconheceu a responsabilidade de Ustra e o condenou a pagar uma indenização aos familiares. A família deixou que a própria juíza fixasse o valor da indenização, uma vez que o dinheiro nunca foi prioridade, mas sim o reconhecimento da responsabilidade do Estado e de Ustra, segundo diz. O coronel recorreu da decisão antes de morrer em decorrência de um câncer e problemas cardíacos, em 2015. A decisão desta quarta derruba a condenação da primeira instância sob o argumento, proferido pelo magistrado Mauro Conti Machado, de que a família esperou 39 anos para entrar com o processo, 22 anos depois da Constituição.

O relator do caso, desembargador Salles Rossi, foi além. Primeiro a votar, defendeu que não havia provas nem testemunhas presenciais que indiquem que Ustra participou da tortura a Merlino durante a "chamada ditadura militar". Além de não levar em conta o fato de que o coronel era o responsável pelo DOI-CODI, o desembargador desconsiderou o relato das pessoas que presenciaram a tortura do jornalista, sendo a principal delas a socióloga Eleonora Menicucci, ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres no Governo Dilma Rousseff (PT). Menicucci, que também foi torturada, conta ter visto o jornalista no pau de arara sob o olhar de Ustra. O magistrado também desconsiderou documentos como o da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instaurada pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a Comissão Nacional da Verdade, instaurada pelo Governo Rousseff, e a Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo. Todas reconhecem a responsabilidade do Estado brasileiro e de Ustra pela morte de Merlino.

Os documentos narram com detalhe a captura, prisão e tortura do jornalista, que trabalhou em veículos como o Jornal da Tarde e a Folha da Tarde e militava no Partido Operário Comunista (POC). No dia 15 de julho de 1971, logo depois de retornar da França, foi detido por agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-CODI/SP)  na casa de sua mãe, em Santos. Testemunhas indicam que o jornalista foi submetido a 24 horas de tortura no pau de arara e, depois, abandonado em uma solitária. Sofreu gangrena nas pernas decorrente da tortura e não recebeu tratamento médico. Deixado de lado por seus algozes, acabou morrendo. O atestado de óbito, do dia 19 de julho, diz que Merlino "ao fugir da escolta que o levava para Porto Alegre (RS), na estrada BR-116, foi atropelado e, em consequência dos ferimentos, faleceu”.

Apesar do primeiro atestado de óbito ter sido contestado —"há muitas evidências da falsidade da versão de atropelamento em tentativa de fuga", diz o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV)— o magistrado Salles Rossi salientou que o primeiro documento oficial, tido como forjado pela ditadura, deve ser considerado. O desembargador Milton Carvalho concordou com a argumentação que opta por não considerar as conclusões dos relatórios oficiais anteriores e se referiu a Ustra como "suposto torturador". Os magistrados ignoraram também a decisão do STJ de 2014 que reconhece a responsabilidade civil de Ustra por torturas cometidas durante o regime militar.

No final, contudo, o desembargador Mario Conti Machado argumentou que a questão da prescrição bastava para derrubar a sentença da primeira instância. Assim, o entendimento unânime foi o de que, apesar de o crime de tortura não prescrever, havia esgotado o prazo de uma possível ação cível contra Ustra.

Descumprimento de decisão da OEA

O debate sobre se o crime de tortura é atingido ou não pela prescrição é um dos principais pontos quando se fala em punir os torturadores da ditadura militar. Isso ocorre sobretudo em ações penais nas quais, diferentemente de processos da área cível, está em jogo a liberdade do processado. Nesses casos entra em vigor a Lei de Anistia, de 1979, fazendo com que processos muitas vezes nem sequer sejam aceitos. Foi o que aconteceu com um ação penal movida pelo Ministério Público contra Ustra pedindo punição para o torturador no caso Merlino. O processo nem chegou a ser julgado em primeira instância, mas o Tribunal Regional Federal analisará novamente o caso na próxima semana, dia 23 de outubro. Os familiares do jornalista acreditam que o julgamento na área cível não foi agendado uma semana antes por mera coincidência e que teria servido para frustrar as expectativas.

O jornalista Luiz Eduardo Merlino.
O jornalista Luiz Eduardo Merlino. DIVULGAÇÃO

A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA já chamou a atenção do Brasil em duas ocasiões, em 2010 e 2018, ao condenar o país pela "detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas" entre 1972 e 1975 no Araguaia, e pela "falta de investigação, de julgamento e punição dos responsáveis" pela morte do jornalista Vladimir Herzog. O país é signatário de tratados internacionais que determinam que o delito de tortura, que pode ser enquadrado como "crime contra a humanidade", não é passível de prescrição e nem da aplicação da Lei da Anistia. Mas o Supremo nunca se pronunciou expressamente sobre a questão da prescrição. Contudo, entendeu que a legislação que perdoou os crimes cometidos durante o regime militar não fere a Carta Magna e se mostrou contrário a sua revisão.

Já em processos na área cível, que resultam em indenizações e ações declaratórias, a condenação de torturadores vem se mostrando mais viável. O próprio Ustra já foi condenado em 2008 em uma ação civil movida pela militante de esquerda Maria Amélia De Almeida Teles, torturada pelo coronel. Apesar de ter também recorrido ao TJ-SP, a 1ª Câmara do Direito Privado manteve a decisão. Foi a primeira vez em que o coronel, homenageado por Bolsonaro como o "pavor" de Dilma Rousseff durante a votação do impeachment, foi reconhecido como torturador.

"Essa sentença é um recado"

O julgamento desta quarta começou ao meio dia no quinto andar do Palácio da Justiça, no centro de São Paulo, e durou menos de uma hora. Após a sessão, o clima era de comoção e tristeza. Uma vez fora do salão onde ocorrera a audiência, familiares se abraçavam e choravam. "Quando se fala que alguém foi torturado barbaramente durante 24 horas no pau de arara com choque elétrico, ninguém sabe o que é isso, porque a juventude cresceu no esquecimento. A própria esquerda não explicou o que é", lamentou Angela Mendes de Almeida, ex-companheira de Merlino. Ela entende que a decisão pode ser uma espécie de recado. "Esse candidato que está aí [Bolsonaro] tem como herói o Ustra e está a ponto de se eleger. Eles estão mostrando. Essa sentença é um recado de que se pode torturar e matar", argumentou.

A socióloga Eleonora Menicucci, testemunha-chave do caso, chamou a decisão de "dramática" e também acredita ser "um prenúncio de que aqueles tempos que poderão voltar pelo voto popular". Contudo, ela diz que a decisão é um estímulo a continuar lutando "pela memória, pela verdade e pela justiça". "Vale apena lutar. Sou uma pessoa que defino a minha vida por isso", diz.

Mendes de Almeida, que garante que irá recorrer da decisão, concorda. "A luta vai continuar, é uma coisa definitiva na minha vida. Um resultado diferente não alteraria a situação, mas seria um contraponto a essa onda conservadora que acha que tortura não é nada", opina. "Eles vão se arrepender muito. Porque todos nós vamos sofrer, mas quem mais vai sofrer são os pobres nas periferias".


José Paulo Cavalcanti Filho: A morte e a morte de JK

Juscelino Kubitschek, ex-presidente da República (1956/1961), teve seus direitos políticos cassados pelo Regime Militar. Em 1966, articulou uma Frente Ampla de oposição. Junto com o presidente deposto, João Goulart. E o ex-governador do Rio, Carlos Lacerda. Os dois também cassados. E os três mortos, por sinistra coincidência, no espaço de nove meses. As Comissões da Verdade de São Paulo e Minas sugerem que JK foi, ou pode ter sido, assassinado. Mas terá sido mesmo?, eis a questão.

Em 22/8/1976, por volta das 18:30 horas, JK viajava pela rodovia Presidente Dutra. No sentido São Paulo-Rio. Estava já em Rezende (RJ). Em um Chevrolet Opala dirigido por seu motorista, Geraldo Ribeiro. Estima-se que trafegavam por volta dos 90/100 kms/p/hora. Segundo Daniel Bezerra de Albuquerque Filho, 16 anos na época, que estava com o tio em caminhão superado pelo veículo de JK, por eles passou um Opala a mil... Esse Opala saiu da faixa direita para a da esquerda, na tentativa de ultrapassar dois caminhões à sua frente. Pouco depois, na altura do Km 165, a lateral esquerda do Opala colidiu com a lateral direita de um ônibus da Viação Cometa. Derivou para a esquerda, num ângulo de 30 graus em relação ao eixo longitudinal da estrada. E invadiu a pista no sentido contrário. O fato foi confirmado por Paulo Oliver e mais dois outros passageiros desse ônibus.

Geraldo Ribeiro ainda efetuou conversão à direita, na tentativa de manter o veículo na rodovia. Essa manobra foi erro grave. E abalroou um caminhão Scania Vabis. O motorista desse caminhão, Ladislau Borges, declarou: Fiz o possível para desviar... joguei a carreta para a direita e percebi que o motorista tentava controlar o carro para entrar entre o caminhão e o canteiro. Esse motorista prestou socorro às vítimas. Geraldo ainda suspirava. Mas já era tarde.

A Comissão Nacional da Verdade realizou amplíssimo estudo sobre o tema. Recuperou depoimentos dos envolvidos. Tomou numerosos outros testemunhos. Estudou imagens dos laudos oficiais e 257 negativos fotográficos. Também outros negativos, de fotos feitas no local do acidente e em exames periciais subsequentes. E considerou as perícias até então realizadas: Processo Criminal 2.629/1977, de Resende (RJ); Inquérito Policial 273/1996 na 89º DP, também de Resende; Relatório da Comissão Externa da Câmara dos Deputados, instituída em 4/6/2000. Todos com a mesma conclusão. De que se tratou só de um acidente.

Bom lembrar que o terreno em que tudo se deu era plano. Em ambos os lados da rodovia. Fosse um atentado e certamente o local escolhido seria outro. Algum despenhadeiro, para onde o carro fosse projetado. Depois de tocar o ônibus, e caso permanecesse em sua rota saindo da pista, pior que poderia ocorrer com o Opala seria ir em frente e furar algum pneu. A colisão se deu porque o motorista de JK tentou voltar à pista. E o veículo causador do acidente não era sem placa, que não permitisse identificação de seu proprietário. Nem rápido. Mas um ônibus comum. Cheio de passageiros. Não tendo sido localizadas marcas de explosão ou nenhum outro material estranho ao veículo.

Instigante é a lenda de que teria sido localizada bala no crânio do motorista Geraldo Ribeiro. Prova do atentado, para muitos. Ocorre que as fotos tiradas ainda no acidente e, posteriormente, apenas do crânio do motorista (poucos meses depois), mostram a calota intacta. Em 1976. As fotos do laudo do IML de Minas, já em 1996, revelam essa calota em amarelo escuro, por força do tempo; e um espaço vazio, no meio, com bordas quebradas que tinham margens bem mais claras. Prova de fratura recente. Ocorrida no transporte do material, imagina-se, desde o cemitério até o IML. Foi nesta última perícia localizado, no interior da calota craniana, um pequeno objeto metálico. Feito com liga de ferro doce. Bem distante do chumbo com que são feitas as balas. Sem vestígios de outro material, no local. Tratava-se de um cravo, enferrujado, desses utilizados na fixação dos forros de seda nos caixões funerários. E que provavelmente caiu ali, por acaso, no transporte para o exame.

Em síntese não há, pelos estudos se viu, nada que sugira tenham sido JK e seu motorista assassinados. Sendo correta a conclusão de nosso Relatório Final, na Comissão Nacional da Verdade. Claro que a Ditadura desejaria ver JK morto. Desejaria muito. Talvez tenha mesmo chegado a projetar algo assim. Mas o destino, esse Deus sem nome, agiu antes. Um acidente, apenas. Foi isso.

* José Paulo Cavalcanti Filho é advogado

 


El País: Nas ruas do Brasil, a ditadura ainda vive

Cerca de 160 km de vias homenageiam vítimas do regime contra 2000 km que têm os nomes dos algozes

É o caso da Avenida Presidente Castelo Branco, parte do complexo de vias que forma a Marginal Tietê, a menos de 500 metros de distância da rua Vladimir Herzog. Ela foi batizada em referência ao general que tomou o poder no Golpe de 1964 – iniciando o processo autoritário que culminaria no assassinato de Vladimir Herzog e de pelo menos mais 433 pessoas, muitas das quais seguem desaparecidas até hoje, sem que seus corpos tenham sido encontrados.

Em todo o território do Brasil, são muitas ruas nomeadas em homenagem a personagens sombrios de nossa história – incluindo aqueles que estão entre os 377 apontados como responsáveis por torturas e mortes pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), um comitê que investigou os crimes do Estado naquele período.

Embora o número de vítimas reconhecidas seja maior que o número de criminosos levantados pela CNV, a soma do comprimento de ruas com o nome de vítimas é bem menor. São aproximadamente 160 km homenageando os que tombaram pela mão do regime contra mais de 2000 km de vias que fazem referência aos algozes, de acordo com o mapeamento feito nas ruas de todos os estados brasileiros.

No projeto, foram usados dados publicados pelo OpenStreetMap, uma plataforma colaborativa em que cada usuário pode adicionar e atualizar informações sobre localizações geográficas e endereços. O banco de dados não é perfeito: há inconsistências na padronização dos nomes e, principalmente, algumas das vias são representadas por mais de um item, o que impossibilita um contagem precisa do número de logradouros. Uma descrição detalhada sobre a produção está disponível aqui.

Não é apenas em número que as ruas com nome de generais e oficiais têm maior destaque do que as vias que homenageiam suas vítimas. Há também uma diferença geográfica e simbólica.

Comparação da extensão de ruas com nomes de torturadores e vítimas
Comparação da extensão de ruas com nomes de torturadores e vítimas AGÊNCIA PÚBLICA

Nas ruas do Brasil, a ditadura ainda vive
AGÊNCIA PÚBLICA

Enquanto grandes rodovias como a já mencionada Avenida Castelo Branco e a Ponte Costa e Silva (nome oficial da Ponte Rio-Niterói) comemoram o regime militar, os locais de memória da resistência se concentram em áreas periféricas e mais pobres. Em São Paulo, por exemplo, a maioria das ruas que homenageiam as vítimas se concentra em regiões pobres da Zona Norte e da Zona Sul, nos bairros de Jova Rural e Grajaú, respectivamente.

O mesmo acontece no Rio de Janeiro, onde diversas ruas que homenageiam militantes da resistência ficam no bairro operário de Bangu.

Uma grande parcela dos locais que relembram os líderes militares foi batizada ainda sob o governo ditatorial. Em contraste, os endereços que rememoram os mortos e desaparecidos só apareceram depois de esforços empreendidos por diferentes setores da sociedade civil.

Mudanças de nome

No centro de São Paulo, uma via elevada corre por cerca de 3.5 km, atravessando quatro bairros diferentes. Popularmente conhecida como Minhocão por seu comprimento e aparência, essa controversa intervenção urbana se chamou oficialmente Elevado Costa e Silva em referência ao segundo presidente da Ditadura, desde que foi finalizada, em 1970, até meados de 2016.

No meio do ano passado, porém, ela foi rebatizada de Elevado Presidente João Goulart, uma homenagem ao último líder civil a governar o país antes do Golpe de 1964.

A mudança faz parte de um movimento que acontece conforme as instituições brasileiras olham para o passado e tentam decidir de que maneira ele deve se refletir no presente e no futuro. Ainda que o presidente João Goulart tenha sido perseguido e perdido os direitos políticos durante o regime, ele não é considerado oficialmente uma vítima de violações de direitos humanos. Paulo Stuart Wright, porém, é.

Ex-deputado estadual de Santa Catarina, filho de dois missionários norte-americanos, Wright foi perseguido pelos militares desde o início do regime. Cassado pelo golpe militar ele se exilou no México em 1964, voltando clandestinamente ao país no ano seguinte para militar na resistência contra a ditadura. Wright desapareceu em 1973 e sua morte só foi confirmada quando arquivos secretos foram abertos onze anos depois, perto do final da ditadura. Em 2015, uma rodovia em seu estado foi rebatizada em homenagem a ele.

Confronto aberto

Um dos momentos mais dramáticos da política brasileira nos últimos anos, o impeachment de Dilma Rousseff (PT), foi deflagrado na Câmara dos Deputados. Jair Bolsonaro, ex-capitão do Exército e figura proeminente da extrema-direita, estava entre os deputados que votaram contra Dilma – e ele fez isso de maneira controversa.

“Perderam em 1964 e perderam novamente em 2016”, disse Bolsonaro comparando o golpe militar ao impeachment. “Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o terror de Dilma Rousseff […] eu voto sim [ao impeachment]”.

Bolsonaro homenageava o comandante do DOI-CODI de São Paulo, a câmara de tortura e morte que operava contra os inimigos do regime entre 1970 e 1974. Ustra, que há dois anos morreu livre e, segundo ele, sem arrependimentos, é considerado um dos agentes mais violentos das forças de repressão da ditadura.

Suas vítimas descreveram diferentes métodos de tormento, como choques elétricos e a inserção de ratos vivos na vagina de prisioneiras. Em alguns dos casos mais brutais, as sessões de tortura foram testemunhadas pelos filhos e cônjuges dos dissidentes. A própria Dilma passou meses detida em prisões do DOI-CODI nos anos 70 por participar de movimentos de resistência armada.

Durante o impeachment de Dilma, grupos que simpatizam com Bolsonaro tomaram as ruas, pedindo que as Forças Armadas “salvem o país do comunismo outra vez”– retórica que evoca a justificava usada pelos partidários do Golpe Militar há 43 anos. Atualmente, o candidato à presidência Jair Bolsonaro aparece em segundo lugar nas pesquisas eleitorais, atrás apenas do ex-presidente Lula, também detido pela ditadura militar. Mais uma evidência de que o passado não está apenas confinado nos nomes de rua – ele insiste em voltar à superfície de tempos em tempos.


El País: Os rebeldes sem armas emboscados por um agente duplo da ditadura

Em tempos de delação premiada, obra de jornalista retrata o massacre da granja São Bento, de 1973, e traz a história de um dos famosos dedos-duros da ditadura, cabo Anselmo

Quantas pessoas você trairia para se livrar da prisão e de sessões de torturas? Quantas delas entregaria as vidas para assassinos vestidos de fardas e uniformes policiais? José Anselmo dos Santos, ex-marinheiro brasileiro conhecido como cabo Anselmo, foi um dos principais agentes duplos da ditadura militar e delatou ao menos 200. Sendo que cerca de cem perderam suas vidas. Seis delas durante uma chacina no então município de Paulista, em Pernambuco. É a história deste assassinato múltiplo que é retratada no livro O Massacre da Granja São Bento, lançado no último dia 29, em Recife.

Os minuciosos detalhes deste caso, ocorrido em janeiro de 1973, finalmente vieram à tona na obra assinada pelo jornalista e mestrando em antropologia Luiz Felipe Campos. Justamente em um momento em que os delatores são apontados no Brasil como uma espécie de heróis. A diferença, é que nos dias de hoje, eles desvelam casos de crimes de colarinho branco envolvendo a cúpula política e empresarial. Nos anos da ditadura militar, contribuíram para o cometimento de centenas de homicídios e torturas de presos políticos.

No livro, o autor relata como cabo Anselmo articulou uma falsa reestruturação de um grupo revolucionário armado em Pernambuco e os entregou para serem aniquilados por policiais e militares na área rural da então cidade de Paulista. Entre os assassinados estava a mulher com quem Anselmo viveu maritalmente em Recife, a militante paraguaia Soledad Barret Viedma.

Motivado por contar um caso regionalmente conhecido, mas pouco explorado por jornalistas e historiadores nacionalmente, Campos juntou cerca de 2.000 páginas de documentos em cinco anos de investigações que resultaram na obra. Ao menos 50 pessoas foram entrevistadas no período. Os principais relatos foram dados por um dos sobreviventes da chacina, o paraguaio Jorge Barrett, cunhado de Anselmo. “Percebi que essa era uma história que não estava bem contada. Tinha muito da versão oficial, algumas tentativas de desconstruir a versão de que chamava as vítimas de terroristas, mas nada que tentasse juntar todos os elos”, afirmou o jornalista ao EL PAÍS.

No livro, ele vai além: “No caso da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) em Pernambuco, a guerrilha nunca chegou a existir: desde sempre teve suas pernas amputadas e uma sentença de morte sobre as costas. Com os seis mortos foram enterrados também os sonhos de toda uma geração de guerrilheiros que, a seu modo, buscavam uma Sierra Maestra para chamar de sua no Brasil”.

Em um ritmo de thriller policial, a obra orbita em torno do cabo Anselmo. Mostra como ele reuniu no Pernambuco seis militantes contrários à ditadura sob a justificativa de reiniciar a luta armada urbana contra o regime. Segundo essa aprofundada pesquisa que gerou o livro, o ex-militar queria dar um tiro de misericórdia na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e em todo outro grupo que tentasse se articular contra os ditadores. “Em 1971, a luta armada de esquerda estava desmobilizada. Anselmo concordou em ser usado pelo regime para dar esse tiro de misericórdia. Era para passar um sinal para os outros grupos de que a luta armada não valeria a pena”, explica o autor. Um dos “comandantes” de Anselmo nessa trama foi o famoso delegado torturador Sergio Paranhos Fleury, um obstinado perseguidor de rebeldes que atuou no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo.

As vítimas do massacre da granja São Bento foram Soledad Barret, Jarbas Marques, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, Pauline Reichtsul e José Manoel da Silva. Todos foram traídos por Anselmo. Por quase um ano articularam maneiras de como unir forças para combater o regime militar. Não conseguiram adquirir uma só arma. Mas morreram identificados como terroristas, conforme estamparam em suas manchetes os jornais Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio, em uma clara adesão à versão oficial.

Entre os dias 7 e 8 de janeiro de 1973, os seis foram presos. Seus corpos foram encontrados crivados de balas nas proximidades da chácara São Bento, no dia 9. Dos 32 projéteis encontrados nos corpos, 14 estavam alojados nas cabeças das vítimas. Diversas armas foram espalhadas ao redor dos cadáveres. A polícia, na ocasião, disse que desbaratou um congresso de militantes da VPR. Trocou tiros com eles. Matou todos. E nenhum policial saiu ferido, nem de raspão.

Uma das razões para a chacina ter ocorrido foi que o jogo duplo de Anselmo começou a ser desvendado. Na antevéspera do massacre, Soledad, a mulher dele, recebeu uma carta em que o comando da VPR que estava exilado no Chile alertava sobre a possibilidade da traição de Anselmo. Ingenuamente, ela mostrou a carta para o ex-militar. Foi sua sentença de morte e dos outros cinco companheiros dela. Assim que o sexteto foi preso, Anselmo deixou Recife da mesma forma que chegou, clandestinamente.

Na obra, o jornalista Campos também relata a luta das famílias em conseguir a reparação do Estado brasileiro e o reconhecimento de que todos foram vítimas da ditadura. Vários conseguiram, mas as marcas deixadas em alguns, jamais foram apagadas.

O LIVRO

O Massacre da Granja São Bento
Autor: Luiz Felipe Campos
Editora: CEPE – Companhia Editora de Pernambuco
Preço: 30 reais
Páginas: 214
 


DW: Como a Volks cooperou com a ditadura brasileira

Imprensa alemã obtém acesso exclusivo à investigação sobre o envolvimento da montadora com o regime: cooperação era maior do que se pensava e teria tido o conhecimento da chefia da companhia em Wolfsburg.

Uma força-tarefa investigativa formada pelo jornal Süddeutsche Zeitung e as emissoras estatais NDR e SWR obteve acesso exclusivo à investigação externa, ordenada pela própria Volkswagen, sobre o papel de sua filial brasileira na ditadura militar (1964-1985).

Segundo reportagens publicadas no domingo (23/07), a filial brasileira da montadora colaborou de forma mais ativa do que antes se imaginava com os militares na perseguição de opositores do regime.

Análise extensa de documentações mostrou quão participativo foi o papel da Volkswagen do Brasil e sugere que a sede em Wolfsburg tomou conhecimento disso - o mais tardar em 1979.

Os repórteres alemães analisaram documentos corporativos localizados na filial brasileira e na sede alemã, papéis classificados como secretos pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e relatórios confidenciais do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha.

"Operários eram presos na planta da fábrica e, em seguida, torturados: a colaboração da Volkswagen com a ditadura militar brasileira foi, aparentemente, mais ativa do que antes presumido", escreveu o Süddeutsche Zeitung.

Os repórteres alemães também tiveram acesso às atas de investigação do Ministério Público de São Paulo. Além disso, eles realizaram entrevistas com alguns ex-funcionários da Volkswagen do Brasil – muitos confirmaram que foram detidos na fábrica em 1972. Eles faziam parte de um grupo oposicionista e distribuíram folhetos do Partido Comunista e organizavam reuniões sindicais.

Os veículos de comunicação alemães corroboraram que a filial brasileira espionou seus trabalhadores e suas ideias políticas, e os dados acabaram em "listas negras" em mãos do Dops. As vítimas lembraram como foram torturadas durante meses, após terem se unido a grupos opositores.

"A Volks roubou dois anos da minha vida", disse Lúcio Bellentani, ex-operário da montadora e agora com 72 anos, que afirmou ter sofrido oito meses de tortura e ter passado outros 16 meses na prisão. "Indiretamente a Volkswagen foi responsável por numerosos casos de tortura e perseguição. A Volkswagen deve ter a dignidade de reconhecer sua responsabilidade por esses atos."

Espionagem e colaboração com Dops
Em 2016, a montadora alemã nomeou para uma investigação sobre seu passado o historiador Christopher Kopper, que confirmou a existência de "uma colaboração regular" entre o departamento de segurança da filial brasileira e o órgão policial do regime militar.

"O departamento de segurança atuou como um braço da polícia política dentro da fábrica da Volkswagen", antecipou Kooper, pesquisador da Universidade de Bielefeld, à imprensa alemã. Segundo ele, a montadora "permitiu as detenções" e pode ser que, ao compartilhar informações com a polícia, "contribuísse para elas". Ele sugeriu que a montadora alemã peça desculpas aos ex-funcionários afetados pela conduta.

De acordo com protocolos internos da Volkswagen, as chefias da montadora na Alemanha e em São Paulo trocaram memorandos referentes às detenções de funcionários. O conselho da multinacional tomou conhecimento da conduta em São Bernardo do Campo, cidade satélite de São Paulo, o mais tardar em 1979, quando funcionários brasileiros viajaram à Alemanha para confrontar o então presidente da companhia, Toni Schmücker.

A sede da montadora se negou a comentar o conteúdo das alegações e reiterou ter encarregado o historiador Kooper de investigar e apresentar um parecer sobre a questão. Kooper apresentará suas conclusões até o final do ano.

Galpões cedidos aos militares
Há quase dois anos foi aberta em São Paulo uma investigação sobre a Volkswagen do Brasil para determinar a responsabilidade da empresa na violação dos direitos humanos durante a ditadura de 1964 a 1985.

Conforme estabeleceu a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que examinou as violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura militar, muitas empresas privadas, nacionais e estrangeiras, deram apoio tanto financeiro como operacional ao regime militar.

No caso da Volkswagen, a comissão constatou que alguns galpões que a empresa tinha numa fábrica de São Bernardo do Campo foram cedidos aos militares, que os usaram como centros de detenção e tortura. Além disso, a comissão sustentou que encontrou provas que a multinacional alemã doou ao regime militar cerca de 200 veículos, depois usados pelos serviços de repressão.

 


Roberto Freire: Tempos de mudança

Em qualquer setor de atividade, um processo de mudança pode gerar reações da velha ordem estabelecida. O desconforto em relação ao novo é próprio do ser humano e, em certos momentos, expressa-se de forma virulenta.

Aqueles que, como eu, estão há muito tempo na vida pública têm de lidar frequentemente com o comportamento agressivo e exacerbado de alguns. De todo modo, é mais saudável e democrático preservar um diálogo civilizado, respeitoso e intelectualmente honesto com o interlocutor -especialmente quando dele se diverge no campo político.

Há mais de 40 anos participando da vida política brasileira, sempre me mantive na trincheira democrática. Lutei contra a ditadura militar, em defesa da liberdade de expressão, de organização e dos direitos civis e políticos.

Em uma época em que vivíamos tempos verdadeiramente sombrios, defender a democracia significava colocar a liberdade e a própria vida em risco. Todos aqueles que resistiram ao regime autoritário sabem perfeitamente a diferença entre um golpe, como o de 1964, e a narrativa falaciosa que qualifica como "golpista" um governo constitucional e democrático fruto de um processo de impeachment.

Temos acompanhado protestos esporádicos de setores ligados ao meio cultural denunciando um suposto "golpe" parlamentar, midiático e jurídico, entre outros devaneios. É evidente que, por mais descabido que seja tal posicionamento, ele demonstra o pleno direito à livre manifestação que deve ser respeitado por todos nós.

No bojo dessas críticas, está evidenciada uma posição refratária à mudança política no país. Em geral, são ataques desprovidos de qualquer sentido, como acusações de que o atual governo pretende retirar direitos ou anular algumas das importantes conquistas da sociedade brasileira das últimas décadas.

Nada disso ocorrerá. Na realidade, o que não haverá é um recuo nas mudanças levadas a cabo pelo Ministério da Cultura e pela administração federal. Ao contrário: continuaremos avançando em políticas que buscam recolocar o Brasil nos trilhos após os desmandos praticados pela gestão anterior.

Reiteramos a importância da Lei Rouanet, alvo de desconfiança de grande parte dos brasileiros em decorrência do desmantelo moral e das ilegalidades dos últimos 13 anos.

Faremos as modificações necessárias por meio de uma instrução normativa, ampliando os mecanismos de controle e fiscalização, fixando tetos para os projetos culturais e definindo critérios para a tramitação e análise do incentivo fiscal, o que proporcionará maior transparência.

Incentivaremos a descentralização regional, democratizando o acesso da população de todos os rincões do Brasil aos bens culturais. Programas abandonados, como os projetos Mambembão e Pixinguinha, serão retomados.

Os Pontos de Cultura serão mantidos, mas apenas aqueles que estiverem devidamente regularizados e com as suas prestações de contas em dia, já que se trata de recurso público. Além disso, restabelecemos o contato com alguns setores que estavam relegados a segundo plano ou eram discriminados pelo governo anterior em função de posições político-partidárias.

O processo de correção de rumos por que passa o Brasil não se restringe à área cultural. A economia começa a dar sinais de recuperação, e o governo Temer já logrou êxito ao aprovar medidas legislativas fundamentais para o país, entre as quais se destacam a PEC do teto dos gastos públicos, a reforma do ensino médio e o projeto que desobriga a Petrobras de participar de todos os consórcios de exploração do pré-sal.

A cultura brasileira e o país continuarão avançando. Vivemos tempos de mudança.

*Roberto Freire é ministro da Cultura. Foi deputado federal e senador pelo PPS


Fonte: gilvanmelo.blogspot.com.br