dias toffoli

Merval Pereira: Organizando a bagunça

A quarentena, período em que ocupante de um cargo público fica impedido de empregar-se no setor privado para não utilizar informações privilegiadas a que tenha tido acesso durante seu período no governo, é uma figura nova na legislação brasileira, e, assim como se origina na concepção médica de isolamento para evitar o contágio de uma doença - como no nosso caso agora, com a pandemia da Covid-19 -, tem acepção mais ampla que começa a ser debatida à medida que os fatos políticos vão se desenrolando.

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, defendeu recentemente uma quarentena de 8 anos para que um membro do Ministério Público ou juízes possam entrar na carreira política. O prazo hoje é de seis meses, o que parece muito pouco mesmo, mas 8 anos é a mesma pena da Lei de Ficha Limpa, que torna inelegível por esse período o político punido.

A proposta surge justamente no momento em que a Operação Lava-Jato vem sendo criticada com mais veemência, e diversos setores da vida nacional se mobilizam para inviabiliza-la. Embora a retroatividade de uma eventual medida não seja razoável nem juridicamente aceitável, os meios políticos identificam no ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro o objeto dessa quarentena, que também impediria que procuradores mais notórios da Lava-Jato possam eventualmente se candidatar em 2022.

A retroatividade poderia, temem alguns, ser aplicável caso a mesma interpretação da Lei de Ficha Limpa dada pelo STF, que atingiu todos os políticos já condenados em segunda instância no momento de sua decretação, seja adotada agora, como regra para o registro de uma candidatura.

Há também propostas de quarentena para indicações para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ministros da Advocacia-Geral da União (AGU) ou o Procurador-Geral da República não poderiam ser indicados para uma vaga no Supremo saindo diretamente de um desses cargos. O caso do Procurador-Geral Augusto Aras é exemplar dessa inadequação, pois ele vem , aos olhos de seus próprios pares no Ministério Público, exercendo o cargo não como representante da classe, mas como candidato à vaga do ministro Celso de Mello, que se aposenta compulsoriamente em novembro. O bate-boca que teve com colegas na recente reunião do Conselho Superior do MPF, inclusive destratando a subprocuradora-geral Luiza Fricheisein com comentários considerados machistas, é o sinal de que aumenta a cada dia o distanciamento entre Aras e os membros do Ministério Público Federal.

Assim, como aponta Toffoli, juízes devem cumprir uma quarenta longa para não usarem seus cargos para fazerem favores ou tornarem-se famosos diante de possíveis eleitores, também os titulares da AGU, como foi Toffoli no governo do PT, e da PGR não deveriam usar os cargos para agradar o presidente do momento para conseguir um assento no Supremo.

O debate sobre a presença dos militares, da ativa e da reserva, no governo do presidente Bolsonaro abrange um outro tipo de “quarentena”. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, já se posicionou a favor de uma legislação que exija que os militares que queiram participar de um governo vão para a reserva antes de assumir cargos, especialmente os de cunho político como ministro de Estado.

Essa é uma abordagem específica de uma questão mais global, que é o uso excessivo de militares em postos da administração federal, tendo mais que dobrado esse número em relação a governos anteriores.

Outra questão relacionada à separação de Poderes no presidencialismo é o hábito brasileiro de parlamentares nos diversos níveis de governo fazerem parte do Executivo, com a possibilidade de pedirem licença dos cargos para os quais foram eleitos para exercerem funções como secretários municipais e estaduais ou ministros.

No presidencialismo puro como nos Estados Unidos, um parlamentar tem que renunciar a seu mandato para aceitar ser ministro no Governo Federal ou nos executivos estaduais ou municipais. Isso porque o Legislativo é um Poder igual ao Executivo e ao Judiciário, não havendo razão para esse intercâmbio de funções, inclusive com o nomeado podendo escolher a remuneração de parlamentar ou da função para a qual foi nomeado.

Essa medida evitaria também que o presidencialismo de coalizão seja deturpado pelo famoso toma-lá-dá-cá. A coalizão se daria em torno de conceitos de programas e projetos. Evidentemente que outro tipo regime, como o parlamentarismo, implica outra concepção. Nele, para ser ministro de Estado é preciso ser parlamentar, são os partidos majoritários e suas coligações que formam o governo.


Fernando Schüler: O Supremo é o editor da sociedade?

Foi exatamente contra a ideia do 'Estado editor' que surgiu o conceito moderno de liberdade de expressão

Foi interessante assistir ao ministro Dias Toffoli, nesta semana, em um debate promovido pelo site Poder 360, expondo com clareza seus pontos de vista sobre temas de censura e liberdade de expressão hoje em pauta no país.

O ministro foi taxativo: “A Constituição veda de modo absoluto a censura prévia”. E concluiu: “Aquilo que ainda não foi tornado público pode vir a público e a pessoa vai arcar com suas consequências […] pode emitir sua ideia, seja ela qual for. Até de defender o nazismo, até de defender o fechamento do Supremo”.

Dito isto, era óbvia a pergunta pendurada no ar: e os cidadãos banidos das redes sociais, no inquérito das fake news? Isto é, impedidos previamente de dizer as coisas que poderiam lhes trazer “consequências”. O que dizer?

O ministro sugeriu uma distinção: uma coisa seria proibir a “expressão” de um indivíduo; outra seria proibi-lo do uso de “veículos” para se expressar. Nesta lógica, os bloqueados não teriam perdido sua liberdade. Apenas não poderiam fazê-lo no Facebook ou no Instagram. Poderiam publicar panfletos, imaginei, mas ninguém aventou a hipótese.

Ato seguinte, o ministro sugeriu uma analogia entre os bloqueios e as prisões preventivas. Privação do direito de ir e vir seria muito mais grave do que perda da liberdade intelectual ou de expressão. Por que então deveria chocar mais as pessoas “meia dúzia de redes sociais paradas do que 200 mil pessoas presas provisoriamente?”

De minha parte, só vejo uma resposta a esta questão: choca por que é algo que não está na lei, muito menos na Constituição. Não importa que se trate de prisão ou banimento do Twitter. Choca é o desrespeito a um princípio, que é um bem para uma sociedade democrática.

O ministro foi além. Depois de se referir ao fato de que toda empresa de comunicação tem seu editor, explicou que “nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”.

Eugênio Bucci estava no debate e, com sua gentileza habitual, lembrou que sociedades não funcionam como empresas de comunicação. Estas pertencem ao mundo privado e podem demitir o funcionário a partir de juízos de valor. Caberia, porém, a uma instituição de Estado fazer o mesmo? Isto é, “eleger valores que definem a circulação de conteúdos”?

Eis aí a questão central: sociedades abertas precisam de um “editor”? Sociedades que se definem precisamente pela diversidade de visões de mundo e por um desacordo fundamental sobre o erro e o acerto, o falso e o verdadeiro?

A resposta a esta pergunta está no próprio nascimento da ideia moderna de liberdade de expressão. Foi para defender o fim do direito à censura prévia de livros que o poeta inglês John Milton, no coração da revolução inglesa, escreveu sua “Areopagítica”.

Em 1644 eram os livros. Hoje são redes e blogs. A questão fundamental é a mesma. Deveríamos presumir, perguntava Milton, que aqueles que censuram “dispõem da graça da infalibilidade, acima de todos nessa terra”? Era exatamente contra a ideia do Estado editor que John Milton se batia.

Estas questões pareciam estar resolvidas há muito tempo. De uma hora para outra, a coisa mudou. Vamos nos tornando um país em que a defesa da liberdade de expressão vai surgindo como um exercício perigosamente retórico e seletivo. E estranhamente capaz de assustar as pessoas.

País em que se aceita acriticamente o retorno da “absolutamente vedada” censura prévia. A lógica do “você não fala mais nada, seja bom, seja mau, seja verdade, seja mentira”, como bem lembrou o professor e amigo Marco Sabino.

Os crimes cometidos na internet devem ser punidos, na forma da lei, e é saudável que se discuta mecanismos de proteção das instituições frente às novas tecnologias. O Congresso, neste exato momento, se dedica a esse debate.

Nada disso, porém, admite a tutela do Estado sobre a opinião. Ainda lembro do orgulho que todos sentimos quando a ministra Cármen Lúcia lembrou canções de sua infância para dizer que o “cala a boca já morreu”. Sugiro não ressuscitá-lo.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Bernardo Mello Franco: Carteirada no Senado

O pronto-socorro do doutor Dias Toffoli voltou a fazer milagres no recesso. Ontem o presidente do Supremo impediu uma operação que mirava o senador José Serra. A Polícia Federal tentou recolher documentos no gabinete do tucano, mas foi barrada na portaria.

Toffoli atendeu a uma reclamação do presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Eleito com a promessa de renovar a Casa, ele se empenhou na blindagem do colega. Antes de recorrer ao Supremo, ligou para um delegado da PF e pediu que o mandado de busca e apreensão não fosse cumprido. A carteirada funcionou.

Alcolumbre não falou francês, mas seu telefonema lembra a atitude do desembargador que se recusava a usar máscara em Santos. Irritado com a multa, o magistrado ofendeu os guardas que faziam seu trabalho. O presidente do Senado não precisou humilhar ninguém. Apenas usou o poder para evitar o cumprimento de uma ordem da Justiça Eleitoral.

Pouco depois, Toffoli suspendeu de vez a operação. O ministro afirmou que o mandado de busca padeceria de “extrema amplitude”. Por isso, haveria “risco potencial” de a PF apreender documentos ligados à atividade parlamentar do senador.

Na linguagem do futebol, o juiz Toffoli apitou “perigo de gol”. Sua decisão sugere que os agentes poderiam encontrar provas de crimes cometidos por Serra no exercício do mandato. Nesta hipótese, o senador estaria protegido pelo foro privilegiado.

É uma linha de raciocínio curiosa. No ano passado, o Supremo enviou o caso do tucano para a primeira instância. Argumentou-se que as suspeitas de caixa dois não tinham relação com o mandato de senador. Agora o presidente da Corte diz que o juiz eleitoral não poderia ordenar a busca no gabinete. O foro privilegiado não valia, mas voltou a valer.

Como o tribunal está em recesso, o Ministério Público não tem a quem recorrer. Responsável pelo plantão judiciário, Toffoli decidirá tudo sozinho até o início de agosto. Quando a folga suprema acabar, a operação de busca terá deixado de fazer sentido. Se havia algo a ser encontrado no gabinete de Serra, não haverá mais.


Luiz Carlos Azedo: O quarto poder

“O Estado não tem poder algum (…) de restringir e de inviabilizar o direito fundamental do jornalista de informar, de pesquisar, de investigar, de criticar e de relatar fatos e eventos de interesse público”

O papel de “poder moderador” que o Supremo Tribunal Federal (STF) avocou para si, a partir do princípio de que é o guardião da Constituição de 1988, está sendo gradativamente volatilizado pela Operação Lava-Jato, com a ajuda dos próprios integrantes da Corte. Nunca antes o Supremo esteve numa situação em que seu presidente passou do estado líquido para o gasoso, como no episódio da proibição da divulgação de uma reportagem da revista Crusoé e do site O Antagonista, pelo ministro Alexandre de Moraes.

A decisão decorreu do fato de o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, ter sido apontado como suposto investigado pela Operação Lava-Jato, e provocou uma reação em cadeia nas redes sociais, na mídia e no Congresso em defesa da liberdade de imprensa. Depois da enxurrada de críticas, Moraes suspendeu a decisão, com o argumento canhestro de que se comprovou a real existência do documento citado pela reportagem. E Toffoli revogou decisão do ministro Luiz Fux que havia proibido a Folha de São Paulo de entrevistar, na prisão, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Como a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Supremo tomaram conhecimento do conteúdo do documento anexado em um dos processos em que Marcelo Odebrecht é alvo na Justiça Federal de Curitiba, segundo Moraes, se tornou “desnecessária” a manutenção da medida que ordenou a retirada da reportagem do ar. “Diante do exposto, revogo a decisão anterior que determinou ao site O Antagonista e à revista Crusoé a retirada da matéria intitulada ‘O amigo do amigo de meu pai’ dos respectivos ambientes virtuais”, justificou. Moraes investiga vazamentos de documentos de caráter sigiloso da delação premiada do empresário Marcelo Odebrecht, supostamente por parte de integrantes da força-tarefa da Lava-Jato.

Todo mundo tirou uma casquinha do Supremo, até o presidente Jair Bolsonaro, que ontem participou de uma solenidade militar na sede do Comando Militar do Sudeste, na Zona Sul de São Paulo: “Prezados integrantes da mídia, em que pesem alguns percalços entre nós, nós precisamos de vocês para que a chama da democracia não se apague. Precisamos de vocês cada vez mais. Palavras, letras e imagens que estejam perfeitamente imanadas com a verdade. Nós, juntos, trabalhando com esse objetivo, faremos um Brasil maior, grande e reconhecido em todo o cenário mundial. É isso que nós queremos”, discursou.

Censura
O recuo ocorreu porque a maioria dos ministros pressionou Moraes e o presidente do Supremo, Dias Toffoli, para que a decisão fosse sustada sem necessidade de uma manifestação do pleno da Corte. Coube ao decano Celso de Mello expressar a posição da maioria, por meio de uma nota oficial: “A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República.”

Celso de Mello reiterou o papel da liberdade de imprensa na democracia: “O Estado não tem poder algum para interditar a livre circulação de ideias ou o livre exercício da liberdade constitucional de manifestação do pensamento ou de restringir e de inviabilizar o direito fundamental do jornalista de informar, de pesquisar, de investigar, de criticar e de relatar fatos e eventos de interesse público, ainda que do relato jornalístico possa resultar a exposição de altas figuras da República.” E abominou “a prática da censura, inclusive da censura judicial, além de intolerável, constitui verdadeira perversão da ética do Direito e traduz, na concreção do seu alcance, inquestionável subversão da própria ideia democrática que anima e ilumina as instituições da República”. Nas democracias do Ocidente, a liberdade de imprensa é uma espécie de “quarto poder”.

No Brasil, o “poder moderador” é uma herança do Império. Foi incorporado à Constituição de 1824 por Dom Pedro I, inspirado no esquema clássico de separação de poderes de Montesquieu, que os dividiu em Executivo, Legislativo e Judiciário, mas acrescentou mais um: o poder real. Em 1889, com a proclamação da República, o Poder Moderador foi extinto no Brasil, mas, na prática, seu papel passou a ser exercido pelos militares, o que provocou uma sucessão infindável de crises políticas. Desde a questão militar, após a Guerra do Paraguai, na década de 1890, até 1988, quando foi promulgada a atual Constituição, militares e políticos se digladiaram em vários momentos (1889, 1920, 1930, 1935, 1937, 1945, 1954, 1958, 1962, 1964, 1968, 1985), com episódios dramáticos.

Os militares sempre se acharam moralmente superiores aos políticos civis, porque se consideram os “salvadores da pátria”; e os políticos sempre temeram os militares, porque atuaram na política com a força das armas na maioria das vezes. As exceções foram as eleições de Floriano Peixoto (1891), Hermes da Fonseca (1910) e Eurico Gaspar Dutra (1946), que chegaram ao poder pelo voto. Todos passaram a Presidência para civis igualmente eleitos: Prudente de Moraes (1898), Venceslau Brás (1914) e Getúlio Vargas (1951). Bolsonaro, que mal começou seu mandato, apesar de certo dejà vu, faz parte de um novo ciclo democrático.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-quarto-poder/


Bernardo Mello Franco: Dobradinha suprema

Ofensiva contra a Lava-Jato é o lance mais ousado da dupla Toffoli-Gilmar. Um abriu inquérito; o outro chamou procuradores de ‘gentalha’

O ministro Dias Toffoli iniciou os trabalhos da quinta-feira com um pronunciamento fora do script. Em tom grave, anunciou a abertura de inquérito sigiloso para apurar “denunciações caluniosas” contra o Supremo Tribunal Federal. Alegou a existência de ameaças “à honorabilidade e à segurança” da Corte.

Na sequência, o ministro Gilmar Mendes disparou seu ataque mais radical à Lava-Jato. Chamou os investigadores de “desqualificados”, “cretinos”, “covardes”, “despreparados” e “gentalha”. “Assim se instalam as milícias. O esquadrão da morte é fruto disso”, sentenciou.

Ao fim da sessão, soube-se que o inquérito de Toffoli investigará procuradores de Curitiba e auditores da Receita. O presidente do Supremo dispensou o sorteio eletrônico e delegou o caso ao ministro Alexandre de Moraes. Em outro lance incomum, a Procuradoria-Geral da República não foi consultada ou convidada a participar das apurações.

A ofensiva é o movimento mais ousado da dobradinha Toffoli-Gilmar. Os dois ensaiavam uma ação conjunta desde fevereiro, quando se descobriram na mira do Fisco. Um relatório ligou Gilmar, sua mulher e a mulher de Toffoli a suspeitas de irregularidades financeiras.

Até aqui, a dupla conseguiu ganhar no grito. O ministro da Economia, Paulo Guedes, aceitou a pressão e transformou investigadores em investigados. O secretário da Receita, Marcos Cintra, prometeu “ações punitivas”. Chegou a chamar subordinados de“meliantes”.

O entrosamento entre Toffoli e Gilmar ficou conhecido nas sessões da Segunda Turma. No entanto, a sintonia não se limita aos julgamentos de políticos acusados de corrupção. Em ao menos dois episódios, o ministro mais antigo saiu em socorro do mais novo.

Em 2015, Gilmar livrou José Ticiano Dias Toffoli, ex-prefeito de Marília e irmão de quem o nome indica, de uma ação de inelegibilidade. No ano seguinte, ofereceu um escudo quando o colega foi citado na delação da OAS. Disse que era preciso “colocar freios” nos procuradores, a quem acusou de embarcar em “delírios totalitários”. “Calcem as sandálias da humildade”, prosseguiu. Se o ministro já tiver encontrado um par do seu número, ninguém ficou sabendo.

Há seis meses, a dobradinha ganhou poder inédito com a chegada de Toffoli à presidência do Supremo. Ele já retribuiu o apoio do colega ao comandar a reação contra a Receita. O maior risco para a dupla é exagerar na dose. Em vez de parar os ataques, a nova ofensiva atiçou a militância bolsonarista. Sua nova cruzada é para convencer o Senado a abrir um processo de impeachment contra Gilmar.

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De um ministro que ficou vencido na quinta-feira, quando a Corte despachou para a Justiça Eleitoral processos contra políticos acusados de caixa dois e corrupção:

“Se depois disso a gente ainda derrubar a prisão em segunda instância, vão depredar o prédio do Supremo. E eu sou capaz de sair para jogar pedra também”.


O Estado de S. Paulo: Toffoli vê movimento para ‘assassinar reputações’ no País

Após abrir inquérito para investigar ameaças à Corte, ministro diz ao ‘Estado’ que ação nas redes sociais atinge ‘todas as instituições e é necessário evitar que se torne uma epidemia’

Vera Rosa, de O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - Um dia após anunciar a abertura de inquérito para investigar fake news, ofensas e ameaças dirigidas a integrantes do Supremo Tribunal Federal, o presidente da Corte, Dias Toffoli, disse que a tecnologia voltada para destruir a honra será combatida a todo custo. Nos últimos dias, o Supremo foi alvo de novos ataques nas redes sociais e recebeu críticas até de procuradores da Lava Jato.

“Esse assassinato de reputações que acontece hoje nas mídias sociais, impulsionado por interesses escusos e financiado sabe-se lá por quem, deve ser apurado com veemência e punido no maior grau possível”, afirmou Toffoli ao Estado. “Isso está atingindo todas as instituições e é necessário evitar que se torne uma epidemia.”

O tema também fará parte do cardápio do almoço de hoje entre os chefes dos três Poderes. A ideia foi do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que convidou para o encontro o presidente Jair Bolsonaro, Toffoli e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), além de ministros.

O presidente do Supremo pretende reforçar ali sua proposta de um “pacto entre os poderes” para votar reformas consideradas fundamentais, como a da Previdência e a tributária. A escalada de agressões enviadas principalmente em correntes de WhatsApp e postagens no Twitter e Facebook preocupa a Corte em um momento de crescente tensão política. No Senado, um grupo articula a criação da “CPI da Lava Toga”, a fim de investigar possíveis excessos cometidos por tribunais superiores.

“Os ataques às instituições que vitimizam todos, incluindo a imprensa séria, são verdadeiros atentados ao estado democrático de direito”, insistiu Toffoli. “Judiciário independente e imprensa livre são as bases da democracia. Foi assim que os Estados Unidos foram construídos.” Para o ministro do Supremo Gilmar Mendes, as “milícias digitais” não são amadoras. “Precisamos melhorar o sistema de defesa a esses ataques industrializados”, comentou ele.

Uma das suspeitas que devem ser investigadas agora pela Corte é a possibilidade de haver um movimento internacional sustentando as agressões nas redes sociais, com o objetivo de desestabilizar o País. “Pode ser, eventualmente, uma hipótese para atender a indústria bélica, que há muitos anos não tem uma grande guerra como cliente”, argumentou Toffoli.

A ofensiva contra o Supremo recrudesceu às vésperas do julgamento que representou uma derrota para a força-tarefa da Lava Jato. Por 6 votos a 5, a Corte decidiu que crimes ligados à prática de caixa 2, como corrupção e lavagem de dinheiro, devem ser julgados na Justiça Eleitoral. A Procuradoria-Geral da República e os procuradores da Lava Jato queriam que as investigações ficassem a cargo da Justiça Federal.

Em um movimento lançado quase ao mesmo tempo em que aliados de Bolsonaro defendiam nas redes a reforma da Previdência, o STF foi alvo de todo tipo de xingamento. Mensagens pregando intervenção e fechamento da Corte, além da Dias Toffoli hashtag #atogacontraopovo, passaram a ser comuns, principalmente no WhatsApp.

Conduta
Sob sigilo, o inquérito determinado por Toffoli, que terá como relator o ministro Alexandre de Moraes, vai investigar até a conduta de procuradores da Lava Jato, como Deltan Dallagnol e Diogo Castor. Em vídeo postado na internet, Dallagnol conclamou a população a se posicionar contra qualquer decisão do Supremo que não fosse a defendida pela Lava Jato. Castor disse que estava em curso um “golpe” contra a operação de combate à corrupção no Brasil.

A investigação do STF é vista por procuradores como uma forma de intimidar o Ministério Público. Ainda ontem, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, solicitou informações sobre o inquérito a Moraes. Na sua avaliação, o caso tem potencial para comprometer a imparcialidade do Judiciário, já que a função de investigar não faz parte da competência do Supremo.

“Os fatos ilícitos, por mais graves que sejam, devem ser processados segundo a Constituição”, afirmou ela. Toffoli rebateu e disse que, além de haver previsão regimental para abertura do inquérito, o Código de Processo Penal estabelece que toda investigação deve ser supervisionada por um juiz. O ministro lembrou, ainda, que na época das eleições a Polícia Federal instaurou procedimento para investigar a disseminação de fake news referentes a candidatos à Presidência. Na ocasião, o pedido para apurar a existência de um esquema empresarial para interferir na disputa foi feito pela própria Raquel. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também chegou a abrir processo sobre o assunto.

“Depois que foi aberto o inquérito, a propagação de notícias fraudulentas cessou. No segundo turno não houve mais nada”, observou Toffoli, para quem a investigação também tem caráter pedagógico. “Não dá para aceitar esse tipo de coisa. Além das instituições e da sociedade como um todo, ao fim e ao cabo é a população pobre que acaba sofrendo mais as consequências.”

“Esse assassinato de reputações que acontece hoje nas mídias sociais, impulsionado por interesses escusos e financiado sabe-se lá por quem, deve ser apurado com veemência e punido no maior grau possível.”

“Os ataques às instituições que vitimizam todos, incluindo a imprensa séria, são verdadeiros atentados ao estado democrático de direito.”

Colaborou Amanda Pupo .


João Domingos: A ‘CPI da Lava Toga’

Os contrários à votação da pauta econômica e de segurança vão fazer a festa

Fundamentais para o impeachment de Fernando Collor, em 1992, para a descoberta do desvio de verbas do Orçamento da União pelos chamados “anões do Orçamento”, entre 1993 e 1994, e para se chegar ao escândalo do mensalão, em 2005, as CPIs perderam força ou tiveram suas funções invertidas nos últimos anos. De instrumento poderoso de investigação, pois com o auxílio do Ministério Público e Polícia Federal, além de contarem com o poder da publicidade da comunicação parlamentar totalmente despida de censura, muitas CPIs se tornaram instrumento de chantagem, de promoção pessoal e até mesmo de obtenção de vantagens indevidas, conforme investigações internas feitas no Senado e na Câmara e que levaram até à abertura de processos de cassação de mandato por quebra de decoro parlamentar.

Como as CPIs se banalizaram demais, não foi à toa que oito parlamentares da base do governo de Jair Bolsonaro, seis deles do PSL do presidente, madrugaram na última segunda-feira, 4, para esperar a abertura da porta da Secretaria-Geral da Mesa com um pedido de instalação de uma CPI, todas elas chapa-branca ou para investigar coisas ocorridas nos governos petistas: programa Mais Médicos, Comissão da Verdade, entre outros.

Com a iniciativa, a bancada governista preencheria logo as cinco vagas de funcionamento simultâneo de CPIs, conforme determina o regimento interno da Câmara. Com isso, impediria o PT ou qualquer outro partido de oposição de aparecer com um pedido de investigação indesejável contra o governo de Bolsonaro. Do ponto da luta política, é uma estratégia. Do ponto de vista da investigação parlamentar, a perda de um instrumento que já foi poderoso e que agora tem se prestado a outras coisas, menos à investigação séria.

Se na Câmara o PSL e outros partidos do governo foram mais espertos do que o PT e a oposição, em geral, e entupiram a Mesa da Casa de pedidos de abertura de investigações sobre os petistas, no Senado está se armando uma CPI que tem tudo para nascer torta e se tornar o pior exemplo daquilo em que a investigação parlamentar foi transformada.

Trata-se da CPI que visa a investigar o ativismo judicial dos tribunais superiores. Por trás, desconfia-se que há nela uma vingança de senadores contra o presidente do STF, Dias Toffoli, que há uma semana derrubou manobra do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e determinou que a eleição para a Mesa da Casa tivesse voto secreto e não aberto. Tal CPI ganhou dos senadores o apelido de “Lava Toga”.

Nas circunstâncias em que está sendo criada, e dado o momento político delicado, essa CPI vai servir apenas para causar tumulto e jogar um Poder contra o outro. À sua sombra, os contrários à votação da pauta econômica e de segurança pública do governo vão fazer a festa. Quanto mais confusão nesse momento, melhor para atrapalhar o governo, a votação da reforma da Previdência e o pacote contra os crimes violentos e o crime organizado e o caixa 2 nas campanhas eleitorais.

Se a CPI que visa a investigar o ativismo judicial for levada à frente e concluir que há mesmo um ativismo, o que ela fará? Nada. Vai determinar aos ministros que revejam suas decisões? Na vai. CPIs não têm poder para isso. Ajudará a desmoralizar ainda mais o instrumento de investigação parlamentar. Essa CPI não tem um fato determinado. É carregada de subjetivismo. Diz o pedido de abertura dela que “a atuação dos tribunais superiores tem sido pontuada, na história recente, pelo exacerbado ativismo judicial e por decisões desarrazoadas, desproporcionais e desconexas dos anseios da sociedade”.

Se as CPIs ainda fossem sérias, essa CPI da “Lava Toga” mereceria uma CPI para apurar as circunstâncias em que foi requerida. Até porque o artigo 146 do Regimento do Senado proíbe CPIs sobre o Poder Judiciário. Deixa pra lá.


Ricardo Noblat: Com que cara fica Toffoli?

Autoridade desafiada

Responsável pelo plantão do Supremo Tribunal Federal no último fim de semana, o ministro Dias Toffoli soube que trabalharia duro quando o Senado, na noite da sexta-feira, suspendeu a sessão que deveria ter sido concluída com a eleição do seu novo presidente.

Toffoli correu para responder às pressas e de maneira convincente a consulta do MDB sobre eventuais irregularidades cometidas durante a sessão. E pouco antes das 4 horas do sábado, sua decisão estava pronta e foi imediatamente divulgada. Cumpra-se.

Em parte foi cumprida. Mas só em parte. Na sexta-feira, por 50 votos contra 2, o Senado decidira que a eleição se faria por meio do voto aberto e nominal. Quer dizer: no painel eletrônico, apareceria o nome de cada senador e o seu respectivo voto.

Não, nada disso, decretou Toffoli. O voto teria de ser secreto porque o regimento interno do Senado manda que seja assim. E também porque em despacho recente, o próprio Toffoli já estabelecera que o voto fosse secreto. Na Câmara, por exemplo, é secreto.

A ordem de Toffoli foi ignorada por diversos senadores – entre eles, Flávio Bolsonaro, filho de quem é. Meia dúzia ou mais de senadores anunciou em voz alta em quem votaria e, para provar, mostrou a cédula preenchida com o nome do seu candidato.

Foi um escancarado gesto de desrespeito à decisão do presidente da mais alta corte de justiça do país. O desrespeito representa também um desafio a Toffoli: o que ele fará? Deixará tudo por isso mesmo? Fingirá que nada de grave aconteceu? Vida que segue?

Onyx ri à toa

De quem ele ri?

Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil da presidência da República, ri de Paulo Guedes, o todo poderoso ministro de tudo o que tenha a ver com a economia, mais conhecido como o Posto Ipiranga do presidente enfermo Jair Bolsonaro.

Guedes aproximou-se de Renan Calheiros e vice-versa contando com o apoio dele para aprovar no Senado a mãe de todas as reformas – a da Previdência. E tudo o mais que o governo viesse a precisar. Confiava na eleição de Renan para presidente do Senado.

Ao passar a perna em Renan, Onyx, o mentor da candidatura de Davi Alcolumbre (DEM-AP) à presidência do Senado, passou também a perna em Guedes que nunca lhe conferiu muita importância. Doravante, será obrigado a fazê-lo.

Alcolumbre comerá na mão de Onyx. Como também quem mais venha a precisar da sua ajuda. Ele é a quarta pessoa mais importante da República, só abaixo de Bolsonaro, do vice Mourão e de Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados.

Foram subestimar Onyx? Olha o troco aí.


O Globo: Toffoli diz que Constituição não impede mudança nas regras para a posse de armas

Para presidente do Supremo, decreto do governo Bolsonaro que pretende flexibilizar acesso a armamento e restrições à progressão de pena não atingem cláusulas pétreas

Por Carolina Brígido, de O Globo

BRASÍLIA — A intenção do governo Bolsonaro de mudar as regras sobre posse de armas e endurecer o sistema de progressão de pena a condenados pode não encontrar resistência no Supremo Tribunal Federal (STF). O presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, acredita que toda política pública pode ser alvo de mudança, desde que não ofenda cláusula pétrea da Constituição — ou seja, aquelas regras que não podem ser alteradas.

Para Toffoli, é juridicamente possível deixar o preso atrás das grades por mais tempo, como defende o governo Bolsonaro. Hoje, para um condenado trocar o regime fechado pelo semiaberto, por exemplo, precisa cumprir no mínimo um sexto da pena. O Planalto quer aumentar o tempo para essa transição.

Toffoli também explicou que políticas que facilitem o acesso da população a armas podem, em tese, ser alteradas por novas legislações. O governo Bolsonaro planeja editar um decreto sobre o tema, e o texto está sendo analisado na Casa Civil. Toffoli ponderou, no entanto, que não pode haver mudança em cláusulas pétreas e citou como exemplo a pena de morte, que é vedada pela Constituição.

— Qualquer política pública pode ser formatada, desde que não ofenda cláusula pétrea. Por exemplo: alterar regime de progressão de pena é possível, a Constituição não impede. Alterar a política de armamento da população, a Constituição também não impede. Estabelecer pena de morte: aí a Constituição impede, é cláusula pétrea — disse o ministro ao GLOBO.

Como já disse em outras ocasiões, Toffoli quer deixar o protagonismo para os novos Executivo e Legislativo, eleitos pela população. Ficariam na conta do STF só decisões essenciais para garantir a democracia e a liberdade de expressão. Ainda assim, alguns temas serão inevitáveis, como a reforma da Previdência. Se aprovada no Congresso Nacional, certamente será questionada no STF. A recomendação de Toffoli é que seja negociada uma reforma para reduzir regras, e não ampliar, como uma forma de gerar menos contestação judicial.

— Todas as reformas vieram para o STF. Isso é o resultado de uma Constituição muito ampla. Talvez o caso seja de reformas que diminuam o tamanho da Constituição, e não que aumentem. Porque, quanto mais aumenta, mais você dá margem para contestação jurídica, para conflito jurídico. Esse é um dos problemas das nossas reformas: elas geralmente tendem a aumentar o número de dispositivos da Constituição — ponderou.

Toffoli também defendeu a liberdade de imprensa e disse que o STF sabe conviver com as críticas.

— Se você tem uma imprensa manietada, censurada, ou se você tem um Judiciário que não é independente, você vai ter o autoritarismo de alguma forma. E quem garante a imprensa livre no Brasil é o Supremo. Mesmo que muitas vezes o Supremo seja criticado pela imprensa tradicional, ou ministros sejam criticados, é unânime aqui a defesa da liberdade de imprensa e de uma imprensa livre — declarou Toffoli.

CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA NA PAUTA

Ao falar sobre ataques sofridos pelo tribunal nas redes sociais, especialmente no fim do ano, quando foi aprovado um reajuste salarial para juízes da ordem de 16,38%, ou ainda antes, a partir de decisões que levaram à soltura do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu e do empresário de ônibus do Rio Jacob Barata, Toffoli diz que as críticas à Corte são do jogo democrático. Mas ele alerta para o fato de que elas não podem resvalar para práticas criminosas:

— É a covardia do anonimato das redes sociais. Tem mentiras, fake news. Temos que nos acostumar: numa sociedade democrática, a crítica também faz parte. A pessoa tem todo o direito de não gostar desta ou daquela pessoa. Isso faz parte da democracia. O que não pode ter é ato violento e ato desrespeitoso, do ponto de vista calunioso.

O presidente do Supremo afirmou ainda compreender quem fica descontente com decisões judiciais, mas não se deve chegar ao ponto de pedir o fechamento de um tribunal por conta da discordância com a decisão proferida.

— Tem que deixar claro que os juízes não acordam de manhã e dizem: “Vou julgar isso aqui”. Vem alguém pedir ao Judiciário. Então fechar o Judiciário é fechar o acesso do exercício da cidadania, é fechar a democracia. Isso nenhum governo autoritário no Brasil fez, em nenhum momento da História — sustenta.

Apesar de ter julgamento sobre as prisões de segunda instância marcado para abril, o STF deve ter o papel penal reduzido este ano. Com a transferência de processos da Lava-Jato para a primeira instância, por causa da mudança na regra do foro especial, o tribunal tende a se ocupar mais de temas constitucionais.

Para o primeiro semestre de 2019, estão previstos julgamentos importantes para a sociedade, como a obrigatoriedade de o poder público fornecer medicamentos de alto custo para quem não tem condições financeiras e também o processo que trata da criminalização da homofobia. Além de lidar diretamente com os direitos das pessoas, as causas têm em comum o fato de que o Congresso Nacional não legislou sobre os assuntos, por falta de consenso político.


Dias Toffoli: Vida longa à Constituição de 1988!

Ressoam nela as vozes da Nação, dando corpo a um grande pacto social, político e econômico

A Constituição de 88, passados 30 anos, permanece uma das mais avançadas e democráticas do mundo contemporâneo, em especial no que diz respeito aos direitos e garantias dos cidadãos. Vivemos o mais longo período de estabilidade democrática. Profundas foram as mudanças e contínuo é o processo de fortalecimento de nossas instituições e de nossa democracia.

A Carta cidadã chegou-nos em meio a uma pletora de demandas reprimidas dos diversos segmentos da sociedade. Fez história ao contar, pela primeira vez na República, com o voto dos analfabetos na eleição da Assembleia Constituinte.

Sua construção não se deu sem embates. Em face das múltiplas demandas, era inevitável que surgissem conflitos de interesses. Ainda assim, os constituintes lograram aprovar uma Carta plural, vocacionada a promover a convivência dos múltiplos anseios sociais. Por isso a nossa Lei Maior se tornou tão analítica. Ressoam nela as vozes da Nação, dando corpo a um grande pacto social, político e econômico.

Devemos reafirmar o nosso comprometimento com a manutenção e longevidade desse pacto fundante. Vivemos num Brasil diferente, que demanda a atualização constitucional em pontos específicos. Precisamos de uma reforma da Previdência para fazer frente ao aumento da expectativa de vida no País, de uma reforma que promova simplicidade e eficiência no sistema tributário e de uma reforma que resgate a representatividade política e partidária. Fundamental para tanto que o povo, a sociedade civil e os Poderes da República se reúnam num grande pacto para corrigir rumos, sempre respeitando a essência imutável do texto constitucional.

Aos mais afoitos lembro que a própria Carta estabeleceu procedimentos de reforma, seja por emendas à Constituição (que já somam 105, incluindo as de revisão), seja por meio da jurisprudência, em particular do Supremo Tribunal Federal (STF), guarda supremo da Lei Magna. Como lembra o professor Eros Grau, a “Constituição do Brasil de 1988 não é, em verdade, de 1988. É a Constituição de hoje, aqui, agora, tal como a expressam, como norma jurídica, os juízes e os nossos tribunais”.

Temos, é inegável, passado por episódios turbulentos. Investigações envolvendo a classe política. Impeachment de uma presidente da República. Cassação de um presidente da Câmara dos Deputados. Condenação e prisão de um ex-presidente da República. Não obstante, olho para esses eventos com otimismo e esperança, pois todos os impasses foram resolvidos pelas vias institucionais democráticas, com total respeito à Constituição e às leis. Os Poderes da República têm respeitado e tornado efetivos os mecanismos de controle recíproco e de combate à corrupção. O Judiciário, em especial o STF, tem assumido sua vocação de moderador dos conflitos políticos, sociais, culturais e econômicos da sociedade brasileira. Temos um Judiciário fortalecido, independente e atuante, que cumpre sua função de garantir a autoridade do direito e da Constituição.

Felizmente, as ruas têm recobrado uma vivacidade que não víamos desde as Diretas-Já e a luta pela redemocratização. Temos hoje uma sociedade mais combativa, engajada politicamente e ciente de seus direitos. Uma sociedade em que diferentes grupos – trabalhadores, mulheres, negros, índios, LGBT e deficientes, entre outros – se mobilizam para dar voz a seus anseios e pautas políticas.

Conseguimos chegar a esse patamar de participação graças à Constituição de 88, que tutela a liberdade em suas diversas formas, dentre elas a liberdade de expressão e de consciência política, garantindo ao cidadão amplo direito de voz. É esse um dos grandes legados da Carta cidadã, resoluta que foi em romper definitivamente com um capítulo triste de nossa História em que essa liberdade – entre tantos outros direitos – foi duramente sonegada ao cidadão.

A democracia brasileira, nos últimos 30 anos, realizou, de forma plena, um de seus mais caros fundamentos: o pluralismo. Se houve tantos embates nos últimos anos, isso se deve ao fato de que o poder no Brasil é plural. E é melhor que o seja, pois, como já foi dito, um poder que não é plural é violência.

O conflito só floresce na diferença. Numa democracia esse conflito se torna debate. O debate gera resolução e, por fim, transformação. Por isso, em minha visão, não somos um país em crise. Estamos em transformação. Estamo-nos transformando numa sociedade mais livre, plural, engajada e propositiva. Enfim, mais democrática.

O futuro impõe-nos, ainda, inúmeros desafios. Destaco a educação, a segurança e a superação das desigualdades sociais e regionais. Outro desafio está na manutenção da segurança jurídica neste mundo cada vez mais hiperconectado, onde os conflitos e mudanças ocorrem em velocidade crescente.

A Justiça permanece atenta a esses desafios. Ciente de seu papel de agente nesta transformação social, deve primar por uma jurisdição eficiente, transparente e responsável, de modo a realizar o Direito na vida do cidadão.

O cidadão brasileiro é o real protagonista da mudança. Nosso povo, tal como há 30 anos, prepara-se para fazer a diferença nas eleições do dia 7 de outubro. Cada cidadão projetará nas urnas seus anseios políticos e, assim, participará do ritual de renovação da democracia para um novo e frutífero ciclo.

Renovamos, neste aniversário de 30 anos, nosso compromisso com a soberania popular, com a democracia, com a tolerância, com o respeito às diferenças e, acima de tudo, com a Constituição da República, o pacto fundante da Nação brasileira, que vem cumprindo e continuará a cumprir sua missão de, nas palavras de Canotilho, fazer “ecoar os gritos do nunca mais: Nunca mais a escravatura. Nunca mais a ditadura. Nunca mais o fascismo e o nazismo. Nunca mais o comunismo. Nunca mais o racismo. Nunca mais a discriminação”.

O Supremo Tribunal Federal estará sempre a postos como o garante desse pacto. Vida longa à Constituição de 1988!