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Monica de Bolle: O vírus da desinformação

Pessoas seduzidas pelo “like”, validadas pela “curtida”, cheias de segurança pela viralização do que publicam, não param para refletir se aquele tuíte ou post pode ser perigoso no contexto de uma pandemia

Altamente contagioso e letal, o vírus da desinformação chama-se “like” ou “curtida”. Ele circula sem constrangimento nas redes sociais e atinge milhões de pessoas todos os dias. Não quero dizer com isso que as pessoas que apertam o botão da mãozinha, às vezes de forma automática, sem pensar, sejam as principais transmissoras do patógeno. É pior. Pessoas cujo ofício é informar, ou pensar, ou às vezes até ensinar são os verdadeiros vetores de transmissão. Por quê? Seduzidas pelo “like”, validadas pela “curtida”, cheias de segurança pela viralização do que publicam, não param para refletir se aquele tuíte ou post pode ser perigoso no contexto de uma pandemia, de um Brasil prestes a cair de cabeça na chamada segunda onda, de um país governado por mentecaptos negacionistas. Já vi muita gente boa sucumbir ao vírus da desinformação, e isso me causa tristeza profunda. Dói, até.

Desde o início da pandemia defendo a necessidade de aprender um pouco de biologia, imunologia, virologia para dar conta do que se passa ao nosso redor.

Desde o início da pandemia tenho afirmado que esse conhecimento é importante em especial para aqueles que trabalham diretamente com a informação, tais como jornalistas, comentaristas, colunistas, professores e pesquisadores que participam do debate público, ou qualquer um que exerça ofício que alcance o público geral. Sem algum conhecimento de biologia, é impossível fazer o serviço mais importante de utilidade pública, depois, é claro, daquele prestado pelos profissionais de saúde: passar informação confiável e acessível para que as pessoas se orientem e se movimentem com consciência e segurança. No Brasil, isso implica afastar teorias conspiratórias e fantasiosas de um governo que oscila entre a demência e a mentira. Infelizmente, também requer desafiar a soberania das curtidas.

Pelas curtidas, propaga-se desinformação sobre as vacinas. Por exemplo: houve quem afirmasse que a vacina do laboratório Sinovac, a CoronaVac, com ensaios clínicos no Brasil, demonstrou eficácia de 97%, ou seja, uma eficácia maior do que as vacinas genéticas da Pfizer e da Moderna. Algumas dessas pessoas corrigiram o erro, mas não se deram ao trabalho de explicar as origens do equívoco. Neste momento perigoso para o enfrentamento da pandemia, com um governo que despreza as ciências e pessoas em intensa campanha antivacinação, a confusão que esse tipo de equívoco gera é de irresponsabilidade indescritível. Em meu canal no YouTube fiz dois vídeos tentando desfazer parte da confusão. E vou explicar um pouco mais aqui.

O laboratório Sinovac não divulgou os resultados de eficácia da vacina, pois ela ainda não está nesse estágio, ao contrário da vacina da Pfizer e a da Moderna. O que o laboratório publicou foi a imunogenicidade da CoronaVac, isto é, a capacidade da vacina de suscitar uma resposta imune nos ensaios clínicos de Fase I/II. Noventa e sete por cento dos voluntários mostraram resposta, mas não se sabe se essa resposta é protetora contra a doença, e é essa evidência que buscam os ensaios da fase seguinte, os chamados ensaios de Fase III. Uma vez colhidos os dados sobre imunogenicidade, os ensaios de Fase III tratam de averiguar se a vacina é ou não eficaz.

Como? Voluntários são recrutados, protocolos são elaborados e grupos randomizados recebem a vacina ou o placebo usando o procedimento chamado duplo cego, no qual tanto os cientistas envolvidos quanto os participantes desconhecem se foram vacinados ou inoculados com placebo. Passado um tempo, algumas dessas pessoas vão se infectar no decorrer de suas atividades normais. Quando esse número é alto o suficiente, abre-se o duplo cego para avaliar quem se infectou mais. Caso mais pessoas do grupo placebo tenham se infectado do que as do grupo de vacinados, há eficácia. Ilustrando com números: se entre 100 pessoas infectadas 95 forem do grupo placebo e 5 do grupo de vacinados, a vacina tem eficácia de 95%, ou seja, ela protege 95% dos vacinados considerando-se uma margem estatística de confiança adequada.

A vacina eficaz é uma espécie de treino. Ela ensina as defesas de seu corpo — seu sistema imune — a reagir caso encontre o vírus causador da Covid-19. Ao fazer isso, a vacina gera proteção contra a doença, uma doença que pode matar, que pode deixar sequelas gravíssimas em pacientes “recuperados”. Vale a pena trocar essa valiosa esperança por uma curtida efêmera em rede social? Por milhares de seguidores desconhecidos que muitas vezes aplaudem sem saber o que estão aplaudindo? Vale a pena? Vale?

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Cristiano Romero: Obstáculo da reforma está na desinformação

Uma das características marcantes do debate nacional é a manipulação da informação. É mais fácil “dialogar” quando o interlocutor não sabe exatamente do que se está falando. Muito antes do advento das “fake news” que se propagam feito erva daninha nas redes sociais, notícias falsas, lendas urbanas e mistificações já se disseminavam com enorme facilidade para além das conversas de bar.

A ignorância repetida como verdade, registre-se, nunca foi privilégio de pessoas com baixo acesso à educação formal e aos meios de comunicação. Nas universidades públicas, lócus do conhecimento e supostamente do livre debate de ideias, elites intelectuais, reféns do corporativismo, são contrárias às reformas de que o Brasil precisa para se tornar socialmente mais justo. Funcionam como igrejas, de um credo só, onde opiniões que questionem o status quo de seus “donos” (professores e funcionários) não são bem-vindas. Mesmo quem tem por ofício, como os jornalistas, informar da maneira mais ampla, objetiva e desinteressada possível, queda-se muitas vezes pelo caminho obscuro da desinformação. O alheamento aos problemas renitentes deste imenso país é um defeito inaceitável na conduta de quem possui o dever de informar.

A discussão urgente sobre a necessidade de o país mudar as regras de aposentadoria de seus cidadãos, principalmente dos funcionários públicos, é hoje a principal vítima da manipulação de informação, uma forma perversa de se perpetrar a desinformação. Uma sociedade mal informada é campo fértil para a sagração de populistas, demagogos e patrimonialistas.

Por que privilégios do funcionalismo não revoltam jovens da Vila?

A defesa de ampla e profunda reforma previdenciária é missão árdua em Brasília, palco das decisões nacionais. Em tese, não deveria ser tão difícil, afinal, se a reforma é para reduzir privilégios do funcionalismo público de um lado e, do outro, adequar as regras de aposentadoria dos trabalhadores do setor privado – que se aposentam pelo INSS, com piso de um salário mínimo e teto pouco acima de R$ 5 mil – à evolução da demografia, o pendor por mudanças seria determinado pelo grupo mais numeroso de brasileiros. Infelizmente, não funciona assim.

O desequilíbrio é chocante e deveria impressionar os moradores da Vila Madalena, animado bairro de classe média de São Paulo, reduto de jovens em sua maioria contrários a mudanças na Previdência e a reformas que revolucionem a vocação histórica do Estado brasileiro de destinar a maior parte de seus parcos recursos a quem menos precisa de sua ajuda (grandes empresas, estudantes de famílias abastadas, multinacionais da indústria automotiva, Estados e prefeituras mais ricos, funcionários públicos, monopólios, estatais etc).

Temas como o fim da estabilidade do funcionalismo e a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, mudanças que poderiam ajudar a diminuir a concentração de renda reinante por aqui desde quando nos chamávamos Ilha de Vera Cruz. A razão para tanta conversa fiada é uma só: desinformação. Junte-se a isso a velha prática da esquerda brasileira de defender slogans antes de conhecer as ideias que os justifiquem e pronto: o debate será sempre torto e, portanto, inútil, o que contribui decisivamente para o país ter dezenas de milhões de pessoas vivendo em regime de miséria absoluta e outras dezenas de milhões em estado de pobreza imobilizante.

Os números da Previdência em 2018 foram os seguintes:

1) contabilizando o que todos – trabalhadores e patrões – contribuímos para o INSS e as despesas com pagamento de aposentadoria, pensões e benefícios assistenciais, faltaram R$ 195,19 bilhões. Este foi o déficit da Previdência Social, que se refere a um universo de cerca de 30 milhões de pessoas, entre aposentados, pensionistas e beneficiários de programas assistenciais;

2) a outra parte da conta está nos regimes próprios de previdência do funcionalismo federal e dos militares, um contingente de aproximadamente um milhão de pessoas. Neste caso, a conta também não fecha: entre o que servidores e militares contribuíram em 2018 para a aposentadoria e o que os aposentados e pensionistas receberam, o saldo, negativo, chegou a R$ 46,4 bilhões entre os civis, R$ 43,9 bilhões no caso dos militares e a R$ 4,8 bilhões entre funcionários do Distrito Federal, cujos benefícios ainda são pagos pela União. Total: R$ 95,1 bilhões, R$ 10 bilhões acima do rombo de 2017.

Assim, o déficit total da Previdência no último ano somou a incrível cifra de R$ 290,3 bilhões, R$ 20 bilhões a mais que no ano anterior. Se faltou dinheiro, como o Tesouro Nacional cobriu a conta? De duas formas, como se vem fazendo há muitos anos: tomando dinheiro emprestado no mercado a juros altos e cortando gastos de outras áreas, como educação, saúde e segurança pública, além de investimentos onde o Estado é demandado.

A área que mais perde é a saúde e apenas esse fato deveria ser suficiente para mobilizar o pessoal da Vila Madalena, preocupado com os rumos da nação. Muitos não ligam uma coisa à outra, mas por que o Brasil melhora a passos de cágado os indicadores de saúde e educação de sua população? Claro, o problema não é só falta de recursos, mas isso explica uma boa parte do problema. O fato é que, enquanto não houver uma solução de médio e longo prazos para as contas Previdência, o Brasil terá sempre mania de grandeza, em vez de grandeza.

No debate, alguns alegam que uma parte da conta – os benefícios assistenciais não contributivos, como o abono salarial – deveria estar fora do déficit, e que este deveria refletir apenas o saldo entre contribuições e despesas. É um argumento razoável, mas é preciso ponderar que a Constituição de 1988 introduziu o conceito de seguridade, inspirado no modelo espanhol e que vai além da Previdência. O que está por trás desse modelo é a ideia de que todos – cidadãos e empresas – devemos contribuir para melhorar a vida de quem tem menos oportunidade, parte da visão de que uma sociedade com menos desigualdades é melhor para todos. De toda forma, retirar as despesas assistenciais não acabaria com o déficit.