Democracia e Novo Reformismo

Cláudio de Oliveira: Política de alto nível na Alemanha. E no Brasil?

Na foto estampada nos jornais de hoje, Angela Merkel, atual primeira-ministra da Alemanha, recebe flores de Olof Scholz, que possivelmente a sucederá no cargo. Detalhe: Scholz é do partido adversário ao de Merkel.

Ela é da União Democrata-Cristã, a CDU, um partido liberal-democrático, de centro-direita, que desde o pós-guerra rivaliza com o SPD, o Partido Social-democrata Alemão, partido de Scholz, de centro-esquerda, agremiação que Karl Marx ajudou a fundar ainda no século XIX.

O SPD nunca abraçou totalmente as ideias revolucionárias de Marx. A maioria dos seus dirigentes sempre preferiu o reformismo de seus fundadores, como Ferdinand Lassale. Mas essa é outra história.

O importante a destacar é que apesar de rivais, CDU e SPD governaram juntos a Alemanha em diversas ocasiões na chamada “Grosse Koalition” (Grande Coalizão), quando os dois maiores partidos do país se juntam por não conseguirem separadamente a maioria. Caso dos dois últimos governos de Merkel, nos quais Scholz foi escolhido ministro da economia.

Mesmo quando a CDU estava no governo e o SPD na oposição, ou vice-versa, ambos os partidos foram capazes de dialogar para chegar a acordos que beneficiaram a Alemanha.

Esse diálogo certamente foi favorecido pela maturidade dos partidos democráticos da Alemanha, que aprenderam com seus erros das décadas de 1920 e 1930, quando não foram capazes de se unir para impedir a ascensão do Partido Nazista de Adolf Hitler.

Diálogo também propiciado pelo sistema político-partidário e eleitoral alemão, baseado no parlamentarismo, que obriga ao entendimento entre os partidos para obtenção da maioria necessária à formação de um governo.

O social-democrata Scholz venceu a eleição parlamentar, pois o seu SPD obteve o maior número de deputados. E vai liderar um governo com os Verdes e o Partido dos Democratas Livres, de centro. Assim, o partido de Scholz desalojará do governo o partido de Merkel.

Mas, esse fato não impede a convivência civilizada desses dois grandes partidos democráticos da Alemanha. As flores de Scholz para Merkel é um gesto de quem valoriza a democracia e o pluripartidarismo.

No Brasil, tivemos uma rara transmissão civilizada de governo em 2002, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso organizou legalmente um gabinete de transição com membros de sua equipe e de assessores do então presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva.

Infelizmente, essa oportunidade de diálogo foi desperdiçada. O PSDB foi para a oposição e o PT preferiu formar seu governo com o PMDB de José Sarney e partidos do Centrão.

A visão curta dos grandes partidos brasileiros e o personalismo, fortalecido no regime presidencialista, levaram a disputa entre os dois dos principais partidos responsáveis pela democratização do Brasil, processo que culminou com a Constituição de 1988. Na disputa, PSDB e PT aliaram-se a forças políticas conservadores e do atraso.

O que estamos vivendo no Brasil de hoje é o resultado amargo dessa disputa. Que o bom exemplo dos partidos democráticos da Alemanha ilumine o caminho do Brasil.

*jornalista e cartunista e autor dos livros Era uma vez em Praga – Um brasileiro na Revolução de Veludo e Lênin, Martov. A Revolução Russa e o Brasil, entre outros.

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/11/claudio-de-oliveira-politica-de-alto.html


Luiz Werneck Vianna: pêndulo entre a modernização e o moderno

Recidiva fascista frustrada de 2021 não foi um ponto fora da curva, mas uma confirmação da natureza trágica da nossa sociedade

Luiz Werneck Vianna / Democracia e Novo Reformismo

10 de novembro de 1937 e 7 de setembro de 2021são duas datas afastadas por pouco mais de oito décadas, mas próximas pelo que revelam das raízes fundas do autoritarismo político do país. Na primeira, quando um golpe de estado urdido no palácio presidencial por Vargas em conluio com o comando do exército, em nome de uma pretensa ameaça comunista, baseada numa documentação forjada, derrogou a Constituição de 1934 e promulgou em seu lugar um texto inequivocamente fascista. Nascia ali a ordem do Estado Novo, vigente nos longos oito anos seguintes. Na segunda, sob o governo que aí está, depois de uma cuidadosa preparação, quando se aliciou ao estilo de Donald Trump a mobilização de milícias aderentes ao governo, teve-se em mira o objetivo de derruir a ordem constitucional de 1988 com foco imediato no Supremo Tribunal Federal. Nessa oportunidade, faltaram os militares que se limitaram a participar da parada cívica do dia da Independência. Ao fim daquele dia deu-se o dito pelo não dito, com seus autores humilhados em juras de obediência às instituições democráticas e homiziados na grei dos políticos patrimonialistas do Centrão a fim de evitarem os riscos de um impeachment pelos crimes que tinham acabado de praticar.

A recidiva fascista frustrada de 2021 não foi um ponto fora da curva, consiste, ao contrário, em mais uma confirmação da natureza trágica da nossa sociedade nascida no ventre malsão do latifúndio escravocrata que a condenou a uma história infeliz apesar dos esforços realizados para se emancipar dessa triste condição. Não têm sido poucas as tentativas de exorcizar esses males de origem, algumas delas longamente maturadas em décadas, como a que frutificou em meados dos anos 1960, atalhada pelo golpe de 1964 a que se seguiu uma implacável perseguição das lideranças sindicais do movimento operário e do mundo agrário, em muitos casos com a eliminação física dos seus dirigentes.

Sobretudo naqueles anos processos novos animaram as classes subalternas que se emanciparam da tutela exercida pelo Estado pelo sistema do corporativismo sindical que nos vinha dos anos 1930 e, no mundo agrário, disseminou-se a criação de sindicatos dos trabalhadores do campo e a organização de movimentos em favor de uma reforma na propriedade rural. Na sociedade política e entre os intelectuais, na literatura, nas ciências sociais, no cinema, na dramaturgia, esse será um tempo de ruptura com o passado e de esperança no futuro, interrompido pela larga coalizão de tudo que persistia como taras da nossa má formação

O movimento pendular a que parece estarmos submetidos, segundo os famosos diagnósticos em meados dos anos 1850 de Justiniano José da Rocha e do ministro Golbery na recente ditadura militar sobre o caráter da nossa política, mais uma vez se impôs com as duas décadas de ditadura que nos sobressaltaram até os idos de 1985. Politicamente acuado por uma larga coalizão democrática escorada em massivas e inéditas manifestações, seus dirigentes negociam com as lideranças oposicionistas uma via de transição para o retorno à legalidade que culminou com a convocação de uma assembleia constituinte que nos trouxe a Carta de 1988 numa promessa de tempos menos infortunados.

Vianna: "De um só golpe acertamos as contas com esse nefasto presente e com o que há de pior na nossa formação". Foto: Roberto Parisotti/Fotos Públicas

Mas, a genética tem suas leis próprias, e a nossa má conformação congênita nos trouxe de volta às trevas, agora imprevistamente pela via eleitoral, com a vitória na sucessão presidencial de Bolsonaro, candidato de um inexpressivo partido, mas apoiado pelos grandes interesses capitalistas   do emergente agronegócio com muitas de  suas raízes originárias das cediças relações do patrimonialismo agrário, e pelo pessoal das finanças especializado em drenar recursos públicos em proveito próprio encapuçados de empresários modernos no estilo faria-limers.

Dessa vez, contudo, sem retorno às práticas da modelagem das modernizações autoritárias, recorrendo a uma interpelação direta ao discurso do neoliberalismo próprio ao reacionarismo dos círculos trompistas dos EEUU. Há algo de novo nesse bicho que em nada se assemelha ao ornitorrinco que tempos atrás frequentou as análises do sociólogo Francisco Oliveira. Ele é de conformação abstrusa na medida em que os militares, espinha dorsal do governo Bolsonaro, descendem ideologicamente do positivismo e, como tais, comungam ideais em que a dimensão do público e o papel do Estado exercem papeis dominantes na organização da vida social, em clara desconformidade com a narrativa neoliberal.

Não se pode contar a história da modernização brasileira sem a forte presença dos militares tanto em suas configurações abertamente autoritárias como naquelas em que coexistiu com regimes de inclinação liberal. Eles foram protagonistas na montagem das bases da industrialização do país, diretamente envolvidos nas questões-chave do aço e do petróleo, assim como no período da última ditadura militar conceberam com sucesso as iniciativas que propiciaram a emergência do agronegócio em regiões de fronteira. Formados nessas tradições, seus vínculos com a política atual, fora motivos contingentes e precários que podem se esvair no ar, não devem fornecer escoras firmes para um eventual golpe que pretenda estabelecer um regime militar capitaneado pela farsesca figura de Bolsonaro.

Sem eles a sustentar seus projetos delirantes de se manter no poder depende do voto, resta a Bolsonaro explorar os caminhos conhecidos secularmente pelas elites brasileiras do atraso político e social em que ainda vive grande parte da nossa população, sujeita ao mandonismo local nas regiões retardatárias do mundo agrário e no urbano a milícias que as submetem pelo terror, essas últimas cultivadas pela política bolsonarista, particularmente no Estado do Rio de Janeiro, como é de conhecimento público. A essa massa amorfa a sua política de mobilização eleitoral agrega numerosos contingentes da nova ralé de setores médios da população, ressentidos com sua desqualificação social e temerosos de perderem o que ainda os mantém abrigados da proletarização, base sobre a qual pretende organizar, se for o caso, suas falanges fascistas. No vértice dessa pirâmide, a experiência recente lhe ensina, precisa assentar as elites do agronegócio e das finanças.

Aí é que entra o mundo e suas circunstâncias que não giram na órbita do leste europeu nem nas margens do golfo pérsico e que são adversas dos círculos trompistas norte-americanos. A emergência da questão climática para que o planeta acordou vulnera em cheio o agronegócio na forma predatória com que é praticada pelo regime Bolsonaro, objeto de repúdio no Ocidente desenvolvido já atento em lhe impor limites. A América de Biden se reencontrou com uma Europa que se democratiza e concede lugar ao discurso de valorização dos direitos humanos, inclusive como tema nas suas disputas com potências rivais, como a China e a Rússia. Esse não é um cenário compatível com um projeto que nasceu sob a inspiração do regime de 1937 e do AI-5 de 1989, que assim se vê obrigado a sondar suas possibilidades de subsistir no terreno da competição eleitoral de mãos dadas com o Centrão.

Se os surtos de modernização autoritária encontraram seu fim no governo que aí está, que oculta sua adesão ao patrimonialismo numa profissão de fé de mentirinha no neoliberalismo, as vias para a modernidade se encontram abertas para uma sociedade que se civiliza, exemplar no seu enfrentamento da atual pandemia, quando remando contra a corrente leva a cabo o programa da vacinação em massa da população com efeitos visíveis no seu controle. O exame recente do Enem, realizado com sucesso apesar das tentativas de tumulto presentes por iniciativa do bando no poder, vai na mesma direção. Por toda parte são evidentes os sinais de animação da sociedade civil, inclusive nos seus setores subalternos que se organizam como autodefesa da pandemia e da luta contra a fome. O movimento pendular que a nossa história registra parece agora se inclinar em favor da democracia, percepção que não deve faltar ao ator político que a tem em mira. Com sua ajuda, mais seguramente o pêndulo vai completar sua rotação feliz e tirar da nossa frente o entulho que embaraça nossa livre movimentação. Com isso, de um só golpe acertamos as contas com esse nefasto presente e com o que há de pior na nossa formação.

*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio 

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/11/luiz-werneck-vianna-oscilacao-do.html


Paulo Fábio D. Neto: Mais Brasil e mais Brasília - A via política como solução

Omissão e o escapismo das lideranças e partidos acabaram entregando o país à extrema-direita

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia e Novo Reformismo

“Mais Brasil, menos Brasília” era um slogan a que Jair Bolsonaro apelava quando o governo eleito em 2018 ainda despertava expectativa positiva em partes da sociedade brasileira, fora do círculo cada vez mais estreito do eleitorado que hoje ainda o trata como mito. Mas o slogan não guardava afinidade apenas com a candidatura vencedora naquelas eleições. Funcionava, subliminarmente, como cartão de visitas da chamada “nova política”, que muitos imaginavam estar surgindo no Brasil, após a blitz que a Operação Lava-jato dirigiu à chamada “velha política”. Esse foi o nome-fantasia com que a ética faxineira batizou seu real adversário, o sistema institucional onde se opera a política de todos os partidos e lideranças políticas. Lamentavelmente, a elite política reagiu à blitz de autoproclamados guardiães de virtudes republicanas com uma espécie de strip tease. Entregou-se a ritos autofágicos, com quase todas as suas facções partidárias caindo no autoengano de tentar surfar na onda do lava-jatismo para escapar do afogamento geral que ela pretendia causar.

A omissão e o escapismo das lideranças e partidos que acabaram entregando o país à extrema-direita foram de tal monta que correram da raia tanto a facção de esquerda que ocupava o governo e que - exatamente por estar no governo - havia sido atingida pelos primeiros petardos da Lava-Jato, quanto as facções de centro e de direita que se uniram pelo impeachment de uma presidente já caída em desgraça pela rejeição popular e foram igualmente alcançadas, na sequência, pela perversidade de uma operação que degenerou, como se sabe, em toda sorte de arbitrariedades.  Omitiu-se o grupo governante até 2016 ao fazer ouvidos moucos aos protestos de 2013 (que legitimamente e pacificamente cobravam eficácia e transparência do governo na prestação de serviços públicos) e ao tentar refratá-los pelo despiste para uma fictícia reforma política, chegando ao ponto de ameaçar a Carta de 1988 com uma insólita ideia de Constituinte. Já os grupos que apearam do poder aquele grupo governante também se omitiram ao negarem ao governo de transição que criaram o apoio e a solidariedade necessários para que se desse em clima de unidade a travessia até as urnas, hora em que os litigantes prestariam contas aos eleitores. As forças derrotadas na batalha do impeachment tentaram escapar pela narrativa do “golpe” e as vencedoras por um salve-se-quem-puder que fugia à responsabilidade política pela solução encontrada. Da combinação desses escapismos resultou a catástrofe atual.

A fábula da “nova política” ocupou, em 2018, o vácuo produzido por ambas as omissões. O governo de transição ficou isolado e estigmatizado como governo da “velha política” e o embate eleitoral entre as diversas candidaturas virou um concurso para ver quem era mais “diferente” de tudo o que o sistema político representava. Brasília era tratada como lugar contraposto ao Brasil não apenas pelo discurso do candidato miliciano que pregava uma liberdade do Brasil profundo para matar, desmatar e desrespeitar a lei de diversas formas – uma liberdade individual violenta, negada por instituições sediadas na capital. Essa mesma capital também era assim vista por vozes arvoradas em representantes dos brasileiros “de bem”, enojados pela corrupção nos corredores do poder sem muitas vezes prestarem atenção em conexões sociais dessa corrupção. E não era menor o desprezo por “Brasília”, demonstrado por uma retórica de esquerda que opunha o seu Brasil ao “deles”.

Bolsonaro brotou nesse terreno politicamente incivil e agreste. Essa lição da política recente já poderia bastar para ativar as antenas dos partidos e forças políticas comprometidas com a democracia para que 2022 não repita 2018. Muitos têm alertado que esse risco reside no projeto de reeleição de Bolsonaro e no discurso nostálgico da pré-campanha de Lula. Concordo até certo ponto. Esse duelo extremado (e não uma identidade “extremista” supostamente comum a dois políticos tão diferentes, tratados indevidamente como se fossem farinhas do mesmo saco) comporta, de fato, sério risco de agravamento da já prolongada crise de horizontes em que vivemos. Mas acaba de se juntar um terceiro fator de risco que é a tentação de voltar a ver a demonização e a interdição da política como saída para a crise. Esse risco tem nome e sobrenome e se prepara para entrar na disputa eleitoral. Falta uma semana e meia para a prevista assunção de uma candidatura presidencial pelo ex-juiz Sergio Moro e o clima aclamativo em importantes segmentos da mídia e da sociedade civil já se reinstala. Logo se vê que muita gente não aprendeu com as lições recentes sobre o poder desagregador e destrutivo da antipolítica. Pior, o ovo da serpente está sendo chocado, de modo parasitário, no terreno da chamada terceira via que, por definição, é o mais antagônico ao extremismo desse projeto de candidatura.

Se a dramaticidade da experiência atual não é bastante para produzir vacinas adequadas contra o canto de sereia do justicialismo salvacionista e antipolítico preste-se atenção na história do país para ver que ele andou melhor quando a política do entendimento político prevaleceu, sem prejuízo do duro conflito entre governo e oposição. Foi assim nos sempre lembrados anos JK, na transição democrática, cujo legado é a atual Constituição, na adoção do Plano Real que tornou factível o pacto democrático e na Carta aos brasileiros, que o renovou. Todos esses processos foram dirigidos pela elite política civil de cada tempo, ou por partes significativas dela. Inversamente, desastres estiveram no fim da linha quando a elite política foi alijada ou recusou essa gramática. Foi assim em 1964, mais ainda em 1968 e, após a redemocratização do país, ocorreu sob Collor, Dilma Rousseff e agora, sob Bolsonaro, o desastre maior sob o regime da Carta de 88, redundante em crime e tragédia.

Juscelino fundou Brasília para integrar o Brasil, não para se apartar dele. Essa é a vocação das experiências institucionais democráticas que a então nova capital passou a sediar. O golpe de 64, apenas quatro anos após essa fundação e o regime autoritário que dele resultou adiaram o teste necessário para se verificar a concretização dessa vocação. Ulisses Guimarães e Tancredo Neves lideraram a reabertura do caminho desbravado por JK. De Tancredo veio, sem meias palavras, o prognóstico que tornou a reabertura crível no momento crucial do processo, quando a incerteza parecia atingir seu máximo grau. Quando confrontado com a fama de Paulo Maluf, seu adversário no Colégio Eleitoral, de ser um perito em aliciar corpos eleitorais limitados como aquele, Tancredo respondeu que “Até aqui ele só enfrentou amadores. Agora enfrentará um profissional”. Provou, com sua vitória no quintal do inimigo, não ter sido bravata a sua declaração tranquilizadora. E se o destino não lhe deu a chance de colher no governo o que plantou fora dele, é justo reconhecer que o governo Sarney, de tantas mazelas econômicas e administrativas, não deixou de honrar a promessa política de Tancredo de conduzir a fase final da transição ao porto da plena democracia, cujo auge se deu na Constituinte que, sob a batuta de Ulisses, concretizou o momento de maior aproximação entre Brasília e o restante do país.

Assim como Sarney, outros vice-presidentes políticos, como Itamar Franco e Michel Temer, souberam, mesmo sem ter as bençãos do voto popular para o cargo presidencial, entender-se, de modo prudente e autocontido, com a elite política de seus tempos para levar o país a eleições em condições de estabilidade maiores do que as que poderiam ser propiciadas pelos dois titulares a quem constitucionalmente sucederam. Foi, além de no voto, na política profissional que Fernando Henrique Cardoso, o presidente eleito pelo Plano Real, também se amparou para tornar factível a sua agenda de reformas. E não foi outra a gramática de Luiz Ignácio Lula da Silva, no pico mais virtuoso de seus governos.  Todos eles, enquanto viveram e atuaram em Brasília, fizeram dela lugar capital do Brasil.

Pouco importa, neste exato momento, apurarmos em que momento pretérito, ao longo desses 36 anos decorridos desde Tancredo, os políticos brasileiros perderam a autoconfiança e o senso de veracidade capaz de fazê-los salientar, em vez de dissimular, a missão pública que os define.  O que mais importa é que essa capacidade precisa ser recuperada sem mais demora porque o próximo desastre está a se desenhar. Sim, porque é aos políticos e seus partidos - e não ao povo, muito menos a qualquer charlatão que se apresente em seu nome com aspiração a soberano - que cabe a missão de governar uma república democrática, sob a vigilância da sociedade e o crivo do eleitorado.  Quando essa verdade iluminadora da realidade se afasta dos microfones e telas que veiculam as declarações dos representantes, a democracia perde terreno para a demagogia que proclama o amadorismo como virtude.

O país precisa de uma frente política contra os amadorismos políticos de qualquer espécie. Aquele que se acantonou em Curitiba na década passada não é menos destrutivo de instituições do que a corrupção em nome de cujo combate pretende justificar sua pretensão guardiânica e do que o filo-fascismo a que se associou, em 2018, vislumbrando um atalho.

*Cientista político e professor da UFBa

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/10/paulo-fabio-dantas-neto-mais-brasil-e.html


A direita, o centro e a esquerda no “dia do fico” de Paulo Guedes

A sexta-feira, 22 de outubro, promete ficar conhecida, na crônica política, como o “dia do fico” do ministro Paulo Guedes

Paulo Fábio Dantas Neto / Blog Democracia e Novo Reformismo

A primeira das interpretações possíveis - aquela que mais diretamente aciona a intuição e os sentidos de quem assistiu à bizarra entrevista coletiva de ontem à tarde – é a de um canastrão ébrio, delirante, inconsciente do seu script. O ex-posto de conveniência de um chefe mais aventureiro do que ele, que de há muito não se abastece com ele e sequer passa por perto dele, posa, tal qual um apóstolo de religião extinta ou um poeta de língua morta, de guardião de um teto de gastos imaginário enquanto se desnuda ensopado pelo aguaceiro político e fiscal que lhe tirou o prumo, a equipe e o que lhe restava de dignidade. Patético agonizar de um paciente terminal, ao qual não faltou uma cena que lembra outra. Em maio de 2020, o então ministro da Saúde, Nelson Teich, também em coletiva, ouviu perplexo, da boca de um repórter, a notícia de uma declaração de Bolsonaro que desmoralizava o que ele, ministro, acabara de afirmar.  Foi constrangedor comparar sua cara de traído, derradeiro sabedor da situação em que se metera, com o riso zombeteiro do general Pazuello, seu futuro sucessor, divertindo-se com a saia justa do condenado. Pois foi do mesmo sarcasmo o sorriso de Bolsonaro quando Guedes errou, ontem, o nome do novo auxiliar que anunciava na cena do “fico”. Sem noção do próprio papel e do lugar subordinado que ocupa, o ministro jactava frases baluartistas sobre um país inexistente e supunha um “acordo” seu com o presidente, a quem não obedece, mas com quem negocia. 

Passado o impacto da impressão que acionou a intuição da agonia pública e indigna de Paulo Guedes, apareceu lugar para um raciocínio mais ajustado à imagem do dia do fico. Dela decorre uma segunda linha de interpretação do episódio e do processo em que ele se insere, a qual, pelo que se pode notar, faz, até aqui, mais fortuna na cobertura da imprensa. Para o bem de poucos e felicidade particular dos que não tem noção do povo e da nação - vítimas reais da pobreza e doença adensadas pela perversidade de um desgoverno - o presidente fez um afago no ministro que é o seu elo com o mundo da economia. Pressionado pelo desastre das bolsas e do câmbio, de um lado e pelo apetite patrimonialista de sua base congressual, de outro, Bolsonaro pisou no freio com os políticos para prestigiar seu ministro, o qual, em retribuição, reviu a suposta inclinação a pedir demissão. Supõe-se que o mercado raciocina que ruim com Guedes, pior sem ele. Nada que signifique perigo do centrão perder a condição objetiva de aliado preferencial do Presidente, na hora do “vamos ver”. É adiamento de um desfecho, o que por si só mostra a simultânea fragilidade da situação política do governo e do próprio Bolsonaro, premidos por um caos econômico, uma crise social e uma alta rejeição popular. Que dizer do futuro de um governo para o qual o ébrio da banca ainda é uma âncora?

O contraste entre as duas interpretações é pouco relevante, se comparado à situação de desgaste que nenhuma delas consegue ocultar. As reações de Bolsonaro e Guedes à adversidade que os põe na defensiva são, igualmente, de terceirizar responsabilidades. Bolsonaro sempre apontou o dedo para o isolamento social provocado pelos governadores e pelo Judiciário; Guedes lembra que inflação é assunto do BC, que precisa “correr atrás”. Anestesiado por angústias de curto prazo, Guedes forja um discurso por um “ajuste fiscal mais brando, com abraço social mais longo”. Ao BC cabe aumentar juros para conter a inflação que afeta o povo. Inflexão ao social útil à satisfação da banca.  A situação permite uma terceira interpretação, segundo a qual Paulo Guedes e políticos do centrão lutam por restos, em meio a escombros, sendo Bolsonaro menos árbitro e mais refém dessa disputa.


Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Coletiva do ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcos Corrêa/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Paulo Guedes durante cerimônia do Novo FUNDEB. Foto: Isac Nóbrega/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro. Foto: Marcos Corrêa/PR
Paulo Guedes e Bolsonaro durante o Latin America Investment Conference. Foto: Marcos Corrêa/PR
pauloguedes_braganeto_foto_Alan Santos_PR
Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara
O ministro da Economia, Paulo Guedes, durante palestra. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
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Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Coletiva do ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Marcos Corrêa/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Paulo Guedes durante cerimônia do Novo FUNDEB. Foto: Isac Nóbrega/PR
O Ministro da Economia, Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro. Foto: Marcos Corrêa/PR
Paulo Guedes e Bolsonaro durante o Latin America Investment Conference. Foto: Marcos Corrêa/PR
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Arthur Lira e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara
O ministro da Economia, Paulo Guedes, durante palestra. Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
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A esse respeito, a coluna de Andrea Jubé (“Não tem bala de prata para a economia - Valor Econômico, 22.10.21) traz abordagem original do atual contexto pré-eleitoral cuja fonte é o economista e consultor político Mauricio Moura, fundador do Instituto Ideia Big Data. A controvérsia que ele abre com as previsões predominantes em análises de cenários para 2022 instiga a reflexão. Para Moura, o grau de dificuldades de Bolsonaro para obter a reeleição justifica que ele, apesar de ocupar, hoje, o segundo lugar nas pesquisas, seja considerado como “terceira via”, sendo Lula e um candidato, ainda oculto, da centro-direita, as vias mais prováveis de estarem presentes no segundo turno. Considera que o prazo de um ano é apertado para se recuperar uma economia que, no momento, produz problemas sociais (desemprego, inflação, pobreza, fome, fechamento de pequenos negócios) em níveis de gravidade comparáveis aos de 1988. A menção àquela conjuntura nos lembra de que na eleição de 89 o legado econômico-social do governo Sarney teve rejeição quase unânime, entre duas dezenas de candidatos presidenciais.

Ao lado disso - e em conexão lógica com isso – Moura salienta os índices de ruim e péssimo quase consolidados na marca de 55% e um dado, talvez o mais importante para o contexto, que aqui se discute, de disputa política em torno do auxílio social, encarado como uma espécie de tábua de salvação do governo. A má notícia para Bolsonaro seria que apenas dez por cento dos eleitores que consideram o governo regular (grupo no qual repousa, em tese, algum potencial de crescimento para ele) estão nas classes D e E. Se essa informação é precisa, fica uma certa impressão de que ela não justifica tanto barulho na atual queda de braço entre Guedes e o centrão. Fica no ar, como complemento dessa terceira interpretação, a sensação de que o conflito público foi aquecido para que dessa vez não haja dúvidas sobre o pai da criança do auxílio Brasil. Turbina-se uma crise “entre a política e a economia” (disjunção funcional ao apoliticismo reinante) para não haver divisão de louros entre Executivo e Legislativo, esse comparecendo – ao contrário do ocorrido com o auxílio emergencial de 2020 – apenas com o carimbo formal. Sendo tema de acirrada controvérsia, o auxílio adquire também valor simbólico de opinião pública, podendo afetar o comportamento eleitoral de bem mais gente do que seus beneficiários diretos. Não à toa sobraram farpas de Guedes ao Senado de Rodrigo Pacheco, cujo vagar na votação de alterações no IR teria obrigado o governo a conceber o mix alternativo que soma à PEC dos precatórios o auxílio Brasil a vulneráveis e, de quebra, a caminhoneiros. Pode-se negar tudo a Bolsonaro menos o reconhecimento do seu faro apurado para rivais.

Mas a realidade desafia as fabulações. Uma espécie de tempestade perfeita aguarda Bolsonaro na esquina, pois há a incompetência gerencial do governo e a propensão do presidente a se dirigir primordialmente ao seu grupo de eleitores mais fiel. Cético quanto à sustentabilidade de fases “moderadas” de Bolsonaro, o mesmo Maurício Moura o vê repetindo o erro que desgraçou Trump. Por outro lado, diz que se Bolsonaro conseguir se manter à frente de todas as candidaturas do centro e assim chegar ao segundo turno contra o PT (o que se pode dar também, caso o centro não se apresente razoavelmente unificado), ganharia competitividade no segundo turno, porque o antipetismo voltará a aflorar, fazendo Bolsonaro ser, outra vez, beneficiado pelo voto plebiscitário.

Ler essa última reflexão de Moura, trazida por Jubé, fez-me experimentar um temor que se achava aplacado, há meses, em relação ao risco de reeleição de Bolsonaro. Se hoje, ele pode ser “terceira via” porque tende a não chegar ao segundo turno, a condição para isso se confirmar é haver política inteligente na oposição de centro (para deslocá-lo do segundo turno) e na oposição de esquerda, para, em caso de fracasso do centro, adotar um discurso mais amplo para contemplá-lo e assim evitar a polarização extremada que pode devolver Bolsonaro ao páreo. Esse é um perigo que o país e a democracia não podem correr, por desagregação do centro, ou pela estreiteza da esquerda, ou pelas duas coisas.

Nesse sentido preocupam certos fios desencapados que se mostram em projetos de candidaturas excessivamente autárquicos e personalistas e, também, na gana de espetáculo que ameaça a credibilidade e a consequência dos resultados da CPI do Senado. Se um senso de centro político moderador não tirar de tempo esses fios, um festival de tiros no pé pode dar a Bolsonaro saídas que hoje não tem. Algumas das imprudências podem ter como alvo justamente inviabilizar a agregação de uma oposição de centro. Isso interessa objetivamente a Lula, que tem parceiros no centro e na direita para ajudá-lo a ominar o centro, por se imaginar imbatível num segundo turno contra Bolsonaro. Convém pensar em como agirá o eleitor conservador comum (majoritário no eleitorado) diante da perspectiva do PT retornar ao governo. Dependendo do tom da campanha lulista, mesmo decepcionado com o ‘mito”, esse eleitor pode olhar para o Bolsonaro de carne e osso que emergir, por exemplo, do auxílio Brasil e usar, na urna, o metro usado em 2018. Claro que o PT não pode se anular ou se imolar por causa disso. Mas na sua busca legítima de chegar ao segundo turno não precisa confundir tanto os inimigos.

Nenhum cuidado é demasiado quando se trata de bloquear o caminho ao reagrupamento do bloco reacionário que elegeu Bolsonaro em 2018. O ex-deputado Rodrigo Maia, por exemplo, atualmente secretário do governo de São Paulo, está certo ao dizer que o adversário do centro, a ser deslocado do segundo turno, deve ser Bolsonaro e não Lula. Nada a opor a essa tese geral.  Mas o discurso se contradiz e por isso é pouco veraz ao bater continência ao governador paulista. Parece que o adversário real de Maia é a centro-direita, onde granjeou desafetos. Eixo que terá boa chance eleitoral se unificado, o que será mais difícil se Doria vencer as prévias do PSDB. Maia quer aliança preferencial com o PDT, subestimando, talvez, a relevância do campo do qual ele próprio provém. Como se Doria pudesse existir fora da direita, indo do centro à esquerda, o que não é real. 

É um discurso que, além de agradável a Doria, pode ser útil, ou neutro, para se eleger deputado no Rio, mas pouco agregador para a eleição presidencial. É cada dia mais claro que, para ser competitiva e deslocar, de fato, Bolsonaro do segundo turno, uma aliança teria que ser do centro (PSDB, MDB, PV, Cidadania) com o PSD e o União Brasil. Seria bom o PDT estar nela também, mas todos sabem que esse partido só fará aliança se na cabeça estiver Ciro Gomes, candidato carente de prestígio entre partidos da direita, embora (ou até porque) corteje seus eleitores. Se houvesse a hipótese de o PDT puxar o tapete de Ciro para celebrar uma aliança sem a cabeça da chapa seria para apoiar Lula e não alguém do centro ou centro-direita, muito menos Doria.

Claro que tudo isso pode mudar em um ano, mas a possibilidade que hoje parece ainda haver de uma agregação ao centro que desminta a previsão de um segundo turno sangrento entre bolsonarismo e lulismo é outra: está em Eduardo Leite adotar postura menos evasiva, ser menos artificial e genérico no discurso, conseguir ganhar as prévias do PSDB e ser, quem sabe, um vice politicamente representativo numa chapa encabeçada por alguém do campo liberal- conservador, como Rodrigo Pacheco, por exemplo.

Não se trata aqui de gostar ou não dessa composição (particularmente vejo, entre os dois, pouca diversidade de atitude e estilo), mas de ver que é a opção que parece sobrar, a uma terceira via, para ter alguma cara de frente política. Ainda que com a ressalva de que sobre a estratégia de Gilberto Kassab em filiar Pacheco ao PSD e lançá-lo candidato paira a suspeita de que é jogo combinado com Lula para o segundo turno. Aliás, boataria mais afoita tenta tirar a bucha do balão antes que ele se acenda e suba, espalhando até a ideia de que Pacheco poderia ser vice numa chapa com o petista. A ordem natural das coisas é outra, pois Pacheco parece querer embicar sua nave no exato momento em que o “fico” de Paulo Guedes sinaliza o prolongamento de uma batalha intensa pelos recursos materiais envolvidos no fundo público que o governo gerencia (ou ao menos deveria). Dessa batalha chapa-branca fatalmente perdedores serão expelidos e o presidente do Senado tem perfil sereno, tolerante e acolhedor, propício a virar imã e não a ser imantado. A ver.

Como nada isso está combinado com os eleitores, Pacheco, se vier a ter em torno de si um arco de alianças amplo, poderia virar agente, em vez de novo solvente da terceira via. Embora tenha longa estrada a percorrer em busca de relevância eleitoral para o seu nome, ele tem cancha, poder de articulação e meios institucionais, caso performances de prima-donas, às vezes histriônicas, do trio que comanda a CPI da pandemia não prejudiquem a credibilidade do Senado como possível pista de decolagem de uma candidatura moderada.

Diante de óbices, até aqui não superados, para que Luiz Mandetta convença deputados do União Brasil (principalmente os egressos do ex- PSL) a admitirem lançar um candidato presidencial sério, aceitando assim repartir a farta cota do partido no fundo partidário, Pacheco, pelo PSD, parece ser opção mais à mão para o tal projeto de terceira via, ainda que carregada de incerteza sobre os passos subsequentes que poderão ser dados por ele, em diferentes direções. Isso deve ser ressalvado, não porque lhe falte discurso ou compromisso democráticos para eventualmente ser uma opção também voltada ao centro. Mas porque interlocuções que ele mantém, a partir da presidência do Senado, emprestam contorno mais enigmático ao desenho do arco político que pode reunir. Entre ser vice de Lula e candidato de uma direita governista dissidente, tudo, a princípio, é possível.

Nesse sentido, Mandetta seria caminho menos oblíquo e mais próximo ao perfil desejado por quem busca agregar um centro democrático com mais cara de oposição. Suas chances de vingar como opção agregadora dependem, no entanto, do processo adquirir andamento mais incisivo e ousado, no sentido de formulação de uma plataforma social democrática, porque, embora provenha da centro-direita, tem pendor a um discurso social, ainda inconcluso, mas perceptível nos movimentos de caráter unitário que ele tem feito até aqui.  

Afora Pacheco ou Mandetta, opções aparentemente mais agregadoras, há um arquipélago de jogos solteiros, como os de Ciro Gomes, João Doria e Datena, para não falar do de Sergio Moro, esses dois últimos outsiders estranhos a qualquer centro. Em jogos mais personalistas é que mora, no caso do centro, o risco acenado na análise de Maurício Moura.

Por fim, vale prestar atenção ao que se passa (ou deixa de passar) no território da esquerda. Estranha a quietude que, por vezes, emana dessas paragens. Há certa acomodação à coadjuvância mesmo diante de temas que lhe são caros, como a pauta social. Parece que, resolvido o quem e, uma vez estando esse quem confortavelmente aclamado em pesquisas, transcorre hiato inercial antes que se defina “o que” e “o como” fazer as coisas e de comunicá-los ao país. O discurso de Lula é reiterativo, abaixo do seu potencial de mobilização política e de intervenção em cada cena. Peço licença à memória de Moraes Moreira para dizer que nesse tique, nesse taque, nesse toque, nesse (pouco) pique Lula leva de roldão o PT e, assim, candidato e partido ficam, perigosamente, reféns de uma fala de configuração plebiscitária, quase maniqueísta, quando ecos da trajetória do ator – especialmente os de 2002 - permitem esperar algo mais animado e complexo.

O tom meio nostálgico contamina e congela as falas dos partidos da oposição de esquerda, não só a do PT. Até Boulos recuou da ousadia positiva da sua campanha municipal e voltou a repetir jargões de esquerda negativa. O PSB, é verdade, captou e integrou alguns pontos fora dessa curva conservadora, como Freixo, Flávio Dino, Tábata Amaral e outros, que tensionam o arco de uma promessa renovadora.  Mas o tom geral, mesmo entre quadros mais afeitos ao diálogo político e nele educados, é o que se vê na fala do deputado Molon, um desses quadros e atual líder da oposição na Câmara. Colocado diante do desafio concreto de dizer o que a oposição quer aprovar no caso do auxílio Brasil e suas conexões com a PEC dos precatórios, as mudanças no Imposto de Renda e por aí vai, perde-se na retórica. Sabe que “não vai por aí”, mas não consegue indicar por onde se deve ir. Num momento em que não se pode usar meias palavras para dizer que se deve votar, sim, o auxílio aos mais vulneráveis, isso é dito, ou de passagem, ou num repicar de cifras descomprometido com a exequibilidade. Falta admitir, com todas as letras, o limite fiscal, assumir medidas heterodoxas imediatas como exigências da emergência social, acenando com atitudes de contenção a médio e longo prazos. E resistir à tentação do udenismo de esquerda, que aponta emendas parlamentares e negociação política em geral como vilãs, sem dizer o que e como seria o uso “republicano” do inevitável furo no teto de gastos.

Esses e outros limites fazem a atitude da esquerda ser menos positiva na apresentação de proposições, atendo-se à torcida para que seu porta-voz chegue às urnas com a aprovação popular que atualmente tem. Dessa torcida faz parte torcer pelo fracasso prévio de uma terceira via, cujo papel, caso se construa, será tirar Bolsonaro do páreo, ainda no primeiro turno. Poderia ser objetivo nacional, se o diálogo entre forças democráticas fosse maior.

*Cientista político e professor da UFBa

Fonte: Blog Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/10/paulo-fabio-dantas-neto-direita-o.html


Paulo Fábio Dantas Neto: A volta do mantra da corrupção

Pauta da corrupção avança para retomar, agora e em 2022, o lugar de destaque que teve em 2018

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia e Novo Reformismo

A pauta da corrupção avança a passos largos para retomar, agora e principalmente em 2022, o lugar de destaque que teve nas eleições de 2018. Políticos de vários matizes, ao se aproximar a hora eleitoral, pisam sôfregos ou distraídos nos escombros produzidos por aquele confronto devastador entre mocinhos da moral e da nova política e vítimas heroicas de um suposto golpe contra o partido do social.

Se a política fosse só o terreno da reta razão, essa reincidência espantaria, pela estupidez. Primeiro o lulo-petismo, depois o lava-jatismo, perderam o protagonismo para a serpente filo-fascista que se beneficiou daquela guerra entre santos com pés de barro. Nem a hipocrisia de direita, nem o cinismo de esquerda escaparam de efeitos não previstos da artilharia pesada disparada pelo bolsonarismo em 2018, usando munição de um arsenal montado em porões milicianos da antipolítica populista. Milícias, até então só digitais, que ocuparam um vácuo deixado pela desmoralização escandalosa, produzida pela Lava-jato, da antipolítica populista-empresarial que imperou no período anterior e que fora a fonte financiadora da farta – e, também, letal - munição oficial disparada contra adversários do governo nas eleições de 2014. Uns e outros terminaram entre os feridos, o lulo-petismo nas urnas de 2016 e 2018 e o lava-jatismo nas esgrimas palaciana, judiciária e interna ao MPF, transcorridas a partir de 2019. Tanto a política da confrontação como a da colaboração com o bolsonarismo tiveram destinos penosos. Penas análogas às cumpridas pela sociedade quase toda que, longe de ser inocente ou neutra, aceitou os termos de um duelo em que todos tinham a perder, exceto a malta ali autorizada pelas urnas a tomar de assalto o governo, desmontá-lo e, com seu bagaço, desferir torpedos contra as instituições.

A anulação de processos contra Lula e as recentes pesquisas de intenção de voto que lhe dão posição privilegiada juntam-se para produzir, na esquerda petista e seus anexos, duas presunções: a de que Lula foi inocentado e a de que a eleição estará ganha, se Bolsonaro estiver na área. A segunda presunção é animada pela rejeição a Bolsonaro e pela não existência, até aqui, de alternativa eleitoral promissora para evitar a reprise do confronto de 2018, que é encarada como uma revanche e assim desejada. Já a primeira presunção parte de um erro de avaliação (que o lulo-petismo parece compartilhar com áreas do chamado centrão), qual seja o de que o lava-jatismo agoniza porque a Lava-Jato morreu. Na verdade, o lava-jatismo está saindo de uma UTI e arma-se para voltar a envenenar o ambiente político, não só contra Lula e o PT, mas contra a política de qualquer partido. Ao contrário do lulo-petismo, o que o espectro justiceiro almeja, como sempre, não é (ou ao menos não é prioritariamente) ganhar eleições, mas detonar soluções políticas.

 Por falar em detonação, trago um tópico. Ficou mais uma vez demonstrado, nos últimos dias, que João Santana, ex-marqueteiro da Dilma-malvadeza Rousseff de 2014, sente-se à vontade pondo sua perícia a serviço de Ciro Gomes, um proverbial incontinente. A incontinência, agora mais adestrada e manejada de modo melhor, como cálculo político, acaba de ser usada para queimar, contra a ex-cliente, pólvora da mesma marca da que ajudou ela mesma a dinamitar Marina Silva naquela eleição. Dilma reagiu com a obviedade que é sua marca costumeira mas a provocação fez também Lula entrar no samba de partido alto (má vontade elitista, dirão lulistas, chamar sua declaração de golpe baixo) interrompendo um ensaio de retorno do samba-canção “Lulinha paz e amor” de 2002.

Está visto que a política da guerra, na qual o moralismo é perito, é uma língua franca. Está longe de ser privilégio do lava-jatismo ou do bolsonarismo. Sempre houve e há cada vez mais gente de esquerda persuadida pela ideia-máxima de Carl Schmitt de que a relação amigo-inimigo resume o sentido da política, na contramão da racionalização constitucional liberal-democrática. A política da guerra, ideologicamente ecumênica, produz enredos folhetinescos, capazes de estimular o colunismo político, como mostram os numerosos comentários sobre o affaire Ciro x PT.  Dentre eles menciono duas interpretações díspares.

Lendo o colunista Bernardo de Melo Franco temos acesso à interpretação que agrada ao PT: a de que o movimento do "egocêntrico Ciro" (quem poderia lhe lançar a primeira pedra?) é mais uma das suas tentativas, até aqui inúteis, de ser simpático à direita para superar Bolsonaro e ir ao segundo turno contra Lula. Já lendo Vera Magalhães somos apresentados à interpretação oposta à do desejo do PT: a ofensiva da dupla Ciro/João Santana teria buscado, com êxito, tirar Lula da zona de conforto para com isso perseguir o objetivo de tomar o seu lugar no segundo turno contra Bolsonaro. Para o primeiro colunista foi só mais do mesmo. Para a segunda, algo que pode funcionar, no caso, como a lei do ex. Cada leitor pode fazer sua aposta, baseada em palpite ou em preferência.

Apostas e profecias à parte, faço um comentário transversal: assim como a possível candidatura lava-jatista de Sergio Moro pelo Podemos, a lavagem de roupa suja entre Ciro Gomes e o PT contribui para recolocar o tema da corrupção no centro da peleja eleitoral, como esteve em 2018. Melhor para o país seria deixar esse foco na penumbra, onde está de 2019 para cá, quando passamos a ter noção prática de problemas e perigos maiores. Mas as tentações são imensas e acometem mais gente, além do impetuoso e voluntarista Ciro Gomes. Demagogos cortejam o tema como galinha de ovos eleitorais de ouro e, na outra ponta da torcida, imprudentes arriscam-se em jogadas ousadas no Congresso. Dançar sobre o cadáver da Operação Lava-Jato nesse momento pré-eleitoral, como se faz no caso da PEC que modifica a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, é cutucar com vara curta a bem viva propensão faxineira, que tem expressão eleitoral, apesar da desmoralização da república de Curitiba. Por mais plausíveis que sejam as mudanças pretendidas, o momento não parece oportuno. Como se sabe, apóstolos do extermínio da tradição política vendem gato por lebre e há quem compre por valor de face.

O espectro justiceiro que ronda a pauta eleitoral tem contado, pois, com a colaboração de quem pisa nos escombros distraído, ajudando a reacender as esperanças de quem celebra o arruinamento político de 2018 com simpatia e convicção. Alcoviteiros da fênix lava-jatista há, inclusive, em vários partidos do centro democrático, fora do centrão. Se essa infiltração prevalecer, o discurso de que a corrupção é a mãe de todos os males do Brasil terá cumprido sua missão desagregadora. A insensatez perderá toda medida se moradas possíveis de uma suposta terceira via se tornarem vulneráveis a esse apelo. Poderão até veicular outras pautas, mas a precedência do tema da corrupção tende a deixar os demais assuntos nacionais à sua sombra, sem aprofundamento algum e entregues aos clichês. Se destituídas de orientação programática compatível com a atual tragédia social, com a crise fiscal e gerencial do Estado e com a falta de perspectiva econômica, essas moradas serão, como na inesquecível canção nostálgica, barracos com portas sem trinco e tetos de zinco furados, onde são dependurados trapos partidários descoloridos. Palcos mal iluminados.

Vale fazer a pergunta óbvia: a quem interessa a volta da corrupção ao centro da agenda? Como resposta cabe até palpite quádruplo. Pode interessar a Ciro Gomes, a Sergio Moro, à esquerda de Lula ou a Jair Bolsonaro, sem exclusão prévia de qualquer dessas opções. Mas se a pergunta for oposta (a quem isso não interessa de modo algum?), será difícil negar que não interessa a quem quer que esteja investindo em costura política agregadora para fornecer ao eleitor, em 2022, um cardápio de candidaturas e propostas que lhe permita se comportar mais parecido com 2020 do que com 2018. Essas forças agregadoras precisarão reagir logo à mixórdia que se prepara e que fará do eleitor palhaço de perdidas ilusões. O silêncio e a inércia diante desse perigo iminente podem parecer a esse eleitor (que as espera sem enxergar), mais do que ao analista que as enxerga, um sinal de que essas forças políticas agregadoras simplesmente não existem. Convém agir, antes que o sinal vire fato.

*Cientista político e professor da UFBa

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/10/paulo-fabio-dantas-neto-volta-do-mantra.html


Paulo Fábio Dantas: Fusão na direita, campanha na esquerda, hora H no centro

Negar a Bolsonaro a chance de chegar a um segundo turno seria, a meu ver, o argumento mais lógico da esquerda lulista para bombardear a terceira via

A maioria das pesquisas está indicando que se a eleição fosse hoje, Lula ganharia no primeiro turno. Portanto, Bolsonaro estaria fora e ninguém da chamada terceira via decolaria. Esse é o retrato atual da realidade. Em resposta a interpretações fatalistas sobre o sentido dessa informação real, o pré-candidato Ciro Gomes lembrou que pesquisa é retrato, a vida é filme. Esta coluna tem argumentado na mesma linha há algum tempo e cheguei a usar essa mesma imagem a que o pedetista recorreu agora. Porém, as fotografias do momento têm sua relevância e vão se tornando cada vez mais persuasivas, à medida que vai ficando menor o tempo que nos separa da eleição. Daí não poderem ser ignoradas.

Um modo vesgo, no entanto, de considerar as boas notícias que pesquisas têm dado a Lula é ver, ao lado delas, como face reversa de uma mesma moeda, o que seria a “surpreendente” resiliência dos índices de intenção de voto em Bolsonaro. Essa surpresa é desatenta ao fato de tratar-se de presidente no cargo, manejando, sem senso de limites, recursos que o cargo lhe disponibiliza, não poucas vezes avançando em direção à ilicitude.  Comparativamente, sua performance pré-eleitoral tem sido menos atípica do que as derrocadas abissais acontecidas, em contextos bem diversos, nos casos de Fernando Collor e Dilma Rousseff. O argumento de que os crimes de responsabilidade do atual incumbente são incomparavelmente mais graves que os dos seus predecessores é veraz, mas não cancela a lógica do que está diante dos nossos olhos. É o exercício (o normal e o arbitrário) do poder a explicação para que, apesar dos seus crimes, Bolsonaro ainda conserve apoio político no Congresso e nível de aceitação popular para ir ficando no cargo, mesmo que a cada dia adicione, à sua maligna pobreza de espírito, a condição de alma penada. Vistas as coisas sob esse ângulo, boa parte da surpresa se dissolve. Entretanto, esse não é o ângulo político mais habitualmente adotado nas análises e sim o ângulo do espanto indignado.

Resulta, desse ângulo habitual, outra leitura imprecisa da fotografia do momento. A indignação conecta-se à legitima vontade, animada pelo impacto imediato das pesquisas, de que se faça uma espécie de justiça política, expondo o presidente golpista a uma derrota eleitoral acachapante, infligida pelo seu mais conspícuo oponente. Seu golpismo e sua antipolítica serem rejeitados pela opinião pública e pela esmagadora maioria da população não é bastante. Mesmo se essa condenação for capaz de nos livrar de sua presença nefasta na cena, não morre o desejo de execução explícita da sentença, pelo gesto redentor do voto na urna. Trata-se de desejo social que, além de compreensível, é politicamente positivo. Só não se pode dizer que as pesquisas estão a indicar que esse clímax coletivo ocorrerá.

O que aparece em todas as fotografias atuais (e nunca é demais lembrar que a vida é filme) é a vitória de Lula no primeiro turno. Elas mostram, além de uma virtual consagração do petista, duas virtuais inviabilidades: a primeira – de uma candidatura agregadora e competitiva da chamada terceira via - é apregoada aos quatro ventos por inúmeras análises que são música para Lula e o PT e, ao menos, unguento para o bolsonarismo. Mas a segunda – a virtual inviabilidade do próprio Bolsonaro chegar a um segundo turno - costuma ficar obscurecida pela imaginação desse duelo épico, sonhado por alguns, temido por outros. Mas apesar de desejos legítimos e vieses analíticos, as fotos não mentem.

Digo mais: das duas inviabilidades mostradas nas fotografias vejo a de Bolsonaro como maior porque a ele não basta ficar resiliente. Até para simplesmente ir ao segundo turno, precisa reverter o quadro declinante atual e ganhar pontos, o que, dado aquilo que mostram a tragédia social do país, o estágio atual e as perspectivas da economia, o relativo isolamento político do presidente e sua rejeição crescente junto ao eleitorado, parece ser bem mais difícil do que a duvidosa terceira via decolar. A prevalecer a visão dos céticos, de que tendem a ser mantidas as atuais condições de temperatura e pressão, Lula já poderia estar pensando em qual alfaiate contratar. E como o fatalismo anda em alta e o pragmatismo é previdente, forma-se fila para conseguir assento na suposta arca de Noé.

Apesar disso, não se pode ainda descartar que Bolsonaro vá a um segundo turno amparado em seus resilientes adeptos, mesmo que seja só para tomar uma surra eleitoral. Isso poderá ocorrer se a soma de votos dados a candidatos da chamada terceira via crescer um pouco, o suficiente para garantir a realização do segundo turno, mas sem que, por força da fragmentação desse campo, qualquer dos seus nomes ultrapasse Bolsonaro. Uma pesquisa Ibope da última quinta-feira, por exemplo, mostra que quando se admite um cenário com Sergio Moro candidato, Lula segue com intenções de voto suficientes para ganhar no primeiro turno, porém com menos folga, aproximando-se da margem de erro.

Negar a Bolsonaro a chance de chegar a um segundo turno para provocar arruaças no atacado ou a granel seria, a meu ver, o argumento mais forte e lógico da esquerda lulista para bombardear a terceira via com a obstinação que estamos vendo. O único contra-argumento possível, ao mesmo tempo realista e normativo (coisa risível para muitos),  é o de que um candidato de terceira via chegar ao segundo turno - ganhando ou perdendo para Lula - faria muito bem ao país, não só porque deixar de se classificar ao segundo turno seria uma contundente derrota política para Bolsonaro, como porque uma candidatura com postura e programa liberal-democráticos é contraponto à maré populista que tensiona o mundo atualmente, com a pretensão de minar a democracia representativa do constitucionalismo liberal e “refundar” a democracia em bases soberanistas. Esse é o sentido político que teria, neste momento, a agregação máxima possível entre centro-direita e centro, chame-se isso de terceira via, ou não.

Como evidência de que o inusitado é componente sempre possível de dada conjuntura política (sendo mais provável quando são conjunturas críticas) há gente na esquerda insinuando (ao menos em ambientes informais) que a iminente fusão DEM-PSL é biombo de uma conspiração para ressuscitar a jamais nascida candidatura do ex-juiz Sergio Moro. 

Talvez o desejo íntimo que subjaz a essa especulação seja o de que o justiceiro mítico, hoje opaco, cumpra o desiderato de distorcer e desqualificar a ideia de terceira via, sem direito a apelação. Mas conjecturar sobre uma candidatura que, se fosse possível, só interessaria a Bolsonaro (na medida em que facilitaria haver segundo turno) é um diletantismo que não ajuda a esquerda. A Lula, não tendo ele nada de amador, não deve agradar a hipótese dessa torcida crescer na sua cozinha. Se Moro entrasse no jogo – e isso poderia se dar mais por uso solitário de um atalho partidário como o do Podemos - até poderia mesmo jogar um jato de água na terceira via, mas poderia também, e mais provavelmente, jogar outro jato na chance, hoje muito real, de Lula vencer no primeiro turno. E Lula deve ter motivos para querer essa vitória antecipada, não por mera vaidade, ou por receio de efeitos colaterais da jactância morista, mas porque a vitória consumada em primeiro turno dar-lhe-ia tempo de usar disputas de segundo turno nos Estados para fazer alianças conciliatórias. Elas seriam imprescindíveis para dar estabilidade mínima a um governo seu, que não será, nem de longe, o futuro cor de rosa que ele tem prometido em sua performance populista nostálgica, até aqui a escolhida para o vôo sollo no primeiro turno.

Noves fora a insólita suposição de que políticos profissionais, dentre os quais o próprio presidente do Congresso Nacional, possam servir de agentes do projeto pessoal de um ex-juiz, carrasco da “política dos políticos” e com prestigio cadente,  a discussão da fusão dos dois partidos, além de objetivos pragmáticos ligados ao interesse de reeleição de deputados – interesse intrínseco a políticos que atuam numa democracia - sinaliza a disposição da direita brasileira de se reorganizar para fazer valer a sintonia momentânea que seu modo de pensar guarda, em muitos pontos, com o da maioria do eleitorado brasileiro, como foi demonstrado nas três diversas eleições realizadas de 2016 para cá. Tal inclinação conservadora do eleitorado não contradiz a imensa rejeição a Jair Bolsonaro, cuja atitude destruidora de instituições é uma antítese da atitude conservadora. Misturar duas coisas distintas para enxergar na rejeição uma evidente guinada do eleitorado à esquerda, ou mesmo ao centro, seria, no mínimo, uma imprudência analítica.   

Por isso, o pragmatismo que guia a iniciativa da fusão está longe de ser evidência de aproximação dos dois partidos a uma estratégia eleitoral de Bolsonaro ou mesmo do governo, se é que alguma estratégia desse tipo existe como plano A do golpista e da alcateia que o cerca. Parece, ao contrário, ser um modo de ambos os partidos se sentirem material e politicamente fortes para se afastarem de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, DEM e PSL freiam o ímpeto de um concorrente de peso – o PSD de Gilberto Kassab – que vinha nadando de braçada, a oferecer boias e botes a náufragos da canoa governista. Nesse mar de águas turvas chega agora um navio de resgate maior. É previsível que o PSD coopere.

A operação, se de fato for consumada, mudará muita coisa (além do que a simples hipótese da fusão já muda) não apenas no palácio ou nas piscinas que o circundam, mas também em todos os campos e quadrantes partidários da política. São muitas - senão todas, exceto as duas nubentes – as forças que torcem ou operam para que a ideia malogre. É previsível que não só o governo, mas interesses distintos joguem firme, oferecendo vantagens, em alianças estaduais, à reeleição de deputados e senadores para atrapalhar a fusão e, se isso não for possível - como parece não ser - para reverter, ou ao menos reduzir, seus efeitos.

O diagnóstico e um dos prognósticos do ex-prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, em entrevista a “O Globo”, são precisos: “DEM migrou para a direita e fusão com PSL será confusa”.  Bom de análise, como de hábito, o Maia original não tenta matar o mensageiro da má (para ele) notícia e faz várias observações perspicazes e realistas sobre possíveis percalços da fusão, sem deixar de admitir, porém, chances de êxito e relevância dos efeitos. Apenas deixou de completar seu raciocínio, por compreensíveis razões políticas que não desqualificam em nada a sua análise. É fato, sim, que o DEM desistiu de ter, ao menos nesse momento, o centro como aliança prioritária (até porque o tipo de reação do outro Maia, o Rodrigo, à sua sucessão na Câmara, tornou mais difícil esse caminho, que já era problemático) e resolveu olhar para a direita. A fusão com o PSL expressa essa escolha. Mas para o raciocínio analítico se completar é preciso ver que esse olhar para a direita, por mais confusões que haja a resolver na sequência, está sendo mais eficaz para tirar o DEM da órbita de Bolsonaro. Tudo bem, é pedir demais a Cesar Maia que, além de bom analista ele seja um político desprendido (contradição em termos) e um pai insolidário.

Quem quer realmente uma dita terceira via tem de saber que o relógio está contra ela e que não dá para perder tempo reclamando da fusão de um partido médio da centro-direita com uma direita mais explícita. Se a agregação não ocorrer pelo centro, tende a ocorrer mesmo pela direita. Será um desfecho sub ótimo, do ponto de vista do centro, que não tem sentido demonizar, a não ser que o sentido seja não o de agregar, mas o de concorrer com a centro-direita. Ademais, o DEM não está queimando seus navios ao se distanciar do centro. O aval à circulação do nome de Luiz Mandetta é demonstração disso. Mas as tranças que Rapunzel joga, ainda que como seu plano B, cairão no vazio se o centro democrático não for capaz de provar que agrega mais do que a direita.  Se não for capaz precisará considerar, com realismo, que essa agregação que a fusão e suas implicações conservadoras insinuam é, ainda assim, um desfecho mais interessante para si e para a democracia do que a guerra de fim do mundo do virtual segundo turno revanche de 2018 e melhor mesmo que o cenário, menos regressivo, de Lula vencendo no primeiro turno, tal como aparece nas fotos do momento. Há três coisas mais importantes hoje do que tentar imaginar agora quem, afinal, vencerá ou perderá as eleições. São elas a garantia de que as eleições aconteçam dentro das regras, a possibilidade de que aconteçam de modo civilizado, com o país já livre do espectro da reeleição de Bolsonaro e a inclusão, desde já, na agenda política, do debate da pauta do país, enfim, do que se quererá no pós-Bolsonaro.

Para quem não possui ânimo nem conexão governista e também está fora da órbita petista, assim desejando continuar, não existe outra opção além da de persistir fazendo política em dois planos. Um é o da frente democrática ampla, para defender, ao lado da esquerda, a democracia e o processo eleitoral dos perigos - não mais eleitorais, mas ainda institucionais – de desestabilização que o bolsonarismo, mesmo politicamente batido, pode causar através do fomento a um caos social e/ou à violência política. Outro é o da articulação e mobilização pré-eleitoral com foco na maior agregação possível do centro com a centro-direita, através de uma candidatura e de um programa capazes de dialogar também com forças de direita, de centro-esquerda, com pragmatismos do tipo centrão e, principalmente, com os eleitorados dos respectivos campos onde se situam essas forças.

Como já disse e nem precisava dizer, é um roteiro de duvidoso êxito. Acrescento que de complexa execução também e por esses dois motivos, é legitimo considerá-lo improvável. Mas mesmo que os vaticínios se confirmem, há aquela hipótese de agregação desse campo a partir de uma força de gravidade vinda, não dele mesmo, mas de uma estratégia de uma direita de vocação governista ainda não inteiramente desprendida de Bolsonaro, mas em trânsito a uma posição de centro direita, justamente para se desvencilhar dele. Em torno desse script do conservadorismo democrático circula a hipótese, por exemplo, da candidatura de Rodrigo Pacheco. A seu favor, a maleabilidade requerida em operações políticas delicadas, a postura não doutrinária em economia, além do discurso irretocável, tendo em vista os cânones do constitucionalismo liberal. Contra ele, a escassa penetração do seu nome em áreas populares e a percepção desfavorável da sociedade em relação ao Parlamento e a parlamentares em geral, variáveis cuja incidência só seria neutralizada pelo impacto de seu envolvimento positivo num fato ou processo politicamente decisivo.  Isso dá lugar a afinidades eletivas (embora não a nexos necessários) entre a ideia de sua candidatura e a hipótese de um impeachment com caráter e dimensões de processo cívico. Mas se o Senado seria o lócus decisivo desse eventual processo, é preciso que sua deflagração seja combinada com Artur Lira e “sua” Câmara. Nesse ponto a incerteza reina.

Independentemente do que cada eleitor, ou grupo de interesse, decida a respeito do seu voto ou apoio, uma via como essa (que não seria mais terceira, mas substituta da primeira via) pode ser vista também como boa notícia para o país, ainda que tenda a estar aquém da plataforma reformadora de cunho social-democrático, que a situação crítica da maioria dos brasileiros requer. Mas isso seria questão a debater e decidir na urna, possibilidade que é horizonte benigno em si, depois de tantos sustos tomados e tantos riscos corridos. Quem leu entrevista recente do ex-ministro Tasso Genro constatará que uma reflexão como essa não pode ser cancelada, simploriamente, como anti-lulismo. É uma reflexão orientada, ao mesmo tempo, por fatos e pelo compromisso com a democracia.

Mas costuma ser mais efetiva na esquerda uma atitude anti-liberal que vincula, tensa e pragmaticamente, o chamado lulo-petismo ao PSOL e a políticos como Guilherme Boulos, a partidos e quadros de organizações de esquerda sem expressão eleitoral, a ativistas de movimentos identitários e a analistas militantes do esquerdismo acadêmico. Trata-se de um maciço ideológico empenhado em não admitir que o "capitalismo" se saia bem da crise provocada por seus contrastes e potencializada pela emergência da extrema-direita global. Crise que é vista, por esses olhos gauche, em chave chinesa, como risco e oportunidade. Por essa ótica Biden pode ter sido aliado tático, mas já é e sempre será adversário estratégico, contra o qual vale até (para alguns mais ousados) ver algum sentido de libertação na luta do Talibã. Nisso acaba dando o fato da 'esquerda ocidental" - especialmente a dos campi universitários e a do hemisfério sul – ter, aos poucos, trocado o Manifesto Comunista (um texto que não xingava e sim analisava criticamente o capitalismo do seu tempo) pela atemporalidade, ou temporalidade recorrente, em aspiral, do I Ching. Filosoficamente, a escolha é livre e nela nada há de ruim. Politicamente, é apenas péssima.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/09/paulo-fabio-dantas-neto-baile-de.html


Paulo Fábio Dantas Neto: Agruras da razão diante da política como ela é

Declaração do presidente do Senado transmite sensação de segurança institucional, pelo cargo que ocupa

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia e Novo Reformismo

“[..} Os mineiros, como políticos, têm o seu perfil.  É o perfil de moderação, ponderação, busca de consensos, conciliação, mas que não confundam esse perfil de mineiro de se fazer política com inércia ou tolerância em relação àquilo que não transigimos. Porque quem objetivar mitigar o estado de direito ou estabelecer retrocessos à democracia terá o pulso firme e forte da política de Minas Gerais para resistir” (declarações de Rodrigo Pacheco, em evento promovido pela UFMG, publicadas em matéria da jornalista Luciana Amaral, UOL em 17.09.21)

A declaração do presidente do Senado transmite sensação de segurança institucional, pelo cargo que ocupa. Além disso, ao recorrer ao simbolismo da “mineiridade” política, reforça de modo importante, como faz desde que chegou ao cargo, o coro de vozes que pregam a pacificação do país. Trata de pacificação como algo bem distinto da mera conciliação com Bolsonaro, pois a disposição conciliadora compartilhada pelo senador mineiro, em seu conservadorismo republicano genuíno, significa, por definição, uma não-conciliação com o golpismo do presidente. Ambas as dimensões do posicionamento (a institucional e a política) agradam a este comentarista, mas não é disso que trata a coluna de hoje.

O intuito é analisar a declaração sob o ângulo de seu aparente sentido de posicionar o presidente do Senado na discussão pré-eleitoral que transcorre, contra o relógio, dentro do campo político que integra. As assim chamadas direita e centro-direita precisarão, nos próximos meses, definir-se por um caminho eleitoral próprio ou por contribuir a uma agregação mais ampla, que englobe o centro do espectro ideológico, podendo chegar à soleira da porta da assim chamada centro-esquerda. A premissa de que parto para considerar apenas essas duas possibilidades é o desvanecimento prático da opção de renovar, pela aposta na reeleição de Bolsonaro, o pacto regressista vencedor em 2018.

Sob esse enquadramento, a declaração parece mais um toque de reunir do que um chega para lá. Acena à reconfiguração republicana do governismo, mais do que ao nascimento de uma oposição conservadora ao governo. Do seu posto de observação privilegiado, Pacheco constata todos os dias que o fantasma da orfandade ronda a nuvem política que se agarrou no mito em 2018 e percebe seu esfarelamento a um ano das próximas eleições. Mas que mensagem será capaz de reunir proativamente essas forças hoje perdidas no varejo e dispersas no atacado? A da firme resistência institucional é, sem dúvida, um bom e nobre começo, capaz de reparar, na prática, o malfeito anterior.

O pulso forte do republicanismo mineiro-nacional, no entanto, além de espantar o perigo que ronda a nação e sua democracia, construirá o que? Sua agenda positiva será a das chamadas "ilhas de racionalidade" do atual governismo, quase invisíveis a olho nu enquanto Bolsonaro estiver sentado na sela em que transformou a cadeira presidencial? Que acenos concretos uma centro-direita racional, como a que Pacheco ensaia encarnar, pode fazer aos quase náufragos da aventura populista, para tomarem o barco governista das mãos nada limpas e ainda por cima ineptas do capitão e dos tripulantes mais chegados, ou para o abandonarem à deriva e tomarem assento em outra embarcação?

A racionalidade dos cálculos eleitorais nem sempre está ao alcance de uma razão esclarecida. O pulso forte que essa razão comanda, se não achar um discurso econômico que o conecte ao mundo social, pode se ver neutralizado pela eficácia prática de uma mão boba trafegando em sentido oposto, mão calçada com luvas de uma confortável dianteira em pesquisas eleitorais. Vistosas luvas, que tentam náufragos ávidos por sombra e afagos.

Mas não apenas no arraial governista a razão esclarecida cambaleia. Se nele ela tenta se aprumar a partir de um discurso de resistência conservadora das instituições, no arraial oposto, da oposição de esquerda, sua missão não é menos complexa que a de Pacheco. Dinos, Freixos, Tábatas, no PSB e fora dele, tentam fazer segunda voz num coro em torno de um mito que, ao contrário do da direita, parece ir muito bem, obrigado. Sequer podem insinuar, no momento, uma concertação crítica. Precisam divisar, no maciço ideológico e pragmático que ata PT e esquerda ao lulismo, ilhas de racionalidade com as quais possam, ao menos, dialogar para moderar o apetite populista da caravana que segue o virtual campeão de votos, ignorando o ladrar de teimosos perseguidores de uma terceira via.

Uma entrevista de um personagem bem menos visível, o economista Guilherme Melo, do Instituto de Economia da Unicamp e da Fundação Perseu Abramo (“O PT quer o fim do teto de gastos. E uma nova regra fiscal no lugar”) concedida aos jornalistas Daniel Rittner e Fabio Graner e publicada pelo jornal Valor Econômico, em 13.09.21, permite uma interessante comparação, dentro do mesmo ângulo de análise do debate pré-eleitoral.

Apesar de minhas evidentes e confessas limitações cognitivas na área da economia, percebi, no discurso de Melo, uma atitude moderadora. Temas especialmente controversos, como expansão do gasto público, reforma tributária, metas de inflação e independência do BC são enfrentados na entrevista sob enquadramento político que lembra, talvez, a disposição, ou sentido de missão pragmática, da “Carta aos brasileiros” de 2002. Sem uso de dogmas ideológicos da primeira infância do partido, do maniqueísmo dos tempos da sua oposição intransigente aos governos de FHC, de certezas arrogantes no exercício do poder, ou de chavões populistas costumeiros do petismo da década passada.

Naturalmente há muitas afirmações vagas, opções ainda não bem delineadas num discurso substantivo, mas é perceptível uma retórica "nem, nem" (nem liberalismo econômico, nem nova matriz Rousseff/Mercadante), com a ressalva, de Melo, de que ele não fala por Lula. Com tudo isso, a entrevista mostra que uma certa terceira via é pensada em ilhas de racionalidade acadêmica petistas, onde se procura fazer economia e política conversarem sob a batuta de uma razão soberana que considera, aqui e ali, a experiência de uma década de interdição dessa conversa no Brasil.  A sinalização é de uma inflexão racional ao centro.

Na arena plebiscitária, no entanto, que alimenta e se alimenta de pesquisas de imagem, de potencial e de intenção de voto, a substância e o tom de Lula até aqui não dão espaço a nem, nem algum, seja os de uma virtual terceira via, seja os que sussurram na sua cozinha.  É populismo explícito em política e quase nacional-desenvolvimentismo em economia. A evocação simbólica à persona de Luiza Trajano (nem estimulada, nem rejeitada pela própria) tem indisfarçável sabor de revival, tanto na intenção de dissipar receios empresariais (compartilhada, também, com a da Carta aos brasileiros), quanto na afinidade que a "apresentação" apologética da empresária, feita pelo político pop, líder das pesquisas, guarda com aquela retórica dos campeões nacionais do tempo da nova matriz.

Por enquanto, são pequenas as chances de proposições como a do economista Melo darem o tom da campanha petista, pois, ao que tudo indica, o candidato, agora, não será um Haddad. Isso não significa recusa do centro por Lula, mas precisamente sua busca, através de outra racionalidade, que a razão soberana desconhece. Algo que de modo sintético pode ser representado pela ideia estratégica de usar uma polarização sem nuances para se eleger e depois a conciliação para governar. Seria passar da oposição aguerrida a governo moderado, sem a mediação de uma campanha cujo conceito seja Lulinha paz e amor.

A comparação das agruras da razão esclarecida nos dois arraiais deixa evidente um contraste entre o terreno politicamente resolvido da esquerda e a cacofonia que ainda impera na direita. A primeira está em campo, a segunda no divã. Explica-se, portanto, que na esquerda já se esboce, inclusive, um discurso econômico para conversar com a política, ainda que limitado pelo poder de veto discricionário de Lula. Já nas áreas politicamente próximas ao atual desastre governamental o discurso econômico ainda repete slogans doutrinários como biombos de pragmatismos espúrios. Paulo Guedes é um pântano do qual potentados privados indigentes em ética pública não conseguem se desprender.  Sintoma de que a direita stricto sensu não tem até aqui o que dizer numa conversa entre economia e política. Há realistas, mas na falta de um rei, não entabulam um plano real.

A indeterminação reinante nas cercanias do palácio e a insuficiência de uma razão conservadora endógena para superar essa indeterminação fazem-me pedir licença aos inúmeros fatalistas de plantão, que anunciam diariamente o aborto de uma terceira via, para dizer que o centro democrático poderá ter um papel decisivo nessa eleição. Só ele pode produzir o programa que a direita e a centro-direita juntas não têm. Falta-lhe até aqui um nome próprio que trafegue de modo fluente no território onde há razões que a própria razão desconhece. Essa não é lacuna pouca e desconhecê-la é bobagem. Ainda resta um tempo para seguir tentando que esse nome emerja de lugares sociais onde impera a lógica plebiscitária da necessidade. É tempo cada vez mais pouco e o sucesso dessa hipótese é improvável, para dizer o mínimo.  Porém, a não ocupação do vácuo é limitação da virtù política, artigo raro hoje em dia. Ela não desmente a existência do vácuo, que expressa a ausência de tradução política da presença sociológica do centro político. Pesquisa após pesquisa, esse centro persiste na foto e desafia os ululadores do óbvio.

Se os partidos do centro democrático não tiverem, de fato, razões suas para produzirem, institucionalmente, no parco tempo que lhes resta, a agregação política que não surgiu de um movimento bem-sucedido de alguém junto ao eleitorado, será porque eles também, a exemplo das arenas plebiscitárias onde o eleitorado se entoca, são lugares de onde emanam razões que a própria razão desconhece.  Nesse caso, a ideia de terceira via será espólio disputado pela esquerda lulista, plena no discurso, que buscará subsumi-la em seu abraço hegemônico e por uma direita que precisa dela para encontrar algum discurso.

Com o tempo veremos o que o pulso forte a que alude Rodrigo Pacheco tem a ver com isso. Duas prospecções são possíveis com os inerentes riscos de engano. Primeiro que a razão esclarecida é condição necessária, mas não suficiente para que o aludido pulso firme e forte produza efeitos não apenas defensivos. O desencarceramento de ideias depende em muito de um saber prático. Segundo que o entendimento da centro-direita com o centro parece questão de tempo, mas aí há duas incertezas relevantes, uma sobre as bases desse entendimento (quem entraria com que no consórcio) outra sobre a sua tempestividade. O desejo das partes diretamente envolvidas é contarem com um tempo elástico. O da esquerda é encurtá-lo ao máximo. O de Bolsonaro, ser intempestivo para cessar qualquer entendimento e poder se desentender até consigo. A mineiros cabe vigiar o capitão, sem deixar de tocar o barco.

*Cientista político e professor da UFBa

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
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Luiz Werneck Vianna: Desventuras e promessas do liberalismo brasileiro

Envergadura do golpe que se tramava não pode ser subestimada, que não deve ser tratado como um pesadelo fortuito de uma noite mal dormida

Luiz Werneck Vianna / Democracia e Novo Reformismo

Não foi a primeira vez e nem será a última em que se tentou nos infaustos acontecimentos deste 7 de setembro fazer a roda da história retroagir a fim de repor o país nos trilhos do malsinado regime do AI-5, obsessão manifesta do governo que aí está. A intentona, preparada como um plano de estado-maior a que não faltaram recursos oficiais e de setores reacionários das elites econômicas, em particular do agronegócio, tinha em mira jogar por terra a Carta de 88 cujas instituições obstam os arreganhos absolutistas no exercício do poder presidencial. O sistema de controle do poder contemplado no texto constitucional, orientado para a defesa dos direitos políticos e sociais consagrados por ele, demonizado pela clique no poder como entraves às suas ações liberticidas, deveria ser derrogado. Ferindo de morte o constitucionalismo democrático, ao Judiciário caberia apenas agir nos litígios privados na contramão dos processos civilizatórios emergentes desde a derrota do nazi-fascismo na segunda guerra mundial.

Foi por pouco. E ainda são obscuras as razões por que apenas em um dia a formidável arma de propaganda golpista que se abateu sobre o país fosse recolhida aos coldres, com o país estupefato tomando ciência de uma declaração presidencial reverente às instituições. Para tal resultado, os   pronunciamentos fortes e tempestivos de presidentes das altas cortes do Poder Judiciário, a que se seguiram manifestações dos dirigentes do Senado e da Câmara dos Deputados em defesa das instituições democráticas, decerto importaram, mas pode ter havido nos céus mais do que o movimento dos aviões de carreira embora ainda não registrados no radar. Enfim, por fas ou nefas, as trevosas nuvens que pairavam sobre a sociedade se dissiparam como num passe de mágica, ficando o dito pelo não dito enquanto se sussurra na sociedade até quando?

A envergadura do golpe que se tramava não pode ser subestimada, que não deve ser tratado como um pesadelo fortuito de uma noite mal dormida. Foi real a parada militar em Brasília – os militares sabiam o que se seguiria? –, como reais as concentrações de massas da avenida Paulista e na praia de Copacabana e noutras capitais, como também reais as vociferações do presidente Bolsonaro em todas elas, cruzando o país a bordo de aviões oficiais, dardejando ofensas a autoridades judiciárias com o ímpeto de Donald Trump no frustrado golpe ao Capitólio de 6 de janeiro do ano passado. Real igualmente o suporte financeiro com que setores das elites econômicas deram à mobilização de milhares de pessoas que acorreram às ruas em apoio a Bolsonaro naquela jornada equívoca de 7 de setembro.

Só não vê quem não quer, o governo que aí está não caiu sobre nós como um raio num dia de céu azul, suas raízes têm causas remotas a começar da nossa formação como sociedade e estado-nação. Padecemos dos males da herança maldita do latifúndio e da escravidão, livramo-nos tardiamente da primeira e ainda coexistimos com a primeira, a essa altura reciclada em agronegócio com seus personagens elevados a posições destacadas na economia e na política. O desenlace do nosso processo de independência política se operou na forma clássica de uma revolução passiva – seu condutor era o príncipe herdeiro da dinastia reinante na metrópole – abortando a revolução nacional-libertadora que tomava forma em movimentos como a Inconfidência Mineira, no de 1817 em Pernambuco e se disseminava pelo Nordeste, especialmente na Bahia, sob a inspiração de ideais liberais influentes na revolução americana.

Os efeitos dessa solução política “por cima” comprometeram no Império a sorte dos liberais com a recusa do imperador do texto da constituição elaborada pela assembleia constituinte, de caráter liberal em política, vindo a promulgar de modo autocrático a Carta de 1824, que outorgava a ele um poder moderador com o qual limitava o papel da representação e se punha à margem da soberania popular.

Wanderley Guilherme dos Santos, em um ensaio de 1974 “A práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa”, procede a um inventário crítico do destino desse conceito entre nós. Descontado o que há de datado nesse estudo, ele captou com precisão as razões do malogro do nosso liberalismo político a partir de dois momentos de importância capital na formação do Brasil moderno, o da Abolição e o da República.

Ambos movimentos são analisados a partir dos manifestos com que elites políticas da época desencadearam suas campanhas, o Radical Liberal, de 1869, e o Republicano do ano seguinte. Persuasivamente, Wanderley sugere que os rumos futuros da sociedade teriam sido demarcados pelo tipo de orientação neles predominante, enquanto os liberais radicais, defensores de uma monarquia constitucional postulavam em favor de reformas de clara adesão ao liberalismo político, inclusive com a abolição do trabalho escravo, os republicanos, que desejavam o apoio das classes proprietárias a fim de atingir seus objetivos, se fixaram no tema da mudança de regime. Tais divergências entre as elites modernizadoras de então teriam comprometido em boa parte o destino dos ideais liberais debilitando o impulso original que o animava.

A revolução de 1930 abre um novo ciclo na política brasileira dominado pela paixão da modernização econômica e de um Estado dotado de meios eficientes na sua aceleração. É o tempo da fórmula corporativa e do predomínio da ação estatal como reguladora de todas as instâncias da vida social, culminando com a criação do Estado Novo e da Constituição outorgada de 1937. O capitalismo brasileiro deveria seguir um curso iliberal em clara ruptura com suas tradições em que o liberalismo mal ou bem ocupava um papel de fermento nas lutas democráticas. O empreendimento bem-sucedido tanto em economia como no controle social do mundo do trabalho e da sociedade em geral concedeu permanência, afora os ajustes que se fizeram necessários ao longo do tempo, às instituições e ao estilo de mando autocrático do Estado Novo, exemplar no caso do regime militar de 1964 a 1985, especialmente sob o AI-5, redigido pelo mesmo Francisco Campos, autor do texto da Carta de 1937.

O Brasil que aí está é fruto desse processo de modernização autoritária, contra o qual, na esteira de massivas manifestações populares em articulação com amplas alianças políticas, soube triunfar com a promulgação da Carta democrática de 1988. Tal como se constata, esse triunfo não foi pleno, na medida em que uma má política criou condições para uma inesperada vitória eleitoral dos refratários às mudanças democráticas que nosso texto constitucional ampara e viabiliza.

 A modelagem do governo Bolsonaro é com todas as letras a do capitalismo iliberal. Nesse sentido, há um fio vermelho entre ele e a história do nosso autoritarismo político, remota ou contemporânea, como o Estado Novo e o AI-5, que se opuseram à passagem do liberalismo político. Derrotá-lo, mais do que abrir caminho para as forças vivas da sociedade atual, significa passar a limpo as trevas do nosso passado.

*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio  

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
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O teste de fogo do Judiciário e o apoio social para vencê-lo

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia e Novo Reformismo

Quem aposta na incapacidade do Judiciário de se conduzir como Poder coeso e atento às suas prerrogativas institucionais está errando feio. Escaramuças frequentes na sua cúpula, o STF, em torno de temas atinentes, ou conexos, ao cotidiano político, faziam prosperar cogitações de que ela estivesse irremediavelmente atravessada por controvérsias a ponto de colocar em risco o cumprimento eficaz da sua missão de guardiã da Constituição. Temia-se, ademais, o efeito cascata dessa virtual dinâmica centrífuga derramando-se pelos demais tribunais superiores e para baixo, esgarçando o tecido institucional daquele Poder.

Na última semana, confirmando sinais da semana anterior, reiterados na abertura das atividades judiciárias após o recesso, passou a ficar claro que, se há contencioso crônico na cúpula do Judiciário, ele não se estende à pauta da defesa da democracia e da República. O risco de uma pane institucional no País, pela veiculação cada vez mais aberta e insolente, de ataques e deboches dirigidos a ministros do STF por parte do Chefe do Poder Executivo, associados a ameaçadas veladas e mesmo diretas às eleições de 2022, levou o colegiado a falar em uníssono, assumindo suas responsabilidades ante o momento crítico que se vive.

Há quem considere que a reação tardava, mas ninguém, exceto os politicamente engajados na referida cruzada desestabilizadora, tem dúvidas sobre a o acerto do recente pronunciamento do ministro Luís Fux, presidente do STF. Ele respalda e amplifica o alcance jurídico e político de providências tomadas pelo ministro Alexandre Moraes, relator, naquela Corte, do processo no qual Jair Bolsonaro foi incluído, como investigado, por indicação unânime do plenário do TSE. Essa indicação, por sua vez, já representava mais que incremento, um salto de qualidade na disposição da Justiça Eleitoral - desde sempre demonstrada pelo presidente daquela corte, ministro Luís Roberto Barroso -, de enfrentar a campanha de descrédito, movida contra ela, como parte de uma estratégia golpista de deslegitimação prévia dos resultados das eleições, as quais se desenham no horizonte como dique definitivo a ilhar pretensões autocráticas do presidente.

A convergência pública de posições, nesse terreno, entre ministros tão habitualmente afastados em pontos de vista, como Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes - que chegaram a protagonizar embates agressivos no plenário do STF sobre várias questões - é medida do amadurecimento de uma convicção sobre a prioridade lógica e política que a conservação da estabilidade institucional merece. Reconhece-se, nessa atitude coletiva, uma lógica análoga à que, no Congresso Nacional, alinha bancadas adversárias quando a instituição é ameaçada por outro Poder. Firma-se, assim, o STF, como autêntico poder republicano, não mera instância de legitimação/deslegitimação técnica de atos do poder político.

É preciso distinguir essa coesão institucional benigna daquele corporativismo, por vezes negativo, que costuma incidir sobre a conduta de membros de ambos os poderes. A propaganda da extrema-direita, refletindo interesse político do grupo que empalma e abastarda o Executivo, procura diluir a percepção da coesão institucional do Poder Judiciário de duas maneiras. A primeira é a fulanização de juízos sobre posições assumidas naquele ambiente, ao que parece, com três objetivos. Os ataques pessoais, perpetrados em termos chulos contra determinados ministros, visam popularizar o estigma de conspiradores e sabotadores da atuação do presidente eleito, ao tempo em que procuram (em vão, como se vê) – fomentar, artificialmente, uma cizânia permanente no tribunal e, por fim, blindar Bolsonaro contra as evidências de que afronta o Judiciário como um todo.  

A segunda maneira de tentar diluir a imagem de coesão do STF é distorcê-la, apresentando-a como expressão, ora de um corporativismo odioso aos olhos de uma sociedade desigual, ora de uma vontade ditatorial que, através de um regramento severo, dito exorbitante, do comportamento social dos cidadãos e da conduta dos agentes governamentais, estaria ameaçando a liberdade individual de uns e outros. Essa fabulação tenta equiparar, ou mesmo confundir, as éticas da vida privada e da vida pública, em desfavor dessa última. A legitimação do poder ilimitado de um autocrata, que se busca com tal narrativa, resultaria, caso fosse bem-sucedida, de uma apropriação distorcida do argumento liberal e mesmo do léxico democrático e da revogação prática da República, pela destruição de suas instituições.

O que foi dito não ignora, nem pretende ocultar (até porque seria esforço inútil) a presença de um corporativismo social e culturalmente nefasto entre as práticas correntes no âmbito do Judiciário, convivendo, dialeticamente, com o papel positivo desse Poder na garantia de avanços sociais e culturais. Também não ignora ou subestima o potencial de risco para a democracia contido numa hipotética ditadura de juízes. Sequer desconhece a presença, em diferentes estratos hierárquicos do Judiciário, de uma vontade de poder que, em certas circunstâncias, pode levar a flertes autocráticos também. Ainda está fresca em nossa memória a perversão da operação Lava-jato, que levou à sua maré vazante. Assim como não se deve esquecer a acolhida que algumas de suas práticas e até arbitrariedades factuais encontraram na malha judiciária do país e até no âmbito do STF. Longe estou, portanto, de uma ode à toga. Um ceticismo moderado é um anticorpo democrático.

Nada disso, no entanto, deve confundir o juízo político sobre a hora presente. O Judiciário coloca-se, objetivamente, hoje, como a mais eficaz instância de contenção das investidas autocráticas contra a ordem republicana e democrática no Brasil. Os direitos da cidadania, desde o mais elementar direito à vida ao mais relevante dos direitos políticos, que é o de eleger representantes, passando por direitos civis como às livres reunião, organização e expressão e pelos direitos sociais conquistados ao longo de décadas, todos eles nos faltarão em grau importante, senão fatal, se o Judiciário for vencido no presente embate contra as forças do obscurantismo, da violência e do atraso. Embate que esse Poder não escolheu, mas do qual, tendo lhe sido insistentemente imposto, não pode desertar, sob pena de faltar ao dever que justifica a sua própria existência como poder constituído.

Por essa razão não se pode alimentar ressalvas no apoio político e social ao que se está processando no TSE e no STF. E não é irrealista pensar que esse apoio tende a crescer a se materializar num fio resistente de consciência cívica que conecte, no âmbito do Estado, decisões de tribunais, manifestações em tribunas parlamentares, articulações partidárias, decisões legislativas, mobilização de entes federativos e de corporações e instituições estatais autônomas frente ao governo. E que superados os rigores da pandemia, com o avanço da vacinação, o encontro de tudo isso com a dinâmica, já hoje mais fluente, da sociedade civil em suas múltiplas faces, seja a da organização de classes e grupos sociais de extração popular, seja as dos movimentos civis temáticos, as das entidades cientificas, profissionais e religiosas que formam opinião, as empresariais, a imprensa e a mídia social.

Acostumemo-nos de novo ao hábito da conexão entre estado e sociedade, produzido pela representação política e pela organização social. O choque de realidade que a emergência política da extrema-direita nos trouxe está nos levando a esse reaprendizado. As cobranças para que os agentes do Estado - os políticos principalmente – escutem a sociedade precisam continuar e vão continuar, a perder de vista. É da própria índole dos regimes e das sociedades democráticas que assim seja.

Ao lado desse gerúndio, a hora requer chamados à responsabilidade política dos cidadãos para com a conservação das instituições do país. Hoje o Judiciário, em seu contra-ataque, precisa do apoio da sociedade e da política, no interesse delas próprias. Logo chegará a vez do Congresso, mais apropriadamente ainda, sendo, como é, a casa da representação política, ser convocado ao mesmo bom combate. Deve aceitar a convocação, como faz hoje o Judiciário e precisará do mesmo apoio social, para converter em ferramenta política. De aflições, desafios, ressalvas e respostas vivem, renovando-se, as repúblicas democráticas.

*Cientista político e professor da UFBa

Fonte: Democracia e Novo Reformismo

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