Demétrio Magnoli
Demétrio Magnoli: Depois do vírus, Kant ou Hobbes?
China triunfou sobre os EUA no teste da pandemia
Volta à normalidade? A ideia sedutora do tempo circular, do retorno ao ponto de partida, não ajuda a decifrar a paisagem pós-pandemia.
Os analistas que apostam numa ordem global mais kantiana — isto é, mais integrada e cooperativa — erram tanto sobre a partida quanto sobre a chegada. Os pratos da balança inclinaram-se ao nacionalismo antes da pandemia e suas consequências acelerarão o curso do fechamento. Na “Foreign Policy” de 20 de março, Stephen Walt opinou que a pandemia “reforçará o Estado e o nacionalismo”, provocará um “retrocesso na globalização” e “criará um mundo menos aberto, menos próspero e menos livre”. Hobbes, não Kant.
Henry Kissinger, em artigo recente, chamou os EUA a rememorar os motivos que o levaram a erguer a arquitetura de cooperação internacional do pós-guerra. A suspensão do financiamento americano da OMS evidencia que Trump escolheu o caminho oposto.
O G7 só produziu palavras vazias. Os EUA isolaram-se na sua crise sanitária interna, que revelou ao planeta o despreparo governamental e os assombrosos níveis de exclusão social da superpotência. Na mesma “Foreign Policy”, Kori Schake prevê que os EUA “não mais serão vistos como líder internacional” pois “falhou no teste da liderança”. Como resultado do fracasso americano, a China ganhou a guerra da Covid, apesar do ocultamento inicial da epidemia e da fabricação de estatísticas altamente suspeitas.
No pós-guerra, o rival era a URSS, uma potência fechada no casulo geopolítico e econômico do bloco socialista. O rival de hoje, a China, pelo contrário, é uma potência conectada às redes da globalização. O triunfo chinês sobre os EUA no teste da pandemia não só amplia sua influência internacional como delineia uma aura de eficiência em torno de seu modelo autoritário de capitalismo de Estado. O conceito nacionalista de Trump sai fortalecido da emergência mundial. Mas, ironicamente, a vitória doutrinária é de Pirro: representa uma derrota estratégica para os EUA.
“Nosso maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial”, disse Angela Merkel, referindo-se tanto à Alemanha como à União Europeia (UE). A UE desapareceu na hora em que o tsunami do vírus atingiu a Itália e, diante do dilema do resgate econômico, repetiu a cisão Norte/Sul verificada uma década atrás, na crise do euro. A Espanha clamou por um “novo Plano Marshall”, intra-europeu, baseado na mutualização das dívidas emergenciais, e ganhou os apoios da França e da Itália. A Alemanha resistiu, uma vez mais, à emissão de títulos europeus (eurobonds), secundada por Holanda e Áustria. O bloco caminha sobre gelo fino.
A emergência sanitária devasta as economias europeias enquanto se desenrola a conclusão do Brexit — e sob as nuvens escuras da erosão da aliança transatlântica. Sem a parceria com os EUA, explicou Kissinger anos atrás, a Europa ficaria à mercê da China, reduzindo-se a mero apêndice da Eurásia. Merkel referiu-se a esse argumento quando, em janeiro, admitiu que, “como europeus, precisamos refletir agudamente sobre nossa posição no mundo”. Agora, diante da pandemia, a Alemanha deve encarar o que o espanhol Pedro Sánchez definiu como uma “encruzilhada crítica” na qual se decidirá a sobrevivência da UE.
“Um mundo menos aberto, menos próspero”. O Japão ensaia um programa de “repatriação” em massa de suas multinacionais estabelecidas na China, por meio de bilionários subsídios governamentais. Nos EUA e na Europa, dirigentes de corporações globais reavaliam os riscos embutidos nas extensas cadeias de suprimentos que conectam o Oriente ao Ocidente. O espectro de novas pandemias e o precedente das quarentenas alteram os cálculos econômicos de custos, gerando uma tendência à reaglomeração das cadeias produtivas.
Simultaneamente, os EUA invocam esquecidas leis de guerra para compelir a GM a fabricar respiradores hospitalares, e os países europeus alargam o conceito de ativos nacionais sensíveis para incluir a produção de equipamentos médicos, remédios e vacinas. Hobbes: a estratégia, razão do poder, impõe-se ao lucro, razão do capital. Chegamos à era da “desglobalização”?
Demétrio Magnoli: Na pandemia, sociedades atemorizadas por monstros entregam sua sorte aos médicos
Polarização política no Brasil e nos EUA destila polêmica estúpida, mas não é assim na Alemanha
Nos EUA, é Anthony Fauci; no Brasil, Mandetta. Os dois médicos ocuparam o centro dos palcos, ofuscando Trump e Bolsonaro. O presidente americano resiste prudentemente ao perigoso instinto de demitir o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde. O brasileiro, comandado por sua própria seita de sicários de redes sociais, acaba de dispensar o ministro da Saúde.
Lá, como aqui, ainda que em tons menos primitivos, a polarização política destila uma polêmica estúpida que contrapõe saúde pública e economia. Não é assim na Alemanha, onde ninguém discute que os dois elementos pertencem à mesma equação.
A pandemia oferece um curso inteiro sobre os efeitos do populismo. Trump e Bolsonaro falaram numa "gripezinha". As sociedades reagiram, atemorizadas pelos monstros, entregando sua sorte aos médicos.
Nesse passo, enquanto a direita populista agrupava-se atrás do estandarte da "economia", todos os demais constituíam uma frente ampla em defesa da "vida". A quarentena converteu-se em programa político e, quanto mais à esquerda, mais radical é a convocação ao isolamento social.
Há uma certa lógica na atração da esquerda pela quarentena. A China fez a mais completa delas. Quarentenas reforçam o poder estatal, em detrimento das liberdades públicas e individuais. É a hora da polícia: a emergência propicia o controle da informação, a mordaça à imprensa. A paralisia econômica demanda agressivas políticas de distribuição de fundos públicos. A "mão invisível" do mercado cede lugar à mão bem visível do Estado. O fechamento de fronteiras promove desglobalização.
Contudo, diante dos monstros, a atração estende-se bem além da esquerda. Quem quer ficar à mercê de ideólogos descontrolados, santos guerreiros da salvação pela cloroquina? Como tolerar governantes que se associam a bispos de negócios empenhados na restauração da prática medieval de preces coletivas para expulsar a peste? Daí, a escolha majoritária pelo "governo dos médicos".
O populismo está longe do núcleo do poder na Alemanha. Por lá, o colchão de um robusto sistema de saúde pública propiciou a adoção de medidas de isolamento social menos draconianas que as da Itália ou da Espanha. O governo central e os governos estaduais operaram em estreita cooperação, ouvindo recomendações de equipes de especialistas. O sistema federal provou que é capaz de agir. A curva de óbitos foi achatada em níveis relativamente baixos. No processo, os médicos nunca tomaram o lugar dos representantes eleitos pelo povo.
A transição para a reabertura começou numa reunião da primeira-ministra Angela Merkel com os governadores. Merkel guiou-se por um relatório encomendado à Academia Nacional de Ciências. O roteiro foi preparado por 26 experts "“entre os quais, além de médicos, contam-se economistas, sociólogos, juristas e filósofos. A frase-chave diz que as medidas emergenciais devem ser gradualmente removidas "por razões constitucionais". A equação alemã tenta equilibrar não dois, mas três imperativos: saúde, economia, liberdades constitucionais.
Não é o paraíso, a morada dos anjos. Há divergências, dissonâncias, tensões, acesos debates políticos. Mas, por lá, praticamente ninguém discute sobre o valor relativo da vida e do dólar (ou do euro), pois dá-se como óbvio que economia é vida e, também, que os negócios não podem decolar em meio à instabilidade gerada por um colapso hospitalar.
"Saúde ótima e a rápida retomada da vida social não são fundamentalmente incompatíveis entre si, mas mutuamente dependentes", escreveram os experts, sintetizando um consenso nacional.
Na ausência do personagem do monstro, a novela sobre o médico e o monstro ficou fora das telas alemãs. A diferença não está na "cultura" dos alemães, mas numa paisagem política menos envenenada pelo populismo. Lá, o vírus é, exclusivamente, um microrganismo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Fanáticos enxergam a cloroquina como pote de ouro
Todos os médicos podem prescrever a cloroquina para seus pacientes, com autorização deles. O Ministério da Saúde não veta o uso da substância --e também não a receita, pois, como em qualquer outro caso, não é sua função substituir o médico.
O ministério não estimula o uso indiscriminado da droga porque não se concluiu o protocolo científico de sua aprovação como medicamento para a Covid-19. Ao lado dela, pesquisas em fase inicial descortinam outras hipóteses medicamentosas prometedoras. Tudo isso parece óbvio, exceto para os fanáticos da cloroquina, que deflagraram uma "guerra cultural".
À primeira vista, a guerra decorre da sedução do pensamento mágico. Os fanáticos da cloroquina a enxergam como cura divina, o santo graal, elixir da vida, um pote de ouro no fim do arco-íris. Mas esses são os fanáticos tolos, inocentes úteis, soldados rasos de uma guerra cujas raízes não compreendem.
Os alquimistas da nova jihad transfiguram a substância química em metáfora de um arco narrativo ideológico que nada tem a ver com medicina.
O arco estende-se da China às "elites globalistas", com escala na OMS. Os três capítulos da narrativa são mais frequentemente difundidos como contos autônomos, mas pertencem a um romance único. Cada um apoia-se em fatos incontestáveis ou hipóteses razoáveis, que sofrem manipulações de natureza conspiratória.
1. China: o vírus emergiu em Wuhan, o regime ocultou a etapa inicial da epidemia e, para proteger o sistema de poder totalitário, provavelmente fabricou estatísticas fantasiosas que miniaturizaram as curvas de infecções e óbitos. Daí, os fanáticos da cloroquina extraem uma conspiração comunista destinada a disseminar globalmente o coronavírus, quebrando economias capitalistas para estabelecer hegemonia mundial da China.
2. OMS: a China impulsionou a escolha do etíope Tedros Adhanom para a chefia da OMS e hoje exerce influência sobre a organização similar à que os EUA e os europeus mantêm sobre o FMI e o Banco Mundial. Parceiro de um regime engajado em projetar "soft power" na África, Adhanom celebrou a "eficiência" chinesa no combate à epidemia, calando-se acerca de tudo que possa constranger Xi Jinping.
Dessa parceria os fanáticos da cloroquina extraem um complô veiculado pela OMS para amplificar a crise sanitária e desacreditar o remédio providencial.
3. "Elites globalistas": na linguagem sectária dos fanáticos da cloroquina, a expressão engloba todas as correntes compreendidas entre o liberalismo progressista e a social-democracia, genericamente rotuladas como "socialistas".
Tais elites, articuladas nas instituições internacionais, conduziriam um plano malévolo destinado a subjugar as nações e os capitalismos nacionais. A pandemia funcionaria como pretexto ideal para universalizar as quarentenas, solapar negócios, arrasar empresas privadas e perenizar a intervenção econômica estatal.
A guerra da cloroquina foi declarada pelos mesmos líderes políticos que, há pouco, qualificavam a Covid-19 como "gripezinha". Agora, desmascarados, eles se reagrupam numa trincheira de comprimidos de cloroquina e armam catapultas para assediar o castelo das democracias.
Há pesquisadores sérios convencidos da eficácia da substância no tratamento da doença. Suas reputações serão mais bem servidas se contribuírem com ensaios clínicos randomizados da droga, recusando o papel de porta-vozes científicos da "guerra cultural" alheia.
Chefes do tráfico não cheiram pó, curandeiros confiam sua própria saúde aos médicos, astrólogos profissionais não planejam suas vidas a partir de mapas astrais.
Os fabricantes da conspiração sem fronteiras --que abrange a China, a OMS, a União Europeia, o Partido Democrata, o STF, Maia, Doria, Mandetta e a maldita imprensa-- vendem deliberadamente um produto falsificado.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: ‘Não saia de casa!’
A vida ou a liberdade, o que vale mais?
‘Se eu pegar corona, peguei corona”, disse o jovem Brady Sluder, em 18 de março, Spring Break, quando festejava numa praia de Miami enquanto as autoridades recomendavam evitar aglomerações. Brady não é Jair mas, como ele, proclamava intuitivamente o princípio da filosofia libertária, alinhando-se com um variado espectro de pensadores que só reconhecem o deus das liberdades individuais. Brady perdeu — e pediu desculpas à sociedade. Jair perdeu até a companhia de Donald, não se desculpou e foi exilado para uma quarentena moral.
Nós vencemos. Mas quem somos “nós”?
“Não saia de casa!”. A ordem universal reflete a vitória da tradição filosófica do contrato social, que inscreve os direitos do indivíduo na moldura das normas de segurança coletiva. A tradição não é monolítica, fragmentando-se em tonalidades que se estendem do liberalismo progressista, numa ponta, ao totalitarismo, na ponta oposta. A Peste Negra em curso testa essas diferenças, colocando-nos diante de um espelho de cristal. Quem quer ser China?
A OMS exibe a China como modelo de eficiência, calando-se sobre a camuflagem inicial, a repressão aos médicos que davam o alerta, a brutalidade estatal do isolamento de Wuhan e, agora, sobre as suspeitas estatísticas chinesas, contaminadas pelo vírus do triunfalismo. Na Hungria, Viktor Orbán quer ser China: o primeiro-ministro obteve poderes de exceção por prazo indefinido de um parlamento controlado por seu partido, manipulando a crise sanitária para converter o país na primeira ditadura da União Europeia. “Não saia de casa!” — ou te coloco na cadeia por oito anos, ameaça o ídolo húngaro de Bolsonaro.
A vida ou a liberdade, o que vale mais? Da Itália à Suécia, passando por Espanha, França e Alemanha, estende-se um gradiente de medidas emergenciais que vão da quarentena severa a moderadas reduções de contatos sociais. Há penalidades, desde multas até processos criminais. Mas os governos estabelecem normas claras e temporárias, operando pela persuasão. Não é assim no Reino Unido, onde regras obscuras convivem com inumeráveis atos de arbítrio: drones filmam casais que passeiam com o cachorro no campo, motoristas são convocados a tribunais por dirigirem numa estrada aberta, policiais advertem alguém que fazia compras “não essenciais”.
“Agora estou dando uma ordem”, bradou Wilson Witzel, o improvável “campeão da vida” que mira “bem na cabecinha” e não entrega água potável às residências. O coronavírus carrega, no seu RNA, o gene do Estado policial. Mandetta explicou que “as pessoas podem caminhar, fazer algum esporte”. Witzel promete encarcerar os que desrespeitarem um isolamento social genérico. Na Rocinha, no Alemão, em tantas ilhas onde vale a lei da força, serão as milícias a aplicar sua ordem?
O vigilantismo escorre para baixo, despertando instintos latentes numa sociedade assustada. Moradores de edifícios cujas janelas se abrem para o longo viaduto do Minhocão, em São Paulo, vaiam, xingam, agridem pedestres e ciclistas que se atrevem a “caminhar, fazer algum esporte” na via elevada deserta. “Vai pra casa!” — o grito de guerra santifica, purifica, desinfeta. Fechamos fronteiras nacionais, trancamos rodovias intermunicipais. Por que não montar barreiras de vigilantes em torno de bairros ou quarteirões?
“Juntos vamos derrotar o coronavírus” — a capa unificada dos jornais brasileiros de 23 de março, cópia da iniciativa argentina, traz implícita uma curiosa mensagem jornalística contra a pluralidade de opiniões. “Juntos”, como quem? China ou Suécia? Alemanha ou Reino Unido? E com quem:
Mandetta ou Witzel? Orbán decretou penas de prisão para quem divulgar notícias sobre a pandemia classificadas como falsas pelo seu governo. A imprensa está pronta a aceitar qualquer medida formulada sob o alegado propósito de derrotar o “inimigo comum”?
Jair, a exemplo de Brady, nunca leu os libertários. Depois de confraternizar na praia, pode mudar radicalmente de ideia, imitando Viktor para se declarar um “presidente em guerra”. Vamos, juntos, proteger as liberdades enquanto protegemos a vida?
Demétrio Magnoli: As mentiras nos EUA luzem sob o sol, enquanto na China seguem abaixo da superfície
Trump mente ininterruptamente; já o regime de Xi Jinping fabrica 'verdade' paralela da pandemia
“Na guerra, a primeira vítima é a verdade.” Essa verdade célebre, cuja autoria atribui-se tanto ao senador americano isolacionista Hiram Johnson (1918) quanto ao grego Ésquilo, o pai da tragédia, no século 5º a.C., vale também para a Peste Negra em curso. Mas as mentiras são diferentes: nos EUA, luzem sob o sol; na China, seguem escondidas abaixo da superfície.
Donald Trump mentiu ininterruptamente, retardando a preparação dos EUA para enfrentar a pandemia.
No fim de janeiro, disse à rede CNBC: “Temos isso sob controle total. É uma pessoa vinda da China, e a temos sob absoluto controle”. No início de fevereiro, gabou-se na Fox News: “Nós basicamente desligamos isso, que vinha da China”.
No final de fevereiro, garantiu que “isso é mais ou menos como a gripe; logo teremos uma vacina” e, referindo-se ao número de infecções, acrescentou: “Vamos substancialmente para baixo, não para cima”. Os EUA tinham, então, 68 casos; hoje, são 240 mil.
No meio de março, quando finalmente admitiu que o vírus “é muito contagioso”, ainda adicionou: “Mas temos tremendo controle sobre isso”.
A mentira trumpiana é uma narrativa política em constante mutação. Apoia-se nas muletas dos “jornalistas” chapa-branca e do aparato de difusão de fake news da direita nacionalista nas redes sociais.
Acredita quem quer —e não são poucos. Contudo, ela concorre com as vozes discordantes, que não são caladas pela força, e sobretudo com a verdade (factual), que emana tanto de órgãos oficiais quanto da imprensa independente. A hora da verdade (política) chega nas eleições, ocasião em que a maioria decidirá se prefere a mentira.
A China também mente sem parar, mas de modo diferente, fabricando uma “verdade” paralela.
A mentira chinesa tem raízes fincadas no chão do controle social totalitário. Ela se espraia por toda a vida cotidiana, propiciando a manipulação centralizada das estatísticas hospitalares —isto é, da fonte primária de informações sobre a natureza da crise.
Há indícios alarmantes de que os números fornecidos pelo governo chinês miniaturizaram a epidemia. Nos EUA, estima-se que a Covid produzirá entre 1 e 3 milhões de casos positivos e algo entre 100 mil e 240 mil mortes.
Já na China, situada em latitude semelhante e com mais de quatro vezes a população americana, a Covid teria praticamente estancado, com menos de 83 mil casos acumulados e cerca de 3.200 mortes. O contraste intriga os mais respeitados epidemiologistas —inclusive Deborah Birx, coordenadora da força-tarefa dos EUA para o coronavírus.
No centro do mistério está a contabilidade de óbitos. Os casos pioneiros da Covid em Wuhan ocorreram em dezembro, mas a notícia foi interditada e os médicos que os relataram, silenciados. A quarentena começou em 23 de janeiro. O vírus teve mais de três semanas para se disseminar, enquanto comemorava-se o Ano-Novo chinês.
Testemunhos anônimos de agentes de saúde chineses dão conta de incontáveis internações sem testagens e centenas de óbitos atribuídos a influenza ou pneumonia. No final de março, veículos online chineses publicaram fotos, tomadas por cidadãos comuns, de milhares de urnas funerárias ainda alinhadas em crematórios de Wuhan.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) nada viu de estranho nos números chineses —e celebra a “eficiência” totalitária de Xi Jinping. Tedros Adhanom, seu diretor-presidente, eleito com decisivo apoio chinês, um ex-integrante do núcleo duro do governo autoritário etíope, não parece alimentar dúvidas entre as alternativas de assegurar a bilionária parceria da China com a OMS ou proteger a verdade (estatística).
Mas, de acordo com relatórios sigilosos da inteligência americana que começam a vazar, a China engajou-se na fabricação de uma mentira monumental, iludindo o mundo.
Mentiras são diferentes. Todas elas, porém, cobram vidas.
*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Pandemia leva a guerra estúpida entre 'arautos da vida' e 'campeões da economia'
Em nome da coerência, a conta da crise precisa chegar às grande fortunas
A vida ou a economia? Sob o bafo do negacionismo oscilante de Trump e do plágio rústico tentado por Bolsonaro, uma disjuntiva sem sentido contaminou o debate público.
Economia é vida: inexiste a alternativa de proteger a saúde pública às custas do desligamento indefinido da produção e do consumo. O humanismo com vista para o mar é tão nocivo quanto o negacionismo que nasce do desprezo pela ciência.
Além de indivíduos com espessos colchões financeiros, há profissionais de empresas que adotaram o home office, empregados de setores que seguem funcionando, funcionários públicos estáveis.
Desses estratos brotam torrentes incontroláveis de humanismo. Vidas não têm preço, valem qualquer sacrifício do vil metal, explicam-nos os que não sacrificarão seus empregos ou meios de sobrevivência. Mas, apesar deles, economia é vida.
O desligamento extensivo ameaça provocar uma depressão econômica mais funda que qualquer outra na história. Isso mata, em massa.
No mundo, centenas de milhões seriam transferidos da pobreza à miséria, caindo como moscas sob as moléstias causadas pela subnutrição.
Um patamar acima, entre a baixa classe média, a desesperança lançaria milhões ao túnel escuro da bebida e dos opioides, a epidemia social que reduziu a expectativa de vida no Meio-Oeste americano. “A cura não pode ser pior que a doença” —a frase de Trump é tão óbvia quanto incontestável, ainda que se origine de motivações abjetas.
Bolsonaro perdeu: não é “uma gripezinha”. A estratégia do confinamento destina-se a criar um parênteses para o reforço do sistema de saúde, a identificação de clusters de transmissão do vírus e o isolamento dos infectados.
Mas ela tem nítidos limites temporais —e precisará ser flexibilizada bem antes do declínio da pandemia. A transição à etapa seguinte exige a mudança do clima sociopolítico, conflagrado pela guerra estúpida travada entre os “arautos da vida” e os “campeões da economia”.
O luxo do humanismo gratuito não é para os que ganham hoje a comida e o aluguel de amanhã. O intervalo do confinamento desaba como avalanche sobre os mais pobres.
Drauzio Varella implora pela distribuição imediata de cestas básicas. Isso é vital —mas insuficiente. Todos os que dependem do setor de comércio e serviços enfrentam uma catástrofe. Na inevitável recessão causada pela pandemia, os negócios e empregos destruídos agora não serão restaurados tão cedo. Armínio Fraga clama por um vasto programa de empréstimos subsidiados. Isso é indispensável —mas, ainda, muito pouco.
As medidas econômicas anunciadas pelo governo implicam perdas colossais de emprego e renda, que se distribuem de modo perversamente desigual, descarregando a conta nas costas dos mais fracos.
A equação cínica que as orienta tem duas partes incongruentes. A primeira, expressa pela ordem sanitária de fechamento do comércio e serviços, suspende as regras da economia de mercado. A segunda, expressa pelas novas linhas de crédito, baseia-se precisamente nessas regras. É hora de exigir coerência: a conta precisa chegar às varandas abertas para o mar.
Economia de emergência nacional, no lugar de economia de mercado, significa: 1) garantir o salário mínimo aos trabalhadores informais; 2) proibir legalmente demissões durante a emergência, que perdurará além do isolamento; 3) assegurar a sobrevivência dos pequenos e médios negócios fechados compulsoriamente por meio de empréstimos garantidos pelo Tesouro, de longo prazo e a juros negativos.
O governo não inventa dinheiro. O estouro da dívida pública seria pago com inflação ou austeridade extrema —isto é, pelos pobres. A alternativa encontra-se num imposto emergencial sobre grandes fortunas, bancos e elevados patrimônios financeiros, além da redução temporária de altos salários do funcionalismo público. Humanismo, ok, mas sem vista para o mar.
Demétrio Magnoli: Voando às cegas
O vírus mais mortífero é o da ignorância
A Coreia do Sul, foco pioneiro de infecções fora da China, tinha 8.565 casos confirmados de Covid e 91 óbitos, em 19 de março. Na mesma data, a Itália, maior foco atual de infecções, tinha 35.713 casos e 2.978 óbitos. Desses dados, extraem-se taxas de letalidade de cerca de 1,1% para a Coreia do Sul e 8,3% para a Itália. A diferença brutal indica que o vírus da inconsistência contamina as estatísticas sobre a pandemia — e, portanto, que o mundo inteiro voa no escuro, sem instrumentos, em meio à crise dramática.
8,3% contra 1,1%? É certo que a população italiana tem idade média superior à sul-coreana e, ainda, que as interações sociais entre jovens e idosos são, em tempos normais, mais intensas na nação europeia que na asiática. Também é verdade que a negligência inicial do governo italiano provocou o colapso do sistema de saúde na Lombardia, área crítica de difusão do novo coronavírus. Mas a absurda distância estatística nem de longe se explica por tais fatores. O mistério deriva da incomparabilidade das estatísticas colhidas pelos governos nacionais.
As estatísticas falam línguas diferentes. Na Itália, aplicam-se testes a pessoas sintomáticas que procuram o sistema de saúde — ou seja, uma elevada proporção de casos graves que exigirão internação e, com frequência elevada, evoluirão para o óbito. Na Coreia do Sul, a testagem massiva em áreas geográficas selecionadas captura alta proporção de casos leves, inclusive assintomáticos, que ficarão apenas em quarentena domiciliar. No mito de Babel, Deus confundiu as línguas, interrompendo a comunicação e o trabalho. Diante da pandemia, o mundo fecha-se numa Babel —mas não por culpa divina.
A cidadezinha de Vò, na Lombardia, testou todos os seus 3,3 mil habitantes. Descobriu 66 positivos e, entre eles, alta proporção de assintomáticos. Como o mundo não é Vò, será impossível replicar seu método de testagem universal. David Uip, coordenador da força-tarefa paulista, estimou que, num cenário otimista, o estado de São Paulo acumulará 460 mil infectados. Provavelmente, jamais descobriremos se a projeção foi correta, pois ela abrange uma maioria de casos leves, que nunca serão testados. Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, estima que, para cada caso confirmado, circulam nas sombras 15 infectados não notificados. É chute de especialista, como o de Uip.
A Babel estatística não é um problema acadêmico. Num cenário extremo, os casos sintomáticos evidentes formam a ponta minúscula de um enorme iceberg. No cenário oposto, são a porção emersa de um transatlântico. Se a primeira alternativa for verdadeira, há notícias boas (a taxa real de letalidade é baixa) e más (o contágio é massivo e largamente indetectável). Se a verdade estiver na segunda, temos uma péssima notícia (a taxa real de letalidade é elevada) e uma boa (o contágio é restrito e bastante detectável). Mas, de fato, estamos no escuro — e, sem a informação crucial, carecemos de ferramentas para formular estratégias epidemiológicas e econômicas.
Quais são os impactos de congelar a vida por 15 dias? E por um mês? É viável, social e economicamente, estender as estratégias radicais além disso? O vírus mais mortífero é o da ignorância. Sem um mínimo de previsibilidade, os negócios inclinam-se para demissões em massa e os mercados financeiros, incapazes de precificar a crise, atiram-se em abismos insondáveis.
Circula, entre epidemiologistas, a ideia de perfurar as trevas por meio de um esforço, coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de testagens aleatórias sucessivas em amostras da população de áreas críticas selecionadas em países como Coreia do Sul, Itália e EUA. Os gráficos resultantes dariam indícios firmes sobre a dinâmica demográfica, o ritmo de avanço e o ciclo temporal da pandemia.
A sugestão esbarra, contudo, no incêndio que consome a cooperação internacional, aceso pelas fagulhas da troca de acusações entre EUA e China e pelas iniciativas unilaterais de fechamento de fronteiras. O nacionalismo mata — e mata mais em tempos de pandemia.
Demétrio Magnoli: Nós, esclarecidos, precisamos pensar fora da bolha da alta classe média
Não declaremos uma guerra ao coronavírus cujas vítimas serão os sem patrimônio, cartão de crédito e investimentos
Trump qualificou o vírus como um “embuste dos democratas” pouco antes da avalanche em Wall Street lançá-lo a algo parecido com a realidade. Um papagaio brasileiro chamado Jair tratou-o como uma invenção da mídia perniciosa, isolando-se no poço da ignorância.
Diante disso, a reação das pessoas esclarecidas foi agarrar-se ao mastro da razão para vencer, antes que seja tarde, a batalha contra a estupidez. No passo seguinte, ainda em curso, o apego à voz da ciência transmuta-se em fanatismo científico e fundamentalismo epidemiológico. Hoje, esse perigo supera o da já desmoralizada negligência.
Vamos mesmo —nós, esclarecidos— partir para o elogio da China? Médicos chineses alertaram para a doença em dezembro, mas foram silenciados. Esqueceremos tão cedo, em nome de uma ilusória “ética de resultados”, que a Covid espalhou-se precisamente naquelas semanas de camuflagem e repressão? A vigilância cibernética dos cidadãos galgou novo patamar permanente, junto com o avanço do vírus. Festejaremos o Grande Irmão como aliado e exemplo, em nome da saúde pública?
Ouve-se, dos esclarecidos, um clamor crescente por medidas extremas. A Itália paga o preço da displicência com a moeda do “lockdown” compulsório. Macron pescou no lago do senso comum a palavra “guerra” para descrever uma emergência sanitária.
Guerra tem implicações: leis de exceção, justiça sumária, censura. Quem pede quarentenas coletivas forçadas está disposto a justificar suas ramificações lógicas? Sacrificaremos as liberdades civis no altar de uma guerra fabricada por artifício retórico? Concederemos, os esclarecidos, um AI-5 sanitário a Bolsonaro?
O vírus é “estrangeiro”, imigrante? Lá atrás, a OMS criticou os EUA pela proibição de entrada de chineses. Depois, Trump fechou as fronteiras à Europa, e sofreu a crítica da União Europeia (UE). Hoje, a UE, maior foco global de infecções, fecha suas fronteiras externas. A praxe normalizada pela “guerra” sanitária ressurgirá em outras “guerras”, econômicas e culturais. Quando emudecem sobre isso, os esclarecidos dissolvem os anticorpos que nos protegem do vírus da xenofobia.
Um esclarecido aponta o dedo acusador para banhistas na areia; outro, para jovens aglomerados em torno de uma mesa de bar. Há bons motivos para invocar a solidariedade social, a responsabilidade coletiva, a ética cidadã. Mas, num salto quântico, passaremos a solicitar o recurso à força policial?
Policiais italianos em roupas brancas de máxima proteção perseguem suspeitos de desobediência à quarentena. Vestiremos nesses trajes os PMs desordeiros do Ceará, os policiais-milicianos do Rio, dando-lhes o mandato de esvaziar as ruas e os becos das favelas? Em nome da vida, enviaremos a PM paulista a Paraisópolis com a missão de dispersar um baile funk?
O Brasil não é a Itália. Nós, esclarecidos, vivemos na bolha da alta classe média —mas precisamos conseguir pensar fora dela. “Que ninguém saia de casa: distanciamento social!”. Com que direito moral apontamos o modelo de “lockdown” absoluto como solução para cortar a transmissão do vírus em São Paulo ou no Rio? Na Rocinha, no Grajaú, em Cidade Ademar, onde as pessoas residem em habitações de 20 metros quadrados que abrigam cinco ou seis indivíduos?
O Brasil não é os EUA. Aqui, o governo não postará cheques periódicos de mil dólares para cada família durante o intervalo imensurável da “guerra”. Vamos parar os transportes públicos e decretar, universalmente, o trabalho à distância? Como ficam motoristas, comerciários, garçons, pedreiros, as massas de informais?
Os esclarecidos fazem bem em decorar os mandamentos da epidemiologia —mas incorrem em erro de classe ao jogar fora os manuais básicos da sociologia. Não declaremos uma guerra cujas vítimas serão os outros —os sem patrimônio, cartão de crédito e investimentos financeiros.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Com coronavírus, Itália vive sua hora mais sombria e lei marcial ameaça se tornar 'novo normal'
Governo italiano se tornou a primeira democracia a mimetizar a ditadura chinesa
No início, a China ocultou as informações sobre a epidemia e reprimiu os médicos que tentavam dar o alerta. Depois, isolou por meios militares 40 milhões de habitantes de Hubei. Agora, a Itália imita a China – e os dois governos, o ditatorial e o democrático, ganham aplausos da Organização Mundial de Saúde (OMS). A lei marcial será, logo, o “novo normal”?
Semanas atrás, Matteo Salvini, o líder da Liga, convocou o vírus para sua campanha anti-imigração. O fraco governo italiano de Giuseppe Conte respondeu ao clamor da extrema-direita ignorando o avanço da doença, que se espalhava silenciosamente. Consequência do catastrófico equívoco original: a Itália tornou-se a primeira democracia a mimetizar a ditadura chinesa, ameaçando encarcerar cidadãos que se moverem para outras cidades.
A trajetória repetiu-se no Irã. O regime camuflou a ampla difusão das infecções até girar 180 graus, advertindo que usará “a força” para conter deslocamentos no Ano Novo persa.
Trump inverteu o percurso, girando no sentido anti-horário. No começo, capturando a covid-19 para legitimar suas políticas xenófobas, fechou as fronteiras a qualquer viajante proveniente da China. Na sequência, diante da turbulência financeira que complica sua reeleição, escreveu no muro da Casa Branca que o vírus é “uma gripe comum”. Bolsonaro repetiu a mensagem embusteira do mestre, sem se dar conta de que ela seria revertida outra vez, dando lugar à perversa proibição de viagens entre Europa e EUA para barrar o “vírus estrangeiro”.
Nosso Ministério da Saúde (MS), uma das ilhas de competência no oceano da estupidez federal, não cede aos cantos concatenados da negligência e da paranoia. Como o ministério alemão, orienta-se pela máxima de que o pânico é ainda mais letal que o vírus. A estratégia de medidas graduais —da educação sanitária à redução de interações sociais em áreas críticas, e daí ao eventual auto-isolamento em clusters de infecção— implica uma aposta esclarecida na responsabilidade dos cidadãos.
A persuasão é a escolha democrática, que funciona; a polícia, a opção autoritária, que fracassa. Na China, não houve a alardeada contenção geográfica, pois milhões deixaram Hubei na hora do surto pioneiro, para as férias de Ano Novo. Mesmo assim, as taxas de letalidade nas demais províncias, onde o governo recomendou auto-isolamento, foram muito menores que as de Wuhan, submetida aos comandos totalitários. A lei marcial mata, disseminando o pavor que empurra multidões gripadas aos hospitais, implode os sistemas de saúde e vitima médicos e pacientes.
Israel determinou quarentena compulsória a todos que, sem sintomas, entrarem no país. Pateticamente, o governo de Netanyahu insinua que a população do exterior é suspeita de contágio – mas a do interior não. A Alemanha, pelo contrário, promete não fechar fronteiras. Nosso MS também orienta-se pela contenção focalizada, evitando reações indiscriminadas. A Itália e os EUA – felizmente, nesse caso – não são aqui.
O diretor-geral da OMS evitou criticar o regime chinês pelo criminoso ocultamento mas elogiou a “coragem” do isolamento militar de Hubei. Sua bússola é a política, não a epidemiologia: a OMS almeja tornar-se, finalmente, parceira da China. A coerência no erro o conduz a festejar a lei marcial italiana, sugerindo que o mundo siga o exemplo de um governo sem rumo. A depressão econômica provocada pelo pânico produzirá incontáveis vítimas entre os pobres, frutos do colapso de renda e de moléstias não tratadas. Essas vidas perdidas não chegarão às tábuas estatísticas.
A pandemia do Covid não é fake news. A notícia falsa é que os polos do debate situam-se entre a complacência e a lei marcial: de fato, a segunda nasce no solo arado pela primeira. Conte disse que a Itália atravessa sua “hora mais sombria”. É verdade – e por culpa dele.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Um vírus para os populistas
Trump agarrou-se ao coronavírus para propagar a xenofobia
O impacto econômico do novo coronavírus reflete-se mais na linguagem fotográfica que na das estatísticas. Duas imagens de satélite revelam que a nuvem de poluentes sobre o nordeste e o leste da China desapareceu durante o intervalo entre janeiro e fevereiro. Fotos mostram o Coliseu e a Piazza Navona, em Roma, sem as habituais hordas de turistas, neste início de março. Nouriel Roubini, “Dr. Desgraça”, o economista que ganhou celebridade ao prever a crise financeira de 2008, volta à cena profetizando uma depressão mundial.
A China conecta os polos das cadeias de produção globais, Ásia de um lado, Europa e EUA de outro. A subtração de pontos percentuais do crescimento chinês implica em forte desaceleração geral. Estimativas da OCDE apontam a hipótese de redução pela metade do crescimento global.
O índice Dow Jones, da Bolsa de Nova York, desabou das alturas dos 29 mil pontos, em 19 de fevereiro, para quase 25 mil, dez dias depois. Acostumados com um mercado ascendente de quatro anos, os investidores ainda imaginam uma efêmera curva em forma de V — e voltaram a comprar no início de março, animados pela rápida reação do Fed, o banco central dos EUA. Vozes mais pessimistas, porém, alertam para um ajuste longo, um poço cujo fundo poderia situar-se nos 16 mil pontos do início de 2016.
Trump agarrou-se ao vírus para propagar a xenofobia, vetando provisoriamente a entrada nos EUA de chineses. Depois, diante da balbúrdia nas bolsas, girou o timão, entregando a condução da crise sanitária a especialistas em saúde pública. No erro e no acerto circunstancial, sua bússola única é a campanha da reeleição.
A Europa, já estagnada, está ainda mais exposta que os EUA. “Suponha um declínio agudo na China”, sugeriu o economista Kenneth Rogoff em meados de janeiro, quando as nuvens de poluentes ainda pairavam sobre o país. “Isso seria catastrófico para a Europa, que depende muito das exportações para a China. Haveria uma recessão global, colocando tremenda pressão nos integrantes frágeis da Zona do Euro.”
Navegando um “novo normal” de taxas de juros reais negativas, o Banco Central Europeu dispõe de escassa munição de política monetária para frear a queda. A alternativa dos estímulos fiscais parece inviável, pois a Zona do Euro carece de política fiscal comum e o consenso ortodoxo alemão fecha esse atalho. A recessão que se desenha detonaria as economias mais deficitárias, como a da Itália.
Há quem ironize as teorias conspiratórias assegurando que o vírus nasceu num laboratório secreto do nacionalismo populista. No palco político, uma reinstalação da crise do euro impulsionaria os partidos da direita nacionalista, especialmente na Itália (a Liga, de Salvini) e na Alemanha (a AfD).
O pânico difunde-se mais até que o próprio vírus. O isolamento compulsório de metrópoles chinesas inteiras, as quarentenas de navios de cruzeiro e resorts, o noticiário alarmista, a torrente de fake news nas redes sociais produzem efeitos sociais de longo prazo. Os partidos populistas de direita enxergam no vírus um pretexto ainda mais perfeito que o dos imigrantes e renovam seu clamor pelo fechamento das fronteiras internas da União Europeia. Roubini ecoa o grito dos populistas, pedindo a medida extrema que produziria a depressão para a qual ele alerta.
A crise de 2008 brotou das engrenagens descontroladas dos mercados financeiros. A depressão que se insinua no horizonte emergiria da difusão do pavor num ambiente intoxicado pelos nacionalismos. A China é parceiro comercial decisivo e fonte crucial de investimentos para as economias do mundo árabe, da América do Sul e da África. Nessas periferias, o fantasma da turbulência social espreita atrás dos gráficos da desaceleração do PIB.
Paulo Guedes oculta as insuficiências da política econômica na coroa do vírus, mas seus críticos erram quando ignoram o cenário externo. A fuga de capitais rumo à fortaleza do dólar anula os efeitos da queda dos juros e sabota a reativação do investimento privado. Os populistas europeus celebram; os nossos não têm nenhum motivo para festejar.
Demétrio Magnoli: A África é um país
A ideia nasceu fora da África, aclimatou-se na África e, depois, viajou novamente para fora da África
“A África não é um país”, avisa a camiseta criada por Vensam Iala, imigrante da Guiné-Bissau. Iala tem razão em alertar para a diversidade africana. Mais ainda, em perfurar a espessa camada de preconceitos que envolve a imagem dos povos do continente. Mas erra ao atribuir ao imperialismo a noção que contesta. De fato, as potências coloniais traçaram as fronteiras políticas africanas, fabricando quase todos os seus 54 países, inclusive a Guiné-Bissau. Foram africanos os que difundiram a ideia da África como um só país.
A semente foi plantada em meados do século 19 pelo missionário americano Alexander Crummell, filho de escravo e negra livre, que definiu a África como a pátria da “raça negra”. O pan-africanismo ganhou um arauto de peso em W. E. B. du Bois, fundador da NAACP, a grande organização social negra dos EUA: “Somos negros, membros de uma vasta raça histórica que começa a acordar nas florestas escuras de sua pátria africana”, escreveu em 1897. O grito ecoou na Jamaica, em 1914, pela voz de Marcus Garvey, rival de Du Bois, que sonhava “unir todos os povos negros do mundo para estabelecer um país e um governo absolutamente seus”.
A utopia da unidade geopolítica africana chegou, finalmente, à África por meio dos líderes das lutas anticoloniais. Muitos deles estudaram na Europa ou nos EUA, onde formaram suas convicções pan-africanistas. “A África é um país”: a inscrição certamente estaria numa camiseta concebida pelos futuros chefes dos primeiros governos soberanos de Gana (Nkrumah), do Quênia (Kenyatta), da Nigéria (Azikiwe), de Malawi (Banda), do Senegal (Senghor), do Congo (Lumumba) e da Guiné-Bissau (Luís Cabral, meio-irmão do intelectual pan-africanista Amílcar Cabral).
Ironicamente, os líderes africanos renunciaram à meta unitária logo depois da onda inicial das independências. Na sua carta de fundação, de 1963, a Organização da Unidade Africana (OUA), proclamou o princípio do “respeito pela soberania e integridade territorial de cada Estado”, que implicava a eternização das fronteiras inventadas pelas potências imperiais. As novas elites não sacrificariam seu poder estatal no altar da imaginada Pátria-África. Mas, igualmente, não deixariam jamais de usar a linguagem do pan-africanismo, impressa no próprio nome da OUA.
O discurso pan-africanista tem mil e uma utilidades para os governantes africanos. Confere legitimidade a ditadores que, por ele, se vinculam à saga da luta anticolonial. Serve de pretexto para a repressão a opositores, rotulados como antiafricanos. Abre caminho para responsabilizar atores externos —as antigas potências coloniais e o imperialismo— pelas tragédias sociais do presente. Os regimes africanos que perseguem gays têm o hábito de invocar uma suposta “cultura africana” para justificar suas leis homofóbicas (que, por sinal, geralmente originaram-se das administrações coloniais do passado).
“A África é um país” —a ideia nasceu fora da África, aclimatou-se na África e, depois, viajou novamente para fora da África, convertendo-se em inspiração para movimentos negros. Nos EUA, uma corrente substancial do movimento negro invoca o espírito de Du Bois para descrever os “afro-americanos” como uma nação diaspórica. Como tantas mercadorias pop, essa também foi importada no Brasil, especialmente pelo Movimento Negro Unificado. Dela surgiu o estandarte da “reparação histórica”, que acabaria sendo traduzido pela reivindicação de cotas raciais.
Na África, a camiseta de Iala seria vista como crítica do pan-africanismo —e, em certos países, poderia torná-lo alvo de repressão. No Brasil, lida corretamente, é uma crítica da ideologia de movimentos negros. Mas Iala evita o tema desconfortável, apoiando-se na bengala pan-africanista para sugerir que é uma crítica ao imperialismo. A chama nunca se apaga.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: Com fórmula 'Povo e Exército', Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar ruptura institucional
Enquanto isso, chefes militares renunciam a prestar continência à Constituição e repelir a politização dos quartéis
Engana-se quem interpretou a militarização do núcleo político do governo como sinal de marginalização dos extremistas do bolsonaro-olavismo. Depois de recolher suas bravatas vazias contra a ditadura de Maduro, Jair Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar uma ruptura institucional. “O Povo e o Exército” —a fórmula chavista orienta os dois motins paralelos estimulados pelo presidente contra a democracia. A estratégia avança à sombra do temor dos líderes parlamentares e dos comandantes militares, que se curvam diante do espectro disforme das redes sociais.
O motim da PM do Ceará distingue-se de tantos tumultos policiais anteriores porque brotou no terreno da política, apenas tomando carona em reivindicações corporativas. Há meses, as redes virtuais olavistas operam nos quartéis das PMs. Um vereador-sargento de Sobral ligado às hostes de Bolsonaro insuflou os amotinados. O clã presidencial mal esconde seu apoio à baderna.
A letra da lei não assusta os arruaceiros que copiam os métodos das facções. Quando Cid Gomes avançou, irresponsavelmente, com uma escavadeira, exprimia uma justa indignação. Aceitaremos, de braços cruzados, a transmutação da PM em milícia politizada? Sim, claro, respondeu Sergio Moro: “o governo federal veio para serenar os ânimos, não para acirrar”.
No lugar de cercar os quartéis invadidos, cortar luz e água, exigir a rendição dos amotinados, as forças federais limitaram-se a substituir a polícia no patrulhamento das ruas, oferecendo aos bandidos em uniforme um tempo extra para o exercício da chantagem. “Serenar os ânimos”: o governo estadual, desarmado, deve enfrentar sozinho os milicianos armados. A novela ruma às conclusões previsíveis: negociação e, lá adiante, anistia. O crime compensa.
O 15 de março nasceu da divisão no entorno militar de Bolsonaro. A adesão de Augusto Heleno ao extremismo abriu caminho para a convocação de marchas contra o Congresso, que têm o respaldo explícito do presidente. Não se trata, ainda, de consumar a ruptura, mas de testar a espinha dorsal das instituições democráticas. A meta é acuar, intimidar. Os alvos explícitos são os parlamentares e o STF. Mas, paralelamente, investe-se na agitação da oficialidade: o Povo e o Exército.
As declarações evasivas de Hamilton Mourão evidenciam uma rendição. Protestos contra o Congresso certamente “fazem parte da democracia”, mas não uma convocação a eles oriunda do chefe do Executivo. Os paralelos apropriados são com a “marcha sobre Roma” de Mussolini ou os cercos à Assembleia Nacional promovidos por Maduro. Celso de Mello foi ao ponto quando disse que Bolsonaro “desconhece o valor da ordem constitucional” e, portanto, “não está à altura do cargo que exerce”.
No início, o cordão de generais do Planalto definia limites à retórica presidencial. Desde a demissão de Santos Cruz e o bombardeio virtual contra Mourão, os homens estrelados baixaram a cabeça. Como no caso das PMs, as redes extremistas engajam-se na cooptação de oficiais da ativa de escalão intermediário, ameaçando a disciplina militar. Santos Cruz tem razão ao alertar para o risco de “confundir o Exército com assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas”.
Bolsonaro imagina que é capaz de mobilizar incontáveis milhões pois enxerga nas suas redes sociais a imagem do Povo. Os líderes do Congresso e os comandos das Forças Armadas compartilham a ilusão presidencial. Daí, o temor geral de pronunciar a palavra “Basta!”.
Os chefes militares renunciam a prestar continência à Constituição e repelir a politização dos quartéis. Os políticos vacilam diante do imperativo de deflagrar um processo de impeachment. A opção pelo apaziguamento encorajará os extremistas a avançar mais um passo, testando uma nova fronteira. Às vezes, as democracias morrem de uma enfermidade chamada medo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.