delação

Elio Gaspari: Um terreno baldio chamado Palocci

O comissário petista avacalhou as delações

Não foi por falta de aviso. Em 2018, quando se falava numa eventual colaboração de Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda de Lula e quindim da banca, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, da Lava-Jato, dizia que aquilo que poderia ser uma delação do “fim do mundo” estava mais para “fim da picada”. Palocci negociava com o Ministério Público, mas sua colaboração foi rebarbada. O doutor estava na cadeia, onde cultivava uma pequena horta. Começou a conversar com a Polícia Federal e com ela conseguiu fechar um acordo que o levou para casa. Passaram-se alguns meses, e Carlos Fernando voltou à carga: “O procedimento de delação virou um caos”.

De nada serviram as advertências. O caos prosperou, e a colaboração de Palocci, com suas 86 páginas, foi astuciosamente divulgada pelo juiz Sergio Moro dias antes do primeiro turno da eleição de 2018.

Olhada de longe, foi explosiva. Examinada de perto, assemelhava-se à cabeça daqueles que Tancredo Neves queria maltratar: “Parece um terreno baldio, onde as pessoas que passam jogam o que querem”. Naquele terreno baldio havia lixo, mas lá estavam também coisas que poderiam ser investigadas. A ajuda do ditador líbio Muamar Kadafi às primeiras campanhas de Lula, por exemplo. Palocci indicou como o dinheiro teria chegado ao PT, mas não se conhece providência para puxar esse fio.

Num dos 39 anexos, Palocci contou à Polícia Federal que Lula acertou com o banqueiro André Esteves (BTG) uma conta-propina de R$ 10 milhões que seria abastecida pelos ganhos com informações privilegiadas. O comissário indicou detalhadamente como o banco foi favorecido. A PF quebrou sigilos, ouviu operadores e dois personagens que estavam colaborando com a Justiça.

Conclusão: “As afirmações feitas por Palocci parecem todas ter sido baseadas em dados públicos, sem acréscimo de elementos de corroboração, a não ser notícias de jornais”.

A Polícia Federal colheu o depoimento, Moro jogou-o no ventilador, e agora a própria PF concluiu que ali havia muito pirão e nenhuma carne.

A estrepitosa colaboração de Palocci incriminou algumas das maiores empresas do país, constrangeu cidadãos, alimentou vinditas e ações espetaculosas. O encanto que o andar de cima teve pelo então ministro da Fazenda permite supor que ele mantivesse relações promíscuas com alguns maganos. O médico que o PT elegeu prefeito de Ribeirão Preto em 1992 acumulou considerável patrimônio, devolveu uma parte, ralou uma cadeia e hoje está preso em casa. Tornou-se símbolo do “fim da picada” e do “caos” previstos e denunciados pelo procurador Carlos Fernando. Sua colaboração, liberada durante a campanha eleitoral pelo juiz que desafortunadamente viria a aceitar o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, caminha para ser o que sempre foi: uma ardilosa construção para tirá-lo da carceragem de Curitiba.

Palocci transformou em realidade a piada do advogado que, na madrugada de 24 de agosto de 1954, teria sido chamado para atender um cliente preso com uma faca ensanguentada, saindo de um quarto de pensão do Catete onde estava, morta, uma mulher. O advogado não sabia o que fazer, até que, às oito e meia da manhã, um rádio anunciou o suicídio de Getúlio Vargas.

O rábula virou-se para o delegado e disse: “Doutor, esses dois eventos são conexos.”


Elio Gaspari: Cabral mente até em confissão

O pastel de vento é demonstrativo da banalização em que caíram as delações

A colaboração de Sérgio Cabral com o Ministério Público do Rio e com o juiz Marcelo Bretas virou conversa de botequim. Até agora, suas confissões confirmam que ele corrompeu o mandato de governador do Rio, mas isso já se sabia, pois está condenado a 198 anos de prisão.

Num depoimento espetaculoso, Cabral contou que em 2011 o chefe de sua Casa Civil, Régis Fichtner, pressionou-o, até com “ameaça”, para que seu cunhado, o desembargador Marco Aurélio Bellizze, fosse nomeado para uma vaga no Superior Tribunal de Justiça, atropelando a candidatura do advogado Rodrigo Candido de Oliveira, sócio do escritório da mulher de Cabral.

O juiz Bretas e o meio jurídico sabem que uma nomeação nada teve a ver diretamente com a outra. Belizze foi escolhido para uma vaga de magistrado, e Rodrigo disputava uma cadeira dos advogados. Ademais, quem nomeia ministros para o STJ é o presidente da República, e Bellizze tinha currículo que superava o parentesco.

O ex-governador disse ao juiz Bretas que foi obrigado a fazer “esse papelão de barrar o sócio de minha esposa”. Colocou-se em outro papelão ao embaralhar os fatos. Os dois disputavam páreos diferentes em ocasiões diferentes, Rodrigo perdeu em abril e Bellizze ganhou em julho. A farofa leva água para a suspeita de que Cabral instrumentaliza suas confissões pelos ventos da política do Rio de Janeiro.

O pastel de vento é demonstrativo da banalização em que caíram as delações. Quando Cabral, o Magnífico Gestor, fez coisas que nem Asmodeu imaginava, tudo parecia normal. Agora, quando Cabral, o Penitente, confessa seu “papelão”, busca crédito de virgem.

Olhando-se para trás, quando Antônio Palocci era o quindim da banca, viam-no como um grande ministro da Fazenda. Apenado, tornou-se uma fábrica de delações espetaculares, vazias de provas. Ele contou que foi nomeado gerente de uma caixinha de empreiteiras, o que pode ser verdade, mas não se sabe ainda como recolheu o dinheiro nem como o distribuiu.

A divulgação do anexo de Palocci pelo juiz Sergio Moro foi instrumentalizada na campanha eleitoral do ano passado. O Rio não precisa que mais essa praga entre na sua política.

O JUIZ DA SUPREMA CORTE LOUVA O BANQUEIRO
Acaba de sair nos Estados Unidos “First”, uma boa biografia da juíza Sandra O’Connor, a primeira mulher nomeada para a Suprema Corte. Há ali uma pequena história reveladora dos jogos de influência que cercam as nomeações para aquele tribunal.

O’Connor é uma tremenda figura. Foi criada num rancho do Arizona e formou-se politicamente no partido republicano. Quando ela estava na universidade Stanford, namorou e quase casou com William Rehnquist, seu colega de turma.

Em 1971, O’Connor era uma juíza influente no andar de cima do Arizona e Rehnquist foi indicado para a Suprema Corte. Ela batalhou pelo ex-colega e conseguiu o apoio do presidente do maior banco do estado, Sherman Hazeltine.

Aprovado pelos senadores, Rehnquist agradeceu à ex-namorada com uma carta:

“Fui surpreendido pelos contatos de Hazeltine junto aos banqueiros do Oeste. Apreciei não só os seus esforços, mas também admirei a eficácia dos seus contatos no Congresso. Talvez seja por isso que os banqueiros têm mais influência que os advogados”.

Rehnquist foi aprovado pelos senadores e presidiu a Corte Suprema por 19 anos, até 2005, quando morreu.

Nenhum magistrado brasileiro tem coragem de escrever uma carta dessas. Rehnquist foi um conservador honrado, espalhafatoso ao se vestir mas com um uma cabeça de primeira ordem.

MULHERÃO
Sandra O’Connor era senadora no estado do Arizona, contrariou um colega e ele lhe disse:

—Se você fosse homem eu acertava o teu nariz.

Ela respondeu:

—Se você fosse homem, acertava.

MADAME NATASHA
Natasha tem horror aos marxistas culturais e votou em Marcelo Crivella porque sua bandeira de campanha era “Eu vou cuidar das pessoas”.

A senhora viu que o prefeito visita áreas alagadas tomando cuidado para não molhar os sapatinhos. Depois de duas enchentes nas quais morreram 14 pessoas em apenas três meses, Crivella reconheceu: “Nós falhamos”.

Natasha acredita que Crivella martiriza as pessoas que votaram nele com suas acrobacias pronominais. Quando fala bem de si, usa o “eu”. Confrontado com a qualidade de sua gestão, pula para o “nós”.

APEX VIROU MÃE JOANA
Ao demitir o embaixador Mário Villalva da presidência da Apex, o chanceler Ernesto Araújo emitiu uma nota informando que ato visava a “dinamização e modernização do sistema de promoção comercial”. Naquele texto a única coisa verdadeira era a data.

Villalva foi chamado pela sua competência, depois que Araújo nomeou e defenestrou um monoglota. O embaixador devia saber onde estava pisando, mas atritou-se com dois diretores saídos do ventre do bolsonarismo. Ele os classificou como “pessoas despreparadas, inexperientes, inconsequentes e irresponsáveis”.

Nesse caso, como em algumas de suas declarações desastrosas, Araújo faz o que ouve no Planalto.

Pelas regras da corte de Brasília, é comum que alguns ministros papagueiem o que ouvem do presidente. Ao serem criticados, os bonecos do ventríloquo acreditam que se fortalecem junto ao chefe. Ricardo Vélez acreditou que esse truque poderia blindá-lo.

WEINTRAUB DELIRA
No seu primeiro dia como ministro da Educação, o doutor Abraham Weintraub fez uma reunião com um colaborador e foi categórico:

“Não pode ficar falando. Se ele toma uma posição sem autorização minha, é mandado embora no mesmo instante”.

O doutor se esquecera de desligar o seu celular e sua fala foi ouvida pela repórter Jussara Soares.

Se Weintraub acha que vai silenciar o MEC, talvez faça melhor tornando-se consultor mundial de blindagens. Conter vazamentos foi o sonho de Barack Obama, que impedia a entrada de celulares em reuniões.

O ministro faria melhor se ouvisse “Maria Moita”, de Carlos Lyra:

“Vou pedir ao meu Babalorixá
Pra fazer uma oração pra Xangô
Pra por pra trabalhar
Gente que nunca trabalhou”.

CÉU DE BOLSONARO
Jair Bolsonaro disse que nos primeiros cem dias seu governo voou em “céu de brigadeiro”.

Seu ministro da Ciência e Tecnologia foi oficial da Força Aérea. Bolsonaro poderia perguntar-lhe em que tipo de céu voa um esquadrão de 22 aviões e dois deles (0,9%) são abatidos (Gustavo Bebianno e Ricardo Vélez).

CIRO QUER QUEBRAR
Ciro Gomes acha que, se o projeto de autonomia do Banco Central passar, será o caso de “ir para a rua e quebrar tudo”.

Falou em linguagem figurada, mas em 2006, quando manifestantes foram para a porta de sua casa à noite para fazer barulho (sem quebrar nada), ele foi para a calçada, peitou-os, mandou-os circular e em seis momentos referiu-se às suas mães.

 


Palocci

Merval Pereira: A hora de Palocci

A delação premiada do ex-ministro de Lula e Dilma Antonio Palocci parece ser uma bomba de efeito seletivo, e por isso os procuradores de Curitiba não a aceitaram. Mas a Polícia Federal considerou que a seleção — que, por exemplo, evita acusações a pessoas com foro privilegiado — não invalidava as outras denúncias, e agora caberá ao juiz Sergio Moro decidir se homologa ou não o depoimento.

Um dos principais focos dos procuradores eram as contas que o PT teria escondido em paraísos fiscais, e não está claro se Palocci conseguiu provar a sua existência. Emílio Odebrecht e seu filho Marcelo declararam a Moro que era Palocci quem manejava a conta “amigo”, que se referia ao ex-presidente Lula. E que muitas vezes Palocci fazia saques em nome do presidente.

A disputa entre a Polícia Federal e o Ministério Público é o que de pior poderia acontecer na perspectiva de quem espera que as investigações sobre corrupção no Brasil levem a uma mudança no cenário político nacional.

Mas é tudo o que esperam os que desejam “estancar a sangria”, um desentendimento sobre procedimentos e interpretações que permita desacreditar as delações premiadas e, em decorrência, impossibilite utilizá-las como base para investigações mais aprofundadas.

Na visão da Polícia Federal, por exemplo, acusados de obstrução da Justiça, os políticos são liberados, pois as conversas são vistas apenas como desejos e intenções de políticos dentro de suas atividades parlamentares e similares, nada havendo de criminoso nelas. Os procuradores de Curitiba têm outro entendimento do assunto.

Como os casos de que tratam as investigações da Lava-Jato são complexos e de difícil elucidação, é necessário que os órgãos investigadores trabalhem em conjunto de maneira harmônica, e acreditando que os indícios levarão às provas. Se houver uma disputa como a que já ocorreu entre a Polícia Federal e o Ministério Público e parece estar recomeçando agora com o caso de Palocci, as brigas por espaço aumentarão, cada instituição querendo reduzir a importância da outra, e os beneficiados serão os denunciados.

Sempre houve, por parte do Ministério da Justiça, a tentativa de controlar as investigações, e no governo Temer essa tendência consolidou-se. Desta vez é a Polícia Federal que está à frente da delação que pode ser a mais importante de todas, e o Ministério Público quer exigir mais revelações. Mas Palocci já adiantou temas que não podem estar fora de sua delação, quando, em depoimento ao juiz Sergio Moro, ofereceu-se para fazer a delação premiada.

A reunião que Lula teria tido com o presidente da Odebrecht, da qual teria participado a presidente eleita Dilma para acertar a continuidade do relacionamento especial do governo petista, foi confirmada pelo ex-presidente, que, no entanto, minimizou sua importância, dizendo que não durou nem dez minutos.

Mas pela agenda que Palocci apresentou aos procuradores, no entanto, a reunião foi detalhadíssima, com diversos assuntos elencados, inclusive um item principal: o histórico da parceria. Também “disponibilizaram” apoio no Congresso; fizeram uma exposição sobre a atuação no exterior alinhada com a geopolítica brasileira, ou seja, financiamentos aos governos bolivarianos com o mesmo esquema feito no Brasil, com obras superfaturadas que estão sendo investigadas na América Latina e já levaram à prisão vários presidentes desses países.

Com Lula, houve uma agenda à parte, em que constava o estádio do Corinthians, obras no sítio (de Atibaia), primeira palestra em Angola e Instituto (Lula). É o “pacote de propina” a que aludiu Palocci, registrado na agenda oficial da Presidência, e que certamente foi destrinchado em sua delação.

Em nota divulgada ontem, a ex-presidente Dilma Rousseff diz que “o senhor Antonio Palocci” mente e, ao comentar a notícia de que o ex-ministro assinou acordo de delação, negou ter participado de tal reunião. No depoimento ao juiz Sergio Moro, o ex-ministro Antonio Palocci afirmou, com imagens fortes para impressionar, que Lula fez um “pacto de sangue” com o presidente da empreiteira, no qual a Odebrecht se comprometeu a pagar R$ 300 milhões em propinas ao PT entre o final do governo do petista e os primeiros anos do governo de sua sucessora.

Há também a afirmação, nas primeiras tratativas para a delação premiada de que o ex-ditador líbio Muamar Kadafi enviou ao Brasil, “secretamente”, US$ 1 milhão para financiar a campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002.


Merval Pereira: Delações cruzadas 

Delações entram em fase decisiva na Lava-Jato. A Operação Lava-Jato está entrando em uma fase interessante, em que as delações premiadas cumprem um papel mais fundamental do que até agora tiveram. Delações reveladoras como a de Antonio Palocci, ex-ministro e homem forte do governo Lula, são fundamentais para fechar o cerco, confirmar suspeitas e encerrar definitivamente as dúvidas em torno de acusações que até o momento podiam ser tratadas pelos militantes como meras especulações, sem provas.

Agora, Lula está tendo que se desvencilhar de fatos concretos apontados por gente de seu círculo íntimo e começa a demonstrar as fragilidades de suas versões. Disse que não se lembra do homem que comprou o apartamento vizinho ao seu e o “alugou” sem receber pagamentos durante mais de três anos.

Tanta generosidade assim causa estranheza, ainda mais de um desconhecido. Mas esse desconhecido, Glauco da Costa Marques, era amigo de José Carlos Bumlai, um dos melhores amigos do ex-presidente, e foi atendendo a seu pedido que ele comprou o apartamento, para que Lula não tivesse um vizinho inconveniente. E não gastou um tostão de seu, conforme admitiu para o juiz Sergio Moro. Serviu como laranja, na linguagem popular.

Lula não tem, ao que tudo indica, os comprovantes de que pagou o aluguel nesses anos todos. Da mesma maneira, ao tentar desmentir que tenha tido uma reunião com a presidente eleita Dilma a pedido da Odebrecht, na qual se acertou a continuidade do “relacionamento” especial do governo petista, Lula disse que a reunião não durou nem dez minutos.

Pela agenda que Palocci apresentou aos procuradores, no entanto, a reunião foi detalhadíssima, com diversos assuntos elencados, inclusive um item principal: o histórico da parceria. Também “disponibilizaram” apoio no Congresso; fizeram uma exposição sobre a atuação no exterior alinhada com a geopolítica brasileira (leia-se financiar os governos bolivarianos com o mesmo esquema feito no Brasil, com obras superfaturadas que estão sendo investigadas em diversos países da América Latina).

Com Lula, houve uma agenda à parte, em que constava o estádio do Corinthians, obras no sítio, primeira palestra em Angola e Instituto (Lula). É o tal “pacote de propina” a que aludiu Palocci, registrado na agenda oficial da Presidência. Se trataram disso em meia hora, são uns gênios. Se trataram e não falaram em dinheiro, também são uns gênios.

Outra delação que está mexendo com os nervos de outro grupo, o do PMDB instalado no Palácio do Planalto, é a de Geddel Vieira Lima. O próprio Temer pretende assumir a coordenação dos trabalhos na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, que vai receber a segunda denúncia de Janot depois que o Supremo liberá-la.

Por si só, é um escândalo que o presidente se reúna com deputados que vão julgá-lo antes do julgamento. A ideia é apressar ao máximo os trâmites na Câmara para que a votação não seja atropelada por uma provável denúncia de Geddel, que já revelou a amigos que não aguenta ficar preso “nem uma semana”.

O prazo já está expirando e não há sinal de que conseguirá voltar à prisão domiciliar. E há ainda a possibilidade concreta de delações cruzadas de Joesley Batista e Ricardo Saud, cada qual temendo que o outro o delate. Ela se insere no célebre Dilema do Prisioneiro, da Teoria dos Jogos, que os procuradores de Curitiba conhecem como poucos.

Os dois já foram separados, Joesley foi para São Paulo, e Ricardo Saud, para a prisão da Papuda, em Brasília. Além do fato de sua defesa estar preocupada com a segurança dos dois, pois na Papuda estão presos que Saud delatou, a separação dificulta uma combinação de ações e, agora, cada um está por si, sem saber o que se passa na cabeça do outro. A chance de que haja uma delação cruzada é grande, o que ajudaria as investigações. Se cada um delatasse o outro, os dois ganhariam uma redução de pena, mas nenhum está certo de que o outro o fará e em que termos. O dilema do prisioneiro trabalha a favor da Lava-Jato.

 


Ricardo Noblat: Fim de jogo  

O dia 6 de setembro de 2017 tem tudo para passar à História como o que selou o destino do mais popular líder político brasileiro desde Getúlio Vargas, o presidente da República que em agosto de 1954 matou-se com um tiro no peito para não ser derrubado por um golpe militar.

Em menos de duas horas, ficou-se sabendo que o ministro da Fazenda e da Casa Civil dos governos Lula e Dilma, Antonio Palocci, “o Italiano”, entregou o “pacto de sangue” firmado pelo PT e pela construtora Odebrecht. E que Lula e Dilma foram denunciados outra vez, desta vez por obstrução de Justiça.

A Lula, segundo Palocci, a Odebrecht pagou propinas num valor de R$ 300 milhões — parte para financiar suas atividades, parte para a compra de uma nova sede do Instituto Lula, e o resto para satisfazer qualquer outro desejo dele. O pacote incluía o pagamento de R$ 200 mil por palestra.

Depois de disparar uma flecha no próprio pé com o caso da polêmica delação do Grupo JBS, Rodrigo Janot, procurador-geral da República, disparou outra em Lula e Dilma — essa por conta da manobra de 2015 que tornaria Lula ministro-chefe da Casa Civil do segundo governo Dilma

A manobra tinha como objetivo proteger Lula, que corria o risco de ser preso a qualquer momento por ordem do juiz Sergio Moro. Como ministro, Lula só poderia ser processado pelo Supremo Tribunal Federal. Escaparia assim da órbita de Curitiba, pavor dos acusados por corrupção.

Preso há um ano, Palocci finalmente cedeu às pressões dos seus advogados e contou o que sabe em depoimento a Moro. Se não contou tudo, contou o suficiente para enterrar Lula, que em breve deverá ser condenado pela segunda vez. É réu em mais quatro ações penais.

Revelou, por exemplo, que Lula acompanhou cada passo do andamento das operações de repasses ilícitos da Odebrecht. E que, na véspera de deixar o governo no final de 2010, apresentou Dilma a Emílio Odebrecht para comprometê-la com o acerto que ele tinha com a empresa.

O depoimento de Palocci a Moro não fez parte de nenhuma delação premiada, porque delação ainda não há. Certamente Palocci guardou revelações inéditas para oferecer mais tarde em troca de melhor prêmio por delatar. Moro ouvirá Lula na próxima semana.

O que Palocci disse ontem a Moro, porém, já é suficiente para que seja apontado no futuro como o maior algoz de Lula, aquele que rompeu o pacto de silêncio dos líderes do PT empenhados em impedir que o demiurgo da esquerda acabe punido. Algoz de Lula, mas também de Dilma, cuja fantasia de vestal rasgou.

A Lula e aos seus advogados só resta esgrimir com o falso argumento de que Palocci mentiu para livrar-se da cadeia. Ao PT, procurar outro candidato para disputar a vaga de Temer. Game over. Fim de jogo.

 


O Globo: Maioria do STF é contra anulação de provas de delação da JBS

A eventual revisão dos benefícios acertados na delação premiada de Joesley Batista e Ricardo Saud não deve invalidar as provas já apresentadas pelo dono e o executivo da JBS. Dos 11 ministros do STF, pelo menos seis são contra a anulação de todas as provas. Decano do STF, o ministro Celso de Mello disse que há, no mínimo, três precedentes nesse sentido na Corte. O ministro Luiz Fux defendeu a prisão de Joesley e Saud após a divulgação da gravação da conversa dos dois, que pode levar à anulação dos benefícios da delação. Para Fux, os delatores deveriam ir do “exílio nova-iorquino para o exílio da Papuda”.

Ao menos seis dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a maioria, são contrários à anulação de todas as provas e indícios apresentados pelos executivos da JBS em delação premiada. Na próxima semana, a Procuradoria-Geral da República (PGR) deverá suspender a imunidade penal de Joesley Batista e do executivo Ricardo Saud, segundo duas fontes que acompanham o caso de perto. Será a conclusão do processo de revisão do acordo aberto na segunda-feira, com suspensão da imunidade penal. Em seguida, o procurador geral da República, Rodrigo Janot, vai levar o caso para discussão no plenário do STF.

Os ministros querem discutir não só a retirada de benefícios dos delatores, mas também a validade das provas. A imunidade penal é o maior benefício previsto no acordo de delação dos executivos da JBS. Sem proteção, os dois poderão ser processados e punidos inclusive com prisão. Para a maioria da Corte, os benefícios dos colaboradores, como o direito de não serem processados, podem ser suspensos sem necessariamente invalidar as provas.

A anulação de parte do acordo será feita porque o áudio entregue à PGR na semana passada pelos próprios delatores revela fatos que não haviam sido mencionados antes. O acordo de delação veda omissões.

Antes de jogar a discussão no plenário do tribunal, a PGR ouvirá Joesley e Saud. Os depoimentos estavam marcados para amanhã na sede da PGR, com a subprocuradora-geral Cláudia Marques. Ela poderá convidar integrantes do grupo de trabalho da Lava-Jato para participar do interrogatório. Diante de um pedido de urgência da presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, os depoimentos serão antecipados para hoje de manhã.

No áudio, entre outros assuntos, os delatores mencionam integrantes do STF. O ministro Luiz Fux, o mais feroz nas críticas aos colaboradores da JBS — ele sugeriu a prisão de Joesley e Saud —, defendeu a manutenção de parte das provas. Os depoimentos podem deixar de valer, mas outros elementos deverão ser aproveitados:

— Acho que as provas que subsistem autonomamente podem ser aproveitadas. A prova testemunhal dele não pode valer, mas os documentos que subsistem por si sós, eles têm de ter vida própria.

USO ATÉ MESMO CONTRA DELATORES
O ministro Marco Aurélio Mello desenvolveu um raciocínio diferente: a manutenção da validade dos depoimentos, que ele chamou de “indícios de provas”:

— Anular a delação, não. O que se torna insubsistente é a cláusula dos benefícios. Só isso. O que é a delação? Um depoimento. E depoimento prestado não se vai para o lixo.

O ministro Celso de Mello, o mais antigo do Supremo, defendeu o uso das provas obtidas até mesmo contra os próprios delatores, dependendo do rumo da apuração.

— Se, a partir do depoimento do agente colaborador, sobrevier a corroboração daquelas provas a partir de uma fonte autônoma e independente de prova, então, até mesmo contra ele próprio poderá haver essa utilização — afirmou Celso.

Em caráter reservado, outro ministro do STF defendeu a possibilidade de uso das provas nas investigações porque a rescisão do acordo foi causada pelos delatores e não pelos investigadores. Um quinto integrante afirmou que a Corte deve manter a validade de pelo menos parte das provas. No entanto, depois do escândalo, elas perderiam a força nas investigações, ou seja, não teriam tanta credibilidade.

Anteontem, em Paris, o ministro Gilmar Mendes deu entrevista dizendo que a questão da invalidade das provas terá que ser examinada em cada tópico. Mas apontou um fato que poderá ter reflexo sobre todas as provas produzidas.

— Tudo indica que os delatores receberam treinamento da Procuradoria muito antes de fazer aquela primeira investida. Sobre isso, eles terão que responder. E obviamente vai surgir a discussão sobre prova ilícita ou não — disse Gilmar na terça.

Apesar da menção, não há, na conversa dos delatores, indicação de qualquer irregularidade cometida pelos ministros do STF. Joesley e Saud comentam também sobre aproximação com o então procurador Marcello Miller para, a partir daí, chegarem até o procurador-geral. Miller teria até orientado Saud a preparar os anexos da sua delação. Em nota divulgada, Joesley e Saud dizem que nenhuma referência aos ministros do STF era verdadeira.

NO STF, TENDÊNCIA DE PUNIÇÃO EXEMPLAR
Cresce, também dentro do Supremo Tribunal Federal, a pressão indireta para que o procurador-geral peça a prisão dos dois executivos da JBS. A maioria dos ministros entende que as provas obtidas a partir da delação dos executivos são válidas. Mas, ainda assim, avaliam que, pela desenvoltura nas tratativas do pré-acordo, os dois precisam sofrer algum tipo de punição.

Desde segunda-feira, quando o caso da gravação involuntária chegou ao Supremo, os ministros têm conversado sobre o assunto. Eles demonstram indignação e querem punição exemplar do dono da JBS. A defesa dos executivos tem dito que os dois tiveram, na verdade, uma “conversa de bar”. Argumentam ainda que foram os dois que entregaram à Procuradoria-Geral da República a gravação das conversas desfavoráveis a eles próprios.

Com isso, os colaboradores teriam cumprido a promessa de entregar todos os documentos disponíveis relacionados à delação no prazo estabelecido pelo STF, ou seja, não destruíram provas e nem se omitiram sobre fatos conhecidos sobre o caso.

 

 


Luiz Carlos Azedo: Flechada no pé

O suspense era sobre a nova denúncia contra o presidente Michel Temer, mas o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em entrevista coletiva ontem à noite, ao contrário, anunciou a abertura de investigação para apurar “indícios de omissão de informações de práticas de crimes” no acordo de delação premiada dos executivos do grupo J&F, controlador do frigorífico JBS, que originou a primeira denúncia. O que era pra ser uma flecha de prata a ser disparada contra o Palácio do Planalto, virou uma flechada de chumbo no próprio pé, porque a decisão reforça a tese de que as denúncias contra Temer seriam uma “conspiração” para derrubar o presidente da República. Dependendo do resultado da investigação, os benefícios oferecidos no acordo de colaboração dos irmãos Joesley e Wesley Batista poderão ser cancelados.

Janot revelou que os investigadores da Polícia Federal obtiveram na última quinta-feira áudios com conteúdo “gravíssimo”. Numa das gravações, Joesley Batista conversa com Ricardo Saud, diretor institucional da J&F. Três dos sete executivos da empresa que fecharam a delação estão implicados nos áudios. Por isso, Janot ameaça anular a delação premiada de Joesley, Wesley e Saud. Nos áudios enviados à PGR, há diálogo entre delatores que supostamente teriam sido entregues por engano por um dos colaboradores. O áudio teria referências a congressistas, integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) e até a pessoas da própria PGR, inclusive Janot. O único nome citado pelo procurador-geral, porém, foi do ex-procurador Marcelo Müller, que deixou a sua equipe para atuar como advogado no escritório de advocacia contratado por Joesley para negociar a delação premiada.

Janot não revelou o diálogo entre dois colaboradores “com referências indevidas” à Procuradoria-Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal, nem confirmou os nomes dos delatores que, na conversa, revelam fatos que podem ser indícios de crimes praticados. Entretanto, o procurador-geral garantiu que as provas não serão anuladas, caso se comprove que Joesley omitiu informações, mas os envolvidos poderão perder os benefícios da delação e o ex-procurador envolvido pode ser exemplarmente punido.

São quatro horas de conversa gravada, que aparentemente não eram do conhecimento de Joesley, mas foram parar nas mãos de Janot, sem que o dono aparentemente soubesse do conteúdo. A gravação registra bastidores da negociação com a PGR, destacando a atuação de Müller na confecção de propostas do acordo que seriam fechadas com o órgão. “Ao longo de três anos, Marcelo foi auxiliar do procurador-geral, procurado por suas qualidades técnicas. Se descumpriu a lei no exercício das funções, deverá pagar por isso”, disse Janot.

Anulação

O advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que cuida da defesa do presidente Michel Temer, anunciou ontem que pretende pedir a anulação da denúncia da PGR que acusou o presidente de corrupção passiva. Embora Janot tenha reiterado que não haverá anulação de provas, a gravação das conversas relatada pelo próprio procurador-geral abriu a brecha para o Palácio do Planalto iniciar uma ofensiva com objetivo de sepultar de vez a segunda denúncia e desmoralizar Janot. Os áudios foram, encaminhados ao ministro-relator da Operação Lava-Jato, Edson Fachin, que decidirá o que fazer com as gravações. A história toda é muito cabeluda, porque tudo aconteceu como se fosse um grande descuido.

Há muita especulação sobre o que está acontecendo. O Palácio do Planalto comemora o episódio como se fosse uma pá de cal na Lava-Jato e no estatuto da “delação premiada”, que está sendo muito questionado por todos os denunciados com base em depoimentos de colaboradores. Além disso, a gravação pegou Janot no fim de seu mandato, pois a posse da nova procuradora-geral, Raquel Dodge, deverá ocorrer no próximo dia 18. Para muitos, a investigação é uma espécie de vacina, pois certamente seria instalada por sua sucessora no cargo, já que a gravação mostra que Müller começou a trabalhar para os colaboradores quando ainda integrava a equipe de Janot, que pretende encerrar a investigação até o dia 15, ou seja, ainda durante seu mandato.

 


Sérgio C. Buarque: O legítimo e o criminoso nas doações

Publicado na Revista Será em 17/03/2017

A doação de empresas a partidos e políticos para financiamento de campanha eleitoral é uma prática corrente, amplamente aceita e utilizada por todos, mas que evoluiu para uma grande promiscuidade entre o público e o privado. Entretanto, neste momento em que se multiplicam as denúncias e as investigações de doações e corrupção na política brasileira, é importante distinguir dois aspectos dessa relação, que separam a legalidade do crime: a origem do dinheiro e a forma de registro da doação. A combinação destes dois aspectos permite criar uma tipologia da relação, como mostra o quadro abaixo, para classificar as acusações, avaliando e julgando os políticos e governantes de modo a evitar a generalização e a condenação de todos os homens públicos brasileiros à vala comum da criminalidade:

Na história politica do Brasil tem havido, ao longo dos anos, financiamento legal de empresas (sem superfaturamento e corrupção), que os políticos (ou partidos) registram como doação oficial na sua contabilidade (valor e doador) apresentada à justiça eleitoral.

O chamado “Caixa 1” é uma operação legal e legítima, praticada por vários e respeitáveis políticos. Claro que, embora seja um financiamento voluntário, a empresa tem a expectativa de facilitar acesso e mesmo solicitar eventuais favores futuros do parlamentar ou governante. Mas a doação em si não constitui nenhum ilegalidade. Existe, contudo, uma variante criminosa desta modalidade, quando, mesmo contabilizado pelo político (ou partido), o recurso transferido pela empresa é oriundo de corrupção com superfaturamento. Esta modalidade – “Caixa 3” – envolve um crime de corrupção praticado pela empresa e, principalmente, pelo ordenador da despesa vinculada ao referido contrato.

O registro na contabilidade do partido tenta disfarçar o ato criminoso anterior: a doação condicionada à assinatura de um contrato superfaturado, funcionando como uma propina e uma retribuição pelo privilégio na concorrência. Esta corrupção contabilizada tem sido uma prática amplamente utilizada no esquema do chamado Petrolão, como atestam várias denúncias da Operação Lava Jato.

O “Caixa 2” é o financiamento de campanha eleitoral “não contabilizado”, como dizia o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Quando a doação for voluntária e legítima, e não uma propina gerada por corrupção de governo e empresas estatais, o “Caixa 2” constitui apenas um crime eleitoral, pode cassar o mandato do político mas não leva ninguém à prisão. O pior expediente desta promíscua relação de empresas e políticos é uma variante deste “Caixa 2” – chamemos de “Caixa 2.1” – que combina crime de corrupção (fonte ilegal) com crime eleitoral (doação não contabilizada).

Em qualquer dos dois casos, parece muito obscuro para o cidadão comum que um político ou um partido não declare doações de empresários para financiamento da disputa eleitoral. Por que um empresário aceita entregar dinheiro vivo para os políticos? É estranho que no mundo altamente informatizado e com um sistema bancário integrado, a empresa mande alguém sacar milhões de reais no banco, enchendo malas de dinheiro, e transportar pelas ruas cheias de bandidos, para entregar a um intermediário dos políticos. Por que (e de quem) os doadores e os receptores querem esconder esta transação?

Ao doador não interessa. O doador submete-se de bom grado, pelos termos do acordo, para ganhar o contrato, já tendo embutido no valor total a parcela correspondente à propina. Mesmo quando o dinheiro transferido para o político for resultado de corrupção, será contabilizado pela empresa doadora, na medida em que constitui uma parte diluída no faturamento total das obras e serviços prestados.

No seu depoimento ao TSE-Tribunal Superior Eleitoral, Marcelo Odebrecht afirmou que uma parte das doações ao PT e ao PMDB foi entregue em dinheiro vivo e, portanto, não contabilizado. Por que? Se o dinheiro está devidamente “lavado” pela contabilidade da empresa, por que a doação não foi totalmente oficial, com uma simples transferência bancária, que o partido ou o político registraria na sua contabilidade? Seguramente porque os políticos e os partidos pretendem fazer uso ilegal deste recurso: compra direta de adesão e apoio de outros partidos, políticos ou simples cabos eleitorais, compra de parlamentares com mesada direta para apoio a projetos governamentais, além de apropriação pessoal para enriquecimento ilícito que, evidentemente, não podem declarar como renda à Receita Federal.

Mais que um ato criminoso, estas compras de voto e de apoio político são um grave atentado à democracia, levando à completa degradação da vida política brasileira. E quando combinadas com a corrupção (“Caixa 2.1”) – combinação perversa de fonte corrupta e uso ilegal dos recursos – constituem também um saque aos cofres públicos, agravando a crise fiscal e, portanto, a capacidade de investimentos e gastos públicos, para promover o desenvolvimento e atender às necessidades da população.


* Sérgio C. Buarque é economista

Dora Kramer: Um fantasma na ópera

Eduardo Cunha não foi o primeiro nem será o último político de destaque a ser preso pela operação Lava Jato. Sequer pode ser apontado como aquele que maior poder e/ou volume de informações reuniu na República. As presenças de José Dirceu e Antônio Palocci em Curitiba – chefões da era em que o PT mandava (e principalmente desmandava) no País – dão por si tal testemunho. Pode ser que ele venha a fazer uma delação devastadora que comprometa do baronato ao cardinalato da política? Pode ser que haja vida em Marte. No terreno das possibilidades criam-se, entre outras coisas, fantasmas. Tudo é possível embora nem tudo seja provável.

Para dirimir quaisquer dúvidas, o melhor método é o exame das condições objetivas. A principal delas esteve registrada no placar eletrônico da Câmara no dia 12 de setembro último, quando o então deputado afastado de suas funções legislativas pelo Supremo Tribunal Federal teve o mandato cassado por 450 votos a favor e 10 contra. No início, quando o processo foi aberto no Conselho de Ética, a avaliação preponderante era a de que Eduardo Cunha sairia ileso. Segundo essa versão, teria poderes ilimitados para impedir o andamento dos trabalhos e um embornal de informações a respeito de seus pares tóxico o suficiente para garantir votos a favor da manutenção de seu mandato. No campo da suposição, isso parecia fazer sentido. Mas a realidade tem componentes menos esquemáticos.

No caso, a opinião pública, a revelação de novas e cada vez mais contundentes acusações, o comportamento excessivamente ousado de Cunha, a decisão do STF de afastá-lo do cargo, a impossibilidade de contar com ajuda do governo, o instinto de sobrevivência eleitoral dos deputados, uma série de fatores que desmontou a presunção inicial e produziu um resultado surpreendentemente desfavorável a ele. A prisão menos de quarenta dias depois provocou alvoroço, não obstante fosse algo esperado, líquido e certo. Fez-se o silêncio em Brasília. Pudera, dizer o quê? Lamentar, comemorar? O governo e mundo político em geral não poderiam fazer uma coisa nem outra. Até o PT se manteve discreto, dada sua impossibilidade de falar de corda em casa de enforcado.

Enquanto na capital federal a palavra de ordem era não passar recibo, no restante do País estabeleceu-se a gritaria em torno dos presumidos efeitos de uma delação premiada. Por ora apenas um fantasma nessa ópera composta pela operação Lava Jato. Não que seja um equívoco supor que Cunha faça delação e provoque com ela uma devastação em massa. Mas é preciso medir e pesar as circunstâncias. E estas não lhe são necessariamente favoráveis. Não é ele quem dita as regras muito menos o rumo dos acontecimentos como, de resto, já ficou demonstrado. A faca e o queijo estão nas mãos do Ministério Público e da Justiça.

Ainda que o ex-deputado tenha disposição de delatar não significa que os procuradores se interessem pela contrapartida ou que as condições estabelecidas em lei para a obtenção de benefícios se apliquem a Eduardo Cunha. A força tarefa da Lava Jato trabalha há mais de dois anos, período em que reuniu uma montanha de informações a respeito das quais seguramente o País ainda não sabe da missa a metade. De onde é possível que o ex-deputado não tenha dados que os investigadores considerem novos e/ou necessários ao esclarecimento dos fatos.

Se não pôde controlar seu destino quando presidente da Câmara nem se utilizar do arsenal intimidador de maneira eficiente, não será preso que Eduardo Cunha terá êxito no manejo da figura de assombração. Ademais, terá de ter muito cuidado com o que disser para não piorar sua já sofrível situação.(O Estado de S. Paulo)


Fonte: pps.org.br


Luiz Carlos Azedo: Operação champanhe

A famosa Operação Mãos Limpas, na Itália, foi deflagrada após a prisão, em 1992, de Mario Chiesa, ligado ao PSI, que ocupava a diretoria de uma instituição filantrópica e era acusado de receber propina de uma empresa de limpeza. O PSI tentou isolar Chiesa, mas o político resolveu falar e incriminar colegas. Como aqui no Brasil, empresários pagavam propinas aos políticos para vencer licitações de construção de ferrovias, autoestradas, prédios públicos, estádios e na construção civil em geral. Delações do ex-espião da KGB Vladimir Bukovsky e do ex-mafioso Tommaso Buscetta também revelaram licitações irregulares e o uso do poder público em benefício particular e de partidos políticos.

Sob apoio e pressão da opinião pública, as investigações levaram à prisão industriais, políticos, advogados e magistrados, 12 pessoas se suicidaram e alguns dos envolvidos fugiram da Itália. No curso das investigações, a máfia siciliana matou os juízes Paolo Borsellino e Giovanni Falcone, que obteve a delação de Buscetta. Foram 2.993 mandados de prisão; 6.059 pessoas investigadas, sendo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares, entre os quais quatro ex-primeiros-ministros.

A partir de Milão, a capital mundial da moda, descobriu-se que a Itália havia submergido na corrupção, com o pagamento generalizado de propinas para obtenção de contratos com o governo. Os grandes partidos no governo em 1992, a Democracia Cristã, o Partido Socialista Italiano, o Partido Social-Democrata Italiano desapareceram completamente; o antigo Partido Comunista, então denominado partido democrático de esquerda, e o Movimento Social Italiano mudaram de nome. Somente o antigo Partido Republicano sobreviveu.

Um dos envolvidos na Operação Mãos Limpas era o empresário e então primeiro-ministro da Itália, Sílvio Berlusconi, considerado o maior beneficiado pela corrupção e principal acusado em processos de fraudes, como nos casos All Iberian, SIR (empresa petroquímica privada), IMI (Instituto Mobiliare Italiano) e Lodo Mondadori.Em 2009, porém, senadores governistas aprovaram uma reforma do Judiciário, que beneficiou Berlusconi com a extinção de dois processos, nos quais era acusado de fraude contábil na compra de direitos de TV para seu império de comunicação Mediaset e de ter subornado um advogado britânico para prestar falso testemunho, em 1997.

Anistia

Aqui no Brasil, está em curso no Congresso uma operação semelhante, que foi abortada na segunda-feira, mas ainda não morreu. Trata-se da criminalização do caixa dois de campanha, que é considerado uma infração eleitoral. Numa manobra abortada pelos deputados fluminenses Miro Teixeira e Alexandre Molon, da Rede, parlamentares de diversos partidos tentaram aprovar uma emenda ao projeto anticorrupção do Ministério Público, em discussão na Câmara, para livrar de responsabilidade penal quem praticou caixa dois antes da aprovação da lei, sem embargo da punição por crimes conexos, tipo lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito, desvio de recursos públicos, etc.

A sessão foi presidida pelo primeiro-secretário, Beto Mansur (PRB-SP), porque o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), exercia interinamente a Presidência da República, em razão da viagem de Michel Temer aos Estados Unidos. A nova lei anticorrupção estava sendo negociada com o Ministério Público, por Maia e alguns líderes da Casa, mas entrou na pauta sem prévia comunicação e de forma muito confusa, com uma emenda que anistiava todos os políticos acusados de receber dinheiro de caixa dois, ou seja, não declarado à Justiça Eleitoral. Muitos já tinham até mandado gelar a champanhe para as comemorações.

A razão de tanta pressa é a iminente delação premiada de Marcelo Odebrecht e outros executivos da empresa que leva o nome da família, que está sendo negociada com o Ministério Público Federal. Cerca de 100 senadores e deputados estariam citados na delação, além de ex-presidentes, governadores e prefeitos, tanto pelo recebimento de contribuições legais provenientes de dinheiro público desviado pela empreiteira, quanto de propina e doações não contabilizadas. A cúpula do Congresso e pelo menos oito ministros do governo Temer estariam citados na delação, além dos ex-ministros petistas.

Há duas questões em jogo na operação frustrada. A primeira é o avanço irreversível das investigações da Operação Lava-Jato em direção à elite política do país, em razão das delações premiadas; a segunda, a crise de financiamento das campanhas eleitorais, com o fim das doações de pessoas jurídicas, que coloca em xeque o atual sistema eleitoral. A resposta urdida no Congresso é conter a Lava-Jato, zerando as investigações do caixa dois, e blindar os grandes partidos, com a cláusula de barreira e o monopólio do fundo partidário e do tempo de rádio e televisão. (Correio Braziliense – 22/09/2016)


Fonte: pps.org.br