Daniel Rittner

Daniel Rittner: Dá para esperar algo do novo chanceler?

França ensaia ‘revolução da normalidade’

Carlos França, o novo chanceler, deu sinais de ter entendido direitinho onde está e por que está. Tal como fora combinado por suas assessorias, a senadora Kátia Abreu (PP-TO) esperava uma reunião virtual com o ministro nos próximos dias. Presidente da Comissão de Relações Exteriores e protagonista do capítulo final da queda de Ernesto Araújo no Itamaraty, ela tem evitado sair de sua fazenda nos arredores de Palmas e prefere videoconferências desde que passou uma semana hospitalizada com covid, no fim do ano passado. Diz que ainda sente falta moderada de ar, às vezes fica sem olfato. Com tato, França se voluntariou: “A senhora não se incomodaria se eu pegar um voo e for ao Tocantins para conversarmos pessoalmente?”, questionou, prometendo seguir os cuidados sanitários. Política e diplomacia são feitas, também, de pequenos gestos. Kátia Abreu aprovou esse movimento. Sinal de alguém que se esforça para ouvir e dialogar, comentou a senadora.

Diálogo, canais abertos e construção de pontes foram justamente as expressões sublinhadas por França em seu discurso de posse. Cinco anos atrás teria sido anódino. Ontem ganhou ares de revolução da normalidade. Foi uma espécie de funeral da retórica empolada do ernestismo. Um resgate da diplomacia tradicional. No lugar de saudações a altezas imaginárias, um afago real e objetivo na Argentina, parceira de sempre e que não pode ser arrancada do mapa. Saem de cena verbetes como covidismo e comunavírus. Termos em desuso no Itamaraty desde janeiro de 2019, como “multilateralismo” e “urgência climática”, voltaram a aparecer em fala oficial. E o melhor: nada de messianismo, não teve citação em grego arcaico nem proclamação de Ave Maria em tupi guarani.

Ainda sem densidade política, no entanto, França precisará se mover em meio às sombras do assessor internacional Filipe Martins, que passou incólume pelas mudanças na cúpula do governo, e do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que usa o acesso de “03” quando lhe convém e se esconde sob a desculpa de “só mais um entre 513” quando arruma encrenca.

Se alguém acha que Eduardo anda muito quieto, sem criar confusão, é porque não anda acompanhando os trabalhos da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Por pouco não foi votada, na semana passada, uma moção de repúdio ao Hezbollah por considerá-lo grupo terrorista e responsável por atentados em Buenos Aires, nos anos 1990. Apresentado pelo deputado, o texto falava em ligações com o PCC no Brasil e presença na Tríplice Fronteira. Errado não está, mas o “timing” da proposta - foi no dia do depoimento de Ernesto Araújo - evidencia o tumulto potencial.

Com um novo ministro, mas Eduardo e Martins atuando nos bastidores, será que tudo mudou apenas para tudo continuar do mesmo jeito? O desafio de França no Itamaraty é fazer Jair Bolsonaro não ser Jair Bolsonaro em política externa: foi ele, não seu ex-chanceler, quem tirou sarro da esposa de Emmanuel Macron e desdenhou do dinheiro de Angela Merkel para combater o desmatamento na Amazônia, colocou em dúvida a eficácia da vacina chinesa, quem começou as hostilidades com o argentino Alberto Fernández e terminou como penúltimo chefe de Estado a cumprimentar Joe Biden pela vitória nas eleições presidenciais.

O bom legado da gestão Ernesto é que o Senado, onde sabatinas de embaixadores sempre foram um passeio de domingo no parque, resolveu assumir o papel de contrapeso e mostrou que imporá limites. Um veterano diplomata já teve sua indicação barrada para assumir posto na ONU em Genebra. E a própria Kátia Abreu deixou claro, no “Roda Viva” de segunda-feira, que sequer pautaria uma sabatina de Araújo na comissão - porque hoje o risco de bomba, segundo admitiu a senadora, é alto demais.

Por outro lado, enquanto a agenda ambiental volta ao Itamaraty às vésperas da cúpula organizada por Biden e da CoP- 26, partem justamente do Congresso Nacional ameaças importantes à imagem externa do país. Estão à espera de votação o projeto de lei para regularização fundiária, mais conhecido na Europa como “PL da Grilagem”, e a proposta que regulamenta atividades econômicas em terras indígenas, incluindo até garimpo e exploração de petróleo. Pode haver méritos nas propostas, nem se discute aqui, mas nada mais descalibrado com os planos de destravar o acordo comercial UE- Mercosul ou obter financiamento internacional para a Amazônia.

O mundo do pós-pandemia é um terreno minado e com vazio de poder. Nas palavras de Ian Bremmer, o paparicado fundador da Eurasia Group, assiste-se ao fim da liderança americana - e, de forma mais ampla, da liderança ocidental - nas relações internacionais. “Estamos despreparados para o que isso significa sobre vários aspectos de como o mundo conduz seus negócios: do sistema econômico às normas sociais, do equilíbrio militar aos padrões tecnológicos”, escreveu o consultor, em relatório enviado anteontem para clientes.

No mesmo texto, Bremmer tenta explicar aos seus leitores endinheirados o que esperar do Brasil. Não é bom de se ler. Entre os riscos detectados, segundo ele, um vai ganhando força: a possibilidade de processo de impeachment e de crise política “no estilo 6 de janeiro” - uma referência ao dia em que extremistas de direita invadiram o Capitólio na expectativa de assassinar Nancy Pelosi ou Mike Pence. “Com potencial para violência nas ruas e instabilidade, que podem incluir defecções significativas de policiais e militares de baixo escalão, dispostos a ficar do lado de Bolsonaro”, resume. Quanto mais a pandemia se arrastar, sem freio na escalada de mortes, mais o risco de concretização de um cenário radical, alerta Bremmer.

Tendo uma situação tão desafiadora pela frente, mas boa vontade dos parlamentares se o desejo de mudança na política externa for genuíno, França só não tem o tempo jogando a seu favor. “Cargo de chanceler não é para aprender. Para aprender, já tem o Instituto Rio Branco”, disse Kátia Abreu. Depois do discurso que gerou no Itamaraty e fora dele, o novo ministro desabafou para amigos: “Agora acabou a trégua, vai começar o tiroteio”.

Araújo

Ernesto Araújo deve ir para a missão do Brasil na OCDE, em Paris, posto que não requer sabatina. O destino mais provável de Otávio Brandelli, ex-número dois do Itamaraty, é como embaixador na Organização dos Estados Americanos, em Washington.


Daniel Rittner: Os US$ 4 bilhões que travaram na Esplanada

Empréstimos do BID, CAF e NDB esbarram em vaivém de pareceres

O governo Jair Bolsonaro está deixando parado um financiamento internacional de US$ 4 bilhões, com taxas de juros mais baixas e prazos mais longos do que as captações feitas pelo Tesouro no mercado, para arcar com o pagamento do auxílio emergencial e ações de combate à crise econômica provocada pela pandemia.

A tomada do crédito, que foi anunciada em maio, travou na burocracia da Esplanada dos Ministérios. Enquanto isso, o Brasil abre mão de um alívio de algumas centenas de milhões de reais na gestão de sua dívida pública porque é obrigado a pagar mais caro para credores privados que têm financiado o gigantesco déficit primário no nosso “Orçamento de guerra”.

Seis bancos multilaterais e agências de desenvolvimento se dispuseram a emprestar para o Brasil. Todos já aprovaram, em suas instâncias decisórias, a liberação do crédito. As fontes de financiamento são as seguintes: US$ 1 bilhão do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), US$ 1 bilhão do Banco Mundial, US$ 1 bilhão do NDB (conhecido como Banco do Brics), US$ 420 milhões do banco de fomento alemão KfW, US$ 350 milhões do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e US$ 240 milhões da Agência Francesa de Desenvolvimento.

No entanto, de forma atípica, nenhuma mensagem foi enviada ao Senado até agora pedindo autorização para essas operações. O passo a passo de qualquer financiamento é o seguinte. Primeiro, o próprio Poder Executivo analisa os termos do empréstimo negociado. Isso costuma ser um procedimento rápido, toma no máximo algumas semanas depois de aprovado o crédito pelos organismos internacionais, que é o tempo para a elaboração de um parecer do Tesouro e um sinal verde da Casa Civil. Na sequência, a mensagem do Palácio do Planalto vai para a análise dos senadores - tanto na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) quanto do plenário. Uma vez votada, ela se transforma em projeto de resolução do Senado. Não cabe veto. Há apenas promulgação.

Por causa do excesso de burocracia no governo, está tudo demorando. A primeira operação de crédito, do Banco do Brics, foi aprovada por sua diretoria em Xangai no dia 20 de julho. Lá se vão mais de quatro meses e nada de o financiamento caminhar em Brasília. Em agosto, foi a vez de aprovações pelas diretorias do BID e da CAF, o banco que ainda usa a sigla histórica de quando se chamava Corporação Andina de Fomento. Essas operações estão na mesma situação - bem como os recursos do Banco Mundial, da alemã KfW e da francesa AFD.

Há grande mal-estar, nos seis organismos internacionais que fizeram os empréstimos, com a demora do governo. Eles frisam o caráter de emergência que as operações receberam dentro de cada banco ou agência. Em uma das instituições, na última reunião de diretoria, houve surpresa do colegiado com o relato de que o dinheiro ainda não poderia ser transferido por falta de aprovação no Brasil. Era o único dos países beneficiados sem receber financiamento para ações de combate à pandemia.

O Ministério da Economia pretendia usar da seguinte forma o crédito levantado: US$ 1,72 bilhão para o programa de renda básica emergencial, US$ 960 milhões para a ampliação do Bolsa Família, US$ 780 milhões para o aumento das concessões de seguro-desemprego e US$ 550 milhões para o programa de manutenção do emprego. No total, pela taxa de câmbio mais atualizada, são R$ 21,2 bilhões.

Segundo fontes do governo, que reservadamente admitem as reclamações de organismos internacionais, tem havido um vaivém dos pareceres técnicos elaborados pela Secretaria do Tesouro Nacional. A Casa Civil teria rejeitado as primeiras versões dos documentos. No meio disso, comenta-se que também houve ressalvas da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). A coluna não conseguiu obter detalhes do que estaria causando as divergências.

Em termos práticos, existem dois problemas. Um é se os empréstimos programados para este ano podem escorregar para 2021. Tecnicamente, diz um dirigente de organismo internacional, há condições de manter o crédito de pé. Do ponto de vista político, bate um constrangimento. “Não era para financiar programas emergenciais? Houve decisão política de liberar os recursos rapidamente e a demora não condiz com o que havia sido dito”, afirma esse dirigente.

As taxas dos empréstimos negociados ainda não foram divulgadas. Elas se tornam públicas com a mensagem ao Senado. O último crédito internacional tomado pela União - uma operação de US$ 195 milhões do BID para o fortalecimento da defesa agropecuária em 2019 - tinha juros iniciais de 3,78% ao ano e 300 meses (25 anos) como prazo para o pagamento.

Para ilustrar a diferença: no mercado, os títulos pré-fixados mais longos do Tesouro, com vencimento em 2031, pagam 7,94% ao ano. O resultado é que, sem colocar as mãos no dinheiro dos bancos multilaterais e agências de desenvolvimento, o Brasil está gastando mais para financiar parte do déficit fiscal.

Conclusão: às vezes o que chamamos de “burocracia” é um excesso de zelo legítimo e o que chamamos de “atraso” só reflete a sobrecarga de trabalho de determinados técnicos. De qualquer forma, a demora no envio das mensagens para o Senado soa como uma falta de prioridade pouco justificável.