curió

Ruy Castro: À espera do curió

O canto de um passarinho pode ser o último alento antes da dissolução final

Em novembro último, escrevi duas colunas (5/11 e 9/11) a respeito de um curió cujo assobio me entrava pela janela toda manhã e me ajudava a saltar da cama e encarar o Brasil daquele dia —para se ter uma ideia da beleza do seu canto. O bichinho, segundo meu atento porteiro João, pertencia a um colega dele, porteiro do prédio em frente, e não era um curió qualquer. Tinha registro no Ibama e era um dos curiós mais populares do Leblon —transeuntes paravam sob sua gaiola na árvore para ouvi-lo cantar.

À distância, por causa da quarentena, juntei-me aos seus admiradores. A única restrição que lhe fazia era a relativa limitação de seu repertório, composto de um único tema —fiu-firiu fiu-firiu, fiu-fiu, fiu-fiu, fiu-fiu, tendo como coda mais um fiu breve e individual. Um ornitólogo me escreveu para dizer que não era uma limitação, mas o resultado de um longo trabalho do curió para chegar à perfeição daquela frase melódica. E que, provavelmente, o último fiu lhe tomara meses de ensaio.

Tudo isso é para dizer que, desde dezembro, deixei de ouvir o concerto matinal do curió. Hipóteses terríveis me assaltaram. Famoso como era, ele teria sido sequestrado e seu dono não podia pagar o resgate. Ou seu passe fora comprado por um milionário chinês que o levara embora. Ou, revoltado com os rumos do país, ele teria entrado em depressão e se recusava a cantar.

Dei alguns dias, voltei a João e lhe pedi notícias. Ele me tranquilizou: o dono do curió fora ao Norte ver a família e o deixara aos cuidados de um colega em Jacarepaguá. Logo estarão de volta ao Leblon.

Vou aguardar. O Brasil não está para que seus cidadãos pulem da cama e encarem o dia. O país, entregue a canalhas e omissos, à paisana ou fardados, está se dissolvendo sanitariamente, moralmente, institucionalmente. O canto de um passarinho pode ser o último alento antes da dissolução final.


Bernardo Mello Franco: Um carrasco no Planalto

Bolsonaro recebeu o major Curió, símbolo da matança de opositores na ditadura militar. Foi mais uma isca para atiçar os extremistas que apoiam seu projeto autoritário

O Brasil já contava 7.025 mortos pelo coronavírus quando Jair Bolsonaro encontrou tempo para confraternizar com um carrasco da ditadura. Na manhã de segunda-feira, o presidente abriu o gabinete para receber Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió. Ele já foi denunciado seis vezes pela matança promovida pelo Exército na repressão à Guerrilha do Araguaia.

O encontro foi omitido da agenda oficial de Bolsonaro. Só entrou nos registros à noite, depois de revelado pelo blog de Rubens Valente no UOL. Mais tarde, um senador governista divulgou fotos da conversa. Numa delas, o presidente aparece agachado ao lado do visitante, acusado de participar de sequestros e assassinatos.

O próprio Curió forneceu provas do massacre. Em 2009, ele abriu arquivos ao jornal O Estado de S. Paulo e confirmou a execução de 41 militantes presos, que não ofereciam perigo às tropas. Muitos se entregaram maltrapilhos e famintos, após meses de fuga na floresta.

Em entrevista a Leonencio Nossa, reproduzida no livro “Mata! O major Curió e as guerrilhas do Araguaia”, o militar reformado comparou o extermínio de prisioneiros à limpeza de uma lavoura. “Quando se capina, não se corta a erva daninha só pelo caule. É preciso arrancá-la pela raiz para que não brote novamente”, disse.

Bolsonaro sempre exaltou a matança na selva. Na Câmara, ele debochava das famílias dos desaparecidos com o slogan “Quem procura osso é cachorro”. No Planalto, extinguiu o grupo de trabalho que tentava identificar restos mortais dos combatentes.

A recepção a Curió foi uma nova isca para atiçar a militância de extrema direita que apoia o projeto autoritário do capitão. O episódio se soma a outras indignidades bolsonaristas, como as agressões a jornalistas e as ameaças ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal.

Em mais uma falsificação histórica, a Secretaria de Comunicação da Presidência chamou o major de “herói do Brasil”. A Convenção de Genebra trata a execução de prisioneiros como crime de guerra, e nem as leis da ditadura autorizavam o que se fez no Araguaia. O Ministério Público Federal pede a condenação de Curió desde 2012, mas ele continua solto graças a uma interpretação generosa da Lei da Anistia.