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Merval Pereira: Uma crise política

O programa pode ser feito integralmente por profissionais brasileiros, pois o fato é que o país não tem falta de médicos

A crise que pode afetar milhões de brasileiros com a saída imediata dos médicos cubanos deve ser atribuída, em primeiro lugar, ao governo de Cuba, que decidiu usar os carentes brasileiros para retaliar um governo de direita que venceu a eleição presidencial com críticas ao programa e a Cuba.

Ficou claro que o governo Bolsonaro iria exigir que os médicos cubanos fizessem o teste para revalidação do diploma, com o que Cuba não concorda. A exigência nem é uma decisão ideológica, mas as críticas ao que seria “trabalho escravo” dos médicos, sim, e com razão.

A forma de pagamento do trabalho, com o governo cubano ficando com a maior parte do salário, e a proibição de que as famílias dos médicos viajem junto, representam uma atitude de governo que não se coaduna com os hábitos e costumes de uma democracia, com uma ameaça implícita aos que deixaram suas famílias por lá.

A saída poderia ter sido anunciada com antecedência, para não deixar desamparados os milhões de brasileiros atendidos pelos médicos nos rincões do país. A solução, porém, é mais fácil do que parece.

No lugar dos cerca de 8 mil médicos cubanos que deixarão o país, basta convocar imediatamente os cerca de 8 mil médicos que se candidataram na mais recente seleção para o programa, para apenas 983 vagas oferecidas aos brasileiros.

O programa, na verdade, pode ser feito integralmente por médicos brasileiros, pois o fato é que o país não tem falta de médicos, mas o problema é a má distribuição deles pelo território nacional. Mais da metade está no eixo MG, RJ, SP, PR, SC E RS.

Segundo o médico Marco Lages, do hospital Miguel Couto no Rio, temos mais que o dobro da recomendação da Organização Mundial de Saúde, em vez de um mínimo de 1 médico para cada mil habitantes, temos 2,18.

O problema começa por um dos princípios do SUS, transferir a responsabilidade da gestão da saúde para cada município ou estado. Um médico que aceita proposta de uma prefeitura para trabalhar em outra cidade, larga tudo para se transferir para essa região, não tem garantias e pode se dar mal quando muda o prefeito ou acaba a verba. Lages diz que essa situação é comum.

Com a chegada do Mais Médicos, diversos desses brasileiros foram demitidos para a contratação de cubanos. A fonte do pagamento passou a ser o Governo Federal, os estados e municípios ficam sem esse gasto. Além disso, o Governo Federal tinha o interesse político de usar o programa cubano, que é uma das maiores fontes de recursos de Cuba, a exportação de mão de obra médica.

O médico Marco Lages diz que a alocação de médicos brasileiros poderia ser organizada com um Plano de Carreira de Estado que Bolsonaro prometeu na campanha presidencial. A formação desse médico cubano que se transformou em um produto de exportação tão ou mais importante que a cana-de- açúcar e o tabaco, é criticada pelo Conselho Federal de Medicina, que os vê como técnicos preparados para emergências, mas não com a formação completa, e por isso o Revalida deveria ser um filtro.

O médico Francisco Cardoso, perito previdenciário em São Paulo, escreveu um artigo no portal do Conselho Federal de Medicina no início do programa Mais Médicos contando a origem desses médicos cubanos, profissionais formados em "saúde básica", que trabalham em áreas remotas, rurais e periferias, com base em experiências bastante antigas feitas na Alemanha e na antiga União Soviética. São, segundo ele, práticos de saúde, ou paramédicos como são chamados hoje em dia, e exerciam cuidados básicos junto às populações dessas regiões.

Lages relembra que não somos o único país continental com problemas de acesso à saúde no interior. Canadá e Austrália passam por isso também. E como eles resolveram? Com médicos estrangeiros, mas com uma diferença: todos são avaliados em 2 ou 3 fases antes de assumir o emprego no Yukon ou no Outback, ambientes tão inóspitos quanto a caatinga ou a selva amazônica.

Seria até possível usar paramédicos ou técnicos médicos para uma ação de emergência em áreas carentes nos rincões brasileiros. Seria possível também fazer trabalhos sociais em regiões inóspitas, dentro do espírito de pagar o financiamento do FIES estimulado pelo governo, como está em estudos. Já sabemos que no momento existem pelo menos 8 mil médicos brasileiros querendo trabalho.

Correção
O secretário-geral do Itamaraty no início da gestão do chanceler Celso Amorim era Samuel Pinheiro Guimaraes, e não Sebastião como escrevi por um lapso de memória.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro lançou o Menos Médicos

O discurso agressivo contra os cubanos esconde o verdadeiro problema. O novo governo parece não ter ideia de como substituir os 8.332 médicos que deixarão o país

A sete semanas da posse, Jair Bolsonaro contratou a primeira crise do novo governo. A saída de Cuba do Mais Médicos pode deixar 24 milhões de brasileiros sem assistência básica de saúde. Ninguém poderá dizer que ele não se empenhou por este desfecho. Na campanha, o presidente eleito fez ofensas e ameaças aos médicos vindos da ilha. Hoje eles somam 8.332. A maioria atua em periferias ou grotões onde os doutores brasileiros não querem trabalhar.

“Vamos expulsar com o Revalida os cubanos do Brasil”, discursou o então candidato em agosto, do alto de um trio elétrico em Presidente Prudente.

Em outra fala, divulgada nas redes sociais, ele inflou os números do programa e prometeu “dar uma canetada mandando 14 mil médicos lá para Cuba”. Acrescentou que os profissionais poderiam se alojar em Guantánamo, onde os EUA mantêm uma prisão militar.

Os médicos cubanos não escolheram o regime que governa sua terra natal, mas se tornaram alvo da cruzada de Bolsonaro contra os “vermelhos”. Na campanha, o discurso pode ter rendido votos. No governo, ameaça gerar um apagão na saúde dos mais pobres.

Em cinco anos, mais de 20 mil cubanos passaram pelo Mais Médicos. Em um terço dos municípios atendidos, foram os únicos a aceitar as vagas oferecidas pelo programa. Hoje são ampla maioria em aldeias indígenas e comunidades ribeirinhas.

Além do Brasil, outros 66 países mantêm contratos de cooperação médica com a ilha. O dado mostra que a importação de doutores não é invenção do PT, como costuma sugerir o presidente eleito.

O adeus dos cubanos era questão de tempo, mas Bolsonaro reagiu com irritação ao anúncio de Havana. Na quarta-feira, ele comparou os profissionais a “escravos” e chegou a dizer que não haveria comprovação “de que eles sejam realmente médicos”. Conversa de palanque, porque o programa exige diploma superior e conhecimento dos protocolos do SUS.

O discurso agressivo esconde o verdadeiro problema: o novo governo parece não ter ideia de como substituir os cubanos que deixarão o país. Até aqui, só conseguiu organizar o lançamento do Menos Médicos.

No aniversário de 129 anos da República, o “príncipe” Luiz Philippe de Orleans e Bragança, eleito deputado pelo PSL, disse que o Brasil não tinha “nada a comemorar”. O novo regime está cheio de entusiastas da ditadura militar, mas também há quem sonhe com uma volta aos tempos do Império.


El País: Cuba elimina a palavra “comunismo” no anteprojeto de reforma constitucional

O novo texto só menciona o “socialismo” e suprime o objetivo do “avanço rumo à sociedade comunista”, que figura na atual Constituição de 1976

Por Pablo de Llano, do EL País

O regime cubano decidiu dizer adeus formalmente ao comunismo. O conceito foi eliminado no anteprojeto de reforma constitucional em andamento, segundo informaram neste sábado os veículos oficiais da ilha. Imerso num processo de liberalização controlada do modelo econômico, o Governo de Cuba inclui no novo texto o reconhecimento da propriedade privada e se desprende da referência à ideologia comunista, embora enfatize que o socialismo continue sendo política de Estado.

A Constituição vigente, promulgada em 1976 e redigida à imagem e semelhança das Cartas do bloco socialista, prevê, em seu artigo 5, o objetivo do “avanço rumo à sociedade comunista”. Com a reforma constitucional, essa ideia desapareceria. Uma mudança de enorme importância histórica, que o Governo apresenta como mera adaptação da linguagem à nova fase de continuidade revolucionária. “Não quer dizer que vamos abrir mão das nossas ideias, e sim que, em nossa visão, pensamos num país socialista, soberano, independente, próspero e sustentável”, disse na sexta-feira o presidente da Assembleia Nacional, Esteban Lazo.

O Parlamento unicameral cubano abriu neste sábado uma sessão que se estende até segunda-feira e na qual os deputados debaterão o texto da reforma, para que seja depois submetido a consulta popular. Ideologicamente, Cuba ficará na paradoxal situação de se apartar da ideia do comunismo em sua Constituição sem deixar de reconhecer o Partido Comunista como máximo órgão de direção do país. O anteprojeto de reforma, segundo o jornal oficial Granma, “ratifica o caráter socialista da Revolução e o papel dirigente do Partido”, além da “irrevogabilidade do modelo político e econômico”.

O Governo começou a remodelar o modelo econômico – e a contenção da narrativa comunista – em 2011, com a elaboração das chamadas Diretrizes da Política Econômica e Social do VI Congresso do Partido Comunista de Cuba. Os 313 pontos do documento refletiam a ordem de Raúl Castro de iniciar uma guinada do sistema que permitisse dinamizar a raquítica economia cubana, dando maior espaço ao trabalho por conta própria e abrindo o país aos investimentos estrangeiros. O raulismo marcou uma mudança rumo a um maior pragmatismo em relação à linha imposta durante décadas por Fidel Castro, muito refratário à abertura ao mercado e aferrado até sua saída do poder (por doença) à narrativa marxista-leninista.

Um gabinete de continuidade

Cuba caminha rumo à era pós-Castro sob a égide da continuidade. O presidente Miguel Díaz-Canel, de 58 anos, nascido depois da revolução de 1959 e a quem Raúl Castro, 87, cedeu o cargo em abril, após prepará-lo durante anos como leal sucessor, formou um Conselho de Ministros que mantém os desígnios de seu mentor. A Assembleia deu sua aprovação neste sábado ao novo Gabinete, que conserva 20 dos 34 ministros do general. Castro permanecerá até 2021 como secretário-geral do PC cubano, máxima autoridade da ilha, acima do Executivo.

A principal novidade no Gabinete foi a nomeação de outro ministro da Economia, Alejandro Gil, até agora vice-ministro. Desde que assumiu o comando, em 2008, Raúl iniciou uma lenta adaptação do sistema socialista ao mercado e aos investimentos estrangeiros, que Díaz-Canel terá que acelerar se quiser tirar o país de sua perpétua situação de carestia e reverter os índices quase nulos de crescimento. Gil terá a missão de agitar o complicado coquetel de estatismo e liberação. Membro da nova geração da alta burocracia cubana, o novo ministro da Economia substitui um funcionário da velha guarda, Ricardo Cabrisas, 81, que será um dos quatro vice-presidentes do Conselho de Ministros – onde permanece Ramiro Valdés, 86, do núcleo duro histórico.

Quando assumiu a presidência, em abril, Díaz-Canel – um tecnocrata com reputação pró-abertura mas que há dois anos adotou um discurso cada vez mais rígido e conservador – deixou claro que seu norte era a “continuidade”, hoje conceito-chave do status quo cubano. Em sua equipe seguirão ao seu lado pesos-pesados do sistema, como o chanceler e cérebro das relações com os Estados Unidos Bruno Rodríguez, 60; Leopoldo Cintra, 77, militar do círculo mais próximo de Raúl Castro, como ministro das Forças Armadas; e o vice-almirante Julio Césa Gandarilla, 75, responsável pelo poderoso Ministério do Interior. Os Ministérios do Comércio e Investimentos Estrangeiros e do Turismo, duas pastas de especial relevância pela necessidade urgente de Cuba de atrair capital, continuarão nas mãos de Rodrigo Malmierca e Manuel Marrero. O Gabinete, com uma média de idade de 60 anos, é formado por 26 homens e oito mulheres.

Sinal verde para o casamento gay

O texto da nova Constituição abre a possibilidade de legalização do casamento homossexual em Cuba. Segundo afirmou na Assembleia Nacional Homero Costa, secretário do Conselho de Estado, o artigo 68 define o casamento como a união “entre duas pessoas (...) e não diz de qual sexo”. A atual Constituição, de 1976, só contempla a união matrimonial entre homem e mulher. A legalização do casamento homossexual é uma reivindicação cada vez mais imperiosa da comunidade LGBT cubana. É defendida por Mariela Castro, filha de Raúl e diretora do Centro Nacional de Educação Sexual de Cuba. Grupos evangélicos se manifestaram na ilha, nos últimos dias, ante a perspectiva da mudança legal.


Aloísio de Toledo César: Cuba muda de chefe, mas não de governo

Com Miguel Díaz-Canel o povo continuará na pobreza e sem a menor esperança de liberdade 

Para quem ama a liberdade e o Estado de Direito torna-se profundamente desanimador verificar que a população cubana continuará condenada a viver num país pobre, constituído por famílias pobres. Sem eleições livres que permitissem a escolha do supremo mandatário da ilha, viu-se chegar ao poder alguém que não difunde a menor esperança de liberdades e declara, sem corar, que terão continuidade a estatização e o comunismo.

O novo presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, ao assumir o cargo deixou claro que haverá pouco espaço para o capitalismo, ou seja, a população cubana está mesmo condenada a viver com o salário de uns poucos dólares mensais. Ele demonstrou ter espinha mole, ou seja, anunciou curvar-se ao poderio ditatorial dos Castros, a ponto de declarar que Raúl continuará à frente do Partido Comunista Cubano (isso equivale a dizer que o novo presidente não mandará nada).

Essa situação é realmente infeliz para o povo cubano, sobretudo porque os dirigentes do Partido Comunista da ilha não têm a mesma inteligência dos comandantes do Partido Comunista Chinês. O comunismo nunca deu certo em lugar nenhum do mundo, nem mesmo na Alemanha Oriental, povoada por pessoas disciplinadas e com bom nível cultural.

Somente na China, a partir da opção de economia capitalista de mercado, houve expansão econômica e geração de riqueza. Antes da chegada ao poder de Deng Xiaoping, a China era economicamente travada, como Cuba, mas, com sabedoria e inteligência esse líder passou a pagar um pouco mais a quem produzisse um pouco mais.

Incrível, isso era a descoberta do lucro, mola propulsora do capitalismo, algo que a falta de sensibilidade russa jamais conseguiu entender durante o longo período de comunismo. Como resultado do uso da inteligência, a China tornou-se uma potência econômica, dirigida, paradoxalmente, por um partido comunista.

Em Cuba, o mais grave é que a ideologia, imposta de cima para baixo, sempre conduziu à lavagem cerebral das crianças, fazendo-as ser dirigidas desde a escola primária a endeusar Fidel Castro e seu irmão Raúl.

Pensar livremente talvez seja mesmo perigoso nesse país, assim como era na extinta União Soviética, e por isso a quantidade de detenções arbitrárias, por divergências do regime, continua a ser um problema dos mais graves, que afugenta os países amantes da liberdade e do Estado de Direito. Informações do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas dão conta de que as detenções arbitrárias subiram de 172 para 827 ao mês entre 2010 e 2016.

Além disso, os números alegados de pessoas executadas por oposição ao castrismo são altos, mas, lamentavelmente, nunca podem ser confirmados porque a falta de liberdade na ilha não permite o acesso a tais estatísticas. Sem nenhuma dúvida, por não se submeter ao respeito aos direitos humanos, Cuba continua a enfrentar o distanciamento da maior parte das nações desenvolvidas.

Os aliados mais próximos dos cubanos nos dias atuais são a Venezuela, fornecedora de petróleo ao regime castrista, e a Rússia, que também caminha para uma espécie de isolamento da comunidade internacional, por sua notória devoção ao governo sírio. Esses apoios são frágeis demais para impulsionarem Cuba e fazê-la merecer estímulos econômicos.

Nem os esforços de Barack Obama, quando presidente dos EUA, influíram na posição repressora do governo da ilha contra quem comete o “pecado” de pensar de forma diferente dos Castros. Somente isso permite que a experiência revolucionária de tantos anos ainda se mantenha, à custa de medo e ameaças, como se fosse um chicote político a atingir opositores.

O curioso é que Fidel Castro, quando ganhou a atenção do mundo ao enfrentar de armas na mão o regime corrupto de Fulgencio Batista, não tinha o propósito de implantar um regime comunista. Realmente, o seu talento estava na capacidade de dirigir uma revolução, mas não de articular uma ideologia revolucionária bem definida.

Homem pragmático, não se deu ao luxo de idealizar um programa ideológico que se ajustasse às condições mutáveis de Cuba ou o apego ao comunismo, por exemplo. A Revolução Russa estabelecera o comunismo na Europa, a Revolução Chinesa fizera o mesmo na Ásia e por isso pareceu que a Revolução Cubana, com sua guerra de guerrilha, teria como doutrina revolucionária o comunismo. De início não foi assim.

Sob a influência de Fidel, Guevara e Debray, entendeu-se inicialmente que as pretendidas revoluções na América Latina não poderiam seguir o padrão estabelecido quer pela revolução bolchevista, quer pela chinesa. Mas no dia a dia os líderes cubanos adotaram com leves mudanças os conceitos revolucionários nascidos naqueles países para ajustá-los às condições da ilha.

Fidel inicialmente não admitiu estar sob a influência de Marx, Lenin ou Mao. Mas em meados da década de 1960, num congresso da juventude em Havana, o ministro das Indústrias, Che Guevara, questionou: “Qual é a nossa ideologia?”. E respondeu: “Eu a definiria como marxista. Nossa revolução descobriu por seus métodos os caminhos que Marx apontou”.

Logo após, Fidel concluiu que os objetivos da revolução não seriam atingidos a menos que a economia cubana fosse socializada. E em outubro de 1960 nacionalizou a maioria das empresas cubanas e norte-americanas. E fez a significativa afirmação: “Nós próprios não sabemos como chamar o que estamos construindo e não nos importamos com isso. É, naturalmente, alguma espécie de socialismo”. E era mesmo – um socialismo que manteve o povo cubano na mesma penúria dos tempos de Batista. Para não haver dúvidas de suas intenções, em 2 de dezembro de 1961, em famoso discurso, Fidel afirmou: “Eu sou um marxista-leninista”.

*DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TJSP, FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. E-MAIL: ALOISIO.PARANA@GMAIL.COM


El País: O dia histórico em que um Castro (ao menos no papel) deixará de presidir Cuba

Assembleia Nacional votou nesta quarta-feira para escolher os membros do Conselho de Estado, mas o resultado só deve ser conhecido oficialmente nesta quinta-feira

Nesta quinta-feira, 19 de abril, Cuba vive um dia histórico. Raúl Castro, 86 anos, cede a presidência e seu sucessor será o vice-presidente, Miguel Díaz-Canel, de 57 anos, nascido depois da revolução de 1959. Uma nova geração chega ao topo do Estado, embora ainda sob a figura tutelar do general Castro, que permanece até 2021 como primeiro secretário do Partido Comunista, o órgão máximo de decisão na ilha por determinação constitucional. É o penúltimo ato do adeus da “geração histórica”. Depois da morte de Fidel Castro, em 2016, o início de uma nova era será rubricado, definitivamente, nos próximos anos pela saída de seu irmão Raúl do comando do partido ou por seu falecimento.

A Assembleia Nacional de Cuba se reuniu na quarta-feira (18) em Havana para votar nos candidatos a ocupar os postos do Conselho de Estado, eleitos por uma Comissão Eleitoral Nacional controlada pela cúpula do regime. A sessão foi presidida por Raúl Castro. A seu lado estava o vice-presidente Díaz-Canel, vestido com um sóbrio terno cinza. Ambos pareciam relaxados e estavam sorridentes. Díaz-Canel foi indicado como candidato à presidência e votado pelos 604 deputados. Nesta quinta (19), foi confirmado por unanimidade, com 99,83% dos votos (o único voto faltante dos 604 foi o seu próprio).

Díaz-Canel iniciará um mandato de cinco anos, renovável por outros cinco, mas não mais que isso, em razão do limite de duas legislaturas estabelecido por Raúl Castro para os altos cargos. A sucessão presidencial tem sido marcada pelo chamado à “continuidade”, o conceito-chave do governismo em uma conjuntura muito importante que evitam identificar com uma transição, para não dar espaço à ideia de uma possível mudança de regime.

O novo presidente, um engenheiro eletrônico que subiu a escada do poder com discrição durante três décadas na burocracia do partido, se apresenta, portanto, como o continuador da linha revolucionária e socialista e, mais especificamente, do processo de reformas iniciado por Raúl Castro na última década. Seus maiores desafios serão dar impulso à transição para um modelo de mercado para revitalizar a economia –com a complexidade de não inquietar as facções tradicionalistas do partido– e tornar-se uma figura de autoridade unitária acatada pelas elites burocráticas e do Exército e, em última instância, pela sociedade. Terá também, como fizeram os Castro, de garantir que a estabilidade do sistema continue repousando na concentração do comando no cume da pirâmide. E, por fim, precisará enfrentar a relação com os Estados Unidos, onde Donald Trump voltou a cultivar o antagonismo de outrora.

Os analistas concordam em que o alcance reformista de Díaz-Canel é uma incógnita, pelo pouco que se sabe dele e porque não se pode prever a autoridade que chegará a ter. “Não se sabe bem o que pensa e, além do mais, se Raúl Castro em dez anos não foi capaz de acelerar mais as reformas por causa do contrapeso dos setores conservadores, não sei como Díaz-Canel poderá fazer isso, já que não está revestido de sua legitimidade histórica e é bem provável que não tenha o apoio unânime do Exército e do partido”, opina o economista Carmelo Mesa-Lago. O cientista político Michael Bustamante, da Universidade Internacional da Flórida, ressalta que o novo presidente tem pela frente “uma encruzilhada econômica” com a urgência da unificação monetária como o grande desafio. “É um risco porque a desvalorização pode afetar muito a população. Mas se consegue levar isso em frente também é sua oportunidade de se legitimar diante do povo.” O líder da organização oposicionista Movimento Democracia, de Miami, Ramón Saúl Sánchez, qualifica a sucessão como uma “nomeação de cima que não deveria ser reconhecida internacionalmente” e acha possível que com o desaparecimento do primeiro plano dos históricos “o povo cubano possa começar a protestar mais e abalar o regime”.

Em Havana, o mesmo tempo lento de sempre
Apesar da grande importância deste novo capítulo que Cuba inicia, nas ruas de Havana se respira a mesma tranquilidade, o mesmo tempo lento de sempre. Em uma sociedade que em sua maioria vive quase alheia ao político e centrada na sobrevivência diária, e acostumada a que as mudanças sejam mais nominais do que reais, é natural se encontrar cidadãos que nem sequer sabem o que está acontecendo. “Há um presidente novo?”, respondeu em um parque Jesús Milián, de 24 anos e empregado em serviços de mudanças. A seu lado, Hanoi Borrallo, de 44 anos, disse com tom descrente: “Te digo justamente o que é esse rapaz: o mesmo cake [bolo] com cobertura diferente”. O taxista Helbert Fernández, de 24 anos, reconheceu que nada sabia de Díaz-Canel.

– Você nem sequer o viu em uma foto?

– Não, se disser que sim estarei mentindo. É que não vejo o noticiário.

– E o que você espera do futuro?

– Não sei. Que as coisas melhorem. Que retirem o bloqueio. Algo assim...

Em seu rádio tocava El Micha, um dos astros do reggaeton que cativam a juventude cubana, cantando “Oye tu sí suenas/que se caliente el party/porque soy candela”.

As gerações mais adultas estão mais conectadas com o que está ocorrendo. Leticia Rodríguez, 55 anos e dona de uma casa particular [moradia que funciona também como hospedaria], opinou: “Continuaremos na mesma linha, mas é certo que com mudanças positivas”. Sobre Díaz-Canel disse: “É um cara que não me deixa nenhuma dúvida. Chegou aonde está por méritos próprios. Mas é muito sério. Não tem o carisma ao qual as pessoas estão acostumadas. É outra coisa.”

Nos primeiros anos, para ir se assentando, Díaz-Canel contará com o apoio de Raúl Castro, cujo mandato como primeiro secretário do Partido Comunista se estende até 2021. O partido, e seu dirigente, são por determinação constitucional o órgão máximo de direção do país, acima do presidente do Conselho de Estado. Nesse sentido, o timão de Cuba segue em mãos de Castro, e Díaz-Canel poderá ir conduzindo sua presidência sob seu manto protetor durante três anos, no caso de o general não decidir se retirar antes ou ter de fazer isso por motivos de saúde. Ao chegar a esse ponto, a transferência de poder será completa se Díaz-Canel assumir a chefatura do partido, o que lhe daria plenas atribuições, segundo a lógica do regime, para ser o principal tomador de decisões. Contudo, prevê-se que nunca chegue a ter o nível de poder pessoal dos irmãos Castro e que exerça o poder em conjunto com outros, um enfoque que Raúl já começou a pôr em prática, ao contrário do centralizador Fidel.

Em Cuba, embora não seja um termo do gosto da nomenclatura, Díaz-Canel é considerado um reformista, um tecnocrata convencido da necessidade de modernizar o ruinoso sistema socialista para mantê-lo à tona. Não desponta, porém, como um liberalizador em matéria política e de sociedade civil. O regime de partido único não está em discussão e o reconhecimento de novas liberdades políticas terá de esperar, embora não se deva descartar reformas constitucionais que abram um pouco o sistema e deem, de maneira bem controlada, espaço à livre expressão e associação.

Com a reunião desta quinta-feira na Assembleia Nacional, que coincide com a efeméride do fracasso da invasão anticastrista da Baía dos Porcos, pela primeira vez desde 1976, a presidência não está a cargo de um Castro. Cubra abre um capítulo incerto de sua história. E, em meio à incerteza pelo que vem, o humor, como sempre, vem em resgate. “O futuro de Cuba?”, se pergunta em seu Facebook o comediante mais famoso da ilha, Luis Silva, intérprete do popular personagem do velhinho Pánfilo; e se responde com um animado jogo de palavras: “Que seja o que Díaz quiser. Perdão, o que Deus quiser”.