Cristovam Buarque

Cristovam Buarque: Impeachment do modelo

Uma das provas do fracasso dos “governos de esquerda” no Brasil é o baixo nível do debate político, neste grave momento da nossa história. Nunca se discutiu tanto a política sem debater políticas; tudo se resume à dicotomia “tira Dilma” ou “é golpe”. O modelo político-econômico-social ruiu como um Muro de Berlim nacional, enterrando as “esquerdas” nos seus escombros, mas a peleja tem ficado entre Dilma até 2018 ou Temer a partir de 2016.

Não se debate qual seria um novo modelo social-econômico-político para conduzir o Brasil ao longo deste século XXI. O atual modelo não foi capaz de construir uma economia sólida, sustentável, inovadora e produtiva e ainda desorganizou as finanças públicas e provocou recessão na economia atrasada; não foi capaz de emancipar os pobres assistidos por bolsas e cotas; não deu salto na educação e promoveu dramático caos na saúde; sobretudo, incentivou um vergonhoso quadro de corrupção, conivência, oportunismo, aparelhamento do Estado e desmoralização na maneira de fazer política.

O país está ficando para trás, se “descivilizando” pela violência generalizada, ineficiência sistêmica, incapacidade de gestão e de inovação, saúde degradada, educação atrasada e desigual; transporte urbano caótico, cidades monstrópoles, persistência da pobreza, concentração de renda, política corrupta; povo dependente, tragédias ambientais e sanitárias. Todos os indicadores são de um país em decadência, com raras ilhas de excelência.

Mas o debate fica prisioneiro da alternativa entre interromper o mandato de um governo incompetente e irresponsável, eleito por estelionato político, tendo cometido possíveis crimes fiscais, ou escolher um novo presidente do mesmo grupo, eleito na mesma chapa e também sujeito a suspeitas. Não se discute qual a melhor alternativa para o Brasil sair da crise imediata a que foi levado pelos desajustes irresponsáveis e eleitoreiros do atual governo, nem qual Brasil queremos e podemos construir, com uma economia eficiente, inovadora, equilibrada, distributiva da renda e sustentável ecologicamente; com a população educada, participativa, levando à justiça social, à produtividade elevada e economia eficiente; com sistema político-eleitoral ético e democrático.

Não se debate um pacto pelo emprego com equilíbrio das contas públicas e pela eficiência da gestão estatal; não se discute como fazer, quanto custa, em quanto tempo e que setores pagarão pelas reformas que o país precisa. As discussões despolitizadas, entre torcidas a favor ou contra, como em um jogo de futebol, não debatem, por exemplo, como fazer com que a escola do filho do mais pobre brasileiro tenha a mesma elevada qualidade que as boas escolas do filho do brasileiro mais rico do país.

O debate se limita a manter a mesma estrutura social, apenas trocando uma presidente pelo vice que ela escolheu duas vezes. Não se percebe que é preciso fazer o impeachment de todo o modelo que a “esquerda” manteve e degradou.


Fonte: www.pps.org.br


Cristovam Buarque: Tristes tempos

Tristes tempos em que até o dicionário foi corrompido. Para alguns, um instrumento constitucional é definido por golpe, mesmo se houver prova de crime pela presidente; para outros, o uso deste instrumento se justifica diante da corrupção e do desgoverno, antes mesmo de analisar provas do crime. Tristes tempos quando o debate político se limita ao enfrentamento entre dois grupos que se acusam mutuamente de corruptos ou de golpistas.

Um lado preocupado apenas em interromper um governo legal, mas que perdeu a legitimidade, por ser inoperante, incapaz de conduzir as reformas sociais e econômicas de que o país precisa, contaminado pela corrupção; o outro concentrado na defesa deste governo a qualquer custo, cego aos erros e às mentiras; chegando ao ponto de dizer que o desemprego decorre da luta contra a corrupção. Ambos acreditam que, depois da decisão sobre o impeachment, aprovado ou recusado, o país retomará seu rumo, seja sob o novo governo Temer ou o velho governo Dilma.

Não se vê debate sobre como: retomar o crescimento do PIB e fazêlo contemporâneo com o avanço técnico e científico; distribuir a renda; erradicar o analfabetismo; assegurar educação de qualidade para cada criança independente da renda dos pais e da cidade onde mora; como recuperar nosso abismal atraso na capacidade científica e tecnológica e de inovação; como aumentar a produtividade, garantir estabilidade monetária e fiscal, equilibrar as contas públicas, controlar os endividamentos; como atender à saúde, enfrentar a violência urbana, dar sustentabilidade à Previdência; como emancipar os pobres da necessidade de bolsas e cotas.

Parece que o Brasil real desapareceu. Tristes tempos em que a política se faz sem percepção da história. Como se estivéssemos em um campeonato de futebol, com apito final depois de cada eleição. Não se discute as causas atuais e históricas que nos condenam. Nem se considera que, no dia seguinte ao impeachment, se aprovado, mesmo com a credibilidade de novo presidente, todos os problemas continuarão, inclusive as suspeitas sobre os políticos; e que os derrotados irão para as ruas em nome da luta contra o que, acreditam, foi um golpe.

Tampouco se discute que, se o impeachment não passar, a população, indignada e desencantada, continuará nas ruas com apoio crescente de desesperados, desempregados, empobrecidos, manifestando-se contra um governo desacreditado e submetido a outros pedidos de impeachment. A solução estaria em uma eleição antecipada, seja para todos os cargos ou apenas para presidente e vice-presidente.

Havendo aceitação dos principais atores, isto é possível com uma reforma constitucional. Mas, é pequena a probabilidade de aceitação de uma medida de bom senso, diferente das propostas pelo debate simplista e imediatista do impeachment ou não impeachment. Tristes tempos em que as pessoas de bom senso se sentem estrangeiras em seu próprio país. (O Globo – 02/04/2016)


Cristovam Buarque é senador (PPS-DF)


Cristovam Buarque: A outra corrupção

Os julgamentos por suspeitas de corrupção têm impedido a avaliação do governo Lula/Dilma na transformação da estrutura socioeconômica do Brasil. Nenhum governo chegou ao poder com tantas promessas de mudar a realidade brasileira e nenhum esteve tanto tempo à frente da nação, à exceção de Vargas.

Mas, ao olhar ao redor, a avaliação não é positiva.

O Bolsa Família, iniciado no governo anterior com o nome de Bolsa Escola, distribuindo anualmente 0,5% do PIB, deve ser aplaudido por seu caráter de rara generosidade das elites governantes, mas não tem sido um programa transformador. A transformação seria emancipar o povo da necessidade de bolsa, e o governo Lula/Dilma não avançou neste propósito.

Em um país com a memória da escravidão, o governo Lula/Dilma fez o gesto louvável de criar instrumentos para incluir pobres e descendentes de escravos no ensino superior, com cotas, Prouni, Fies, além de abrir mais 14 universidades federais. Criar mecanismos para que os filhos de alguns pedreiros ingressem na universidade é um gesto positivo, mas não tem, em si, caráter transformador da estrutura social. A transformação viria de reformas no sistema educacional, para fazer com que todos os filhos de todos os pedreiros tivessem condições de disputar vaga no vestibular com a mesma chance que os filhos de seus patrões.

O governo Lula/Dilma não fez avançar a consciência cívica e política: acomodou as massas e cooptou os movimentos sociais, como CUT e UNE; abriu as portas das lojas para grupos que antes estavam marginalizados, mas não os abrigou como cidadãos plenos; aumentou o número de consumidores, não de cidadãos. Ao abandonarem propostas transformadoras, os partidos progressistas e os movimentos sociais agem como ex-abolicionistas que, ao chegar ao poder, contentam-se em emancipar alguns escravos e reduzir o sofrimento dos outros, sem fazer a Abolição.

No futuro, além da nódoa ética sobre o PT e demais partidos da base de apoio e suas avaliações dos 13% de século do governo Lula/Dilma mostrarão a perda de uma grande oportunidade histórica, um partido com propostas transformadoras chegar ao poder, com um líder carismático de origem popular, vencer quatro eleições seguidas, e abandonar o pudor e o vigor transformador.

O governo Lula/Dilma encontrou um país dividido, social e politicamente, agravou a divisão política e, no lugar de derrubar o muro que nos divide socialmente, apenas jogou algumas migalhas para os excluídos, e não cumpriu as promessas de realizar as reformas estruturais.

O perigo é que as forças do pós-Lula/Dilma não façam o que eles não fizeram; porque juízes prendem políticos e limpam a política por um período, mas não derrubam a “cortina de ouro” que divide o Brasil; julgam a corrupção no comportamento dos políticos, mas não a corrupção nas prioridades das políticas.


Cristovam Buarque: Desconstrução da esquerda

Os constantes noticiários sobre a Lava-Jato têm levado militantes dos partidos do governo a dizerem que está em marcha uma campanha de desconstrução do PT e da imagem do ex-presidente Lula, cujo objetivo seria a desconstrução da esquerda. É até possível que as oposições estejam usando as notícias com esta intenção; mas a desconstrução foi feita pela própria esquerda, contando com a colaboração do Lula, do PT e demais partidos de apoio ao governo.

A desconstrução da esquerda ocorreu por causa da aceitação da corrupção, sob o argumento de que todos a praticam; pela perda do vigor transformador e o consequente acomodamento; a falta de imaginação para formular nossas alternativas para avanço social; a incapacidade para perceber e entender a vertiginosa transformação tecnológica e política no mundo e o desprezo por compromissos programáticos e ideológicos.

A esquerda não foi capaz de entender o pleno significado da queda do Muro de Berlim, do fim do socialismo pela distribuição da produção e o consumo industrial depredador; a consolidação do poder sindical da aristocratização do proletariado em contraposição aos interesses das grandes massas; não entendeu a dimensão da crise que vai além da luta de classes e contesta a própria base da civilização industrial; não tem proposta para a ampliação do bem-estar, combinado com o equilíbrio ecológico; não percebe a força da globalização implantando o livre comércio, quebrando as fronteiras nacionais; nem a realidade da economia atual, onde o principal fator de produção é o conhecimento, não o capital financeiro, nem os recursos naturais.

A esquerda desconstruiu-se ao adotar a voracidade pelo poder e seus cargos e privilégios, envenenando os músculos de sua militância por estupidez e imoralidade. Faz parte também deste esforço da autodestruição, a anulação, pela cooptação, dos movimentos sociais como UNE, CUT, MST. Somado à irresponsabilidade fiscal que provoca a maldade da inflação; o aparelhamento e a má utilização do Estado; a degradação de estatais símbolos da nação, como a Petrobras e os Correios; o desmantelamento do funcionamento do Estado e a desnacionalização do parque produtivo por causa da desvalorização cambial.

No lugar de criar novas utopias, formular novas propostas, a esquerda preferiu cair nos braços do sistema tradicional, reduzindo seus programas a meras transferências de renda já implantadas por governos anteriores; colocou o poder como meta suficiente, não como etapa necessária; aceitou qualquer aliança, desconstruindo a própria imagem.

A foto de Lula no jardim de um palacete para eleger seu candidato poderá ser um dia mostrada como marco da desconstrução da esquerda no Brasil, tanto quanto as fotos de jovens derrubando as pedras do Muro de Berlim significou a desconstrução do socialismo real na Europa. A esquerda se auto desconstruiu sobretudo ao não perceber seus erros e jogar a culpa da desconstrução nos adversários.

(O Globo – 20/02/2016)