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Cristina Serra: A morte como commodity

É preciso admitir a barbárie para salvar a democracia

Nos meses de quarentena, o Brasil conseguiu combinar duas catástrofes: uma das piores conduções mundiais do combate à pandemia, que resultou em massacre evitável de brasileiros, e o descontrole da epidemia de violência, que matou mais cidadãos e policiais no primeiro semestre deste ano que no mesmo período de 2019.

Pesquisa do Monitor da Violência e do site G1 aponta que, mesmo com o isolamento social, 3.148 pessoas foram mortas por policiais em 2020, 7% a mais que em 2019. E 103 policiais foram assassinados contra 83, aumento de 24%. Esses números estão em linha com o crescimento de assassinatos em geral: 6% a mais neste ano.

Como explicar essa doença social? O pesquisador Adilson Paes de Souza acaba de defender na USP a tese de doutorado "O policial que mata: um estudo sobre a letalidade praticada por policiais militares do estado de São Paulo". Para o estudioso, "a base do sistema de segurança pública no Brasil foi gestada na ditadura e a Constituição de 1988 não mudou isso. As PMs foram organizadas nos marcos da Doutrina de Segurança Nacional, que tem como meta a eliminação do inimigo interno para acabar com o comunismo".

Há outras razões para a enfermidade. "A morte violenta tornou-se uma commodity. Ganha-se muito dinheiro com a insegurança. Fabricantes de armas e munições, empresas que vendem sistemas de segurança, rastreamento, blindagem de carro, funerárias. A lógica é: o Estado não provê segurança, cada um se arma e se defende como pode e alguns enriquecem", avalia.

Bolsonaro, um devoto da violência, age dentro dessa lógica. Tem facilitado o acesso às armas de fogo e dificultado seu rastreamento. "Quanto mais armas no sistema legal, mais fácil armar milícias no campo e nas cidades. São as milícias que poderão, eventualmente, dar suporte a uma ruptura institucional", afirma Souza. É preciso admitir a barbárie para salvar a democracia.


Cristina Serra: Suas excelências e a reforma

A reforma administrativa volta mais uma vez ao debate e a proposta do governo não vai ao que interessa: qual o Estado que precisamos?

A reforma administrativa volta mais uma vez ao debate e a proposta do governo não vai ao que interessa: qual o Estado que precisamos? A quem ele deve servir? Como o Estado deve dar conta de suas responsabilidades em saúde, educação e segurança, ao mesmo tempo em que coíbe distorções e privilégios da elite do setor público?

Por exemplo, como acabar definitivamente com os artifícios que furam o teto constitucional de R$ 39.000,00, valor do salário de ministro do STF? Brasil afora, os próprios tribunais são os primeiros a burlar a lei com uma coleção de artifícios: auxílios, verbas, vantagens, gratificações, adicionais e outras afrontas ao teto, mascaradas pela corrupção do idioma.

O que dizer do plano de saúde vitalício dos senhores senadores e ex-senadores, que também beneficia cônjuges e dependentes? É a assistência mais generosa do mundo. Tudo pago com o meu, o seu, o nosso dinheiro. E que tal reduzir o número de 25 assessores que cada deputado pode contratar ? Ou alguém acha que o esquema de “rachadinha” foi inventado pelo 01?

E, como perguntar não ofende, por que juízes tem direito a férias de 60 dias? Talvez seja a lentidão dos processos. Há uma semana, o Supremo encerrou uma ação que começou a tramitar em 1895! É, deve ser extenuante lidar com causas que atravessam os séculos.

Na ponta do lápis, a proposta não tem impacto nas contas públicas, poupa a aristocracia dos poderes civis e os militares, mas traz uma malandragem perigosíssima: reduz atribuições do Congresso e deixa à mercê da caneta presidencial a extinção de órgãos essenciais, como Ibama, ICMBio, Incra e Funai.

O cerne da reforma deve ser melhorar o serviço público e não destruí-lo, ao bel-prazer do governante de turno. Uma reforma crível e eficiente tem que acabar com regalias e benesses inaceitáveis, implantar total transparência na prestação de contas e respeitar o contribuinte. Mas, eu sei e você também, que isso é pedir demais de suas excelências.


Cristina Serra: No STF, o 'legado' de Toffoli

Diálogo entre Poderes pressupõe altivez, e a simples percepção de tutela militar é anomalia

O mandato do ministro Dias Toffoli na presidência do STF termina nos próximos dias deixando um enigma. Por que ele teve dois generais da reserva no cargo de “assessor especial” no seu gabinete? O primeiro foi Fernando Azevedo e Silva, por indicação de ninguém menos que o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, o general “influencer”.

Villas Bôas foi quem, na véspera do julgamento do pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula, no STF, em abril de 2018, fez ameaças numa rede social dizendo que o Exército repudiava a “impunidade” e que estava “atento às suas missões institucionais”. O STF rejeitou o pedido de Lula por 6 x 5, ele foi preso, bem, o resto você sabe.

Azevedo ficou dois meses no cargo e saiu para ser ministro da Defesa do candidato vencedor na disputa presidencial. Para a vaga, Toffoli acolheu outro general bolsonarista, Ajax Porto Pinheiro. Num vídeo, durante a campanha de 2018, em meio a raciocínios tortuosos, Pinheiro fala dos perigos do comunismo e diz que, se o PT voltasse ao poder, o Exército seria “a principal vítima”. Desconhece-se a contribuição do general ao Judiciário, ao custo mensal de R$ 12.940 para o contribuinte.

Indicado por Lula em 2009 para o STF, Toffoli fez um grande esforço para se distanciar da esquerda e mostrar-se confiável aos militares. Antes de assumir a presidência, num exercício de contorcionismo semântico e impropriedade histórica, chegou a dizer que preferia chamar o golpe de 1964, que instaurou 21 anos de ditadura no Brasil, de “movimento de 64”.

Há quem interprete a contratação dos generais como uma tentativa de manter canais abertos com as Forças Armadas em tempos turbulentos. Se foi esse o intuito, mostrou-se malogrado. O Supremo vive sob ataque, e o próprio Bolsonaro já quis dar um golpe e substituir os 11 ministros. Diálogo entre Poderes pressupõe altivez. Tutela militar —ou a simples percepção dela— é uma anomalia a ser evitada. Não é um legado do qual se orgulhar.


Cristina Serra: O racismo e a eleição nos EUA

Maior desafio de Biden é tirar de casa o eleitor que está cansado de tudo

O entranhado racismo da sociedade norte-americana tem tido grande destaque na campanha eleitoral. A figura de George Floyd, assassinado em maio por um policial branco, pairou sobre a convenção democrata. A escolha da vice de Joe Biden, Kamala Harris, já fora um sinal do impacto do movimento Black Lives Matter.

Esse não é um tema em que o atual presidente, Donald Trump, fique confortável. Seu histórico fala por si. E é aí que as coisas se tornam um pouco mais complexas. Dias atrás, vieram a público as imagens de outro homem negro, Jacob Blake, alvejado por um policial branco com vários tiros nas costas.

Esse inconcebível caso de brutalidade policial contra negros desencadeou nova onda de protestos. Alguns terminaram em saques e incêndios. Nesses primeiros dias de convenção republicana, Trump e seus apoiadores têm tentado mostrar os democratas como "extremistas", "socialistas", "radicais de esquerda", que vão "roubar" a eleição e "tirar" as armas dos cidadãos. Particularmente chocante foi a participação, na convenção, de um casal branco que ficou famoso por apontar armas para manifestantes pacíficos, que pediam justiça para Floyd.

O tom da convenção republicana tem sido acentuar clivagens na sociedade norte-americana e açular o ódio e o medo. Isso vai afastar ou atrair eleitores de centro? Uma coisa parece certa: Trump tem conseguido manter sua base coesa.

Já os democratas formaram uma frente que vai da esquerda do partido até republicanos insatisfeitos com o presidente. Não é pouca coisa. Mas não garante a vitória. No sistema de votação dos Estados Unidos, nem sempre quem ganha no voto popular leva no colégio eleitoral, esta, sim, a eleição decisiva. Hillary Clinton que o diga.

Nos EUA, o voto não é obrigatório. Por isso, mesmo à frente nas pesquisas, talvez o maior desafio de Joe Biden seja tirar de casa o eleitor que está cansado de tudo: da pandemia, do desemprego e da política.


Cristina Serra: O tumor Bolsonaro

As instituições, até a imprensa, absorveram Bolsonaro como corpo doente se acostuma a hospedar tumor, que um dia mata o hospedeiro

Não sou ombudsman, mas me permito usar este espaço para algumas reflexões. No sábado, o editorial desta Folha trouxe o título “Jair Rousseff”. O texto se refere ao desequilíbrio das contas públicas no governo da ex-presidente e à tentação do atual fazer o mesmo.

A fusão dos dois nomes é um ultraje à ex-presidente. O título chamativo não poderia ter prevalecido sobre o simples bom senso ou o respeito à história de Dilma Rousseff. Na aprovação do impeachment na Câmara, Bolsonaro votou em homenagem ao torturador Brilhante Ustra, algoz da ex-presidente quando de sua militância contra a ditadura. “O pavor de Dilma Rousseff”, tripudiou o então deputado.

Bolsonaro deveria ter saído preso da Câmara naquele dia por apologia à tortura, crime de lesa-humanidade. E, no entanto, aquele foi o ato inaugural de sua ascensão ao poder. Que fizeram as instituições? Câmara? Supremo? Ministério Público? Funcionaram “normalmente”.

Mas a assimilação de Bolsonaro como algo natural pelas instituições começou muito antes. No fim dos anos 1980, o Superior Tribunal Militar ignorou as provas de que o então capitão participara de um plano para explodir bombas em quarteis e o absolveu.

Foi a deixa para Bolsonaro iniciar carreira parlamentar tão longeva quanto medíocre, marcada por ofensas a mulheres, negros e homossexuais e pela defesa da tortura e da execução de uns “30 mil”.Sua atuação parlamentar foi tratada como rebotalho caricato e extemporâneo da ditadura. Conselho de Ética? Corregedoria? Ah, sim, as instituições funcionaram “normalmente”.

E assim chegamos ao ponto em que milhões de eleitores identificaram nele o comando e a síntese do autoritarismo brasileiro. As instituições, inclusive a imprensa, absorveram Bolsonaro como um corpo doente se acostuma a hospedar um tumor. Um dia, o tumor explode e mata o hospedeiro. A propósito: “Presidente Jair Bolsonaro, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”.


Cristina Serra: A oposição e a 'esfinge'

Fragmentação é caminho suicida para oposição progressista

Aos 20 meses de governo, Bolsonaro já está em campanha pela reeleição e avança sobre o terreno adversário, o Nordeste, embalado pelo auxílio emergencial e a melhora expressiva de sua aprovação.

De olho em 2022, ele testa até onde pode furar o teto de gastos sem entrar na “zona sombria” do impeachment, como ameaçou Paulo Guedes. Bolsonaro tem se mostrado um especialista em esticar a corda e parar antes que ela arrebente. Poderá usar essa habilidade para administrar as pressões de seu ministro e do “mercado” enquanto sonha com obras, gastos e o segundo mandato.

É cedo para saber se isso dará certo. Seguro mesmo é que pesquisas anteriores ao último Datafolha já mostravam que Bolsonaro retém taxa de aprovação sólida como granito em torno de 30%. É um desafio entender tal patamar de aprovação, considerando o comando desastroso desde o começo da pandemia. Nem a demissão do popular ministro da Saúde abalou esse percentual, muito menos a do ministro da Justiça, decisivo na ascensão de Bolsonaro.

Artigo recente do professor da Uerj João Cezar de Castro Rocha, na Ilustríssima, joga luzes sobre a “esfinge” Bolsonaro. Identifica doutrinas militares da ditadura e da Guerra Fria —adaptadas para tempos democráticos— e a linguagem do “olavismo” como elementos que dão coesão à visão de mundo bolsonarista.

Eu acrescentaria o fundamentalismo religioso e o afrouxamento das regras sobre posse, porte e compra de armas, sob medida para as milícias, e temos um projeto de sabotagem da República e da democracia.

Diante de tudo isso, o que a oposição progressista deveria fazer? Na Hungria, do ultradireitista Viktor Orbán, há uma década no poder, finalmente os seis principais partidos de oposição anunciaram que vão concorrer com candidato e programa únicos em 2022. Essa estratégia mostrou-se vitoriosa nas eleições municipais do ano passado em Budapeste e em outras cidades. Que nos sirva de exemplo para evitar o caminho suicida da fragmentação.

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Cristina Serra: Bolsonaro disse: "Vou intervir!". E agora?

Os donos do dinheiro grosso seguem firmes com Paulo Guedes, e a oposição continua fazendo política com o fígado

Reportagem de Monica Gugliano, na revista Piauí, reconstitui em detalhes uma reunião no dia 22 de maio, no Palácio do Planalto, entre o capitão-presidente, seus generais de pijama e alguns ministros civis. A reunião era, na verdade, uma conspiração contra a democracia. “Vou intervir!”, esbravejou Bolsonaro.

O presidente queria destituir os 11 ministros do STF e substituí-los por dóceis lambe-botas para pôr a casa “em ordem”. Tudo isso porque o ministro Celso de Mello tomara medida de praxe em investigação relacionada ao presidente. Os conspiradores chegaram a discutir como dar uma fachada de legalidade ao autogolpe.

O desatino não encontrou ressonância entre militares da ativa, que tem o comando das tropas. Evitou-se o insano propósito com uma “nota à nação brasileira”, assinada pelo general do GSI, Augusto Heleno, que, no entanto, ameaçou o Supremo com “consequências imprevisíveis” se houvesse “afronta” à autoridade presidencial.

Que reunião de tal teor tenha ocorrido e que não se veja reação ou providências das instituições para punir os sabotadores da República mostra a profundidade do abismo em que estamos metidos. À época do conluio sinistro, o Brasil chorava mais de 20 mil mortos pela pandemia, e Bolsonaro reagia com indiferença. “E daí?”

Daí que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou, há uma semana, não ter “elementos” para abrir um processo de impeachment. Os donos do dinheiro grosso seguem firmes com Paulo Guedes e a oposição continua fazendo política com o fígado. E assim todos vão se acomodando à “nova ordem”.

Bolsonaro sempre mostrou quem é. Em 2017, afirmou: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar, não é curar ninguém”. A ditadura deixou 434 mortos e desaparecidos e milhares de torturados. Na democracia, os generais a serviço do colecionador de mortalhas tornaram-se sócios no massacre das 100 mil vidas imoladas, até aqui.


Cristina Serra: Aras e o aparelhamento do MPF

O procurador-geral da República e Deltan Dallagnol são faces do aparelhamento político das instituições de Estado

O procurador-geral da República, Augusto Aras, abriu guerra contra a força-tarefa da Lava Jato e a hipertrofia dos procuradores federais comandados por Deltan Dallagnol na “República de Curitiba”. Aras e Dallagnol, no entanto, são faces da mesma moeda: a do aparelhamento político das instituições de Estado.

O sempre necessário e importante combate ao crime encontrou na vocação messiânica e na agenda política dos procuradores e do juiz Sérgio Moro terreno fértil para distorções, abusos e excessos da operação que pretendia acabar com a corrupção no país.

Não acabou. E deixou vasto legado de desrespeito a marcos legais. Moro divulgou ilegalmente um grampo telefônico envolvendo a então presidente Dilma, o que mereceu apenas uma reprimenda do STF ao juiz.

Este pediu “escusas” e ficou por isso mesmo. A Vaza Jato, do site The Intercept, mostrou como o juiz orientou os procuradores, tornando-se parte da acusação e violando seu compromisso ético e legal de imparcialidade.

Deu no que deu. A Lava Jato teve impacto decisivo na chegada de Bolsonaro ao poder, trazendo Moro a tiracolo, não por acaso. Como o mundo dá voltas, o candidato que se beneficiou do “lavajatismo” foi o mesmo presidente que deu a rasteira em Moro e agora comanda a ofensiva contra a “República de Curitiba”.

Ao atacá-la, Aras faz um favor ao centrão e ao chefe, que andam de braços dados desde que Bolsonaro entendeu que precisava de um escudo no parlamento, depois da prisão do amigão Fabrício Queiroz. Aras, porém, pode não ter calculado bem um efeito colateral de sua truculência. A perseguição à Lava Jato poderá levar Moro a disputar com o ex-chefe a narrativa do combate à corrupção, acirrando a concorrência no campo da direita nas eleições de 2022.

Há, contudo, uma pedra no caminho de Moro. A Segunda Turma do STF precisa terminar o julgamento, iniciado em 2018, sobre a suspeição do magistrado na condução da Lava Jato. Ao que parece, suas excelências não estão com a menor pressa.


Cristina Serra: Sombras explosivas da nossa história

Com Queiroz e Wassef, o Brasil desenha círculos no tempo

Queiroz, Wassef, PC Farias e Fortunato. O que essas figuras têm em comum? A história é pródiga em personagens dos arredores sombrios do poder que, não raro, levam a desfechos trágicos. Em agosto de 1954, no episódio que ficou conhecido como o “atentado da rua Tonelero”, Carlos Lacerda, o mais ferrenho opositor do então presidente Getúlio Vargas, ficou ferido e o major da Aeronáutica Rubens Vaz morreu. O crime desencadeou a crise que culminou no suicídio de Vargas. O chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato, acusado de ser o mandante do crime, foi condenado e morreu assassinado na prisão.

Um salto no tempo nos traz a 1992. Escândalos em série levam à criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar um tentacular esquema de corrupção chefiado por Paulo César Farias, tesoureiro da campanha do então presidente Fernando Collor. A CPI leva ao impeachment do presidente, o primeiro na história do Brasil. O que segue é enredo de cinema: PC Farias foge e é preso na Tailândia. No Brasil, é condenado, preso, mas logo posto em liberdade condicional. Em junho de 1996, duas balas certeiras matam o empresário e a namorada em sua casa de praia. O crime é um mistério até hoje.

Mais um salto e outro caso de polícia nas cercanias de um presidente, com duas peças-chave. O notório Fabrício Queiroz, suspeito de ligações com milicianos, amigo de Jair Bolsonaro e faz-tudo do filho deste, Flávio Bolsonaro, quando era deputado estadual. Segundo as investigações, Queiroz operava o esquema de “rachadinha” que beneficiava o deputado. O segundo personagem é Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaros, pai e filho, até menos de uma semana atrás. O desaparecido Queiroz foi encontrado pela polícia na casa de Wassef.

O advogado e operador tem personalidades muito distintas. Wassef é tipo histriônico, dado aos holofotes e que, até outro dia, arrotava sua intimidade com o presidente. Já Queiroz, se valia da penumbra para articular esquemas criminosos com múltiplas ramificações. Ambos são bombas-relógio de alto teor explosivo. A história desenha círculos no tempo.


Cristina Serra: Uma retumbante banana ao STF e ao Brasil

Esse foi o último ato de Abraham Weintraub ao escafeder-se na calada da noite

Em um ano e quatro meses na cadeira de ministro da Educação, o que fez Abraham Weintraub? Boneco de ventríloquo de um astrólogo de araque, dedicou-se a atacar os pilares da universidade genuinamente democrática: a inclusão, a diversidade e a autonomia de gestão. Cortou verbas, programas, bolsas de pesquisa. Tentou nomear interventores, iniciativa felizmente anulada.

Antes de escafeder-se na calada da noite, revogou portaria que reservava cotas para negros, índios e portadores de deficiência em cursos de pós-graduação. E deixou no Congresso o mal formulado projeto de lei “Future-se”, que muda a forma de financiamento do ensino superior. Por vício de origem, tal “legado” merece apenas um destino: a lata do lixo.

Weintraub semeou desvarios ideológicos e distorções históricas, como a infame referência à “noite dos cristais”, na Alemanha nazista. De sua boca suja porejaram ofensas, conforme registrado no vídeo da indecorosa reunião do dia 22 de abril: “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”. Como é próprio dos covardes, fugiu para não ter que responder a dois inquéritos na corte.

Weintraub e educação não combinam na mesma frase. Que isso tenha acontecido, nesse desvão da história em que estamos atolados, é uma desonra à memória de gente como Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire, pensadores da educação como forma de emancipação civilizatória.

Em janeiro de 1989, o Brasil parou para assistir ao último capítulo da novela Vale Tudo. Na última cena, um executivo mau caráter fugia do Brasil num jatinho, dando uma banana para o país. A cena me ocorreu quando soube da fuga de Abraham Weintraub para Miami, usando indevidamente a condição de ainda ministro para burlar a proibição da entrada de brasileiros nos EUA. Ao que tudo indica, Weintraub cometeu mais um crime, segundo ele mesmo, com a ajuda de “dezenas” de pessoas. Seus cúmplices. Em seu último ato, Abraham Weintraub deu uma retumbante banana ao STF e ao Brasil.

*Cristina Serra é jornalista.


Cristina Serra: O Porta dos Fundos e o silêncio presidencial

Surge mais um personagem bizarro na já extensa galeria de figuras grotescas

Eis que no apagar das luzes de 2019 surgiu mais um personagem bizarro na já extensa galeria de figuras grotescas que povoam a vida contemporânea brasileira. Trata-se de Eduardo Fauzi Richard Cerquise, um dos responsáveis pelo atentado terrorista à sede da produtora do canal de humor Porta do Fundos.

A folha corrida do sujeito é um passeio pelo Código Penal. Ele foi condenado por dar um soco no secretário de Ordem Pública da Prefeitura do Rio em 2013. Recorria em liberdade. Tem cerca de 20 registros criminais, entre eles: ameaça, formação de quadrilha e agressão à ex-mulher.

Fauzi foi logo identificado, mas, enquanto a polícia discutia se o atentado com coquetéis molotov caracterizava ou não crime de terrorismo, ele postou vídeo nas redes sociais; passou lépido e fagueiro pelos controles do aeroporto internacional do Rio e escafedeu-se para a Rússia, onde supostamente tem uma namorada. Sabe-se também que desde 2001 era filiado ao PSL --partido pelo qual o presidente Bolsonaro se elegeu.

O atentado exumou das catacumbas da história grupos de extrema direita derivados do integralismo, movimento de inspiração fascista que floresceu nos anos 1930 no Brasil. Após a morte de seu criador, Plínio Salgado, nos anos 1970, o integralismo fragmentou-se em pequenos grupos, com os quais Fauzi tem relações. Alguns desses grupos são formados por policiais, ex-policiais e milicianos, segundo o historiador Leandro Gonçalves, da Universidade Federal de Juiz de Fora, em entrevista à BBC Brasil.

O atentado ao Porta dos Fundos já tem mais de dez dias, e até agora o presidente não deu uma palavra sobre o assunto. Em 1987, quando era capitão, Bolsonaro respondeu a processo judicial, acusado de elaborar um plano terrorista para explodir bombas em quartéis, no Rio de Janeiro. Num julgamento controverso (explicado no livro "O cadete e o capitão", de Luiz Maklouf Carvalho), ele acabou absolvido.

O silêncio presidencial dispensa maiores explicações.


Cristina Serra: Suas Excelências e suas mordomias

Maus exemplos no uso do dinheiro público estimulam descrença na democracia

Volto ao tema de reportagem publicada nesta Folha nos últimos dias de 2019 e que, pela importância, deveria ter tido maior reverberação. Refiro-me à viagem do presidente do STF, Dias Toffoli, à cidade de Ribeirão Claro (PR), em avião da FAB e comitiva de 11 pessoas. Toffoli teve como único compromisso na cidade inaugurar o fórum eleitoral local, que recebeu o nome de seu pai.

Como ninguém é de ferro, esticou o fim de semana em um resort de luxo e só deixou a região na segunda, em avião da FAB. A reportagem (de Camila Mattoso, Ranier Bragon e Ricardo Balthazar) mostra um traço enraizado nos costumes de autoridades no país: o uso de patrimônio público em compromissos privados.

A imprensa já noticiou inúmeros casos dessa nefasta interseção. Ocorre-me um, de 2011, também revelado por esta Folha, quando o então presidente do Senado, José Sarney, usou um helicóptero da Polícia Militar do Maranhão para ir de São Luís até a ilha do Curupu, sua propriedade particular. O uso da aeronave —comprada para atuar em emergências médicas— atrasou o atendimento a um pedreiro acidentado.

As justificativas de sempre, "representação", "segurança" e "serviço", revestem de legalidade o mau uso do patrimônio que deveria servir apenas aos interesses do Estado e dos cidadãos/contribuintes.

No ótimo livro "Um país sem excelências e mordomias", sobre como vivem políticos e autoridades na Suécia, a jornalista Cláudia Wallin conta o caso de uma deputada que se viu no meio de um escândalo, em 2011, porque, ao deixar o Parlamento após sessões que se estenderam até tarde da noite, usou o dinheiro do contribuinte para voltar de táxi para casa em vez de usar o trem.

Maus exemplos no uso do dinheiro público estimulam a descrença na democracia, nas autoridades e nas instituições. O Brasil tem muitas reformas à frente. Talvez a mais importante seja estabelecer uma separação nítida entre interesse público e conveniência de nossas autoridades. Seremos capazes de tal mudança?