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Cristina Serra: A ciência derruba mitos

Início da vacinação é a derrota mais espetacular de Bolsonaro nestes dois anos

dia 17 de janeiro de 2021 deveria assinalar o começo do fim do desgoverno Bolsonaro. Foi sua derrota mais espetacular nestes dois anos em que tentou com máximo empenho destruir o Brasil. As luzes da ciência brilharam com todo o seu esplendor, mesmo numa agência reguladora dirigida por um seguidor do negacionista.

A Anvisa aprovou o uso emergencial de duas vacinas importadas e produzidas em parceria de instituições científicas brasileiras com farmacêuticas e uma universidade estrangeiras. Aos cientistas e servidores públicos do Instituto Butantan e da Fundação Oswaldo Cruz devemos a vitória deste domingo inesquecível.

O sabotador-mor da República chegou a dizer que a "vacina chinesa" teria como efeitos colaterais "morte, invalidez, anomalia". "Mais uma que Jair Bolsonaro ganha", comemorou, quando o suicídio de um voluntário levou à interrupção dos testes. A frase agora é outra: "Mais uma que Jair Bolsonaro perde". E vai perder mais, porque a história mostra que a marcha do Iluminismo é irreprimível e que a ciência derruba mitos.

Já temos a vacina e amanhã é a posse de Joe Biden nos Estados Unidos. Bolsonaro perde seu maior suporte internacional. Seus atos e omissões na pandemia são um roteiro de crimes de responsabilidade. O holocausto de Manaus não será o ponto final desta tragédia. O criminoso tem que ser contido.

O ex-presidente do STF, Ayres Britto, deu a senha, nesta Folha. Segundo ele, o impeachment se aplica ao presidente que adota "mandato de costas para a Constituição"; a nação tem que dizer "a Constituição ou o presidente" e "a opção só pode ser pela Constituição."

Alguém dirá: falta combinar com os financistas, privatistas, carniceiros do Estado, agronegócio, centrão, impostores pentecostais, Forças Armadas, milicianos e mais um rol de cúmplices. Aos que que não se envergonham de faturar com a desgraça do país, faço coro com o colega Juca Kfouri: "Genocidas! Genocidas! Genocidas!".


Cristina Serra: Bolsonaro merece um tribunal de Nuremberg

O Brasil governado por criminosos não é um perigo mortal apenas para os brasileiros

Depoimentos de médicos e enfermeiros em redes sociais, imagens de desespero nos hospitais, documentos, ordens para aplicar cloroquina ou "tratamento precoce" contra o vírus, testemunhos de parentes das vítimas. Tudo o que puder ser usado como prova de crime contra a saúde pública deve ser guardado pelos cidadãos.

Há de chegar o dia em que os responsáveis por essa tragédia brasileira irão sentar-se no banco dos réus. Se as nossas instituições parecem sedadas, quem sabe organismos multilaterais, como o Tribunal Penal Internacional (que já examina uma ação contra Bolsonaro anterior à pandemia) ou o Conselho de Direitos Humanos da ONU, atentem para a gravidade do que acontece aqui.

Bolsonaro e sua gangue precisam ser levados a um tribunal de Nuremberg da pandemia. Só uma investigação com a mesma amplitude será capaz de explicar o mal em grande escala praticado contra a população brasileira. Isso terá que ser exposto, em caráter pedagógico, para ser conhecido pelas próximas gerações e evitar que se repita. Como Nuremberg fez com os crimes de guerra dos nazistas.

Há vários níveis de responsabilidade no morticínio brasileiro. É preciso assinalar que, no caso do Amazonas, o governador Wilson Lima também terá que responder pelas mortes por falta de oxigênio em Manaus. Eleito na carona do bolsonarismo, revelou-se incompetente e covarde ao ceder às pressões contra o lock down, mesmo com inúmeros alertas de cientistas sobre uma segunda onda. No meio do ano, Lima chegou a ser alvo de buscas da PF, em investigação de desvios na compra de respiradores.

Outras cidades estão na rota do colapso. O Brasil governado por criminosos não é um perigo mortal apenas para os brasileiros. Países já nos fecham as portas. O Brasil tornou-se um pária sanitário. Quem permite que essa situação continue por tempo indefinido também tem as mãos sujas de sangue. Seremos julgados, no futuro, por nossas ações e omissões.


Cristina Serra: A ultradireita se prepara para 2022

Mudanças nas estruturas das polícias preparam terreno para radicalização em 2022

Reportagem de Felipe Frazão em "O Estado de S. Paulo" revelou que tramitam na Câmara dos Deputados projetos para diminuir o poder e o controle dos governadores dos estados e do Distrito Federal sobre as polícias civis e militares.

São várias propostas de mudança na estrutura desses aparatos policiais. Uma delas é a criação da patente de general para os policiais militares, nível hierárquico exclusivo das Forças Armadas. Hoje, os PMs chegam, no máximo, a coronel. Os comandantes-gerais também seriam nomeados a partir de uma lista tríplice formulada pelos oficiais.

Os chefes das duas polícias passariam a ter mandato de dois anos e haveria regras estritas para suas exonerações. O governador só poderia destituir o comandante da PM por motivo "relevante" e "devidamente comprovado". Já o chefe da Civil só perderá o cargo se a dispensa for aprovada pelo Legislativo estadual, "por maioria absoluta" de votos. E as polícias civis seriam ligadas a um certo Conselho Nacional da Polícia Civil, no âmbito do governo federal.

Há uma extensa e perniciosa tradição de rebeliões nas polícias, e nisso elas não diferem da atuação das Forças Armadas no Brasil. Mais recentemente, episódios corroboram a preocupação com o extremismo cada vez maior desses contigentes. Foi o que se viu, por exemplo, em 2017, no Espírito Santo, e quase um ano atrás no motim de policiais militares no Ceará, que terminou com um senador baleado.

As propostas abrem as portas, definitivamente, para a partidarização das forças de segurança e a formação de esquemas de poder paralelos que escapariam totalmente de qualquer forma de controle político-institucional. Se aprovadas, teriam o efeito de um anabolizante nas fileiras policiais, sob a égide escancarada do bolsonarismo. Os partidos progressistas têm que exigir do candidato à presidência da Câmara que apoiam o firme compromisso de conter a agenda da ultradireita. Esses projetos preparam o terreno para a radicalização em 2022.


Cristina Serra: O instinto assassino de Bolsonaro

Ao confessar seu fracasso, ele deveria renunciar. Mas não tem hombridade para tal

Bolsonaro tem duas preocupações na vida: salvar a pele dos filhos suspeitos de cometer crimes e preparar as bases para um golpe na eleição de 2022. Como admitiu em cínica declaração, pelo país ele nada consegue fazer. Aí está uma verdade. Não consegue porque não é capaz. Seu governo será sempre associado a um recorde trágico: 200 mil brasileiros mortos, em menos de dez meses, pelo vírus que ele ajudou a espalhar com seus arrotos de ignorância.

Péssimo militar e parlamentar medíocre, Bolsonaro levou seu despreparo para o Planalto e se cercou de incompetentes como ele. O pascácio da Saúde desconhece a lei da oferta e da procura e não consegue marcar a data da campanha de vacinação. O da Economia não sabe o que pôr no lugar do auxílio emergencial. O vírus mata, a fome também.

A incapacidade do presidente está longe de ser nosso único tormento. Para quem já respondeu a processo por terrorismo, as cenas de selvageria no Capitólio, em Washington, devem ter provocado êxtase. Certamente excitado com o que viu, Bolsonaro vai radicalizar sua campanha de sabotagem à democracia, à urna e ao voto enquanto tonifica seus esquadrões da morte, pelotões de jagunços e hordas de milicianos por dentro do aparelho de Estado, com liberação de armas, promoções, verbas, cargos e salários.

Só numa sociedade muito adoecida o presidente pode atentar à luz do dia contra a democracia e ficar tudo na mesma. O Brasil está morrendo de falência múltipla de instituições. Ao confessar seu fracasso, Bolsonaro deveria renunciar. Mas não tem hombridade para tal.

Restaria o impeachment. Mas ele sabe que os pedidos continuarão juntando mofo enquanto puder contar com a cumplicidade de gente graúda que enriquece ainda mais com a crise e que prefere deixar tudo como está. Assim, Bolsonaro pode seguir sem ser incomodado, contando com mais dois anos para exercitar seu instinto assassino. Não resta dúvida de que nisso está sendo muito bem-sucedido.


Cristina Serra: Constituição sob ataque

É crucial uma aliança para impedir a vitória de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara

Em artigo nesta Folha, um dos expoentes do centrão e líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), voltou a alardear sua proposta de um plebiscito para que os brasileiros decidam se querem uma assembleia exclusiva para escrever uma nova Constituição.

O centrão aglutinou forças de centro e de direita no Congresso Constituinte de 1987-1988 com vários objetivos, entre eles garantir o mandato de cinco anos ao então presidente Sarney e barrar a adoção de avanços sociais na carta, como queriam lideranças e legendas mais à esquerda. Vem dessa época o mantra infame do fisiologismo: "é dando que se recebe". Do equilíbrio de forças resultante nasceu a Constituição cidadã, que, entre tantas conquistas, criou, por exemplo, o Sistema Único de Saúde, imprescindível na pandemia para evitar perdas ainda mais catastróficas aos brasileiros.

O centrão fragmentou-se em vários partidos, há uma nova geração de líderes, mas sua essência bolorenta é a mesma. Agora, agrupados na base de um governo de extrema direita com nível bastante razoável de apoio popular, veem uma oportunidade de substituir a carta que, na visão de Barros, assegura direitos em demasia e deveres de menos.

O deputado se queixa da amplitude do "poder fiscalizador" do Judiciário, do Ministério Público e da Receita Federal (este parece ser o eixo da sua proposta); aponta que a carta mantém "privilégios caros e desnecessários" a corporações do funcionalismo e que é preciso cortar despesas para investir na "área social".

Para ficar em apenas um ponto, é difícil acreditar na preocupação social de um governo que, na proposta de reforma administrativa, não alterou uma linha sequer das regalias da casta superior do serviço público.

O que está claro é que a Constituição está sob renovada barragem de artilharia, o que torna ainda mais crucial uma aliança para impedir a vitória de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara dos Deputados. É preciso resistir às invasões bárbaras.


Cristina Serra: 'Quem ama não mata'

Permanece atualíssimo o lema do movimento feminista mineiro, lançado há 40 anos

A lei do feminicídio foi resultado de uma CPI do Congresso que investigou a violência contra mulheres. A comissão fora instalada em 2012 sob o impacto de um estupro coletivo na Paraíba. No caso, conhecido como a "Barbárie de Queimadas", cinco mulheres foram atraídas para uma festa de aniversário e estupradas por dez homens. Duas foram assassinadas porque reconheceram alguns dos criminosos.

A lei entrou em vigor em 2015, e a partir da tipificação do crime —quando envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à mulher— foi possível dimensionar uma carnificina. Estatísticas mostram que uma mulher é morta a cada nove horas no Brasil. O fim do ano registrou mais um banho de sangue, com seis feminicídios na véspera e no dia de Natal.

O feminicídio é cometido, na maioria dos casos, por maridos, namorados ou ex-companheiros. É um crime de ódio, evidente até na forma como os assassinos desfiguram suas vítimas. A juíza Viviane Vieira do Amaral foi assassinada pelo ex-marido, Paulo José Arronenzi, com 16 facadas, sendo dez no rosto.

Lembra o caso Ângela Diniz, 44 anos atrás. Dos quatro tiros que levou, três foram no rosto. É preciso entender que não existe crime "passional", resultado de um desequilíbrio momentâneo ou de um rompante do assassino sob violenta emoção. O feminicídio arrasta um acúmulo de violações que o antecipam.

O caso da juíza Viviane é exemplo típico de relação abusiva. Conforme as investigações, Arronenzi, que estava desempregado, era agressivo e passara a exigir cada vez mais dinheiro da ex-mulher. Ela decidira se separar após episódio em que ele machucou uma das filhas do casal. Combater o feminicídio requer não apenas mecanismos de prevenção, proteção da mulher e coerção. É necessária uma mudança cultural complexa, que exige a participação do Estado e da sociedade. Permanece atualíssimo o lema do movimento feminista mineiro, lançado há 40 anos: "Quem ama não mata".


Cristina Serra: Que vergonha, excelências!

Ainda nem temos vacinas aprovadas e liberadas, e STF e STJ já estavam prontos para furar a fila da imunização

No Brasil, existem cidadãos comuns, como você, leitor, e eu. E existem castas, como o Judiciário, sustentadas com o dinheiro dos nossos impostos e adubadas com privilégios e mordomias que ofendem o simples bom senso. Ainda nem temos vacinas aprovadas e liberadas e suas excelências do STF e do STJ já estavam prontas para furar a fila da imunização. As duas mais altas cortes enviaram os pedidos à Fundação Oswaldo Cruz, que os rechaçou.

Num momento de emergência sanitária e com autoridades incompetentes no comando da saúde dos brasileiros, as maiores instâncias do Judiciário deveriam ser as primeiras a dar o bom exemplo e aguardar sua vez na escala de prioridades, a ser definida de acordo com critérios científicos e levando-se em conta a vulnerabilidade de grupos mais expostos ao vírus. Mas as cúpulas do Judiciário preferiram se orientar pelo adágio mesquinho: farinha pouca, meu pirão primeiro. O que me lembra também o salve-se quem puder da primeira classe no convés do Titanic.

O STF pediu uma reserva de 7.000 doses para ministros e servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça. O STJ disse que enviou um “protocolo comercial”, que se refere à “intenção de compra” das doses para imunizar magistrados, servidores e seus dependentes. Sim, você leu direito. O STJ alegou que pretendia comprar as vacinas que, até onde se sabe, serão distribuídas gratuitamente pelo Plano Nacional de Imunização (vai saber quando). Seria um auxílio-vacina?

Não fosse a revelação pela imprensa e a negativa contundente da Fiocruz, talvez outras categorias já estivessem a reivindicar tratamento “isonômico”. A mentalidade da aristocracia do setor público brasileiro opera uma rota de colisão com qualquer projeto de sociedade menos desigual e mais justa. Regalias de toda sorte para uma elite “diferenciada” transformam em uma quimera o ideal de cidadania já alcançado por outros países. Data vênia, excelências, que vergonha!


Cristina Serra: O Brasil que virou Sucupira

O Brasil de Bolsonaro é um arremedo patético da cidade de Odorico Paraguaçu

Circula na internet um trecho de assustadora atualidade da novela "O Bem-amado", escrita pelo genial Dias Gomes e exibida com grande sucesso pela Rede Globo em 1973. Na cena, o prefeito da fictícia Sucupira, Odorico Paraguaçu, planeja interceptar a carga de vacinas que poderia impedir um morticínio na cidade, assolada por uma epidemia.

Horrorizado, seu auxiliar, Dirceu Borboleta, alerta que seria um genocídio. Odorico responde com um: "E daí?". Para quem não conhece a história, o principal objetivo do prefeito era inaugurar o cemitério da cidade. Mas seu projeto se frustra ao longo dos capítulos porque ninguém morre.

No Brasil de 47 anos depois, o drama da vida real é o oposto. O coronavírus já matou 180 mil cidadãos. Mas o desprezo de Bolsonaro pela vida dos brasileiros é o mesmo do político da ficção. A segunda onda da pandemia chegou, tão ou mais feroz que a primeira, mas o presidente acha que estamos "no finalzinho" dela. Em ócio despreocupado, protagonizou cena digna de comédia pastelão ao inaugurar uma vitrine com as roupas usadas por ele e pela primeira-dama na posse.

Enquanto Bolsonaro se presta ao ridículo, as autoridades federais de saúde exibem sua incompetência, depois de terem sido atropeladas pelo governador de São Paulo. Doria criou um fato político ao marcar a data para o começo da imunização no estado, em janeiro de 2021, com a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan.

Ficou patente o despreparo do almoxarife atarantado que ocupa o Ministério da Saúde. Pazuello não tem um plano de vacinação e ainda se pergunta se haverá "demanda" por vacinas. Num país que já foi exemplo para o mundo em imunização, nem sequer sabemos se haverá seringas e agulhas em quantidade suficiente. A Anvisa, colonizada por defensores da cloroquina, não inspira confiança quanto à aprovação dos imunizantes. O Brasil de Bolsonaro é um arremedo patético da Sucupira de Odorico Paraguaçu.


Cristina Serra: A difícil travessia de 2021

Foi um alívio assistir à confirmação do fracasso de Bolsonaro como cabo eleitoral

As eleições municipais de 2020 desenham alguns contornos importantes sobre o realinhamento de forças conservadoras e progressistas no Brasil. Desde a ruptura institucional de 2016, que deve ser chamada pelo nome de fato, ou seja, golpe, essas forças vêm passando por uma reacomodação.

No pleito de agora, foi um alívio assistir à confirmação do fracasso de Bolsonaro como cabo eleitoral, sobretudo com a derrota esmagadora de seu aliado no Rio de Janeiro, o inqualificável bispo Crivella. Até aí, estamos falando da extrema direita. Já no campo da direita mais tradicional, é preciso, antes de tudo, apontar uma falácia. Partidos de direita fazem um tremendo esforço para vender a imagem de centristas. Mas é preciso não perder de vista o DNA dessas legendas. PP e DEM, por exemplo, têm sua origem no PDS, partido de sustentação da ditadura. Haja marketing para tirar esse bolor.

Também é difícil reconhecer no PSDB comandado por Bolsodória o perfil de centro (alguns diriam centro-esquerda) do partido criado em 1988 por FHC, Mário Covas e Franco Montoro. Como já era esperado, no dia seguinte às eleições, Doria voltou a adotar medidas impopulares de restrição, em São Paulo, para tentar conter a pandemia. Qual o custo humano de esperar o fechamento das urnas para anunciar essa decisão? Feitas essas considerações, é forçoso reconhecer que as legendas de direita —e não o centro— saíram fortalecidas em 2020.

Entre os progressistas, há um vácuo de estratégia. O PT perdeu preponderância, e partidos que disputam o mesmo campo não conseguem envergadura nacional. É de se notar, porém, uma bem-vinda renovação geracional na figura de Guilherme Boulos. Como esses eixos políticos se alinharão para 2022 depende menos desta eleição e muito mais da travessia que faremos em 2021. Bolsonaro e sua irresponsabilidade criminosa continuam. A pandemia também, com todos seus efeitos: morte, desemprego e fome. Com o agravante de que estamos todos exaustos.


Cristina Serra: O racismo nosso de cada dia

Mal celebramos o avanço da diversidade (ainda que insuficiente) nas eleições de 2020, vem o cotidiano violento do Brasil e nos dá um soco no estômago com o assassinato de João Alberto Freitas por dois seguranças brancos a serviço do Carrefour, em Porto Alegre. O sangue no chão, os gritos da vítima e a sequência de agressões nos lembram que ter a pele negra, no Brasil, é uma sentença de morte.

Todos os componentes da cena mostram o quanto o racismo está entranhado na medula da nossa sociedade. Uma funcionária filma o assassinato com naturalidade e tenta impedir que outra pessoa continue gravando. Em off, dá para ouvir vozes justificando o espancamento. Nada justifica o assassinato de João a sangue frio. Aceitar a lei da selva nos dilacera como sociedade e é um atestado do nosso fracasso civilizatório.

O assassinato de João está permeado de ironias amargas. Foi na capital gaúcha que, nos anos 1970, o movimento negro se articulou para instituir o Dia da Consciência Negra em 20 de novembro, data da morte de Zumbi, em 1695, líder da resistência no quilombo de Palmares.

O crime ocorreu na loja de uma corporação global que, no Brasil, é reincidente em casos semelhantes de violência contra negros. Mais uma ironia é que a rede tenha planejado lançar uma campanha manifestando o “orgulho” de ter clientes “de todas as raças e etnias”. Será que a matriz, na França, tem algo a dizer sobre o tratamento aos clientes no Brasil? Em episódios anteriores, a rede rompeu o contrato com a empresa de segurança em questão e/ou demitiu funcionários e ficou por isso mesmo. Não basta. A rede e as empresas de segurança são co-responsáveis por esses crimes. É a impunidade que reproduz o ciclo de violência.

Mais de um século após a abolição, a primeira vereadora negra eleita em Joinville (SC), Ana Lúcia Martins, recebeu ameaças de morte. Ela respondeu com a determinação que deve nos guiar no combate ao racismo: “Nós iremos até o fim. Ninguém vai nos impedir de ocupar esse lugar”.


Cristina Serra: O dedo podre de Bolsonaro e 2022

Huck e Moro são parte do problema, não a solução

A eleição municipal traz elementos importantes para o cenário de 2022. Bolsonaro ganhou o troféu dedo podre de 2020. Seu fracasso como cabo eleitoral mostra que ele pode ser derrotado daqui a dois anos. Já é um começo, mas é pouco.

No campo oposto, o desempenho de Boulos (PSOL) na cidade mais importante do país mostra que a esquerda está viva e encontra ressonância no eleitorado. Com apenas duas semanas até o segundo turno, o desafio de Boulos é gigante, enquanto seu aliado preferencial, o PT, lambe as feridas de uma derrota tão esmagadora quanto previsível no seu berço político.

Tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro a eleição municipal mostra que falta pensamento estratégico aos partidos progressistas. E isto pode ser fatal daqui a dois anos.

Quem nadou de braçada foi a direita. Conquistou capitais importantes e tem chance de ampliar as vitórias no segundo turno. O centrão, amálgama de siglas identificadas com a rapinagem na política e o velho toma lá, dá cá, aumentou sua presença no interior. Partidos como PSD, PP, PL e Republicanos passam a disputar com MDB e DEM a capilaridade Brasil adentro.

A direita já se movimenta para 2022 com alguma desenvoltura. Do seu laboratório de feitiçarias saiu recentemente a dupla Huck-Moro, que se apresenta como centrista, a fórmula mágica que pode encantar o eleitorado cansado da "polarização". O animador de auditório fez seu nome explorando a imagem da pobreza alheia na TV. Em 2018, disse que Bolsonaro tinha uma chance de ouro de "ressignificar" a política.

Moro, até ontem, serviu a um governo de extrema direita e a um presidente que defende a tortura. E propôs projeto anticrime que dava a policiais uma licença para matar sob forte emoção. Huck e Moro são parte do problema, não a solução.

Não só o eleitor deve evitar esse tipo de embuste mas também o jornalismo, como bem alertou a brilhante análise de Flávia Lima nesta Folha, no domingo.


Cristina Serra: A democracia nas Américas

A correção de rumos nos EUA tem algo a nos ensinar

As imagens de celebração nos Estados Unidos mostram um carnaval incomum. Uma explosão de alegria e alívio por se verem livres do governante que exerceu o poder com doses extremadas de ódio, mentira e violência.

Biden venceu porque conseguiu convencer a maioria dos eleitores de que será capaz de restaurar a civilidade no jogo político. O jogo é bruto, mas para ter sua legitimidade reconhecida precisa ser exercido com algum nível de lealdade e respeito às regras. Fora isso, é a barbárie, que seria aprofundada num segundo mandato de Trump.

Sua derrota é o triunfo de uma percepção de sociedade em que se espera que haja lugar para todos, em que pese a profundidade do abismo que separa as classes. Por isso, a palavra "possibilidade" tão presente nos discursos de vitória da dupla Biden-Harris.

Mais do que palavras, porém, a poderosa figura de Kamala Harris é a tradução concreta dessa possibilidade. Mulher, negra e filha de imigrantes, ela chegou lá, na chapa com o político branco e rico, há 50 anos no mainstream da política.

A dupla vencedora é a imagem síntese das contradições e das possibilidades na sociedade norte-americana. Se isso vai se refletir em políticas de redução ou contenção das desigualdades, só os próximos quatro anos vão dizer.

A chapa eleita também encarna a vitalidade da política identitária. No seu discurso, Biden deu ênfase à necessidade de erradicar o racismo sistêmico e destacou a participação de gays, transgêneros, latinos, asiáticos e populações nativas na aliança que o alçou à vitória. Um contraste notável com seu oponente.

A correção de rumos nos EUA tem algo a nos ensinar, bem como os acontecimentos recentes no Chile e na Bolívia. A extrema direita conta com a apatia e o cansaço da população com a política. É contra esse desânimo que as forças progressistas no Brasil têm que lutar. Não inventaram nada melhor que a democracia para derrotar a barbárie.