Cristiano Romero

Cristiano Romero: Encruzilhada fiscal e social

Retomada desigual do PIB e fim do auxílio fomentam crise social

Não é desprezível o risco de o país enfrentar nos próximos meses uma grave crise social. Todos sabemos que 2020 só não foi mais trágico, do ponto de vista econômico, porque o Congresso Nacional e o governo federal agiram rapidamente para instituir novo mecanismo de transferência de renda e, assim, compensar o fato de que, devido à pandemia, milhões de trabalhadores formais e informais perderam subitamente seu ganha-pão

O auxílio emergencial funcionou razoavelmente bem e impediu que a contração da economia fosse muito superior à esperada. Muitos analistas chegaram a projetar queda acima de 9% para o Produto Interno Bruto (PIB) em 2020. Segundo cálculos do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV-Rio, o PIB pode ter caído 4,7% no ano passado e crescerá 3,6% em 2021.

O que evitou um mergulho maior do PIB foram os bilhões de reais transferidos a pouco menos de 70 milhões de brasileiros entre abril e dezembro. Uma parte significativa desse contingente - cerca de 45 milhões de pessoas - é beneficiária do programa Bolsa Família e, por essa razão, continua recebendo o benefício, embora num valor bem inferior ao do auxílio emergencial - aproximadamente, R$ 150 por pessoa, em vez de R$ 600 (quantia paga entre abril a setembro) e R$ 300 (de outubro a dezembro).

O auxílio expirou em 31 de dezembro. Neste mês, ainda há um resíduo a ser transferido, mas, depois disso, acaba. Enquanto isso, assistimos, apreensivos, ao recrudescimento da pandemia no país. Seus efeitos negativos sobre a economia logo aparecerão, comprometendo a recuperação esperada. Grosso modo, 30 milhões de cidadãos viverão doravante sem renda alguma.

A equipe econômica do governo alega que a situação fiscal do país já era claudicante antes da pandemia e tornou-se desesperadora ao longo de 2020. O setor público consolidado, isto é, as contas de União, dos Estados e municípios, registrou déficit primário, nos 12 meses acumulados até novembro, de R$ 664,6 bilhões (8,93% do PIB).

Chama-se esse conceito de “primário” porque não inclui a despesa com juros da dívida. É a diferença entre o que o Estado arrecada por meio de tributos e o que gasta. Desde 2014, essa diferença é negativa. No ano passado, por causa da pandemia, é compreensível que, por causa do enfrentamento da pandemia, o rombo tenha aumentado.

Bem, se o setor público da Ilha de Vera Cruz não consegue arrecadar o suficiente para cobrir as despesas do Estado, como faz para honrar despesas como aposentadoria e pensões de mais de 30 milhões de brasileiros, salários do funcionalismo e gastos obrigatórios com saúde e educação? Ora, endividando-se.

Nos 12 meses até novembro de 2021, o déficit nominal, conceito que inclui o serviço da dívida, isto é, a despesa com juros, alcançou R$ 978,0 bilhões (13,14% do PIB). A Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), que compreende governo federal, INSS e governos estaduais e municipais, alcançou R$ 6,559 trilhões em novembro (88,1% do PIB). Em apenas um ano, cresceu mais de dez pontos percentuais de PIB.

Ninguém em sã consciência dirá que a situação fiscal deste país não é grave. O problema é justificar o fim da ajuda humanitária a quem precisa com o argumento de que, se houver deterioração adicional das finanças públicas, o país quebrará, investidores (nacionais e estrangeiros) fugirão daqui, a cotação do dólar visitará a estratosfera, haverá calote da dívida...

Não se tente convencer um pai de família desempregado a entender esse argumento ou de que sua situação é esta por não ter estudado) ele pode mostrar que, felizardo (porque a maioria não chega tão longe), estudou, sim, em escola pública durante toda a sua vida, ganhou bolsa do Fies para cursar ensino “superior” em faculdades com ação na bolsa e sócio estrangeiro, mas de péssima qualidade, e ainda assim está na miséria, como outros milhões de compatriotas neste momento terrível do país e da humanidade.

Por que não se usa o mesmo argumento fiscal para “convencer” grupos de interesse específico a entregar parte do butim, que faz deste imenso território um lugar rico habitado por uma minoria rica e uma maioria esmagadora, pobre?

“O Brasil chega a 2021 mais enredado do que nunca nas complexidades e contradições de múltiplas expectativas e demandas. É preciso voltar a crescer, mas também há que se responder a uma teia cada vez mais ampla de direitos democráticos em temas como saúde, segurança, transporte de qualidade, meio ambiente, combate ao racismo, empoderamento feminino, reconhecimento de identidades de gênero etc.”, observa Luiz Guilherme Schymura, presidente do Ibre-FGV.

Há uma visão, diz Schymura, segundo a qual, a retomada do crescimento seria suficiente para que os rendimentos do mercado de trabalho preenchessem a lacuna deixada pelo fim do auxílio emergencial. O impacto social, portanto, não seria dramático. O problema é que, talvez, muitos dos que acreditam nessa possibilidade não tenham considerado dois fatores: o aumento exponencial dos casos de covid-19, algo que pode obrigar prefeitos e governadores a reinstituir regras de isolamento social, e o fato, inacreditável, de que o governo Bolsonaro simplesmente não planejou a vacinação dos 210 milhões de viventes que moram neste canto do planeta. Sem vacina e imunização planejada, não teremos recuperação econômica. Teremos, sim, o agravamento da crise sanitária que já ceifou a vida de 210 mil brasileiros.

Há um terceiro problema. A economista-chede do Ibre, Sílvia Matos, conta que a retomada pós choque econômico da pandemia é muito desigual. “Chegou-se a criar a expressão ‘recuperação em k’ para se referir ao fato de que, enquanto a indústria e o comércio saíram na frente, os serviços, mais afetados pelo distanciamento social, ainda dão sinais de fraqueza”, diz Schymura.

Exemplo da heterogeneidade no próprio setor de serviços. Os que são prestados às famílias e que empregam bastante, medidos pela Pesquisa Mensal de Serviços (PMS), estavam em outubro 32% abaixo do nível pré-pandemia, em fevereiro do ano passado. Já os serviços de tecnologia da informação registraram avanço de 12% na mesma comparação, beneficiados pelo trabalho em casa, a comunicação a distância.

“É nessa encruzilhada extremamente difícil que se encontra o país neste início de 2021, e não se deve nutrir a esperança de que a retomada econômica pós covid resolverá os muitos dilemas e impasses. Mais do que nunca, será preciso um grande entendimento nacional para que se encontre um caminho viável que evite simultaneamente crises agudas no campo fiscal e social”, comenta Schymura.


Cristiano Romero: Todos sabemos por que o Brasil não dá certo

Trata-se de questão ética: como ser feliz num país racista

Muitos brasileiros fazem a seguinte pergunta diante do espelho: "Por que o Brasil não dá certo?". Geralmente, quem faz a indagação não tem muito do que reclamar. Sua vida é melhor aqui, mais fácil, mais farta, com maior acesso ao que o país oferece de melhor a seus cidadãos, do que seria se ele vivesse em outra economia de renda média ou mesmo numa nação rica, ainda que sendo proporcionalmente detentor de renda equivalente. A péssima distribuição de renda explica parte dessa história.

Evidentemente, aqui, todos, pobres e ricos, reclamam da extrema violência que ceifa anualmente a vida de cerca de 60 mil pessoas - em 2018 (último dado disponível), foram 57.956, mas, como há algo de podre no reino das estatísticas dos Estados, visto que nos anos recentes houve aumento exponencial de mortes violentas sem causa determinada, o número de mortos está subestimado.

O contingente de pessoas que sai de casa num determinado dia para morrer parece uma espécie de maldição estatística, uma vez que, com poucas variações, se repete ano a ano. Maldição? Praga? Predestinação diabólica de um povo condenado à miséria e ao sofrimento? Não creia nisso. Não há nada intangível nas estatísticas da violência no país chamado Brasil.

Os dados oficiais da violência mostram que 75,7% dos brasileiros assassinados há dois anos eram negros - entre as mulheres, o percentual é 68%, informa o Atlas da Violência 2020, elaborado pelo Ipea com base nas ocorrências registradas pelas secretarias estaduais de segurança pública em 2018. Mais da metade (29.064) eram jovens com idade entre 15 a 29 anos.

Em 2018, uma mulher foi assassinada neste país a cada duas horas, somando 4.519 vítimas. Olhemos mais de perto os números e num período maior de tempo, para tentar achar uma pista que aponte alguma tendência desta terrível mazela nacional: entre 2008 e 2018, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa de mulheres negras assassinadas aumentou 12,4%.

O resumo da violência neste imenso território é o seguinte: os homicídios vitimizam, principalmente, homens (91,8% dos casos), jovens (53,5%), negros (75,7% dos casos), pessoas de baixa escolaridade (74,3% dos homens vitimados possuem apenas sete anos de estudo) e solteiros (80,4% do total de homens assassinados). O principal instrumento de agressão é a arma de fogo, usada em 77,1% dos casos de morte de homens e em 53,7%, no caso de mulheres.

Convenhamos: os números são de uma racionalidade espantosa, é desnecessário desenhar: a sociedade brasileira assiste, indiferente, a um verdadeiro genocídio de jovens, em sua maioria absoluta, negros e pobres, o que também se aplica às mulheres negras. Será que é difícil saber qual é a verdadeira monstruosidade que explica esta vilania que nos caracteriza como sociedade e que, em vez de diminuir, só tem aumentado?

Como o tema não é novo neste espaço, um leitor escreveu para dizer que, nesta guerra civil interminável, morrem mais negros porque estes são a maioria entre os pobres. Trata-se da tese de que quase 42 mil negros foram assassinados neste canto do mundo em 2018 não porque eram negros, mas porque eram pobres. Trata-se de uma falsa questão.

Na música "Haiti", Caetano Velloso e Gilberto Gil escrevem o seguinte, a respeito do massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, quando 111 presidiários foram mortos e 37 ficaram feridos após ação da polícia - como não se tratava de um presídio, a maioria dos mortos ainda não havia sido julgada ou tido a sua sentença definida pela Justiça:

" (...) Cento e onze presos indefesos

Mas presos são quase todos pretos

Ou quase pretos

Ou quase brancos, quase pretos de tão pobres

E pobres são como podres

E todos sabem como se tratam os pretos (...)"

O poema afiado como navalha de barbeiro nos lembra que, nestes tristes trópicos, é tão ruim ser negro que, se você é pobre, muito pobre, é "quase preto".

Senhores, 56% das pessoas que habitam a quarta maior extensão de terra contínua do planeta se declararam pardos ou negros no último censo demográfico conduzido pelo IBGE. A maioria de nós, portanto, é negra. Nosso problema, acima de qualquer outro, é o racismo secular, estrutural, vicejado pela minoria branca, remediada, rica e mais educada, contra a maioria.

O Brasil não dá certo por essa razão. Como poderia suceder? A escravidão nos acompanha desde a chegada dos europeus. Quando a abolimos por meio de uma lei, quase 400 anos depois, não a abolimos de fato porque o mundo quase acabou - os barões do café exigiram compensação financeira do Estado pela perda de "propriedade", "demitiram" os negros, derrubaram a monarquia, implantaram uma República condominial (sem povo e com rodízio no comando entre dois dos três Estados mais ricos), forçaram o governo a importar mão de obra do Japão e de nações europeias para substituir a mão de obra escrava, impediram os negros de ter acesso a escolas...

Por que ainda há entre nós quem seja contrário a políticas de reparação à população negra, posta em desvantagem por séculos na história deste país? Nossa sociedade não é racista, ela é o próprio racismo. Este faz parte da paisagem nacional tanto quanto o samba, o futebol (onde, aliás, manifestações racistas são crescentes), o carnaval, mas, enquanto esses símbolos são projetados como parte de nossa identidade cultural, a discriminação aos negros é negada de forma vergonhosa e institucional.

Não é mais possível (nunca foi) olhar a realidade política, econômica, social, cultural, sem as lentes que corrijam a pior das miopias: a de que o racismo é apenas mais um problema a ser enfrentado, uma obrigação cidadã, uma determinação constitucional. Nada disso. Não é mais possível admirar nada neste país de 210 milhões de habitantes sem pensar, a cada segundo, que vivemos numa sociedade profundamente escravagista, onde a maioria é discriminada pela minoria. Trata-se de uma questão ética: como viver, como aceitar viver numa sociedade assim?


Cristiano Romero: Quem fala pela maioria silenciosa?

É antiético alegar problema fiscal para suspender auxílio

Todos os grupos de interesse específico tem representantes em Brasília, dentro e fora do Congresso Nacional, alguns com mais e outros com menos força para fazer valer sua participação no orçamento público. É disso que se trata a disputa pelo poder na capital de qualquer República, sob a vigência do Estado democrático de Direito.

O que torna o Brasil um país particularmente injusto é que os pobres, a maioria silenciosa deste imenso território, não têm representação no centro do poder nem quem os defenda por dever de consciência. Isso pode parecer um exagero, mas não o é, afinal, quando olhamos mais de perto iniciativas de políticos e partidos que se jactam por defender os pobres em Brasília, contradições pululam.

Um exemplo: sindicatos de trabalhadores da região do ABC, onde se concentra no Estado de São Paulo a maioria das empresas do setor automotivo, se unem para pressionar o governo, todo ano, a conceder incentivo fiscal às multinacionais. Não se passa um ano, na Ilha de Vera Cruz, desde a década de 1950 sem que essas companhias, originárias das nações mais ricas dom planeta, recebam dinheiro público subsidiado para… permanecerem aqui, onde está o sexto maior mercado (atrás apenas de China, Estados Unidos, Japão, Índia e Alemanha) de automóveis _ este país é também o oitavo maior fabricante.

O último incentivo aprovado para as múltis de carros prevê a liberação de R$ 8 bilhões em dinheiro da Viúva em quatro anos. Provavelmente, esse montante é, em termos relativos, muito menor em relação ao que se dava no passado e deve ser uma mixaria face ao faturamento e ao lucro do setor no país, sejam quais forem esses valores _ sim, leitores, mesmo beneficiário de dinheiro público, as montadoras nunca divulgaram seus números ao povo que as subsidia.

É curioso que ninguém, o parlamento ou mesmo as instituições "democráticas" criadas pelo distinto público para representá-lo e defendê-lo. O dinheiro que essas multinacionais embolsam a título de incentivo não é nada para elas, mas é algo para Ilha de Vera Cruz, onde vivem 50 milhões de miseráveis e, pelo menos, mais cem milhões de pobres.

Ora, como alguém pode achar que a manutenção desse subsídio de alguma forma ajuda pobres e miseráveis deste imenso país? Conceder incentivos ao setor automotivo, a esta altura do jogo, apenas contribui para concentrar ainda mais a renda, tirar de pobres para dar a ricos. Pense duas vezes antes de elogiar o político que defende o "cluster" da indústria automotiva brasileira. Ademais, convenhamos, por que dar incentivo a um setor protegido, contra concorrentes estrangeiros, por barreiras tarifárias (impostos e outros tributos) e não tarifárias (por exemplo, proibição de importação de carros usados)?

Outro exemplo das contradições expostas por grupos políticos que dizem estar em Brasília com a única "missão" de defender os desvalidos vem dos partidos de esquerda, que, por definição, são os mais propensos à formular políticas de combate à pobreza e emancipação das classes menos favorecidas em regimes democráticos. Por aqui, partidos de esquerda estão sempre a postos para proteger privilégios _ e não direitos _ adquiridos pelo funcionalismo público e os servidores de estatais. Não adianta lutar por um salário mínimo mais digno, por mais e melhores escolas, por um atendimento saúde público universal e digno e, ao mesmo tempo, lutar pela manutenção de um Estado caro, ineficiente e injusto, portanto, incompatível com implantação do projeto de nação previsto na Carta Magna de 1988.

É a falta de representação em Brasília que faz com que, nos momentos de dificuldade fiscal, governantes, parlamentares e membros "ilustres" do Poder Judiciário proponham "soluções" que, ao fim e ao cabo, tirem dinheiro de quem já tem pouco (os pobres) e dos que não têm nada (os miseráveis). Por isso, falar de problema fiscal "grave" no momento em que, todos sabemos, milhões de brasileiros (estima-se como algo em torno de 23 milhões de pessoas e suas famílias) ficarão sem renda em meio à maior crise sanitária da história, é terrivelmente doloroso, inclusive, por sabermos que nenhum grupo de interesse específico terá seus direitos suprimidos em nome da emergência que o país e o mundo enfrentam.

Em janeiro, não haverá mais auxílio emergencial. O economista Manuel Pires, do Ibre-FGV, esmiuçou as possibilidades para que Brasília encontre uma solução em relação ao auxílio que não jogue o país numa crise severa em poucas semanas. As conclusões não são animadoras.

  1. A forma talvez mais direta seria passar uma PEC que determinasse que o novo programa, temporário ou permanente, estaria fora do teto de gastos, assim como já ocorre com itens como créditos extraordinários, Fundeb e a capitalização de estatais.

PECs têm muitas etapas de tramitação nas duas Casas, mas suponhamos que, com um hipotético consenso entre Executivo e Congresso, se tentasse fazer tudo em tempo recorde a ponto de 2021 começar já com algum substituto do auxílio.

Há obstáculos muito sérios nesse caminho. Já foram emitidos sinais do Tribunal de Contas da União de contrariedade em relação a excluir novas despesas do teto de gastos, por causa dos riscos fiscais. Adicionalmente, uma forma tão acintosa de driblar o teto de gastos, mesmo que bem recebida inicialmente pelo Congresso, provavelmente causaria grande estrago nos mercados, com possibilidade de disparada do dólar e queda acentuada das bolsas - o que costuma soar o alarme dos políticos e levar ao recuo.

  1. Uma segunda via para excluir um novo programa do teto seria prorrogar o estado de emergência e recriar o orçamento de guerra. Isso exigiria a tramitação de PEC, o que esbarra, como já notado, no pouco tempo de funcionamento do Congresso até o recesso.

Com a recriação do orçamento de guerra, seria possível não só criar um Renda Cidadã, mas também incorrer em qualquer despesa acima do teto, sem nenhuma amarra. Certamente seria medida também de grande impacto negativo nos mercados, a menos que uma segunda onda de Covid-19 muito forte a justificasse.

  1. Finalmente, existe a possibilidade de fazer um programa temporário ou estender o auxílio emergencial - possivelmente com redução de valores e público-alvo - por meio de crédito extraordinário, que não está submetido ao teto. das de lockdown etc. - pode ser caracterizada como algo impossível de prever.

Cristiano Romero: A guerra civil brasileira

Mais de 600 mil negros foram assassinados desde 2000 no Brasil

Uma das mais lamentáveis e equivocadas tentativas de explicar o fracasso do Brasil é a ideia de que o país não deu certo porque não enfrentou guerras. Trata-se de mistificação concebida a partir da história de países como os Estados Unidos, que, além das batalhas travadas com outras nações para conquistar o território que tem hoje, amargou sangrenta guerra civil entre 1861 e 1865, quando se estima que mais de 600 mil pessoas morreram.

Entre 1979, quando a série começou a ser apurada, e 2018, último dado disponível, 1.583.026 brasileiros foram assassinados, segundo o “Atlas da Violência”, elaborado pelo Ipea. A violência não para de crescer. O número de homicídios tem mudado de patamar a cada dez anos - em 1979, 11.217 pessoas foram assassinadas; em 1990, 32.015; no ano 2000, 45.433; em 2010, 53.016; em 2018, 57.956 perderam suas vidas em decorrência do arbítrio de outrem (e ainda há quem defenda a adoção da pena de morte nestes tristes trópicos).

Alguém notará que o ritmo de crescimento de homicídios está diminuindo. Em 2017, 65.602 cidadãos foram mortos de maneira violenta, a maioria, por arma de fogo (71% dos casos). Portanto, houve queda de 11,7% no número de assassinatos no ano seguinte. O problema, mostra o “Atlas da Violência 2020”, é que não se pode mais confiar cegamente no “termômetro” usado para contabilizar as mortes.

O Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, é a única fonte de dados com abrangência nacional, consistência e confiabilidade metodológica sobre a evolução da violência letal desde 1979. Ocorre que o SIM é alimentado por informações repassadas pelos Estados, e a qualidade desses dados tem caído de forma assombrosa.

“Entre 2017 e 2018, o número de MVCI (mortes violentas com causa indeterminada) aumentou 25,6%. A perda de qualidade das informações em alguns estados chega a ser escandalosa, como no caso de São Paulo, que, em 2018, registrou 4.265 MVCI, das quais, 549 pessoas vitimadas por armas de fogo, 168 por instrumentos cortantes e 1.428 por objetos contundentes. Nesse estado, a taxa de MVCI foi de 9,4 por 100 mil habitantes, superior à taxa de homicídios, que foi de 8,2”, diz o último “Atlas da Violência 2020”.

No total, 12.310 brasileiros foram assassinados em 2018, mas as autoridades não sabem quem os matou nem o porquê. Estes são os cidadãos invisíveis cuja existência só interessou a quem lhes tirou a vida. São dispensados nas ruas como se faz com o lixo de casa. Na maioria dos casos, são enterrados como indigentes, sem identidade ou o conhecimento da família. Fazem número na estatística MVCI.

Pesquisa feita em 2013 por Daniel Cerqueira, coordenador do Atlas da Violência, estima que 73,9% das mortes violentas causa indeterminada são, na verdade, homicídios ocultos. Conclusão: o número de assassinatos cometidos neste gigantesco território pode ser até 20% superior ao número informado.

Definitivamente, no Brasil viver não é preciso. De 2008 a 2018, 628.595 brasileiros foram mortos de forma violenta. Do total, 437.976 eram negros (70%), a maioria, jovem e pobre. Enquanto o número de negros vitimados pela violência vem escalando - em 2018, eles foram 75,7% dos casos de homicídio -, o de não negros está cedendo. Entre 2008 e 2018, houve alta de 11,5% no número de negros vítimas de assassinato e declínio, no caso dos não negros, de 15,4%.

Mais uma estatística aterradora: desde o ano 2000, 660.252 negros foram assassinados no Brasil. Não calcule a média anual do período porque, como o número casos está em franca expansão, o percentual encontrado não refletirá a realidade indisfarçável: vivemos num país onde a maioria da população é negra (56%, segundo o IBGE), mas onde também predomina o racismo estrutural, que, como os números mostram, tem aumentado de forma veloz.

Apenas em 2018, os negros (soma de pretos e pardos, conforme classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios - taxa de assassinatos por 100 mil habitantes de 37,8. Comparativamente, entre os não-negros (soma de brancos, amarelos e indígenas), a taxa foi de 13,9, o que significa que para cada indivíduo não-negro morto em 2018, 2,7 negros foram assassinados.

Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 5,2, quase o dobro quando comparada à das mulheres não-negras (ver gráfico).

“Este cenário de aprofundamento das desigualdades raciais nos indicadores sociais da violência fica mais evidente quando constatamos que a redução de 12% da taxa de homicídios ocorrida entre 2017 e 2018 se concentrou mais entre a população não negra do que na população negra. Entre não negros a diminuição da taxa de homicídios foi igual a 13,2%, enquanto entre negros foi de 12,2%, isto é, 7,6% menor”, informa o Atlas da Violência.

O Brasil está promovendo há décadas um verdadeiro genocídio, um crime contra a humanidade. A guerra civil americana foi deflagrada porque os produtores rurais do Sul não aceitavam o fim da escravidão dosa negros. No Brasil, a escravidão chegou bem antes e se tornou a principal característica de nossa sociedade. Aqui, a guerra civil nunca acabou.


Cristiano Romero: Luta contra racismo é a reforma mais importante

Brasil nunca dará certo se combate ao racismo não for 1º item da agenda

O enfrentamento do racismo é muito mais urgente do que a aprovação de qualquer reforma no Brasil. Nada funcionará se o combate institucional ao racismo não se tornar o primeiro item da agenda do Estado brasileiro, sua missão precípua, independentemente do governo do momento.

A adoção de medidas de reparação à população negra (56% dos habitantes deste país) devido à infâmia dos 400 anos de escravidão e dos 120 subsequentes em sua versão 2.0 (dissimulada, covarde e violenta) deveria ser uma rubrica inviolável dos orçamentos públicos. Políticas afirmativas - mais amplas e efetivas que as já previstas em lei - precisariam ser implantadas enquanto, paralelamente, o Estado, em todos os seus níveis, ocupar-se-ia da batalha diuturna e incessante contra a discriminação racial e todas as outras formas de discriminação.

Olhadas de perto, as outras formas de discriminação também derivam dos hábitos e costumes da sociedade escravagista que predominou entre nós (e ainda predomina para a maioria dos brasileiros). A Ilha de Vera Cruz jamais será uma nação se seus habitantes não se reconhecerem no outro, independentemente da origem étnica de cada um. A terrível chaga da escravidão - usada como fator de acumulação de capital desde a chegada dos portugueses - impediu que o país com maior diversidade étnica do planeta criasse uma nação justa, igualitária, pacífica, um “povo novo” na acepção de Darcy Ribeiro e o “país do futuro”, na de Stephan Zweig.

É de um cinismo atroz justificar, com argumentos econômicos, a necessidade de se colocar o racismo no topo da agenda nacional. O que está em discussão são direitos e garantias fundamentais de 109 milhões de brasileiros (56,10% da população, segundo a pesquisa Pnad do IBGE). De toda forma, é de se esperar que, após alguns anos de enfrentamento radical, institucional, do racismo, os índices médios de escolaridade da população cresceriam e a consequência disso na economia seria a elevação da produtividade da economia.

Combater o racismo deveria tornar-se a rotina de todos os cidadãos brasileiros, mesmo que uns não queiram fazer isso. Muitos formadores de opinião, integrantes das elites do Brasil (empresarial, financeira, política, cultural, sindical, da máquina administrativa e estatal), não percebem que o que está em jogo é a sobrevivência da democracia e, portanto (atenção, “farialimers”), da economia de mercado.

Democracia prescinde de igualdade de oportunidades, assim como economias de mercado, de concorrência entre as empresas. Neste imenso país, a população negra e pobre não chega nem ao ponto de avistar oportunidades - sua ambição, antes de mais nada, é viver, existir, sair cedo de casa e voltar vivo. Não há regime democrático, República, portanto, economia saudável, que sobreviva a essa tragédia ad infinitum. Basta ver o desafio pelo qual nossa jovem democracia passa neste momento.

Para quem considera uma mistificação, seguem alguns dados aterradores sobre o extermínio cotidiano a que estão submetidos os negros no Brasil, principalmente, os jovens entre 15 e 24 anos (os dados são do Atlas da Violência, elaborado anualmente pelo Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública

  1. Em 2018 (último dado disponível), 57.956 brasileiros foram assassinados;
  2. do total das vítimas, 75,7% eram negras;
  3. o risco de a vítima ser um negro, na pesquisa de 2018, foi 74% maior para homens negros e 64,4% maior para as negras;
  4. do total de mortos, 30.873 (53,3% do total) eram jovens (atenção, economistas que se debruçam sobre os baixos índices de produtividade da economia brasileira!); o país assiste, passivamente, ao “assassinato” de seu futuro;
  5. em 2018, homicídio respondeu por 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos; 52,2% na faixa entre 20 e 24 anos; e 43,7% das mortes os jovens entre 25 e 29 anos.

O Estado brasileiro, evidentemente, precisa ser reformado para cumprir a Constituição, que, admitamos, encerra um projeto de nação. Todos sabemos que, mesmo tornando o enfrentamento do racismo a prioridade do país por décadas, levaremos gerações até chegar a um lugar menos injusto.

O desafio é enorme, mas tudo indica que a pandemia, ao escancarar o racismo, as desigualdades sociais, a inaceitável concentração de renda, acordou parte da sociedade. Não as elites, com raras exceções. O que se vê por parte de muitas empresas, ainda que se reconheça o aumento da filantropia nesta terrível crise sanitária, são ações marcadas por estratégias de marketing, destinadas, portanto, a valorizar as marcas das empresas num momento de perda e dor para milhares de famílias. Isto, sem mencionar o sofrimento decorrente do empobrecimento brutal provocado pela recessão na qual a pandemia jogou o PIB.

Filantropia deveria ser uma virtude realizada em silêncio, do contrário, soa a oportunismo. Ademais, as doações não deveriam ser abatidas do Imposto de Renda das companhias. Mas, filantropia no momento em que vivemos é muito pouco perto da crise social vivida pela maioria dos brasileiros.

Quem está acordando para a dura realidade é a periferia das grandes cidades, habitantes de Estados de exceção, governados por milicianos e o crime organizado. Em oportuno artigo intitulado “É preciso derrubar o apartheid brasileiro”, Paulo Sérgio Pinheiro indaga: “Por que se sucedem esses horrores em supermercados e shoppings? Porque a instituição da democracia, em trinta anos de plena constitucionalidade, não conseguiu debelar, apesar de políticas afirmativas e quotas raciais, o apartheid que prevalece em todos espaços da vida da população negra, agora maioria de 56% no Brasil”, disse ele. “Não pode haver democracia consolidada com negras e negros sendo executados nas periferias das metrópoles pelas PMs e torturados nas prisões; ausentes de todos os lugares de poder, como o executivo, o legislativo, judiciário, o ministério público; recebendo salários inferiores aos brancos; sendo alvos de racismo no quotidiano.”


Cristiano Romero: A nova onda

Enfrentamento da pandemia agora será muito mais difícil

A segunda onda da pandemia no Brasil já é uma realidade. Em São Paulo, segundo revelou a esta coluna o secretário de Fazenda do governo estadual, Henrique Meirelles, o número de internações nas redes hospitalares pública e privada em São Paulo cresceu 18% neste mês. Isso já caracteriza uma retomada forte do contágio da população pelo novo coronavírus. Aparentemente, a faixa da população mais afetada tem sido as classes A e B, mas não surpreenderá ninguém se, em breve, as estatísticas mostrarem o aparecimento massivo de casos de covid-19 também entre as camadas menos favorecidas da população.

O que é ruim para os Estados Unidos, onde a segunda onda da pandemia tem feito a nação mais rica do planeta bater recordes seguidos de novos casos por dia e mortes, não deveria sê-lo para o Brasil, o vice-campeão no desonroso torneio de quem dá mais vexame nesta crise sanitária. Meirelles afiança que São Paulo adotou os mais rigorosos protocolos de segurança do país, antes de autorizar o relaxamento do isolamento social, especialmente, para as empresas interessadas em voltar o mais rapidamente possível às atividades normais, o que inclui o trabalho presencial.

A nova onda, pelo menos em São Paulo, estaria sendo provocada pelo comportamento das pessoas fora do trabalho, ou seja, na vida privada. De fato, depois de conviver _ e respeitar, em sua maioria _ as restrições impostas pelo isolamento social, paulistanos voltaram às ruas para celebrar a vida. O motivo é justificável, uma vez que o novo coronavírus tem se mostrado muito mais perigoso do que se dizia no início da pandemia e infectar-se ou não é jogar na loteria, mas o fato é que aglomerações, em locais abertos e fechados, são vistas em todos os lugares e não apenas nos bairros boêmios da capital paulista.

O resultado será trágico tanto em número de perdas de vidas quanto em seus impactos na economia brasileira, que passa por situação muito delicada, o que significa que o espaço para minorar os efeitos econômicos de uma nova onda da crise sanitária é diminuto. A pandemia chegou ao país no momento em que a situação das contas públicas começava a melhorar, mas ainda estava muito longe de dobrar o Cabo da Boa Esperança.

Operando com déficits primários (receitas menos despesas, excluído o gasto com juros da dívida pública) desde 2014, o setor público consolidado (União, Estados e municípios) obrigou o Tesouro Nacional a ir ao mercado endividar-se, via emissão de títulos públicos, para poder pagar as contas. Quando gerava superávits no conceito primário, o setor público usava os recursos para honrar os juros da dívida e, se possível, reduzir seu estoque.

O controle da evolução da dívida não é uma abstração. É um expediente que, levado a sério, melhora com o tempo a vida de todos os brasileiros. Senão, vejamos: quanto menor é a dívida de um governo, menor é sua despesa com os juros dessa dívidas e menor também é o seu custo de rolagem (ver tabela). Isso faz com que sobre mais dinheiro no orçamento para o Estado usar no que realmente interessa, numa democracia cujo regime econômico é o livre-mercado: igualar oportunidades por meio de políticas afirmativas que procurem compensar as distorções sociais provocadas pelo racismo, da oferta de ensino fundamental público de qualidade e de saúde universal.

O Brasil quebrou em 1982, nos anos seguintes centralizou o câmbio, aplicou calotes no pagamento das dívidas externa e interna, tornando-se um pária no mercado de crédito internacional. Só recebia dinheiro de instituições multilaterais de crédito e olhe lá. Sucessivos governos depois, sendo que cada um deu sua contribuição para melhorar a situação fiscal, obteve, em 2008, o grau de investimento (o equivalente ao selo de bom pagador) das agências de classificação de risco.

Antes de obter o grau de investimento em maio de 2008, registre-se, o país concluiu a renegociação da dívida externa durante o governo Itamar Franco (1992-1994), promoveu também a federalização das dívidas dos Estados em 1997 na gestão Fernando Henrique Cardoso _ uma medida crucial para a consolidação das contas do setor público e, por que não dizer, para o fechamento de uma das principais fontes inflacionárias da economia brasileira _ e, no governo Lula, antecipou a quitação da dívida do país com o Fundo Monetário Internacional.

Aquele momento teve uma carga simbólica, embora muitos não tenham prestado atenção, até porque, justiça seja feita, o tsunami da crise mundial deflagrada pouco menos de um ano antes nos Estados Unidos já se avistava no horizonte. Mas o fato é que foi justamente a disciplina fiscal dos anos anteriores, consagrada no grau de investimento obtido em maio de 2008, que deu ao Brasil as condições de enfrentar bem aquela que é considerada a maior crise da história do capitalismo. O país sofreu uma recessão técnica (dois trimestres consecutivos de PIB negativo) e, por causa do espaço para adotar estímulos fiscais, saiu da crise rapidamente e, no ano seguinte, expandiu-se à taxa de 7,5%, a mais alta em 24 anos.

Tudo isso virou pó em apenas sete anos. De 2008 a 2015, o gasto corrente da União cresceu 50% acima da variação da inflação no período, enquanto as receitas avançaram 17%. O descompasso provocou a explosão da dívida. Desde então, as contas não saíram mais do vermelho. Com a pandemia e a justificável necessidade de o governo conceder estímulos fiscais para ajudar pelo menos uma parte das empresas afetadas pela crise e dar meios de sobrevivência a um universo de 67 milhões de brasileuiros em situação vulnerável, a dívida chegou, em setembro, ao equivalente a 90% do PIB.


Cristiano Romero: Paulo Guedes, liberal?

Ministro quer a volta da CPMF, o tributo mais antiliberal

Paulo Guedes chegou a Brasília com credencial de liberal formado pela Escola de Chicago. Na prática, o que se vê não se parece nada com o liberalismo de Milton Friedman, maior expoente daquela escola. Com a economia rodando à taxa básica de juros (Selic) em 2% ao ano, o ministro quer recriar a CPMF, tributo que funciona como uma espécie de confisco e do qual o país se viu livre em 2007, por decisão soberana do Congresso.

Por que confisco? Ora, porque a CPMF não taxa diretamente o ganho, a renda, o lucro, o valor agregado nem mesmo o consumo ou a produção, mas, sim, a passagem do dinheiro por uma conta bancária. Basta o sujeito depositar seu dinheiro num banco e já tem que pagar o tributo. É um imposto, na verdade, sobre dinheiro. E, mesmo quem não tem conta, paga indiretamente porque tudo o que compra tem o custo da CPMF embutido no valor.

A CPMF é um tributo regressivo, injusto, pois ricos e pobres pagam proporcionalmente a mesma coisa. Sua incidência em cascata onera toda a cadeia produtiva e, portanto, os preços. Onera, ainda, a formação da taxa de juros.

No momento em que o Banco Central (BC) aproveita a maré de juros historicamente baixos para estimular a competição no sistema de crédito, a CPFM seria mais uma cunha fiscal sobre a intermediação financeira, portanto, um contrassenso.

“Do ponto de vista econômico, a incidência de impostos sobre operações de captação de recursos e concessão de empréstimos constitui uma distorção introduzida pelo governo na livre formação de um preço, a taxa de juros. Por representar um ônus para o tomador, mas não um bônus para o poupador, a tributação desestimula tanto o investimento quanto a poupança”, dizem, no estudo “A Cunha Fiscal sobre a Intermediação Financeira”, Renato Fragelli, do Ibre-FGV, e Sérgio Mikio Koyama, do BC. “Trata-se, portanto, de um entrave à boa alocação inter-temporal de recursos na economia, com consequências de longo prazo sobre o crescimento econômico.”

A cunha fiscal imposta pela CPMF não é sobre o spread bancário, isto é, sobre a diferença entre a taxa de juros dos empréstimos e o custo de captação dos bancos. A CPMF é paga diretamente por quem toma um financiamento e também pelo investidor que compra um CDB emitido pelos bancos, logo, o tributo não está contido no spread.

Observe-se que a margem de lucro dos bancos em operações de crédito está dentro do spread, logo, a CPMF não alcança a rentabilidade das instituições financeiras, como apregoam alguns defensores desse tributo.

No estudo que fizeram para o Banco Central, Fragelli e Koyama identificaram sete impostos recolhidos ao longo da intermediação de recursos entre um poupador e um tomador de empréstimo bancário - isto, sem falar do recolhimento compulsório sobre depósitos à vista, prazo e poupança - hoje, respectivamente, 21%, 17% e 20%, percentuais bem menores do que os exigidos no passado.

“No grupo de impostos que tipicamente constituem uma distorção da atual estrutura tributária estão o PIS, Cofins e CPMF. Trata-se de tributos que não têm relação direta com o valor adicionado das empresas, pois, incidem (em cascata) sobre o faturamento das empresas. No caso da CPMF, a distorção é particularmente grave, pois ela só se faz presente quando a troca entre empresas dá origem a saques de conta corrente”, explicam os dois especialistas no estudo.

O liberalismo do ministro Paulo Guedes entorta também em temas como “o que fazer com o dinheiro levantado na venda de estatais”. Num país em desenvolvimento cuja dívida pública caminha para o equivalente a 100% do Produto Interno Bruto (PIB), Guedes defendeu que o dinheiro arrecadado com privatizações vá para o custeio de programas sociais. A ideia não era ruim antes apenas porque saía da cabeça de economistas de esquerda durante campanhas eleitorais.

Nota do redator: no primeiro mandato (2003-2006), o presidente Lula, entre outras medidas fiscais austeras, aumentou o superávit primário das contas públicas em 0,5% do PIB (num esforço fiscal nunca feito antes na história deste país); antecipou o pagamento da dívida com o FMI - nada mal para quem apregoava a realização de auditoria na dívida e suspensão de seu pagamento -, e aprovou mudanças na Constituição de 1988 para instituir a contribuição de aposentados do setor público à previdência e igualar as regras de aposentadoria do funcionalismo público federal com as do trabalhadores do setor privado.

Ora, a dívida existe e é crescente porque o gasto público não cabe dentro do orçamento, isto é, porque a despesa supera a arrecadação de tributos e impostos. Daí, a necessidade de ajuste fiscal. Digamos que todas as estatais fossem vendidas, e os recursos obtidos fossem destinados ao pagamento de programas sociais. O dinheiro seria suficiente para bancar no máximo um ano, se tanto, dessas despesas. Depois disso, o governo voltaria a se endividar.

Com a dívida voltando a crescer, a despesa com juros também cresce e o custo disso - a taxa de juros exigida pelo mercado para continuar financiando o Tesouro - tende a aumentar exponencialmente. O déficit público escala e, aí, não se tenha dúvida, Brasília, premida a reequilibrar o orçamento, cortará verbas onde é mais fácil fazer isso - dos programas sociais, afinal, pobre - a maioria da população - não tem representante no centro do poder.

De onde Guedes e sua equipe propuseram tirar dinheiro para custear o “Renda Brasil”? Do congelamento, por dois anos, das aposentadorias pagas pelo INSS a 35 milhões de brasileiros, sendo que 70% desse contingente recebe um salário mínimo (R$ 1.045,00) por mês.

A propósito, dinheiro de que privatizações? Desde que assumiu embalado por um discurso liberalizante nunca visto por aqui desde a chegada do navegador espanhol Vicente Pinzón à “Praia do Paraíso” (hoje, Cabo de Santo Agostinho, litoral pernambucano) em 1499, antes, portanto, do português Pedro Álvares Cabral, o atual governo não vendeu uma estatal sequer, para deleite das corporações, de seus fundos de pensão e das empresas privadas que lucram com a ineficiência do Estado.

Ora, a dívida existe e é crescente porque o gasto público não cabe dentro do orçamento, isto é, porque a despesa supera a arrecadação de tributos e impostos. Digamos que todas as estatais fossem vendidas e os recursos obtidos fossem destinados ao pagamento de programas sociais. O dinheiro seria suficiente para bancar no máximo um ano, se tanto, dessas despesas. Depois disso, o governo voltaria a se endividar. A propósito, que privatizações?


Cristiano Romero: O que está por trás da “pedalada cidadã”

Estímulo oficial injetou o equivalente 9% do PIB na economia

A crise econômica provocada pela pandemia fez o Produto Interno Bruto (PIB) do país encolher 11,9% no primeiro semestre, desempenho equivalente ao dos países menos impactados pelo novo coronavírus. O mergulho poderia ter sido muito mais profundo se o governo e o Congresso Nacional não tivessem concordado em aprovar, rapidamente, o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, entre abril e agosto, a milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade e a concessão de estímulos fiscais a empresas.

Sabe-se que milhões de brasileiros e milhares de micro e pequenas empresas, principalmente no setor de serviços, não viram a cor do dinheiro oficial. Ainda assim, o desembolso feito pelo governo federal foi significativo. A economista Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro Nacional e atualmente chefe da equipe macroeconômica do banco Santander, calcula que os estímulos injetaram cerca de 9% do PIB na economia.

“A principal medida de apoio às famílias, o auxílio emergencial, chegou a 67 milhões de beneficiários, ou 64% da população economicamente ativa, com valor médio de R$ 845 por beneficiário entre abril e agosto”, diz Ana Paula em relatório enviado a clientes.

Nos dois primeiros meses da pandemia, as projeções de bancos e gestoras de recursos previam queda de até 9% do PIB neste ano. Agora, é difícil encontrar alguém ainda prevendo essa queda. No boletim Focus, do Banco Central, a mediana das expectativas do mercado para o PIB em 2020 está em 5,04%, sendo que, há quatro semanas, estava em 5,28%.

Ana Paula Vescovi e sua equipe no Santander revisaram sua projeção de PIB para este ano de -6,4% para -4,8%. Para uma economia que amargou recessão longa e profunda entre 2014 e 2016 e, na sequência, cresceu pouco mais de 1% entre 2017 e 2019, o cenário atual continua trágico, mas melhor do que se esperava há dois meses.

Além dos estímulos oficiais, outros fatores ajudaram a diminuir o tombo da economia brasileira. “O primeiro fator surpresa foi o setor externo. As exportações se sustentaram de certa forma, ajudadas pela safra recorde, e com demanda firme e preços elevados de produtos agropecuários. Os preços de internacionais do petróleo, inicialmente atingidos pela guerra de preços entre Rússia e Arábia Saudita, voltaram a se recuperar”, observa o relatório do Santander.

O índice CRB, que reflete os preços de commodities agrícolas, minerais e metálicas, teve desempenho acima do esperado entre agosto e setembro, tendo já retornado ao patamar anterior ao da pandemia. Foi crucial, nesse aspecto, o fato de a China, primeiro epicentro da crise sanitária, ter controlado o avanço do novo coronavírus mais cedo, permitindo a reabertura mais rápida de sua economia, a segunda maior do planeta.

“Com estágio anterior em termos de contágio, China, Europa e Estados Unidos vêm demonstrando recuperação mais acentuada que o inicialmente previsto. O Brasil segue na mesma direção”, compara o relatório da equipe chefiada por Ana Paula Vescovi.

“Em função de uma expectativa de queda um pouco menos acentuada na demanda doméstica este ano (-5,4%, contra -7,6% anteriormente), revisamos nossa projeção de superávit em transações correntes de 0,1% do PIB para um déficit de 0,6% do PIB em 2020, ainda próximo ao equilíbrio, e convergindo para um déficit de 1,6% do PIB em 2022, patamar menor relativamente ao do pré-crise”, prevê o relatório do Santander.

Com a reação surpreendente dos setores “tradable” (de bens comercializáveis) e com a extensão do auxílio emergencial com valor reduzido à metade (R$ 300) até dezembro, Ana Paula projeta recuperação mais gradual a partir de 2021, com o nível de atividade voltando ao período anterior ao início dos casos de covid-19 não antes do segundo trimestre de 2022.

“O consumo vem impulsionando a recuperação da atividade, com o avanço dos canais de vendas digitais e com o aumento de renda (as transferências) nos grupos com maior propensão ao consumo de bens. As vendas do varejo (no conceito ampliado, que inclui automóveis) praticamente já voltaram ao patamar pré-crise”, informa o relatório do Santander. “A recuperação do setor de serviços tende a ocorrer mais gradualmente, na esteira da reabertura da economia e da volta dos serviços prestados às famílias, especialmente de educação, saúde, turismo, lazer, entre outras.”

E o que acontece de agora em diante? O corte à metade do valor do auxílio emergencial a ser pago entre este mês e dezembro reduzirá substancialmente o dinheiro que a classe menos favorecida de brasileiros vinha jogando na economia. As transferências implicam expansão da massa ampliada de salários, calcula a equipe de economistas do Santander, em 3,9% neste ano, face a 6,0% de queda se o auxílio não tivesse sido concedido.

Ainda assim, o desemprego alcançará 17 milhões de pessoas no seu pico, em maio de 2021, devendo cair gradualmente para 16 milhões no fim de 2022. Taxa de desemprego registra o número de pessoas à procura de ocupação. Durante a pandemia, por motivos óbvios, trabalhadores desempregados não tinham como buscar vagas.

“A taxa de desemprego sustentar-se-á no patamar acima de 15% até o fim de 2022, por causa da volta gradual de um contingente de trabalhadores procurando emprego após a pandemia”, explica o relatório do Santander. É evidente que vem daí a preocupação do presidente Jair Bolsonaro, da área política de seu governo e de seus aliados no Congresso. A turma já está preocupada com 2022 e, por isso, cometeu o desatino de propor financiar o Renda Cidadã com dinheiro (precatório) que não pertence à Viúva, mas a contribuintes - uma pedalada de fazer corar de inveja o ex-secretário Arno Augustin…

Bolsonaro assumiu o poder em com planos para desidratar o Bolsa Família, programa de transferência de renda bem-sucedido, dotado de aspectos incomuns a esse tipo de iniciativa e desenvolvido genuinamente no Brasil, resultado da colaboração inédita dos entes da Federação - União, Estados e municípios - e de diversos órgãos públicos e copiado em mais de 60 países. Um programa barato - R$ 32 bilhões (menos de 0,5% do PIB) por ano - que vai além da renda básica.


Cristiano Romero: Estabilidade não evitou corrupção no Estado

“Pedalada fiscal” é exemplo de interferência

Preocupados com a interferência partidária na gestão de políticas públicas, os constituintes consagraram na Constituição de 1988 a estabilidade dos funcionários públicos no emprego. O ambiente em que o assunto foi debatido não poderia ser pior. O país vivia grande efervescência política, partidos de esquerda e entidades da sociedade civil saíram da clandestinidade - a UNE (União Nacional dos Estudantes) foi legalizada em cerimônia no Palácio do Planalto - e a imprensa respirava ares mais democráticos.

Estávamos no governo de José Sarney (1985-1990), o primeiro presidente civil depois de 21 anos de ditadura militar. O momento era de transição de regime, uma vez que Sarney fora o vice da chapa eleita pelo Congresso Nacional. Tancredo Neves, o cabeça de chapa, adoeceu na véspera da posse (15 de março de 1985) e não assumiu, vindo a falecer em 21 de abril.

Pausa para o cafezinho: Tancredo não tomou posse, mas, oficialmente, sim; ele foi o primeiro presidente da Nova República. Sua eleição resultara de acordo firmado entre os generais e a oposição, na ocasião liderada pelo então deputado Ulysses Guimarães. Este os militares não admitiam que assumisse a Presidência na transição, por isso, rejeitaram a possibilidade de eleição direta naquele momento. No fim, a candidatura da oposição era encabeçada por um integrante da chamada resistência democrática (Tancredo, do PMDB) e por um prócer da ditadura (Sarney). Com a impossibilidade de posse de Tancredo, generais da linha-dura quiseram impedir que Sarney tomasse posse. Por pouco, o epílogo do regime militar não foi postergado…

Com a liberdade que lhe foi suprimida durante longos 21 anos, a imprensa cumpriu papel crucial no início da Nova República. Brasileiros tomaram conhecimento todo dia pelos jornais, canais de televisão e rádios de casos de corrupção. A impressão, absolutamente equivocada, era a de que, num governo civil, isto é, no regime democrático, a corrupção grassa com desprendimento.

A resposta dos constituintes foi estabelecer na lei máxima do país o direito de todos os funcionários, e não apenas dos ocupantes de carreiras típicas de Estado (diplomata, auditor da Receita Federal, funcionário do Banco Central, juiz, procurador etc), à estabilidade no emprego. Esta vale, portanto, para servidores da atividade-meio dos órgãos públicos e prestadores de serviço (segurança, limpeza etc).

Além da estabilidade, a Constituição premiou o funcionalismo com o direito à aposentadoria integral e à paridade, que garante a aposentados os mesmos reajustes salariais de quem está na ativa. A aposentadoria integral foi extinta pela reforma proposta pelo governo Lula (2003-2006 e 2007-2010) e regulamentada pela gestão Dilma Rousseff (2011-2014 e 2015-2016).

A Carta Magna prevê a demissão de funcionários estáveis, mas todos sabemos que isso só ocorre em casos de comprovado envolvimento do servidor com corrupção.

A estabilidade assegurada após estágio probatório de dois anos é privilégio e não direito adquirido ou benefício concedido por mérito. Estabilidade deveria ser conquistada ao longo da carreira, cumpridos critérios objetivos de desempenho.

A pergunta que não cala é a seguinte: a estabilidade no emprego evitou a corrupção e a interferência de inquilinos do poder em políticas típicas de Estado? A resposta é não.

Duas instituições de excelência viveram, recentemente, situações de interferência política, sem que tenham reagido a tempo de evitar os problemas decorrentes da ação governamental. Foi no caso das chamadas “pedaladas fiscais”, expressão cunhada pelo jornalista e colunista Ribamar Oliveira, do Valor, para a prática irregular usada pelo governo Dilma Rousseff.

A pedalada consiste no seguinte: em vez de transferir aos bancos federais recursos orçamentários para o pagamento de programas federais, o governo ordenou que as instituições bancassem essas despesas; agindo dessa forma, o então Ministério da Fazenda escondia a verdadeira dimensão do déficit das contas públicas, uma vez que esses pagamentos não apareciam como despesa primária; por conseguinte, isso lhe permitia gastar mais, com vistas a melhorar o desempenho da economia, o que por sua vez atenderia ao objetivo político de reeleição da presidente em 2014.

Essa manobra foi realizada durante dois anos. O distinto público só tomou conhecimento da verdadeira situação das finanças governamentais depois do período eleitoral, em novembro de 2014. Num seminário promovido em São Paulo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, mostrou tabela com os “novos” números do déficit fiscal. Este saltou de 3% para 7% do PIB.

Como até o dia anterior, o conhecido eram os 3%, um ilustre integrante da mesa daquele evento - o ex-ministro e ex-deputado Delfim Netto - comentou ao ouvido do titular desta coluna: “O Guido errou. O número não é esse”. Infelizmente, tendo tomado conhecimento do valor correto um dia antes, o colunista disse: “Está certo, ministro, é isso mesmo”. Delfim fez silêncio por um instante, olhou para Mantega e comentou baixinho, com seu forte sotaque paulistano-italiano: “Eles quebraram o país”.

Pano rápido. Nos bastidores da tragédia, uma grande lição: a estabilidade no emprego não fez com que funcionários do Tesouro Nacional, do Banco Central, do Banco do Brasil (BB) e da Caixa denunciassem a manobra feita nas contas públicas com objetivos político-eleitorais. Antes que se afirme que empregados do BB e da Caixa não tenham à estabilidade, pense duas vezes. De fato, a lei não lhes assegura estabilidade, mas é o que eles têm de fato. Alguém já testemunhou a dispensa de algum funcionário do BB, da Caixa, do BNDES, do Banco do Nordeste e do Banco da Amazônia por incompetência?

A cultura patrimonialista da Ilha de Vera Cruz é tão arraigada que servidores públicos agem como se fossem donos do Estado. Isso precisa mudar, do contrário, o nobre projeto de nação inscrito na Constituição de 1988 jamais será implementado.


Cristiano Romero: Projeto de nação sem Estado para executá-lo

Constituição de 1988 lançou um projeto de nação

A sociedade brasileira deu um passo enorme em seu processo civilizador ao incluir em sua Constituição direitos e garantias fundamentais que, até então, eram relevadas pelo Estado brasileiro.

Direitos e garantias fundamentais têm como objetivo proteger o cidadão da ação do Estado, além de assegurar o mínimo para que todas as pessoas que vivem neste imenso território, brasileiras e estrangeiras, tenham uma vida digna.

A Constituição de 1988 se inspirou claramente na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), anunciada em 1948, fruto do trauma provocado pela Segunda Guerra Mundial. Aquele conflito decorreu da ascensão de movimentos e grupos políticos extremistas de direita, cujo ideário rejeitava os princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, escrita durante a Revolução Francesa de 1789, a primeira tentativa de universalização dos direitos humanos.

O objetivo da Carta Magna brasileira foi conferir dignidade à vida humana e proteção dos indivíduos frente à atuação do Estado, que é obrigado a garantir e prezar por tais direitos e garantias.

Não é fácil a luta das sociedades contra o absolutismo de grupos políticos absolutistas e de Estados fundados em princípios autoritários.

O documento da ONU, do qual o Brasil é signatário, baseou-se no da Revolução Francesa. Somente 199 anos depois, a Ilha de Vera Cruz consolidou um marco legal - a Constituição de 1988 - para universalizou direitos e proteger o cidadão da sanha autoritária de grupos que, mesmo minoritários, decidem a seu bel prazer os destinos do país.

A Carta Magna, entre outras inovações, universalizou o acesso gratuito da população à saúde e à educação. Dois outros exemplos precisam ser mencionados, entre tantos outros: a instituição da aposentadoria rural e a criação de um benefício social - o BPC - que, recentemente, tem sido objeto de acalorado debate.

No primeiro caso, trataram os constituintes de 1988 de entender que o Brasil não poderia ignorar o fato de que, até a década de 1960, a maioria da população vivia no campo. Tendo sido a economia que cresceu de maneira mais rápida na história da humanidade entre as décadas de 1950 e 1970, o processo de urbanização se deu forma acelerada, gerando enorme desigualdade, entre outros problemas sociais de difícil solução. A aposentadoria rural, sem a exigência de contribuição dos beneficiários, foi o reconhecimento de que milhões de brasileiros que trabalhavam no campo não poderiam ser deixados ao relento.

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) foi adotado para atender basicamente a dois públicos: as pessoas que, por deficiência física ou mental, não conseguem trabalhar, e aqueles que, aos 65 anos, vagam pelas cidades, principalmente, as capitais, sem emprego, sem vínculo familiar, sem registro de identidade, muitos, sem memória… A Civilização diz que esses cidadãos têm direito a receber um salário mínimo por mês.

O Brasil escolheu a democracia como regime político e a economia de mercado como regime econômico. Os dois sistemas de convivência humana, organização social, são imperfeitos por definição.

Em ambos, a mercadoria mais valiosa é a informação (usada aqui no seu conceito mais amplo, isto é, sem estar restrito a notícias jornalísticas).

Quem detém mais informação, mais formação, tende a ter vantagens tanto no regime democrático quanto na prosperidade econômico. A democracia e a economia de mercado são uma espécie de corrida - em tese, cabe ao Estado atuar para que todos os “corredores” partam da mesma posição.

À medida que alguns avancem a ponto de ficarem muito distantes dos “retardatários”, cabe ao Estado atuar para diminuir essa distância, em prol do “contrato social” que assegure a sobrevivência da democracia.

Nos regimes democráticos, quem tem poder econômico possui também mais poder políticos sobre os demais cidadãos. É por essa razão que democracia avançadas não permitem, por exemplo, a existência de oligopólios no setor produtivo e financeiro. Porque têm um poder desmedido que torna qualquer democracia num simulacro do que deveria ser.

As alternativas ao binômio democracia-economia de mercado são muito piores. Basicamente, porque negam a característica inerente a todo ser humano, que é o direito à liberdade.

O que tudo disso tem a ver com a previdência rural e o BPC? Ora, nos dois casos, trata-se do reconhecimento de que há falhas nas democracias e em suas respectivas economias de mercado com as quais precisamos lidar. Não é possível que alguém ainda veja mendigos nas ruas e pensem: “São vagabundos que não querem trabalhar”. Nota do redator: a maioria trabalhava em empresas que sucumbiram à sucessão de malfadados planos econômicos; ademais, se esses brasileiros ao menos soubessem da existência do BPC…

Aprendemos, no Brasil, a conviver com a desigualdade e achar que está tudo certo, afinal, o livre arbítrio deve prevalecer sobre todas as coisas. A Constituição diz que não deveríamos pensar assim. Gente de bem neste país, a maioria, se questiona: por que nossas escolas não ensinam às crianças, desde a tenra idade, os princípios civilizadores consagrados por nossa Carta Magna?

A Constituição de 1988 encerra um belo projeto de nação, da nação que não somos. Mas, essa ambição só terá a chance de se materializar quando dotarmos o Estado brasileiro de características que, hoje, ele não tem (este tema será tratado aqui de forma exaustiva daqui em diante). O Estado que temos, concentrador de renda e absolutamente desprovido de instrumentos para exercer seu papel, precisa ser reformulado imediatamente.


Cristiano Romero: A reforma esquecida

Reformar Estado não é demonizar servidor público

No país das reformas que nunca são concluídas, a administrativa é inadiável. Na verdade, deveria ter sido feita antes mesmo da reforma previdenciária e, agora, deveria ser apreciada antes da reforma tributária, que atolou e cujo destino é o fracasso, uma vez que trata de interesses inconciliáveis da União com os demais entes da Federação, dos Estados mais ricos com os menos afortunados e do governo central (leia-se, o Fisco) com as empresas.

Sem que se reforme o Estado brasileiro, o gasto público continuará sendo alto e pouco efetivo. A carga tributária (em torno de 33% do PIB), uma das maiores dos países em desenvolvimento, terá que ser sempre elevada para bancar despesas crescentes - mesmo nesse patamar, a arrecadação não cobre desde 2014 nem sequer a despesa primária (conceito que não inclui o gasto com juros).

Sem reforma, os serviços públicos prestados à população, principalmente a mais pobre, serão sempre de baixa qualidade. A competitividade das empresas brasileiras face aos concorrentes internacionais estará sempre comprometida, o que é ruim para todos, porque isso gera menos riqueza, portanto, menos empregos, menos renda etc.

O Brasil tem um Estado caro e um serviço público de baixa qualidade. Isso torna irrefutável a necessidade de reforma. Tem algo errado e, sem demonização do funcionalismo público, a sociedade precisa acordar para o problema. Tome-se o caso da educação: apesar dos avanços ocorridos desde a promulgação da Constituição, em 1988, especialmente no que diz respeito à universalização do ensino básico, o gasto chegou a 6% do PIB, mas a qualidade não acompanhou.

O senador Antonio Anastasia (PSD-MG) criou, com a ajuda da colega Kátia Abreu (PP-TO) e do deputado Tiago Mitraud (Novo-MG), a Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa (FPMRA). Sem alarde, o grupo está dialogando com todas as partes envolvidas no tema, para formular um conjunto de projetos de lei, além de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), destinados a reformar profundamente a forma como o Estado brasileiro funciona.

A frente, presidida pelo deputado Mitraud, apresentrará as propostas em setembro. A estratégia de separar os projetos por assunto, em vez de colocar todos num só, é realista. É possível que alguns aspectos das mudanças tenham amplo apoio dos parlamentares e outros, menos. Para evitar tumulto e corrida por pedidos de aposentadoria, fato recorrente na tramitação de propostas que alteram direitos individuais e coletivos, Anastasia, que é funcionário público licenciado (professor de direito da UFMG), informa que a reforma não mexerá nos direitos adquiridos de quem já está no serviço público.

Pretende dialogar com o ministro Paulo Guedes.
Por incrível que pareça, o país andou para trás na área administrativa. Anastasia lembra que, entre 1938 e 1985, o governo federal teve um órgão central - o Dasp - para gerir todas as carreiras do serviço público. Era uma espécie de RH do serviço público. No início da Nova República, o Dasp foi extinto e a Constituição de 1988 acabou submetendo todas as carreiras debaixo o Regime Jurídico Único. Criou-se uma anomalia, cujo maior prejudicado, claro, é o usuário de serviços públicos.

Esse regime instituiu uma aberração - a isonomia salarial entre as diferentes carreiras do serviço público. O objetivo era evitar que os salários de determinadas carreiras se tornassem muito mais altos que o de outras. Ora, além de não fazer sentido, a regra criou em Brasília uma espécie de corrida ao ouro. Como não havia mais o Dasp, os funcionários dos diferentes órgãos fortaleceram seus sindicatos e foram à luta, ano a ano, em busca de vencimentos mais e de outras vantagens.

A maluquice ensejou a seguinte situação: nas disputas judiciais, diante da ausência do Dasp, quem representa a União é um funcionário público do mesmo órgão cujos servidores estão em litígio por mais salário e benefícios. O incentivo não poderia ser pior, logo, é fácil entender por que o funcionalismo goza de vencimentos e vantagens incomparáveis aos da média dos trabalhadores do setor privado.

Reformas institucionais
Os livros de história nos contam que a sociedade brasileira demanda, desde sempre, a realização de reformas institucionais para modernizar o país e destravar o crescimento econômico. Nos momentos em que houve ruptura institucional - 1930, 1937, 1964 - ou transição pacífica de regime (1985), a necessidade de promover reformas foi o motivo condutor (o “leitmotiv”) das mudanças.

Em 1930, a República proclamada havia 41 anos era manca. A elite política de apenas dois Estados (São Paulo e Minas Gerais), amparada por oligarquias rurais dos segmentos de café e pecuária, comandava o país. A Ilha de Vera Cruz, tão rica em possibilidades, padecia de atraso injustificável.

Não tinha mesmo como ser diferente: a era republicana nasceu de um golpe militar, entre outras razões, porque os barões do café e proprietários rurais em geral não engoliram a decisão (tardia, muito tardia) do imperador Dom Pedro II, tomada um ano antes, de abolir a escravidão. Além de não aceitarem o fim da infâmia com a qual convivemos durante 400 anos - e que se tornou, por essa razão, uma das principais características de nossa sociedade -, os fazendeiros queriam ser indenizados por ter perdido “patrimônio” (os escravos).

Transcorridas quatro décadas, a política do café com leite viveu seu ocaso e Getulio Vargas assumiu o poder, em 1930, por meio de uma “revolução”. O terreno era minado porque São Paulo, o Estado mais rico e principal sustentáculo da República Velha, não se aquietaria com facilidade. Getulio chegou ao poder com a promessa de implantar uma série de reformas, mas sua preocupação era uma só: evitar a tomada do poder por São Paulo. Em 1932, os paulistas tentaram tomar o poder, não deu certo e, desde então, jamais um getulista conseguiu triunfar eleitoralmemte no Estado.

Em 1937, por meio de um golpe militar dentro do golpe, Getulio instaura a ditadura do Estado Novo. Em 1945, cai, mas, o general (Eurico Dutra) que lhe apoiou oito anos antes ganha a eleição presidencial. Getulio vence o pleito seguinte e, como em 1930, promete realizar reformas que modernizem o país. Acuado pela oposição e por setores das Forças Armadas, faz o oposto do que seria uma reforma modernizante - a institucionalização do monopólio estatal do petróleo e a criação da Petrobras; na mesma época, havia apenas 25% das crianças nas escolas, mas reforma para lidar com esse problema ninguém fez.


Cristiano Romero: O retorno à década perdida

País demorou a debelar a inflação por não aceitar o fracasso do passado

A economia brasileira demorou para livrar-se da inflação alta porque se recusou a mudar o modelo de desenvolvimento que prevalecera nas décadas anteriores. A chamada “crise da dívida”, em 1982, deixou claro que o setor público não teria mais como continuar financiando investimentos, a exemplo do que vinha fazendo desde a década de 1970. A fonte externa de recursos esgotara e a capacidade de endividamento chegara ao limite.

No fim da década de 1970, o país passou a conviver com taxas de inflação muito altas. Inflação crônica, elevada, realidade que os brasileiros com menos de 30 anos desconhece, é uma espécie de nevoeiro forte, que impede empresários e consumidores de enxergar adiante. Isso provoca duas consequências negativas que, combinadas, solapam a atividade econômica ao longo do tempo: por causa da rápida corrosão do seu poder de compra, o consumidor modera as compras e o empresário, por perder a capacidade de planejar o futuro imediato, passa a investir cada vez menos.

Ao seguir convivendo com as fontes inflacionárias criadas pelo modelo de desenvolvimento superado pela crise de 1982, o país experimentou várias tentativas fracassadas de estabilizar os preços. Em 1986, o Plano Cruzado trouxe muita esperança aos brasileiros porque, na largada, derrubou os preços, desinflou as taxas de juros embutidas nos contratos firmados antes do lançamento do plano e deu ganho real de renda aos trabalhadores.

O Cruzado fracassara porque, como a economia era fechada, tornou-se impossível manter baixos os preços dos produtos vendidos no mercado interno. Preços e salários foram congelados justamente para aplicar um forte choque na carestia. A estratégia, usada antes por outras economias, inclusive, a americana (no fim da década de 1960), funcionou no início. Ocorre que o mercado fechado a importações logo enfrentou alguns problemas.

Com o ganho de renda real obtido pela queda abrupta da inflação, os brasileiros passaram a consumir mais imediatamente. Havia demanda reprimida provocada pelo período anterior, de inflação crescente. O problema é que isso começou a provocar desabastecimento em alguns setores, uma vez que não houve tempo nem confiança suficientes para as empresas investirem em aumento da capacidade de produção. Além disso, a existência de uma miríade de restrições a importações impedia a entrada de produtos estrangeiros mais baratos para suprir a demanda aquecida e forçar a queda dos preços dos similares nacionais.

Interessado em vencer as eleições de 1986, o então presidente José Sarney deu as costas para os problema do Cruzado, isto é, não permitiu que a equipe econômica do governo fizesse os devidos ajustes de rota necessários. Sua estratégia eleitoral deu certo - o PMDB, seu partido, elegeu todos os governadores, com exceção ao de Sergipe. Mas, concluído o processo eleitoral, decretou-se o fracasso do plano. O congelamento de preços e salários foi revogado e a inflação logo retomou sua trajetória rumo ao espaço.

Depois do Cruzado, mais três planos econômicos fracassaram na missão de debelar a inflação: Bresser (1987), Verão (1989) e Collor I (1990) e Collor II (1991). O Verão, como já mencionado por esta coluna nesta série sobre a economia brasileira desde 1964, começou a enfrentar algumas das fontes inflacionárias, como o desmonte do Estado paquidérmico, presente em praticamente todos os setores da vida nacional. Naquele período (1985-1990), é de se notar também que foram eliminados o orçamento monetário e a conta-movimento, duas jabuticabas inflacionistas. Além disso, foi criada a Secretaria do Tesouro Nacional.

O Plano Collor, como se sabe, confiscou os ativos financeiros e, por essa via, tentou conter uma das fontes da inflação brasileira à época - o descontrole das contas públicas, uma vez que os títulos da dívida pública, transformados em quase-moeda (ativos que possuem características de ser medida de valor e reserva de valor, mas não são utilizados como intermediário de troca, como a moeda), ajudavam a inflacionar a economia. Também não deu certo, assim como seu sucedâneo, o Collor II, lançado em fevereiro de 1991.

O fracasso sucessivo dos planos econômicos tornou a inflação cada vez mais alta e resistente a choques. Os formuladores do Plano Real, lançado em 1994, foram praticamente os mesmos do Cruzado, com exceção de Gustavo Franco e Winston Fritsch, que não participaram do experimento de 1986. A turma do Real constatou que o Cruzado fracassara porque a economia fechada fora um constrangimento incontornável, inexistente em 1994. Outro fator relevante: a disponibilidade de divisas (reservas cambiais) para ajudar a manter a taxa de câmbio comportada.

Neste momento, o país não sofre mais do mal da inflação, mas sua economia sofre, a exemplo do que ocorreu nos anos 80 do século passado, os males da década perdida (ver gráfico acima). A saga continua.