Crises políticas

Venezuela, rumo ao autoritarismo

Se o chavismo ignorar as eleições regionais de dezembro, o país será oficialmente um Estado autoritário

São três as medidas das quais Nicolás Maduro está se valendo para a criação de um Estado autoritário na Venezuela, desprezando a pluralidade política existente no país, a desejo popular expresso nas urnas e a vontade da comunidade internacional de facilitar uma saída para a crise política que também permita aliviar a extrema penúria na qual a população foi submetida.

A primeira é a vexatória tática procrastinadora de impedir em tempo e forma a realização de um referendo revogatório que, segundo as pesquisas, desterraria Maduro do poder e acabaria com 18 anos de chavismo. O descumprimento sistemático dos prazos legais, os obstáculos colocados para que a oposição reúna os requisitos, a escassez injustificada de material para a verificação de assinaturas e o absurdo de prazos quase impossíveis de cumprir representam uma coleção de argúcias que desacreditam totalmente qualquer insinuação de boa vontade de Maduro no sentido de respeitar uma lei idealizada e promulgada pelo próprio Hugo Chávez.

Igualmente grave é a ocorrência do regime de imputar ao preso político Leopoldo López a morte de 43 pessoas durante as manifestações antichavistas de fevereiro de 2014. Para o chavismo, deve ser frustrante que, longe de ficar esquecida tanto dentro do país como pela comunidade internacional, a liberação dos presos esteja no topo das exigências para a resolução da situação. López foi preso ilegalmente, submetido a uma vergonhosa farsa de julgamento e encarcerado sem garantias à sua integridade. Voltar a julgá-lo revela a natureza abjeta de Maduro e de seu regime.

Finalmente, vêm as insinuações em relação às eleições regionais de dezembro. O chavismo diz agora que a prioridade é a “guerra econômica”. Esperamos que não pretenda ignorar essa eleição, pois, se assim for, a Venezuela será oficialmente um Estado autoritário.


Fonte: El País


Fernando Henrique Cardoso: A crise do Brasil

Devemos demonstrar que podemos reinventar o significado e os rumos de nossa política

Em 31 de agosto, o Senado brasileiro destituiu a presidenta Dilma Rousseff. Após cinco longos dias de debate, 61 dos 81 senadores, muito acima dos dois terços necessários para se destituir um presidente, a condenaram por crimes fiscais e orçamentários. Seus partidários disseram que a presidenta foi vítima de um “golpe parlamentar”. Haviam retirado do poder injustamente uma pessoa eleita por 54 milhões de votos, inocente de quaisquer crimes. Na América Latina modelos de democracia e Estado de direito como Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador ecoaram esse protesto.

Certamente, nada disso é verdade. A realidade, como de costume, fala por si só. O processo de impeachment foi ao mesmo tempo judicial e político. O procedimento estabelecido pela Constituição brasileira foi seguido ao pé da letra. As duas Câmaras do Congresso aprovaram por maioria absoluta, primeiro, o início do processo, e depois, a condenação da presidenta. O julgamento realizado no Senado foi liderado pelo presidente do Supremo Tribunal. O principal órgão judicial do país reafirmou diversas vezes a legitimidade do processo. Mas é certo que não estavam em jogo somente os crimes de uma pessoa, mas muitas outras coisas. O processo foi o resultado da convicção, expressada nas ruas por milhões de brasileiros, de que o sistema de poder instituído pelo ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores é o culpado pelo fato do Brasil afundar na crise econômica, política e moral mais grave desde a restauração da democracia em 1985.

Dilma, em sua defesa no Senado, muito emocionada, insistiu em sua inocência. Mas sua beligerância não a justifica e não a absolve de sua irresponsabilidade fiscal – os bilhões de dólares transferidos ilegalmente a empresas privadas e estrangeiras – e de sua incapacidade, quando presidia o conselho de administração da Petrobras, para impedir o saque da maior empresa brasileira em benefício do PT e dos demais partidos que apoiaram seu Governo.

E o que tudo isso nos deixou? Sem dúvida, as ilusões perdidas de todos os que acreditaram nas promessas do PT. Mas também uma economia em recessão e um desemprego em massa, uma sociedade destroçada por uma onda sem precedentes de escândalos de corrupção e um sentimento generalizado de decepção. Mesmo que a presidenta não tenha sido a autora dos atos de corrupção, revelados graças a uma imprensa independente e juízes sem medo, ela se beneficiou politicamente deles. Os políticos processados pertencem a tantos partidos que, na realidade, é a “classe política” em seu conjunto que está sendo julgada diante de uma opinião pública atenta. A queda do Governo do PT provocou o desmoronamento de todo o sistema político.

Existem motivos para otimismo. A democracia brasileira demonstrou sua capacidade de resistir e se adaptar

Ainda assim, existem motivos para o otimismo. A democracia brasileira demonstrou sua capacidade de resistir e se adaptar. Milhões de pessoas saíram às ruas. O que estamos presenciando no Brasil são os efeitos de transformações econômicas e tecnológicas imensas. A globalização enfraqueceu os Estados nacionais, as sociedades estão cada vez mais fragmentadas por uma nova divisão de trabalho e à mercê das tensões e dos desequilíbrios de uma diversidade cultural cada vez maior. As consequências são a inquietude, o temor pelo futuro e a incerteza sobre como manter a coesão social, garantir o emprego e reduzir as desigualdades. A ação popular e a opinião pública têm um poder transformador. Mas as instituições são necessárias. Não existe democracia sem partidos políticos. As estruturas proporcionam o terreno e as oportunidades para que o ser humano aja, mas a é vontade dos indivíduos e de setores da sociedade, inspirados por seus valores e interesses, o que abre a porta às mudanças.

Devemos demonstrar no Brasil que podemos reinventar o significado e os rumos de nossa política; caso contrário, o descontentamento voltará a lançar o povo às ruas, para protestar contra sabe-se lá quem e a favor do que. O desafio que enfrentamos é fechar a brecha existente entre a demos e a res publica, entre as pessoas e o interesse geral, voltar a tecer os fios que podem unir o sistema político e as demandas da sociedade.

Fernando Henrique Cardoso foi presidente do Brasil e é membro do Conselho do século XXI no Berggruen Institute


Fonte: El País


Fernando Henrique Cardoso: A história ensina

A política requer desprendimento e grandeza

Em julho passado André Franco Montoro faria cem anos. Em um país desmemoriado é bom recordar: Montoro foi dos raros políticos capazes de, sendo realistas, não deixar de lado os sonhos, as crenças, os valores. Em época de pouco caso ao meio ambiente, Montoro exortava as pessoas a plantarem hortas, a darem preferência à navegabilidade dos rios, a deixarem de lado os egoísmos nacionais e olharem para a América Latina, a dizer não à bomba atômica. E principalmente, a entender que a política requer desprendimento e grandeza. Foi assim quando, quase sozinho, impôs ao antigo PMDB um comício pelas eleições diretas-já na Praça da Sé, em 1984. E outro exemplo nos deu quando, lidando com outros gigantes, apoiou Tancredo Neves para a disputa no Colégio Eleitoral.

Conto um episódio. Nos preparativos para a eleição indireta do novo presidente, a Veja publicou uma entrevista de Roberto Gusmão, então chefe da Casa Civil de Montoro, em que este, falando por São Paulo, lançava o nome de Tancredo Neves para concorrer pela oposição. Na época, além de muito ligado a Ulysses Guimarães, eu era presidente do diretório do PMDB de São Paulo. Ulysses, como fazia habitualmente, passou na manhã subsequente à publicação da entrevista pelo casarão que então sediava o partido. Perguntou-me de chofre: "isso é coisa do Gusmão ou do Montóro"? Como ele pronunciava. Confirmei que era opinião do governador de São Paulo. "E você, o que acha?" Disse-lhe: "O senhor sabe dos laços de respeito e amizade que nos unem, mas nas circunstâncias é a opção para ganharmos no Congresso". Redarguiu: "quero ouvir isso do Montóro".

E assim, uma noite jantamos Montoro, Ulysses, Gusmão e eu, e cada um de nós, sob o olhar severo de Ulysses, confirmou nossas opiniões. Ulysses, não teve dúvidas: chefiou a campanha pela eleição de Tancredo. De fato, eleitoralmente quem poderia concorrer com Tancredo era Montoro, dado o volume de votos de São Paulo, que pesariam em eleições diretas. Tancredo, entretanto, teria vantagens táticas no convencimento de um Colégio Eleitoral composto por congressistas. Realista, Montoro logo propôs o nome mais viável. Vencemos.

Então estava em jogo a redemocratização do país, a convergência era necessária. Ela teve que ser ampliada para englobar os que antes eram adversários. Assim atravessamos o Rubicão e fomos, pouco a pouco, reconstruindo a democracia. Escrevo isso não só para valorizar a trajetória política e humana de gigantes como Montoro, Ulysses e Tancredo, mas para fazer paralelo com o presente.

Para o Brasil poder reconstruir-se, depois do tsunami lulopetista, ingloriamente culminado com quem talvez menos culpa tenha no cartório, a ainda presidente Dilma, é preciso grandeza. Não nos iludamos: estamos atravessando uma pinguela, a ponte é frágil. Sempre fui renitente a processos de impeachment porque, mesmo quando bem embasados, como o atual, implicam em destronar alguém que teve o voto popular e entregar o poder a quem também o recebeu, mas de forma mediata, em comparação com o presidente (a) a ser destronado. Contudo, a Constituição deve ser respeitada. Não adianta sonhar sem realismo com um plebiscito que talvez nos levasse a novas eleições. O mais provável é que nos levasse a uma escolha precipitada, se não à via indireta do Congresso pela impossibilidade de se obter a renúncia da incumbente e do vice. Mesmo que a destituição de ambos viesse por ordem do Supremo Tribunal Eleitoral, isso só ocorreria no próximo ano, quando a Constituição manda que a eleição seja indireta.

Logo, o que de melhor temos a fazer é fortalecer a pinguela, caso contrário caímos na água, e quem sabe, fortalecida, a pinguela se transforme mesmo em ponte para o futuro. Não é tarefa fácil e não cabem hesitações, nem ambições pessoais. A desorganização da economia, da política e da vida do povo causada pelos desatinos dos governos petistas vai requerer serenidade, firmeza, objetivos claros e muita persistência. Não é momento para exclusões. O PT e seus aliados são partes da vida nacional. Que se reconstruiam, que desistam das hegemonias e se habituem à competição democrática e à alternância no poder.

Precisamos fixar algumas prioridades, aliás, sabidas. Primeiro consertar a economia, começando pelas finanças públicas e por aceitar que, gastar sem haver recursos, não é política "de esquerda", é erro; quem paga as consequências dos erros (desemprego, inflação e desinvestimento) é o povo. Segundo, que não dá para governar com dezenas de "partidos" que são meras letras justapostas para obter vantagens financeiras. A cláusula de desempenho e a proibição de coligações nas eleições proporcionais se impõem. Terceiro, não basta o equilíbrio fiscal, é preciso alcançá-lo de modo favorável ao crescimento e à redistribuição de renda. O crescimento, em nosso caso, vai depender de o Estado bem desempenhar seu papel de regulador (por exemplo, nas parcerias público/privadas e nas concessões) e se abster de abarcar tudo. Quarto, que algum sinal na Previdência (por exemplo, a fixação progressiva de uma idade mínima para as aposentadorias) e no mercado de trabalhos (por exemplo, apoiar a sugestão do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo que dá maior peso às negociações) será importante. Por fim, é preciso entender que a agenda do atraso, preconizada por setores fundamentalistas, que se opõem aos direitos sociais e às políticas de identidade (de gênero, cor, comportamento sexual etc.) e equalizadoras (as cotas, as bolsas e etc.) é tão perniciosa quanto a paixão pela hegemonia voluntarista.

Há que aceitar as diferenças e conciliar pontos de vista olhando para o horizonte. É hora de mais Montoros e dos demais gigantes que nos tiraram do autoritarismo e nos levaram à democracia.


Fonte: El País