covid-19

El País: Coronavírus no Brasil segue a curva de países europeus e São Paulo prevê até 9 milhões de infectados

Biólogo explica que cenário no país pode ser ainda pior que o da Itália, que registra o maior número de óbitos até agora. Governo brasileiro se prepara para realizar testes em massa

O Brasil ultrapassou neste sábado a marca dos 1.000 casos confirmados do novo coronavírus. Ao menos 18 pessoas morreram em decorrência da doença até o momento. Os números compõem uma curva de crescimento da pandemia muito parecida com a de países da Europa, como Itália, França e Espanha, onde milhares de pessoas já morreram. “Estamos um pouco acima da Alemanha, bem abaixo da Itália e bem afastados da Coreia”, afirmou João Gabbardo, secretário-executivo do ministério da Saúde, neste sábado, frisando, a todo momento, que ainda temos poucos casos rastreados e que toda comparação tem que ser feita com cautela.

A Alemanha tem se mostrado uma exceção até o momento, com uma baixa taxa de letalidade diante dos outros países: 68 mortos para 19.000 casos confirmados, com várias hipóteses sendo discutidas para essa boa performance. Os alemães, assim como os sul-coreanos, vêm mostrando ao mundo que uma das chaves para tentar barrar a pandemia é a realização de testes em massa da população. Por isso, o Ministério da Saúde anunciou que, além dos 27.000 testes já enviados aos Estados, se prepara para realizar mais 10 milhões de testes rápidos nas próximas semanas. A expectativa é implementar em alguns lugares o esquema de drive thru, a exemplo da Coreia do Sul, onde as pessoas não precisaram nem sair do carro para serem testadas. Gabbardo disse que só agora a pasta está prevendo o volume de provas que era um desafio conseguir fornecedores que tivessem os prazos e qualidades. Só será testados quem estiver com sintomas.

Mas, por enquanto, os casos brasileiros da doença aumentam em uma crescente preocupante. Somente no Estado de São Paulo, epicentro dessa pandemia, há mais de 400 confirmações e 15 óbitos. Para tentar conter o vírus, as autoridades realizam projeções em busca de tomar medidas antecipadas e planejar recursos. O médico infectologista David Uip, coordenador da equipe que combate a pandemia em São Paulo, até a semana passada afirmava trabalhar com diversos cenários para o Estado, de 1% a 10% da população infectada. Já nesta sexta, ele mesmo admitiu que os cenários podem chegar a até 20% de doentes, o que daria nove milhões de pessoas. Internamente, a reportagem apurou que o Estado trabalha, por precaução, com cenários ainda mais extremos, com até 60% das pessoas infectadas e, dentro deles, uma porcentagem que precisará de internação.

Atila Iamarino, biólogo e doutor em microbiologia, explica que as projeções são feitas em cima de fatores como o comportamento da população diante da doença, quantas pessoas entram em contato umas com as outras e como o vírus se espalha. Baseada no histórico de países como China, Espanha ou Itália, as projeções estão tentando ser desenhadas aqui.

Porém, Iamarino lembra que no Brasil há um fator com o qual o vírus ainda não havia se deparado em outros países. E não é o calor. “China, França, Espanha, Itália, Estados Unidos e Coreia não têm favela”, diz. “Não há como isolar as pessoas que moram em um cômodo com várias outras”. Ele afirma que o isolamento social total, isto é, proibir que as pessoas saiam de casa, é a única medida que pode ser tomada para que o resultado dessa “guerra”, como afirmou o governador João Doria, não seja ainda mais devastador. “Por isso, aqui a situação é muito deferente. Mesmo os modelos que estão sendo estudados de como a doença progride podem ser muito otimistas num cenário como o nosso”, diz. “Na Itália houve somente um foco da doença, que foi a região da Lombardia”, afirma ele. “Hoje tem várias Lombardias dentro da Espanha acontecendo ao mesmo tempo. E, assim como na Espanha, aqui no Brasil não haverá somente um foco da doença”.

Na sexta-feira, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fez uma afirmação que condiz com esse cenário pintado pelo biólogo. “O cenário que estamos vendo, diferente da China, é que no Brasil estamos com todos os Estados com crescimento igual, e isso nos preocupa”. Mandetta também afirmou que até o final do mês que vem, o sistema vai colapsar. “Temos aí 30 dias para que a gente resista razoavelmente bem, com muitos casos, dependendo da dinâmica da sociedade. Mas, claramente, em final de abril nosso sistema entra em colapso”. Mais tarde, em entrevista coletiva, o ministro reforçou que o colapso somente ocorrerá se nada for feito.

O ministro tem motivos para se preocupar. “Se a doença progride a ponto de sair de uma única região, os casos começam a ser empilhados”, explica Iamarino. Nos Estados Unidos, por exemplo, há ao menos três focos da pandemia – Nova York, Washington e a Califórnia. “Cada um desses focos tem potencial de ser uma Wuhan. São três Wuhans empilhadas”, diz, sobre a primeira cidade a registrar a pandemia.

“Cobra silenciosa”
Um dos maiores problemas dessa doença, diz Iamarino, é justamente a sua ausência de sintomas. “Quando a China fez lockdown [proibiu a circulação das pessoas], e passou a ir atrás de testar todo mundo, perceberam que, enquanto eles estavam contabilizando só quem ia para o hospital com sintomas sérios, eles perdiam 86% das infecções que estavam acontecendo”, diz. “Até a pessoa procurar um hospital e receber o diagnóstico, nove dias já tinham se passado”.

E a demora em apresentar os sintomas é o que ajuda a tornar o coronavírus tão letal. “79% das transmissões da Covid-19 acontecem antes mesmo de as pessoas terem os sintomas”, diz. Ele compara com a SARS, doença em que 99% dos infectados desenvolvem febre e a transmissão só ocorre depois da febre. “A SARS é muito transmissível, mas dá sinais. É como uma cobra muito venenosa, mas com o chocalho na ponta do rabo. Você ouve ela chegando”, diz. “Já a Covid-19 é como uma cobra silenciosa: você não percebe ela chegando. E quando percebe, pode ser tarde”.


António Guterres: Juntos venceremos o vírus

Pandemia evidencia interligação da família humana

A convulsão causada pela Covid-19 sente-se por todo o lado. Sei que muitos estão ansiosos, preocupados e confusos. É perfeitamente normal. Estamos enfrentando uma ameaça inédita à nossa saúde. O vírus está se propagando, o perigo aumenta e os nossos sistemas de saúde, economias e rotinas estão sendo postos à prova severamente.

Os mais vulneráveis são mais afetados, particularmente idosos e aqueles com histórico clínico de risco, os que não têm acesso a cuidados de saúde de confiança, os que vivem em situação ou no limiar da pobreza.

Os efeitos sociais e econômicos adversos, resultantes da combinação da pandemia com a desaceleração econômica, irão nos afetar durante alguns meses. No entanto, a propagação do vírus atingirá um pico. As nossas economias irão se recuperar. Até lá, devemos atuar em conjunto para desacelerar a sua disseminação e cuidarmos uns dos outros.

É tempo de prudência, não de pânico. De ciência, não de estigma. De fatos, não de medo.

Apesar de classificada como pandemia, a situação é controlável. Podemos diminuir as transmissões, prevenir infecções e salvar vidas. Para tal, será necessária a adoção de ações pessoais, nacionais e internacionais, nunca antes implementadas.

A Covid-19 é o nosso inimigo comum. Temos de declarar guerra a este vírus. Isso significa que os países têm a responsabilidade de acelerar, reforçar e ampliar a sua ação. Como?

Implementando estratégias eficazes de contenção, ativando e reforçando sistemas de resposta a emergências, aumentando significativamente a capacidade de testar e tratar os pacientes, preparando os hospitais, garantindo que tenham espaço, recursos e pessoal, e implementando procedimentos médicos que salvam vidas. Todos nós temos, também, a responsabilidade de seguir os conselhos médicos e de adotar comportamentos simples e práticos, recomendados pelas autoridades de saúde.

Para além de constituir uma crise de saúde pública, o vírus está infectando também a economia mundial. Os mercados financeiros foram assolados pela incerteza. As cadeias globais de abastecimento foram perturbadas. O investimento e o consumo caíram, constituindo um risco real e crescente de uma recessão global. Os economistas das Nações Unidas estimam que o vírus poderá custar, pelo menos, US$ 1 bilhão neste ano —ou até bem mais.

Nenhum país poderá enfrentar isso sozinho. Mais do que nunca, os governos devem cooperar para revitalizar as economias, expandir o investimento público, promover o comércio e assegurar apoio às pessoas e comunidades mais afetadas pela doença ou mais vulneráveis aos seus impactos econômicos negativos —incluindo as mulheres, que muitas vezes suportam um peso desproporcional na prestação de cuidados.

Uma pandemia evidencia a interligação da nossa família humana. Impedir a propagação da Covid-19 é uma responsabilidade que deve ser partilhada por todos. As Nações Unidas, incluindo a Organização Mundial de Saúde (OMS), estão totalmente mobilizadas. Como parte da nossa família humana, estamos trabalhando 24 horas por dia com os governos, propondo diretrizes internacionais, ajudando o mundo a ultrapassar esta ameaça.

Estamos juntos, e juntos venceremos o vírus.

*António Guterres, Secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas)


José Roberto Mendonça de Barros: Parada súbita

Essa parada súbita já garante que 2020 será um ano de recessão global

Em 42 anos de MB Associados, nunca vi uma semana assim, com tantas mudanças profundas no cenário. É preciso ter humildade, porque não sabemos bem o que se passa. Mas é um ponto de inflexão para pessoas, empresas e países.

A combinação de um novo vírus e de conflitos geopolíticos (como a guerra comercial entre as duas grandes potências e a atual o petróleo) produziu uma parada súbita na China, depois na Europa, nos EUA e, agora, no Brasil.

Essas paradas súbitas são um terror, inclusive para economistas, pois produzem rupturas na oferta e nos fluxos financeiros, tanto maiores quanto maiores forem a alavancagem e o endividamento dos agentes, como nas empresas americanas de hoje, e quanto menores forem a saúde financeira e a renda de pessoas e pequenos negócios, como é o caso do Brasil.

O caso americano é o que melhor ilustra o que é essa parada, porque até muito recentemente sua economia vinha muito bem. Entretanto, a dívida corporativa nunca foi tão elevada, 47% do PIB, resultado de mais de uma década de crescimento e de juros muito baixos. Com a chegada do vírus, o mercado de crédito travou, apesar dos intensos esforços do FED, os “spreads” explodiram.

Muitas empresas mais frágeis financeiramente já estão tendo suas notas rebaixadas e poderão quebrar, pois a iliquidez rapidamente se transforma em insolvência.

Em outros casos, os efeitos ruins vieram da crise em grandes áreas de serviços, como turismo, hospitalidade, cruzeiros, artigos de luxo e outros. Cadeias longas estão sendo afetadas. O caso mais visível é o da Boeing, que já vinha sofrendo com a parada na produção do 737 MAX e que solicitou US$ 60 bilhões como assistência do governo para lidar com a crise. Mesmo que tudo dê certo, a dívida corporativa subirá para US$ 100 bilhões, num momento no qual poucas companhias comprarão aviões novos.

Além disso, a política no mundo inteiro passou a ser a do isolamento social. Nestas circunstâncias, a frenética baixa de juros tem efeito negligível.

Em uma situação dessas, a urgência exige ações rápidas, mas a política monetária fica menos eficiente e a política fiscal passa a exigir ferramentas, nem sempre disponíveis, como gastos focados ou suporte à liquidez em determinadas áreas.

Essa parada súbita já garante que 2020 será um ano de recessão global (definida como crescimento inferior a 1%), apesar dos grandes esforços das autoridades, sanitárias e econômicas, para deter a pandemia e impulsionar a economia.

Embora as projeções feitas hoje tenham uma acurácia limitada, os novos números de um banco internacional de primeira linha são impactantes.

No início do ano, projetava-se um crescimento do PIB global de 3,2% e agora, apenas 0,9%. Nos EUA, a projeção de 1,8% foi substituída por uma de 0,6%. Na China, o crescimento foi de 4%, em vez dos antigos 6%. Finalmente, na área do Euro, projeta-se agora um tombo de 5%, em vez de um crescimento de 0,9%.

No Brasil, a equipe econômica foi claramente pega no contrapé e tardou a responder. Entretanto, o ponto positivo foi entender que se trata de uma situação de emergência, que precisa ser enfrentada, antes de tudo, com mais gastos na saúde e na assistência aos segmentos mais frágeis da população, que inclui os trabalhadores informais, além da população em situação de pobreza.

Do lado das empresas, os pequenos negócios serão os mais afetados, até como consequência da política de isolamento social e terão de ter alguma atenção. Mas também serão necessárias políticas que preservem as empresas e a produção.

Infelizmente, por mais que essas medidas sejam bem sucedidas, uma recessão é inevitável: esperamos uma queda do PIB nos dois primeiros trimestres, com alguma recuperação mais próxima do final do ano. No melhor cenário, o crescimento do PIB ficará próximo de zero. É um duro revés para um país que luta há anos para voltar a crescer.

O programa de reformas deverá parar, mesmo porque, até recentemente, o Planalto continuava a antagonizar o Congresso. O ajuste fiscal e o investimento em infraestrutura deverão ficar para o próximo ano. Apenas medidas infraconstitucionais (ligadas a saneamento, energia e PPPs) poderão ser aprovadas.

Finalmente, se ao cabo de dois anos, o crescimento médio for de apenas 0,5% ao ano, dá para pensar em reeleição? Tudo indica que não, até porque muita gente está cansada da irrelevante pauta ideológica que prende a atenção de boa parte do Executivo.

* Economista e sócio da MB Associados.


Folha de S. Paulo: Fapesp libera R$ 30 milhões a startups e pesquisadores com projetos sobre coronavírus

Cada projeto empresarial aprovado receberá R$ 1,5 milhão para escalonar produtos ou serviços

A Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), do governo de São Paulo, vai destinar R$ 30 milhões a startups e pesquisadores que estejam desenvolvendo produtos ou serviços relacionadas ao combate do novo coronavírus.

O edital será publicado nesta sexta-feira (20) no site da Fapesp.

Em uma primeira chamada, R$ 10 milhões serão destinados a projetos de pesquisa sobre compreensão, redução de risco, gestão e prevenção ao vírus que já estejam em andamento, de acordo com o governo do Estado.

Os projetos devem ter duração de 24 meses e o valor máximo de cada proposta será de R$ 200 mil. O prazo para submissão vai até 22 de junho de 2020.

Na segunda chamada, a Fapesp e a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) vão liberar R$ 20 milhões a startups ou empresas de até 250 funcionários que consigam escalonar produtos de combate ao Covid-19.

O financiamento pode ser destinado a produtos como kits de diagnósticos e ventiladores pulmonares a soluções de tecnologias digitais e inteligência artificial para os serviços de saúde ou atendimento aos pacientes.

O prazo de submissão dessa etapa é 6 de abril, podendo ser prorrogado por 15 dias. Cada projeto aprovado terá R$ 1,5 milhão de apoio.

"As pesquisadoras que decodificaram o genoma do coronavírus no Brasil estavam desenvolvendo um projeto de outro tema. Esbarraram nessa possibilidade e pediram recurso adicional. A ideia é que façamos isso não no varejo, mas no atacado", disse a secretária de Desenvolvimento Econômico, Patricia Ellen.

O programa é uma antecipação do Ideia Gov, que seria lançado mais tarde pelo governo estadual para incentivar startups a corrigirem gargalos públicos.

"Nunca precisamos tanto de pesquisa como agora. Esse é o momento de acelerar, e não de postergar. Precisamos de pesquisa aplicada agora", disse o vice-governador de São Paulo, Rodrigo Garcia.


Demétrio Magnoli: Nós, esclarecidos, precisamos pensar fora da bolha da alta classe média

Não declaremos uma guerra ao coronavírus cujas vítimas serão os sem patrimônio, cartão de crédito e investimentos

Trump qualificou o vírus como um “embuste dos democratas” pouco antes da avalanche em Wall Street lançá-lo a algo parecido com a realidade. Um papagaio brasileiro chamado Jair tratou-o como uma invenção da mídia perniciosa, isolando-se no poço da ignorância.

Diante disso, a reação das pessoas esclarecidas foi agarrar-se ao mastro da razão para vencer, antes que seja tarde, a batalha contra a estupidez. No passo seguinte, ainda em curso, o apego à voz da ciência transmuta-se em fanatismo científico e fundamentalismo epidemiológico. Hoje, esse perigo supera o da já desmoralizada negligência.

Vamos mesmo —nós, esclarecidos— partir para o elogio da China? Médicos chineses alertaram para a doença em dezembro, mas foram silenciados. Esqueceremos tão cedo, em nome de uma ilusória “ética de resultados”, que a Covid espalhou-se precisamente naquelas semanas de camuflagem e repressão? A vigilância cibernética dos cidadãos galgou novo patamar permanente, junto com o avanço do vírus. Festejaremos o Grande Irmão como aliado e exemplo, em nome da saúde pública?

Ouve-se, dos esclarecidos, um clamor crescente por medidas extremas. A Itália paga o preço da displicência com a moeda do “lockdown” compulsório. Macron pescou no lago do senso comum a palavra “guerra” para descrever uma emergência sanitária.

Guerra tem implicações: leis de exceção, justiça sumária, censura. Quem pede quarentenas coletivas forçadas está disposto a justificar suas ramificações lógicas? Sacrificaremos as liberdades civis no altar de uma guerra fabricada por artifício retórico? Concederemos, os esclarecidos, um AI-5 sanitário a Bolsonaro?

O vírus é “estrangeiro”, imigrante? Lá atrás, a OMS criticou os EUA pela proibição de entrada de chineses. Depois, Trump fechou as fronteiras à Europa, e sofreu a crítica da União Europeia (UE). Hoje, a UE, maior foco global de infecções, fecha suas fronteiras externas. A praxe normalizada pela “guerra” sanitária ressurgirá em outras “guerras”, econômicas e culturais. Quando emudecem sobre isso, os esclarecidos dissolvem os anticorpos que nos protegem do vírus da xenofobia.

Um esclarecido aponta o dedo acusador para banhistas na areia; outro, para jovens aglomerados em torno de uma mesa de bar. Há bons motivos para invocar a solidariedade social, a responsabilidade coletiva, a ética cidadã. Mas, num salto quântico, passaremos a solicitar o recurso à força policial?

Policiais italianos em roupas brancas de máxima proteção perseguem suspeitos de desobediência à quarentena. Vestiremos nesses trajes os PMs desordeiros do Ceará, os policiais-milicianos do Rio, dando-lhes o mandato de esvaziar as ruas e os becos das favelas? Em nome da vida, enviaremos a PM paulista a Paraisópolis com a missão de dispersar um baile funk?

O Brasil não é a Itália. Nós, esclarecidos, vivemos na bolha da alta classe média —mas precisamos conseguir pensar fora dela. “Que ninguém saia de casa: distanciamento social!”. Com que direito moral apontamos o modelo de “lockdown” absoluto como solução para cortar a transmissão do vírus em São Paulo ou no Rio? Na Rocinha, no Grajaú, em Cidade Ademar, onde as pessoas residem em habitações de 20 metros quadrados que abrigam cinco ou seis indivíduos?

O Brasil não é os EUA. Aqui, o governo não postará cheques periódicos de mil dólares para cada família durante o intervalo imensurável da “guerra”. Vamos parar os transportes públicos e decretar, universalmente, o trabalho à distância? Como ficam motoristas, comerciários, garçons, pedreiros, as massas de informais?

Os esclarecidos fazem bem em decorar os mandamentos da epidemiologia —mas incorrem em erro de classe ao jogar fora os manuais básicos da sociologia. Não declaremos uma guerra cujas vítimas serão os outros —os sem patrimônio, cartão de crédito e investimentos financeiros.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Luiz Carlos Azedo: Mensagens das máscaras

“Não há a menor possibilidade de conter a epidemia sem a adoção de duras medidas de distanciamento social, isolando as pessoas doentes e confinando quem não está”

A cena foi armada para sinalizar que o presidente Jair Bolsonaro é o timoneiro da luta contra o coronavírus e que todo o governo está mobilizado nessa tarefa, na qual o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ocupava a linha de frente no combate à epidemia. Bolsonaro enfatizou as medidas econômicas que o governo adotou, defendeu-se das críticas da imprensa e não fez nenhum apelo no sentido de a população aderir à política de distanciamento social, à qual continua fazendo restrições. O uso das máscaras cirúrgicas por todos os ministros presentes, inclusive o da Saúde, serviu apenas para as fotografias; foram usadas de forma cenográfica, porém, manuseadas de forma inadequada, acabaram sendo objeto de críticas dos especialistas da saúde e motivo de “memes” nas redes sociais.

Na coletiva, Bolsonaro anunciou que dois ministros estão com coronavírus, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e o ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque. Mais tarde, Bolsonaro deu outra coletiva, desta vez em companhia do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, e outras autoridades do Judiciário. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que também deveria estar presente, não pôde comparecer: é o primeiro chefe de poder fora de combate por causa do coronavírus. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não foi porque comandava a sessão da Casa que aprovou o “estado de calamidade pública”.

A primeira mensagem das máscaras é de que caiu a ficha para o presidente Jair Bolsonaro de que deve liderar o combate ao coronavírus; a segunda, revela que ele ainda não tem a plena dimensão da gravidade da situação. Ontem, São Paulo registrou quatro mortos em razão do coronavírus, de uma epidemia cujo marco zero é a sexta-feira da semana passada. Trata-se do estado mais populoso do país, com o maior nível de renda e melhor estrutura de saúde pública, além dos melhores hospitais privados do país, nos quais ocorreram as mortes. A epidemia começou pelas camadas de maior poder aquisitivo, mesmo assim, já começa em alta velocidade. Até as 19h20 de ontem, havia 509 casos confirmados no Brasil, em 20 estados e no Distrito Federal. O crescimento é exponencial, o número de mortes também pode ser.

É aí que está o xis da questão. Não há a menor possibilidade de conter a epidemia sem a adoção de duras medidas de distanciamento social, isolando as pessoas doentes e confinando quem não está, para evitar contágio, com exceção apenas daqueles que precisam estar nas ruas para manter os serviços básicos funcionando. Não há como fazer isso sem paralisar a economia, que já está entrando em recessão. É aí que o governo adota medidas contraditórias, algumas preconizadas pelo próprio mercado, mas inócuas, cujo foiço é manter o mercado funcionando. Por exemplo, a redução dos juros anunciada ontem pelo Copom. É uma medida simpática, mas não terá nenhum efeito prático em termos de investimento, apenas repercutirá no câmbio, desvalorizando ainda mais o real. Quem investirá no Brasil com o dólar a R$ 5,20?

Mais pobres
As medidas do ministro da Economia, Paulo Guedes, para aumentar a proteção social às parcelas menos favorecidas da população, principalmente pequenos empreendedores e trabalhadores da economia informal, que parecem ser a grande preocupação do presidente Jair Bolsonaro, são insuficientes, um pouco na linha de quem dá uma das mãos, para favorecer as empresas, e tira com a outra, sacrificando os assalariados. Há uma semana, o governo demonizava o aumento do Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de um salário-mínimo, que era demonizado pela equipe econômica, atribuindo ao Congresso um rombo de R$ 20 bilhões na economia, quando na real o aumento de despesas pode ficar em torno de R$ 7 bilhões.

O que houve de fato? Com a derrubada do veto, um maior número de pessoas, em especial aquelas em situação de pobreza, passam a contar com mais possibilidade de acesso ao BPC, que beneficia idosos a partir de 65 anos e pessoas com deficiência física, mental, intelectual ou sensorial com garantia assistencial, quando a renda familiar per capita for inferior a R$ 522,50; antes, era de R$ 261,25. A mudança havia sido uma espécie de contrapartida da aprovação da reforma trabalhista.

Voltemos ao coronavírus. Há outras mensagens das máscaras. O governo começa a se mobilizar para enfrentar o desafio do coronavírus, que não faz distinção de classe, gênero, cor, renda e nível de escolaridade, quando nada porque a epidemia começou pelos altos escalões da Esplanada. Entretanto, ninguém tenha dúvida de que a população mais vulnerável é a de baixa renda. Há um enorme contingente da população que vive em péssimas condições de moradia e saneamento, nos morros e periferias, no qual o crescimento exponencial da doença será uma tragédia anunciada. Nesse sentido, a entrevista de Bolsonaro e de sua equipe não passou o recado que deveria, pois a preocupação do presidente não era orientar a população sobre a importância do “distanciamento social” e anunciar medidas efetivas para isso, mas se defender das críticas e conclamar seus partidários a fazer um panelaço a favor do governo na noite de ontem. Houve outro panelaço contra.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-mensagens-das-mascaras/


William Waack: O vírus pegou Bolsonaro

Espalhou-se como um vírus a noção de que o governo corre atrás dos fatos

O vírus atingiu o coração do governo. A expressão é literal, considerando a situação do general Augusto Heleno e do almirante Bento Albuquerque, mas seu sentido é político. Um caso clássico de como a realidade dos fatos se impõe de forma arrasadora a quem se recusa a enxergá-la.

Ou o faz – enxergar os fatos – sob uma perspectiva completamente equivocada. Foi o que aconteceu com Jair Bolsonaro e alguns de seus conselheiros mais próximos, especialmente os filhos. Presos à versão, estapafúrdia e maluca, como agora se vê, de que o coronavírus seria uma conspiração chinesa aqui utilizada por “elites políticas” para isolar e depor o presidente.

As forças políticas que entendem melhor a realidade (como o “Centrão”) ocuparam rapidamente o espaço que Bolsonaro vem deixando livre desde que assumiu a Presidência. Como já se disse aqui, o presidente acha que sua força vem da caneta que assina cheques e nomeações quando, na verdade, está na sua imensa capacidade de ditar a agenda política. À qual ele pouco se dedicou.

Pode-se até falar de um autoimposto isolamento diante de um “sistema” que, por um lado, de vez em quando, servia ao presidente e a cujas regras obedecia. Por outro, era pelo presidente mencionado como alvo a ser destruído – o mandato que ele afirma ter recebido das urnas.

O isolamento ganhou contornos nítidos e de claro perigo para a autoridade presidencial quando Judiciário e Legislativo, com a participação de órgãos de controle e investigação (TCU e PGR), montaram por dois dias um “gabinete paralelo de crise” que incluía, pelo Executivo, um competente ministro da Saúde cujo destaque causa no presidente ciúmes em vez de orgulho.

É essa perda de autoridade, mesmo entre grupos favoráveis ao presidente, que causou consternação entre alguns de seus ministros mais importantes, que duvidavam da tática determinada por Bolsonaro de ir às ruas para pressionar Congresso e STF. Há ministros militares preocupados com o que chamam de “belicosidade” do presidente. “Ele apanhou muito, quer revidar”, diz um deles, que dá expediente no Planalto, “e ninguém consegue segurar”.

O corrosivo processo se acentua diante de uma percepção generalizada de que o governo está correndo atrás dos fatos. Essa noção se intensificou por dois fatores: a reação inicial do presidente de minimizar a gravidade da doença (erro que Trump se apressou mais rapidamente a corrigir) e a intensidade e vigor com que as principais economias lançaram medidas para enfrentar uma previsível recessão, enquanto no Brasil a conversa inicial foi “aprovem as reformas e a gente segura o tranco”.

A crise do coronavírus apanha o Brasil num momento vulnerável. Se é verdade, como reitera Paulo Guedes, que o País estava decolando e foi surpreendido pela crise, também não se pode ignorar que a lição de casa em termos fiscais mal tinha começado a ser feita. O Brasil, como país emergente, será sempre julgado pela sua saúde fiscal, e a nossa não é boa de forma alguma. E vamos ter de enfiar a mão fundo nos cofres públicos já encrencados em todos os níveis.

As consequências para a economia consegue-se antever, e não são das mais róseas. As consequências do vírus para a política indicam que o inimigo impessoal, como o vírus, pode servir de justificativa até aceitável para resultados pobres num setor definidor de simpatias políticas, como o bem-estar econômico geral da população, mas é mais difícil de ser combatido no habitual esquema bolsonarista de “nós” contra “eles”.

Há paralelos entre a propagação de um vírus e a criação de um “momento” na política. Começa com pouca gente notando, mas, a partir de certo ponto, a propagação do vírus do descontentamento ou aberta antipatia com um governo e sua figura de proa foge ao controle. O coronavírus é uma ameaça grave para Jair Bolsonaro.


Agência Fapesp: Cientistas brasileiros estão desenvolvendo vacina contra o coronavírus

Pesquisa financiada pela Fapesp utiliza estratégia diferente da indústria farmacêutica e de outras equipes do exterior. Meta é começar testes em animais já nos próximos meses

Pesquisadores do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) estão desenvolvendo uma vacina contra o coronavírus causador da síndrome respiratória aguda grave, o Sars-CoV-2.

Por meio de uma estratégia diferente da adotada por indústrias farmacêuticas e grupos de pesquisa em diversos países, os cientistas brasileiros esperam acelerar o desenvolvimento e conseguir chegar, nos próximos meses, a uma candidata a vacina contra o novo coronavírus que possa ser testada em animais.

“Acreditamos que a estratégia que estamos empregando para participar desse esforço mundial para desenvolver uma candidata a vacina contra a Covid-19 é muito promissora e poderá induzir uma resposta imunológica melhor do que a de outras propostas que têm surgido, baseadas fundamentalmente em vacinas de mRNA”, disse à Agência FapespJorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do Incor e coordenador do projeto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Utilizada no desenvolvimento da primeira vacina experimental contra o Sars-CoV-2, anunciada no fim de fevereiro nos Estados Unidos, a plataforma tecnológica de mRNA se baseia na inserção na vacina de moléculas sintéticas de RNA mensageiro (mRNA) ― que contêm as instruções para produção de alguma proteína reconhecível pelo sistema imunológico.

A ideia é que o sistema imunológico reconheça essas proteínas artificiais para posteriormente identificar e combater o coronavírus real. Já a plataforma que será utilizada pelos pesquisadores do Incor é fundamentada no uso de partículas semelhantes a vírus (VLPs, na sigla em inglês de virus like particles).

As VLPs são estruturas multiproteicas que possuem características semelhantes às de um vírus e, por isso, são facilmente reconhecidas pelas células do sistema imune. Porém, não têm material genético do vírus, o que impossibilita a replicação. Por isso, são seguras para o desenvolvimento de vacinas.

“Em geral, as vacinas tradicionais, baseadas em vírus atenuados ou inativados, como a do influenza [causador da gripe], têm demonstrado excelente imunogenicidade, e o conhecimento das características delas serve de parâmetro para o desenvolvimento bem-sucedido de novas plataformas vacinais”, afirmou Gustavo Cabral, pesquisador responsável pelo projeto.

“Mas, neste momento, em que estamos lidando com um vírus pouco conhecido, por questões de segurança é preciso evitar inserir material genético no corpo humano para evitar eventos adversos, como multiplicação viral e possivelmente reversão genética da virulência. Por isso, as formas alternativas para o desenvolvimento da vacina anti-Covid-19 devem priorizar, além da eficiência, a segurança”, ressaltou Cabral.

A fim de permitir que sejam reconhecidas pelo sistema imunológico e gerem uma resposta contra o coronavírus, as VLPs são inoculadas juntamente com antígenos ― substâncias que, ao serem introduzidas no corpo humano fazem com que o sistema imune produza anticorpos.

Dessa forma, é possível unir as características de adjuvante dos VLPs com a especificidade do antígeno. Além disso, as VLPs, por serem componentes biológicos naturais e seguros, são facilmente degradadas. “Com essa estratégia é possível direcionar o sistema imunológico para reconhecer as VLPs conjugadas a antígenos como uma ameaça e desencadear a resposta imune de forma eficaz e segura”, explicou Cabral.

Plataforma de antígenos
Especialista em imunologia, Gustavo Cabral fez nos últimos cinco anos pós-doutorados nas universidades de Oxford, na Inglaterra, e de Berna, na Suíça, onde desenvolveu candidatas a vacinas utilizando VLPs contra doenças, como a causada pelo vírus zika. Por meio de um projeto apoiado pela Fapesp, retornou ao Brasil onde iniciou no laboratório de imunologia do Incor, no começo de fevereiro, um estudo voltado a desenvolver vacinas contra Streptococcus pyogenes ― causador da febre reumática e da cardiopatia reumática crônica ― e chikungunya utilizando VLPs. Com a pandemia do Covid-19, o projeto foi redirecionado para desenvolver uma vacina contra o novo coronavírus.

O projeto também teve a participação de Edécio Cunha Neto, professor do Incor e pesquisador do Laboratório de Imunologia da instituição, que participou da decisão da abordagem do Covid-19 no projeto de Cabral e do delineamento experimental da vacina. “O objetivo é desenvolver uma plataforma de entrega de antígenos para células do sistema imune de forma extremamente fácil e rápida e que possa servir para desenvolver vacina não só contra a Covid-19, mas também para outras doenças emergentes”, ressaltou Cabral.

Os antígenos do novo coronavírus estão sendo produzidos a partir da identificação de regiões da estrutura do vírus que interagem com as células e permitem a entrada dele, as chamadas proteínas spike. Essas proteínas, que são protuberâncias pontiagudas ao redor do envelope viral, resultam um formato de coroa que conferiu o nome corona a esse grupo de vírus.

Após a identificação dessas proteínas spike, são extraídos fragmentos delas que são conjugadas às VLPs. Por meio de testes com o plasma sanguíneo de pacientes infectados pelo novo coronavírus é possível verificar quais fragmentos induzem uma resposta protetora e, dessa forma, servem como potenciais candidatos a antígenos. “Já estamos sintetizando esses antígenos e vamos testá-los em soro de pacientes infectados”, afirmou Cabral.

Após a realização dos testes em camundongos e comprovada a eficácia da vacina, os pesquisadores pretendem estabelecer colaborações com outras instituições de pesquisa para acelerar o desenvolvimento. “Após comprovarmos que a vacina neutraliza o vírus, vamos procurar associações no Brasil e no exterior para encurtarmos o caminho e desenvolver o mais rápido possível uma candidata a vacina contra a Covid-19”, disse Kalil. O pesquisador é coordenador do Instituto de Investigação em Imunologia, sediado no Incor – um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) apoiados pela Fapesp e pelo CNPq no Estado de São Paulo.


Luiz Roberto Nascimento Silva: A peste

A lembrança da maior epidemia da humanidade surge como memória involuntária. A “Peste Negra”no século XIV começou na Eurásia e invadiu a Europa com as caravanas de comércio do Mar Mediterrâneo e foi transmitida por ratos negros indianos. Estima-se que entre 70 a 200 milhões de pessoas morreram entre 1343 a 1353. O historiador Jacques Le Goff indica que para cada três europeus vivos, um morreu.

A medicina ocidental nesse período era mais rudimentar que a oriental. Em Veneza por exemplo, a peste encontrou um ambiente ideal por ser construída sobre as águas permitindo a propagação com rapidez. Os relatos dos autores transmitem a certeza do fim do mundo. Dramaticamente a cidade hoje é de novo das mais atingidas.

Além dos reflexos sobre a própria preservação da vida, o coranavírus causa estragos em todo ambiente econômico. As bolsas de valores renovam circuit breaks paralisando os negócios. Os juros fecham suas curvas criando rendimentos negativos. As moedas perdem seus parâmetros de referência. A crise na China, importante supridora de peças e componentes do mundo e grande compradora de commodities, interrompe enormes cadeias produtivas. Perdem-se produção, distribuição e consumo.

Impossível também não lembrar de “A Peste”, de Camus, publicado em 1947. Trata-se de um relato preciso de como uma epidemia age sobre uma cidade e sua população. A cidade de Oran, na Argélia, é de repente assolada por uma peste bubônica. Um narrador onisciente descreve a luta do Dr. Bernard Rieux e de outros personagens em auxiliar a população que reage primeiro com desinteresse e descrédito e depois com pavor, desespero e dor. Está tudo lá, vivo e atual.

Os habitantes descobrem que “a primeira coisa que a peste trouxe aos cidadãos foi o exílio... Chegava sempre um momento em que nos dávamos conta que os trens não chegavam”. O exílio e a segregação instalam-se.

A cada dia aumenta a pilha de ratos mortos e também de seres humanos. O desespero aumenta conforme as mortes vão se sucedendo e a separação dos entes queridos se prolonga. A cidade é isolada. Quem está dentro não pode mais sair, quem está fora não pode mais entrar. Paralelamente de outro lado surge solidariedade entre os trabalhadores. O personagem de Rieux deixa seus problemas pessoais para socorrer os moribundos. Num dos diálogos há uma frase que serve de advertência para todos nós. Camus lamenta que “a única maneira de juntar as pessoas ainda é mandar-lhes a peste”.

Os voos entre a Europa e os Estados Unidos estão suspensos. A Itália está sitiada; ninguém pode entrar ou sair como em Oran. Os grandes espetáculos artísticos e esportivos estão suspensos. Navios ancorados em quarentena nos portos. Os setores de serviços como restaurantes, turismo e entretenimento estão devastados.

Num mundo cada vez mais protecionista preocupado com suas fronteiras, chega a ser irônico que o inimigo não venha de fora, mas do próprio país. Não é estrangeiro que ao entrar no país traz a doença, mas o próprio cidadão. Não há muro que impeça essa invasão bárbara. O nacionalismo mostra-se impotente para conter e controlar essa nova forma de desorganização da atividade econômica.

Os países precisam aproximar-se da ciência e da informação para enfrentar o coronavírus. Seria ótimo que o mundo pudesse, além de lutar com a pandemia, buscar formas mais civilizadas de convivência que já existiram em passado recente. Isso poderia ser uma consequência benéfica do que estamos passando. Já que estamos conectados em tempo real e que, além do comércio e da comunicação, as doenças também possuem velocidade digital poderíamos refazer a frágil fronteira entre as nações.

*Luiz Roberto Nascimento Silva é advogado e foi ministro da Cultura no governo Itamar Franco


Cacá Diegues: Um alerta contemporâneo

O coronavírus é uma formação natural de um mundo que ainda não conhecemos, equivalente ao que foi a Gripe Espanhola

O planeta nunca foi o mesmo. Ao longo do tempo, temos passado ao largo dessa questão, como se ela não nos importasse para entendermos melhor onde estamos. E o que enfrentamos, a cada momento, para existir. Um simples dado ignorado sobre o planeta pode nos revelar alguma coisa fundamental sobre nós mesmos. Talvez esse simples dado, sobre a existência do que não conhecemos, nos explique o que não conseguimos explicar até agora.

O calor excessivo na Europa, as cheias no continente asiático, as recentes chuvas de inverno durante o nosso verão devem ser uma reação da natureza ao que temos feito de errado no mundo. É como se fôssemos room mates num Airbnb apertado, reclamando do comportamento um do outro. Embora não saibamos quem é esse “outro”, formado no mesmo espaço que nós. Cada fenômeno daqueles é um gesto de nossos parceiros para nos chamar a atenção para o que deve estar errado. Ou então uma simples declaração de guerra, sei lá de que tipo.

Quando nossos erros se concluem antes de um desastre final, nossos parceiros deixam pra lá, esperam que desvendemos o fracasso de nossas más ideias. Outro dia, um daqueles príncipes do Oriente Médio ofereceu ao Brasil fazer parte da Opep, a organização dos países exportadores de petróleo. O cara deve ter feito o convite porque quase ninguém mais quer saber da Opep, por causa das novas fontes de energia.

No nosso recente leilão de pré-sal, não apareceu quase ninguém. Ninguém está mais a fim de gastar fortunas na exploração de petróleo, quando o mundo desenvolve a mil, e já usa, novas fontes limpas de energia, como a a eólica e a solar. Só a Petrobras adquiriu reservas.

O novo coronavírus é um sinal desse confronto entre o que foi vantagem no passado e hoje não é mais. Ele representa uma parte da natureza que não tem nada a ver com o que é inteligente ou não, como costumamos opor os seres em nossa cultura. O coronavírus é uma formação natural de um mundo que ainda não conhecemos, equivalente ao que foi a Gripe Espanhola, no final da Primeira Guerra Mundial. Um alerta contemporâneo.

No dia 11 de novembro de 1918, era assinado o tratado de paz que encerrava a Grande Guerra. Com mais de 16 milhões de vítimas e histórias de arrepiar qualquer um de tanta violência e crueldade, essa Guerra seria responsável por um número de mortes que acabou sendo pinto perto de outra tragédia simultânea: a chamada Gripe Espanhola, que muitos acreditam ter acabado com de 30 a 50 milhões de vidas, em todos os continentes. Curiosamente, como o coronavírus, a trágica epidemia não era uma gripe, mas o resultado do surgimento e multiplicação de um vírus até então desconhecido.

Segundo historiadores da época, apesar do nome da epidemia, o vírus tinha sido trazido da costa leste americana para a Europa, pelos combatentes dos Estados Unidos, que haviam entrado na Guerra em abril de 1918. Da Europa, os navios americanos e os de seus aliados o levaram para o resto do mundo, chegando ao Rio de Janeiro no mês de setembro daquele ano, num navio britânico que deixou aqui a Gripe que não era gripe, espalhada entre as meninas da Praça Mauá. E elas a transmitiram ao resto da cidade, onde a epidemia atingiu 600 mil habitantes, mais da metade da população. Como no caso do coronavírus, os que praticavam viagens transcontinentais eram os responsáveis por espalhar o vírus fatal pelo mundo afora.

A insanidade da Guerra, agravada no último ano pela Gripe devastadora, se reflete, por exemplo, no grito de guerra dos soldados balcânicos: “Apaguem a luz e saquem as facas!”. A destruição impiedosa do Império Alemão que, segundo seus fiéis, “tinha sido forjado para durar por toda a Eternidade”, foi depois decisiva na consolidação do revanchismo nazista de Adolf Hitler. Alma Mahler, que fora casada com o pintor Gustav Klimt, depois com o músico Gustav Mahler e ainda com o arquiteto Walter Gropius, envolvida portanto com gente artística e politicamente revolucionária, odiava de tal modo as revoluções, sejam de que natureza fossem, que, no fim da vida, escreveu em sua biografia que sonhava com “a volta do esplendor vindo de cima, a submissão silenciosa da estrutura escravagista da humanidade. (...) O grito das massas é uma música infernal”.

O coronavírus, como a Gripe Espanhola, é uma espécie de resistência da natureza às nossas barbaridades. Uma resistência que ajudamos a tornar de caráter global graças ao progresso e ao poder, como se fôssemos estimulados por forças que não compreendemos, nem somos capazes de enfrentar. É claro que o coronavírus nos faz mal e por isso devemos combatê-lo. Mas sempre lembrando que ele vem de um mundo ao qual também pertencemos e ao qual devemos atenção e respeito, até conhecê-lo melhor.


Eliane Cantanhêde: Isolamento

Presidente, bananas não salvam vidas e não reduzem danos numa economia já combalida!

Tudo o que este mundo enlouquecido precisava para um freio de arrumação era um inimigo comum a toda a Humanidade, mas veio o novo coronavírus e o que se vê, assustadoramente, é o contrário: os líderes aproveitando para reforçar fronteiras e se isolar ainda mais, enquanto o presidente Jair Bolsonaro se ocupa em dar bananas para jornalistas, incorrigível, entre um teste e outro para o vírus.

A história está cheia de exemplos comprovando que é nos piores momentos que se forjam os grandes líderes, mas o inverso também é verdadeiro: nas crises, líderes ou emergem ou desaparecem. Há décadas não se vê uma crise da dimensão atual. Vamos ver quem sobrevive e quem sucumbe.

O novo coronavírus contamina as pessoas e as economias de países de todos os continentes. Nos dois casos é potencialmente letal e ele veio com tudo justamente num ambiente de desaquecimento global e quando a migração é uma das questões mais graves na agenda internacional. É hora de testar os líderes, saber quem tem ou não visão estratégica e grandeza pessoal. Restarão poucos, nesses tempos de Trump, Putin, Erdogan e tantos outros.

No Brasil, o presidente deveria aproveitar o isolamento para deixar de lado a obsessão por bananas, parar de atacar tudo e todos e refletir sobre sua imensa responsabilidade. O mundo está em crise, o Brasil está em crise, os casos de coronavírus vão disparar, a Bolsa teve a maior queda desde 2008, são 12,5 milhões de desempregados. E, antes mesmo do tsunami, o pibinho já foi de 1,1%.

A economia brasileira não tem margem para piorar. E vai piorar. As previsões de crescimento já não eram animadoras e agora não param de cair, deixando no ar a sensação – ou o pavor – de uma nova recessão. Logo, o governo precisa fazer um malabarismo estonteante para dar suporte a setores estratégicos sem explodir as contas públicas.

Quem tem a caneta e o poder de decisão é o presidente e, goste-se ou não, lamente-se ou não, trata-se de Jair Bolsonaro. Como ele não tem conhecimento e não manifesta interesse, significa que é o ministro Paulo Guedes quem está no centro do furacão.

Na Saúde, como dito aqui desde o início, a forte cultura e os quadros de excelência da saúde pública, mais a grata surpresa que é Luiz Henrique Mandetta, estão fazendo sua parte. Ao contrário do que ocorreu, por exemplo, na Itália e nos EUA, onde as mortes já passavam de 40 e não havia nem estatísticas sobre contaminados quando Donald Trump enfim anunciou emergência e abriu as torneiras.

Distante de disputas partidárias, o ministro da Saúde prepara o País para a rebordosa. Contratou leitos de UTI à disposição dos Estados, encomendou 17 milhões de máscaras hospitalares da China para o pessoal de Saúde, antecipou a maior operação de vacinação do mundo, com 75 milhões de doses contra a influenza.

Na economia, todos parecem atordoados, mas a expectativa é de um pacote de medidas amanhã. Assim como Mandetta, Guedes precisa agir para reduzir danos. A diferença é que um foi mais previdente e o outro corre atrás do prejuízo, sem que o presidente demonstre real compreensão da situação. Guedes bate na tecla das reformas e Bolsonaro bate no Congresso, até mesmo ao desarticular as manifestações previstas para hoje.

Assim como não há vacina nem tratamento específico para a covid-19, só paliativos, também na economia não havia como impedir a crise e não há tratamento sem dor para um país parado, com as pessoas evitando viajar, circular, comprar, os serviços esvaziando e as empresas esfarelando nas bolsas ou em solo, como as companhias aéreas. Mas há, sim, como evitar um número maior de vítimas e um prejuízo maior. O presidente, se não consegue ajudar, deve aproveitar o isolamento para não atrapalhar.


Carlos Pereira: Tubarões, inundação, vírus e o governo

É pouco provável que essa pandemia seja aproveitada pela gestão Bolsonaro como uma oportunidade para implementação de mudanças

Em julho de 1916, a costa leste dos EUA, especialmente Nova Jersey, foi acometida por uma série de ataques de tubarão que ocasionaram a morte de vários americanos. Esses eventos inesperados alcançaram grande repercussão no noticiário e considerável sofrimento emocional, especialmente da população das comunidades costeiras. O então presidente dos EUA, Woodrow Wilson, concorria à reeleição no fim daquele ano.

Embora o presidente Wilson não tenha tido responsabilidade direta pelos ataques aleatórios de tubarão, estudos (Achen e Barthels, 2012) identificaram uma forte correlação entre aqueles ataques e a significativa redução no número de votos a favor da reeleição do presidente naquela região em relação à quantidade de votos no pleito de 1912, quando Wilson foi eleito presidente pela primeira vez.

Por outro lado, o devastador desastre provocado pelas inundações que aconteceram na Alemanha em 2002 trouxe consequências bem distintas para o seu governante. O governo ofereceu ajuda monetária imediata e, estrategicamente, organizou uma visita do chanceler, Gerhard Schröder, usando botas de borracha, às vilas inundadas. Esta atitude foi interpretada pela mídia como símbolo da credibilidade do chanceler como gerente de crises. Após as inundações e, pelo menos em parte pelo que foi percebido como bem-sucedida gestão de desastres, o governo ganhou apoio popular e venceu as eleições federais vários meses depois.

Desastres nem sempre têm impacto político negativo. Dependendo do contexto, as consequências para os líderes políticos também podem ser positivas. Se o governo de plantão for capaz de liderar com autoridade moral e ofertar respostas adequadas ao problema, é possível que desastres se transformem em janelas de oportunidade para galvanizar apoio e conseguir implementar reformas.

Albrecht (2017) argumenta que a mídia exerce papel relevante nas consequências políticas dos desastres. Quanto maior for o tempo de cobertura e a exposição de fragilidades organizacionais das estruturas governamentais para lidar com as consequências do desastre, maiores serão as chances de impactos negativos para o governo de plantão.

Especificamente em relação aos efeitos políticos do coronavírus para a gestão de Jair Bolsonaro, é muito difícil fazer previsões no momento atual. Isso ocorre porque vários aspectos importantes ainda são desconhecidos, tais como a extensão da contaminação, a gravidade dos casos, o número de mortos, o tempo de duração da epidemia e a eficácia das respostas oferecidas pelo governo.

Mas, diante das dificuldades governativas enfrentadas até o momento pelo governo Bolsonaro, que é minoritário e tem desenvolvido uma relação adversarial com o Legislativo e com a mídia, é pouco provável que essa pandemia seja por ele aproveitada como uma oportunidade para implementação de mudanças.

O governo corre o risco de ser visto como responsável pelos efeitos da pandemia. A dúvida que fica é em relação ao tamanho do dano, pois a confiança social tende a diminuir significativamente, especialmente quando a epidemia começar a causar fatalidades.