Correio Brazileinse

Imagem: Maurenilso Freire

Nas entrelinhas: o fantasma do comunismo renasceu com o bolsonarismo

Luiz Carlos Azedo/Entrelinhas/Correio Braziliense

“Um fantasma ronda a Europa — o fantasma do comunismo. Todas as potências da velha Europa se aliaram numa caçada santa a esse fantasma: o papa e o czar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães. Que partido oposicionista não é acusado de comunista por seus adversários no governo?”

As primeiras palavras do Manifesto Comunista de 1848 publicado por Karl Marx e Friedrich Engels em Londres, em inglês, francês, alemão, flamengo e dinamarquês, parecem saltar das estantes empoeiradas para a pesquisa Ipec divulgada no domingo pelo jornal O Globo.

Para 44% dos brasileiros, o Brasil corre o risco de “virar um país comunista” sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Segundo a pesquisa, 33% concordam totalmente com a afirmação de que um novo regime poderia ser implantado no país; 13% concordam parcialmente com a tese. Discordam total ou parcialmente da ideia 48% dos entrevistados.

A pesquisa mostra que a essência do bolsonarismo é o anticomunismo. O ex-presidente Jair Bolsonaro trata toda a esquerda e mesmo setores liberais como uma “ameaça comunista”. Na campanha eleitoral de 2022, teve nome e sobrenome: Luiz Inácio Lula da Silva. Continua sendo um divisor de águas da política brasileira: 81% dos que afirmam que a gestão Lula é “ruim ou péssima” concordam com o risco de comunismo. Já 71% dos que consideram o governo Lula “bom ou ótimo” rejeitam a afirmação.

A “ameaça comunista” é um tema recorrente na política brasileira, corroborado pela história do Brasil. Fundado por anarquistas, sob a liderança do jornalista e crítico literário Astrojildo Pereira, o Partido Comunista surgiu em 1922. Colheu lideranças da primeira grande onda de greves operárias no Brasil, que ocorreu em 1917, o “ano vermelho”, pois coincidiu com a Revolução Russa.

O Partido Comunista logo foi posto na ilegalidade. Em janeiro de 1927, reconquistou a legalidade, com a eleição de Azevedo Lima para a Câmara de Deputados. Em agosto, foi posto novamente na ilegalidade, pela “Lei Celerada” (Decreto n° 5.221) do governo de Washington Luís. Com o trabalho assalariado e a crescente urbanização, a questão social havia emergido nas grandes cidades e se tornara um caso de polícia.

Naufrágio no passado

A lei limitava a atuação da oposição ao governo e a direito de reunião, pois permitia ao governo fechar por tempo determinado sindicatos, clubes ou sociedades que convocassem ou apoiassem publicamente greves ou protestos. Também proibia a propaganda desses temas e impedia a distribuição de panfletos ou jornais que apoiassem ou incitassem greves e manifestações. A imprensa foi amordaçada. Os sindicatos foram duramente reprimidos, trabalhadores estrangeiros socialistas e anarquistas foram deportados do país.

Com a entrada no Partido Comunista do líder tenentista Luiz Carlos Prestes, comandante da famosa coluna que leva seu nome e o do general Miguel Costa, o comunismo deixou de ser um fantasma. Com o levante comunista em quartéis do Rio de Janeiro, de Recife e de Natal, em novembro de 1935, durante a ditadura de Getúlio Vargas, passou a ser tratado como uma ameaça real. Com o fracasso da chamada Intentona Comunista, Prestes passou nove anos na cadeia.

Entretanto, o fantasma voltou a rondar o Brasil em 1964, durante o governo João Goulart, que assumiu o poder com a renúncia de Jânio Quadros e propôs um programa de reformas de base, entre as quais a agrária. Um discurso de Prestes na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no qual exagerava a influência comunista no governo, seria um dos pretextos para a destituição de Jango pelos militares, em março de 1964.

No livro A Mente Naufragada, o cientista político norte-americano Mark Lilla explica que o espírito reacionário difere muito do conservador. Trata-se de invocar o passado para nele viver sem transformações, o que é muito diferente da atitude do conservador, que tem o passado e suas tradições como referência para agir no presente e construir o futuro.

Lilla conclui que mente reacionária naufragou, “porque olha para os destroços de um passado que lhe parece ameaçado, e luta para salvá-lo, porque não sabe conviver com as mudanças”. Ironicamente, porém, isso faz do reacionarismo um fenômeno “moderno” no mundo da globalização e do multiculturalismo.

No Brasil, o grande porta-voz do pensamento reacionário é o ex-presidente Jair Bolsonaro, que não conseguiu se reeleger. Esgrime o fantasma do comunismo contra toda a esquerda, principalmente o PT, um partido de base operária e social-democrata, que retroalimenta o fantasma do comunismo pela sua narrativa classista e, principalmente, devido às boas relações com Cuba, Venezuela, Nicarágua e, agora, a China.


Cristovam Buarque: Narrativas falsas

Dois mil e dezessete foi o ano em que o mundo descobriu o poder e o risco das “fake news”, mas há décadas os brasileiros têm sido vítimas de narrativas falsas que corrompem nossa maneira de pensar. Uma narrativa falsa generalizada diz que o governo pode gastar o quanto quiser, com Copa do Mundo e escolas, aumentar salários dos que recebem pelo topo e daqueles que recebem salário mínimo. Para corromper a verdade da aritmética, fizemos a falsa narrativa da moeda, com a inflação dando-lhe um valor menor do que o indicado na cédula.

Quando a verdade surgiu, criamos a falsa narrativa de que a industrialização enriqueceria todos os brasileiros. Acreditou-se que bastava esperar o PIB crescer para todos terem bons empregos e altos salários e o Brasil chegar ao Primeiro Mundo. O resultado foi o crescimento da riqueza nas mãos dos poucos ricos e a persistência da pobreza na vida da multidão de pobres.

No momento em que essa narrativa mostrou sua cara perversa, no lugar de reorientar o progresso, optou-se pela falácia de que a transferência de R$ 170 em média por mês seria suficiente para tirar uma família da pobreza e levá-la para a classe média. Decretou-se o fim da pobreza, independente da verdade.

O falso discurso da ascensão dos pobres à classe média se espalhou pelo mundo, ao ponto de que o impeachment legal, embora discutível se correto politicamente, é visto no exterior sob a falsa narrativa de golpe. Todas as prescrições constitucionais foram seguidas, todas as regras democráticas se mantêm, as instituições continuam funcionando, o novo presidente tinha sido escolhido como vice duas vezes pela presidente impedida (mesmo sabendo então das suspeitas de corrupção que pesavam sobre ele).

Além disso, os novos ministros colaboravam com o governo dela e a ex-presidente mantém todas as prerrogativas constitucionais dos presidentes que concluíram seus mandatos. Ela pode ser candidata já este ano (imagine se o golpe tivesse deixado Goulart ser candidato dois anos depois de 1964?), mas a falsa narrativa de golpe se mantém no imaginário dos apoiadores dela e de seus simpatizantes no exterior.

A mesma falácia que impedia ver os problemas já anunciados desde 2011 (veja o livro de minha autoria “A economia está bem, mas não vai bem”), agora mostra os problemas herdados como sendo criados pelo novo governo que, por seu desprezo à opinião pública, sua falta de credibilidade, sua imersão na corrupção, contribui para fortalecer a falsa narrativa de que ele é o culpado do desastre, mesmo quando a economia mostra recuperação.

Da mesma forma, está prevalecendo a falsa narrativa de que a Lava Jato vai salvar o Brasil esquecendo-se que um juiz pode prender político corrupto, mas não elege político honesto; e que o fim da corrupção no comportamento de políticos não eliminará a corrupção nas prioridades da política. Depois da Lava Jato, os políticos poderão continuar a construir obras de luxo, desde que não recebam propina.

Criou-se a narrativa da Lei da Ficha Limpa de que a política acabou com a corrupção, mesmo deixando soltos e elegíveis os políticos e juízes que constroem edifícios palacianos, ainda que roubados de escolas, de saneamento, de teatros, da ciência, desde que sem desvio para bolsos privados.

É também falsa a narrativa de que a cassação do direito político de um corrupto a candidatar-se vai educar o eleitor, quando poderá até acomodá-lo. Todos que não forem condenados serão vistos como igualmente bons. Depois do “rouba, mas faz”, cairemos no “se não rouba, já é bom”, não importando suas prioridades e competência. O Brasil vai continuar igual se não nos educarmos como eleitores.

Quando se discutia a Lei da Ficha Limpa, defendi que o ficha-suja deveria poder ir à campanha, como os cigarros vão à venda, com o aviso de que “este candidato foi condenado como corrupto, é ladrão de dinheiro público; ele faz mal à saúde nacional”. A Justiça condenaria, mas caberia ao eleitor cassá-lo nas urnas. Não se tiraria a soberania do povo e, certamente, educar-se-ia melhor o eleitor.

Mas, não foi assim que a lei foi aprovada, com apoio dos que não aceitaram a sugestão, e hoje reclamam dela. A Lei da Ficha Limpa deu à Justiça o poder de condenar e cassar. Vamos ter de conviver com ela esperando educar o eleitor por outros meios, mas alertando que acreditar plenamente em narrativas falsas não educa.

 


Luiz Carlos Azedo: Flechada no pé

O suspense era sobre a nova denúncia contra o presidente Michel Temer, mas o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em entrevista coletiva ontem à noite, ao contrário, anunciou a abertura de investigação para apurar “indícios de omissão de informações de práticas de crimes” no acordo de delação premiada dos executivos do grupo J&F, controlador do frigorífico JBS, que originou a primeira denúncia. O que era pra ser uma flecha de prata a ser disparada contra o Palácio do Planalto, virou uma flechada de chumbo no próprio pé, porque a decisão reforça a tese de que as denúncias contra Temer seriam uma “conspiração” para derrubar o presidente da República. Dependendo do resultado da investigação, os benefícios oferecidos no acordo de colaboração dos irmãos Joesley e Wesley Batista poderão ser cancelados.

Janot revelou que os investigadores da Polícia Federal obtiveram na última quinta-feira áudios com conteúdo “gravíssimo”. Numa das gravações, Joesley Batista conversa com Ricardo Saud, diretor institucional da J&F. Três dos sete executivos da empresa que fecharam a delação estão implicados nos áudios. Por isso, Janot ameaça anular a delação premiada de Joesley, Wesley e Saud. Nos áudios enviados à PGR, há diálogo entre delatores que supostamente teriam sido entregues por engano por um dos colaboradores. O áudio teria referências a congressistas, integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) e até a pessoas da própria PGR, inclusive Janot. O único nome citado pelo procurador-geral, porém, foi do ex-procurador Marcelo Müller, que deixou a sua equipe para atuar como advogado no escritório de advocacia contratado por Joesley para negociar a delação premiada.

Janot não revelou o diálogo entre dois colaboradores “com referências indevidas” à Procuradoria-Geral da República e ao Supremo Tribunal Federal, nem confirmou os nomes dos delatores que, na conversa, revelam fatos que podem ser indícios de crimes praticados. Entretanto, o procurador-geral garantiu que as provas não serão anuladas, caso se comprove que Joesley omitiu informações, mas os envolvidos poderão perder os benefícios da delação e o ex-procurador envolvido pode ser exemplarmente punido.

São quatro horas de conversa gravada, que aparentemente não eram do conhecimento de Joesley, mas foram parar nas mãos de Janot, sem que o dono aparentemente soubesse do conteúdo. A gravação registra bastidores da negociação com a PGR, destacando a atuação de Müller na confecção de propostas do acordo que seriam fechadas com o órgão. “Ao longo de três anos, Marcelo foi auxiliar do procurador-geral, procurado por suas qualidades técnicas. Se descumpriu a lei no exercício das funções, deverá pagar por isso”, disse Janot.

Anulação

O advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que cuida da defesa do presidente Michel Temer, anunciou ontem que pretende pedir a anulação da denúncia da PGR que acusou o presidente de corrupção passiva. Embora Janot tenha reiterado que não haverá anulação de provas, a gravação das conversas relatada pelo próprio procurador-geral abriu a brecha para o Palácio do Planalto iniciar uma ofensiva com objetivo de sepultar de vez a segunda denúncia e desmoralizar Janot. Os áudios foram, encaminhados ao ministro-relator da Operação Lava-Jato, Edson Fachin, que decidirá o que fazer com as gravações. A história toda é muito cabeluda, porque tudo aconteceu como se fosse um grande descuido.

Há muita especulação sobre o que está acontecendo. O Palácio do Planalto comemora o episódio como se fosse uma pá de cal na Lava-Jato e no estatuto da “delação premiada”, que está sendo muito questionado por todos os denunciados com base em depoimentos de colaboradores. Além disso, a gravação pegou Janot no fim de seu mandato, pois a posse da nova procuradora-geral, Raquel Dodge, deverá ocorrer no próximo dia 18. Para muitos, a investigação é uma espécie de vacina, pois certamente seria instalada por sua sucessora no cargo, já que a gravação mostra que Müller começou a trabalhar para os colaboradores quando ainda integrava a equipe de Janot, que pretende encerrar a investigação até o dia 15, ou seja, ainda durante seu mandato.