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Demétrio Magnoli: A vida de uma menina

A vida civilizada distingue-se pela capacidade de reconhecer a legitimidade de direitos conflitantes

A menina de 10 anos violada pelo tio monstruoso foi submetida a novo estupro quando uma certa Sara Giromini, acompanhada por sua malta de idiotas, começou a berrar diante do hospital em que se fazia o aborto legal. O ato dos extremistas nada tem a ver com crenças religiosas, ainda que as manipule como pretexto. No seu rastro, pegando carona nas justas expressões de indignação, emergiu o discurso dos arautos do aborto irrestrito, que só serve para congelar um debate público indispensável.

As religiões, sem exceção, celebram a vida. Sara e seus baderneiros desprezam a vida singular da menina, enquanto fingem defender a Vida genérica, com maiúscula. Transformando a vítima em símbolo de pecado, usam-na como bucha de seus canhões ideológicos. A perversidade dos extremistas deve ser comparada à do estuprador: como no caso dele, a menina desempenha a função de corpo inerte destinado à satisfação das vontades de seus captores.

Os jihadistas falam em nome do Islã, mas para negá-lo. Os desordeiros do hospital, tal qual os jihadistas, tomam o cristianismo como refém para veicular um programa político. São, uns e outros, renegados da religião à qual, hipocritamente, juram fidelidade. Os cristãos têm o dever, tanto cívico quanto religioso, de repudiar os aprendizes de terroristas que insultavam médicos e familiares da vítima.

A lei brasileira só admite o aborto em situações excepcionais, como a da menina violada. Há bons argumentos para revisá-la, mas eles são soterrados sob o clamor de certas correntes feministas embriagadas pela ideologia.

O aborto irrestrito seria, segundo tal ponto de vista, uma decorrência do direito das mulheres a seu “próprio corpo”. Não é preciso invocar princípios religiosos para apontar a falácia. O feto é um “outro corpo”, num duplo sentido. Biologicamente, tem potencial de vida autônoma. Socialmente, é assim reconhecido por leis como a licença-maternidade, que assegura à gestante tempo e remuneração para cuidar de um ser ainda não nascido, e pelo custeio público do acompanhamento pré-natal.

“Meu feto, minha decisão soberana e exclusiva.” A legalização irrestrita do aborto baseada nessa premissa radicalmente individualista implicaria, no plano lógico, a supressão da legislação de proteção à maternidade. Por extensão, abalaria os alicerces filosóficos das leis que responsabilizam solidariamente mãe e pai pela nutrição, saúde e educação dos filhos menores. O estandarte do feminismo niilista ajusta-se bem à visão ultraliberal de uma sociedade sem leis sociais — mas, paradoxalmente, costuma ser desfraldado por movimentos de esquerda.

Nada disso significa que a criminalização do aborto deva ser admitida num Estado laico. A menina conseguiu extrair legalmente o embrião, mas mulheres adultas precisam, de modo geral, recorrer a clínicas ilegais, caras ou perigosas. Definir o aborto como crime é produzir uma crise crônica de saúde pública. Uma solução encontra-se na combinação da oferta ampla de anticoncepcionais com a legalização limitada da interrupção da gravidez.

Diversos países aceitam o aborto nos meses iniciais de gravidez, apenas depois de sessões obrigatórias de aconselhamento psicológico do casal. Por essa via, o poder público passa a mensagem de que a interrupção da gravidez é um gesto extremo, um direito condicional e socialmente tutelado. Procura conciliar, assim, imperativos de saúde pública, direitos da mulher e o princípio moral da proteção de vidas potenciais.

A vida civilizada distingue-se pela capacidade de reconhecer a legitimidade de direitos conflitantes — ou seja, de preservar uma pluralidade de direitos. O conceito não cabe na mente de fanáticos, para quem um princípio único, fundamental e sagrado, fecha todas as janelas de debate.

Sara e sua malta de estupradores simbólicos são execráveis, mas não destituídos da esperteza típica dos extremistas. O ato provocativo tem a finalidade de deflagrar uma guerra ideológica com a vertente niilista do feminismo. No fragor da batalha, perderíamos a chance de discutir a sério nossa anacrônica legislação sobre aborto.


Cacá Diegues: Um culto de crueldade

O aborto, enquanto crime, é uma invenção de católicos conservadores de meados do século XIX

Os antropólogos brasileiros nos falam de nossa formação, a partir do encontro entre os nativos e os civilizados, navegantes sujos e doentes, ávidos por riquezas, moralmente dispostos a tudo para não perder a oportunidade que a vida, Deus ou a sorte lhes davam com o novo mundo, prontinho para ser usado e explorado pela cobiça deles. Do outro lado, estavam, como escreveu Darcy Ribeiro, “a inocência e a beleza encarnadas”, um povo original, tentando entender aquela gente tão diferente. O poder acabou nas mãos dos que chegavam, os que escreveram a história e decretaram o que somos, um povo ao mesmo tempo cruel e generoso.

Hoje, no Brasil, vivemos um culto da crueldade. Não estamos nos referindo apenas aos grupos radicais de direita no poder ou ligados ao poder, que propõem a eliminação dos que não pensam como eles. Estamos falando de hábitos e costumes populares, de inesperadas ações cotidianas, quase sempre espontâneas, às vezes até inocentes.

A mais recente demonstração dessa perda de generosidade, em nome de regras e leis sobre as quais não refletimos, é o caso da menina de 10 anos, de São Mateus, no Espírito Santo, que apareceu grávida em decorrência do estupro sistemático de seu tio, praticado desde seus 6 anos de idade. Durante quatro anos, uma criança sofre tal violência, sob pretextos que a mente perversa do adulto deve ter criado, e grande parte da população pune (ou deseja punir) a vítima.

Segundo nos informa Flávia Oliveira, sempre atenta à desigualdade no país, só em 2018, mais de 21 mil bebês nasceram de mães com menos de 14 anos de idade. É nessa faixa de idade materna que se encontra o maior número de óbitos infantis, determinado pelas condições sociais e de saúde das mães precoces. Nosso Código Penal considera crime a relação sexual com menores de 14 anos, mesmo quando consentida. Conheço uniões com enorme diferença de idade em que os cônjuges são felizes até hoje. É muito difícil legislar sobre o amor, ele é sempre uma exceção. Mas a lei não impede que, no Brasil, quatro meninas nessa faixa etária sejam estupradas por hora.

A capixaba poderia, pelo menos, passar anônima por essa tragédia, no início de sua vida condenada ao sofrimento. Mas o fundamentalismo religioso, hoje exercido de modo medieval por parte de nossas autoridades, não deixou que nem isso ocorresse com essa vítima de nossa crueldade. Uma tal de Sara de muitos sobrenomes, ex-assessora e declarada discípula da ministra Damares Alves, pastora no Ministério da Mulher (?), Família (??) e Direitos Humanos (???), descobriu e deu, em redes sociais, o nome, o endereço da família e as características da menina de São Mateus (que seria negra, pobre e criada pelos avós). Ela anunciou o hospital em que a mãe violentada faria o aborto legal, incentivando grupos religiosos a se manifestar contra a interrupção da gravidez. A menina acabou tendo que deixar o Espírito Santo, indo se cuidar no Recife.

O aborto, enquanto crime, é uma invenção de católicos conservadores de meados do século XIX, estabelecida por motivos políticos e hereditários. Nem Cristo, nem nenhum dos fundadores de sua Igreja, se manifestou sobre o assunto. É difícil estabelecer regras rígidas para essa questão, mesmo que apenas do ponto de vista civil. Mas, em qualquer circunstância, para qualquer civilização, povo ou religião, é claro que o estupro é uma barbárie que não pode ser consagrada como boa origem de uma vida. Muito menos quando se trata de uma criança, que terá sua vida destruída por um erro ou um crime que não foi ela que cometeu.

Os que se manifestaram contra o aborto da menina não foram apenas militantes políticos que estão sendo processados por atividades antidemocráticas ou religiosos ignorantes e intolerantes, mas também autoridades formais de uma Igreja que tem hoje um líder que pensa, o Papa Francisco. Em que país estavam essas autoridades quando tantos meninos e meninas pobres foram mortos por balas perdidas ou bem miradas no alvo? Nunca vi nenhum deles acender velas públicas por essas crianças, como João Pedro, Jenifer, Kauan, Kauã, Kauê, Agatha, Ketellen e muitos outros. Essas, sim, são mortes que podiam ter sido evitadas.


Fernando Limongi: O príncipe e a fera tosca

A vitória dos conservadores, em boa medida, é por W.O

Os conservadores derrotarão os progressistas, pois somente um erro grosseiro tiraria a vitória de Bolsonaro. Esta é a forma como Luiz Philippe de Orleans e Bragança, em artigo publicado na Folha de São Paulo, caracteriza as eleições do próximo domingo. O deputado federal eleito pelo PSL se identifica como 'tetraneto de D. Pedro II, administrador, empresário e cientista político pela Universidade de Stanford (EUA), com pós-graduação pelo Insead (França)'. Como se sabe, o tetraneto foi cogitado para compor chapa com Bolsonaro, mas foi preterido para neutralizar possíveis tentativas de impeachment.

No passado, explica o tetraneto, os progressistas obtiveram sucessivas vitórias. "Desde 1995, com o governo FHC, que ideias progressistas vêm galgando espaço no poder público." O recuo dos conservadores teria se intensificado, mas não iniciado, durantes os governos Lula e Dilma. Ou seja, para o príncipe conservador, FHC, Lula e Dilma seriam farinhas do mesmo saco.

"Vivemos o esgotamento da hegemonia progressista", afirma o tetraneto. A ascensão de Bolsonaro à presidência será o fim de uma era, uma era marcada por uma "busca aflita pela justiça social". Mas se a busca pela justiça será abandonada, o que teremos no lugar? Qual o programa dos conservadores?

Do ponto de vista eleitoral, os progressistas foram postos para correr. Nos estados do sul, sudeste e centro-oeste não há progressista com chances de vitória. Não faltam aprendizes e oportunistas prontos a se colar a Bolsonaro para chegar ao poder. Associar-se aos progressistas, ao PT ou ao PSDB, é pedir para perder.

Mas é preciso ter clareza. Os progressistas estão sendo derrotados por um time desconjuntado, mal ajambrado, reunido às pressas, sem consistência, formado por herdeiros presuntivos, artistas pornôs, jornalistas com credenciais contestadas, juízes com histórias mal contadas etc. Para os mais velhos, a referência ao Exército Brancaleone é inevitável.

O fato é: não se perde para adversário tão improvisado e fraco sem cometer erros e mais erros. Witzels, Zemas e Dórias não teriam se destacado sem o acúmulo de erros das lideranças políticas. Para ser claro: o que estamos observando é antes a derrota dos progressistas do que a vitória dos conservadores. Em boa medida, é uma vitória por W.O.

Basta lembrar que, não mais do que dois anos atrás, Bolsonaro disputou a presidência da Câmara dos Deputados e recebeu exatos quatro votos. Nem seu filho se deu ao trabalho de comparecer para sufragá-lo. Até muito pouco atrás, o capitão era um figura politica tão folclórica quanto a do Cabo Benevenuto Daciolo. Sua ascensão meteórica se deve ao vazio criado pela luta aberta entre os progressistas, ao suicídio coletivo que se esmeraram para produzir. Não fosse assim e Bolsonaro não teria crescido justamente quando parou de fazer campanha.

A chance oferecida pelo segundo turno não foi aproveitada. A briga nas hostes progressistas não parou. Como crianças, cada lado pede que o outro reconheça sua culpa, que foi que ele que começou e que, sem as necessárias desculpas, não fará as pazes. A infantilidade reinante chega a ser patética. E a briga se estendeu para o interior de cada bloco, como atestam as acusações públicas de Alckmin a Dória e as de Cid Gomes ao PT.

Já faz um bom tempo que os progressistas não se veem como integrantes de um mesmo grupo, mas seus adversários sabem bem quem estão derrotando. Como afirmou o tetraneto, sairão de cenas os que acreditam que as "leis devem ser criadas para fazer justiça social e buscar atingir a igualdade sempre que possível em todos os aspectos da sociedade."

O príncipe está coberto de razão: foram estas as ideias mestras a ditar as políticas públicas e a ação do Estado desde a redemocratização. É contra este movimento, é contra esta direção dada às politicas que Bolsonaro se insurge.

O tetraneto, contudo, não foi capaz apresentar o programa positivo dos conservadores. O máximo que conseguiu foi afirmar sua crença na existência de uma ordem social natural: "O aprendizado para todos é que os avanços da sociedade se devem mais em função das ações da própria sociedade, e não dos mandos e desmandos da legislação."

Sabe-se lá o que o príncipe quis dizer com isto, mas sabe-se com certeza que a ordem social nada tem de natural, que conflitos sociais não se resolvem 'sem os mandos e desmandos da lei.'

O fato é que o discurso de Bolsonaro vai muito além deste conservadorismo edulcorado. O tetraneto lança mão de perguntas retóricas para enfrentar a questão: "Mas será que o medo dos progressistas é justificável? Veremos um retrocesso nas nossas relações sociais com os conservadores no poder?"

O príncipe acredita que os temores de retrocesso como a intolerância e o recurso à violência contra adversários seriam infundados: "O conservadorismo não é intolerante muito menos retrógrado; é simplesmente natural e evolui conforme as gerações de maneira livre."

De novo, difícil saber o que seja evoluir de maneira livre, mas sabe-se que um dos cotados a ocupar o Ministério da Educação acredita que a evolução natural das espécies deve ser banida das escolas. Poderia haver evidência mais clara de retrocesso? Não sei se Dom Pedro leu Darwin, mas sabe-se que era um entusiasta da ciência.

O fato é que quem forma juízos a partir das informações disponíveis tem razões de sobra para temer. O líder dos conservadores está longe de ser o moderado razoável que o tetraneto procura vender. Basta lembrar que, no Roda Viva, já em campanha, Bolsonaro fez questão de registar sua idolatria ao Coronel Brilhante Ustra. Precisa mais? Há algo mais bárbaro e repugnante que a tortura?

No mundo do faz de conta, beijos de princesas castas transformam sapos horrendos em príncipes garbosos. No mundo real, não há varinha de condão que transforme feras toscas em seres civilizados. O retrocesso será inevitável.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.