Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)

Demétrio Magnoli: Procuradores pretendem preservar estatuto de intocáveis

Há alguma verdade na alcunha 'PEC da vingança', mas corporação tenta seguir como sentinelas da lei autorizados a agir fora da lei

Demétrio Magnoli / Folha de S. Paulo

 “PEC da vingança” –é assim que a corporação dos procuradores da República apelidou a proposta de Emenda à Constituição de reforma do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Há alguma verdade na alcunha pois, desde a desmoralização da Lava Jato, a elite política articula-se para limitar investigações sobre corrupção. Sobretudo, porém, o que os procuradores pretendem é preservar seu estatuto de intocáveis –ou seja, de sentinelas da lei autorizados a agir fora da lei.

A Constituição de 1988 fabricou uma anomalia ao desenhar o atual Ministério Público (MP). Inexiste, no mundo, instituição similar com prerrogativas tão amplas e tão pouca responsabilização como o nosso MP.

Numa ponta, os constituintes atribuíram-lhe poderes excepcionais, encarregando-o da tutela dos “interesses difusos” dos cidadãos. A função permite ao MP lançar acusações judiciais amparadas exclusivamente nas crenças ideológicas dos procuradores.

Na outra, isentaram-no de controles externos, traçando um círculo aristocrático de impunidade em torno de seus integrantes. O CNMP, finalmente criado em 2004, funciona apenas como simulacro de controle externo pois o próprio MP indica metade dos conselheiros.

O ser teratológico evoluiu como estufa ideal para a militância de procuradores engajados na missão da reforma da sociedade. Dentro do MP, nasceram partidos políticos com programas e associados, como o “MP Democrático”, sob influência lulopetista, e o “MP Pró-Sociedade”, de inspiração moro-bolsonarista.

A lei, ora a lei: os procuradores-militantes utilizam o poder de investigar e acusar para fazer política sem risco, no conforto da estabilidade, de gordos salários e aposentadorias integrais.

A degeneração do MP ficou evidenciada na hora da desmoralização da Lava Jato. Como esquecer o acordo de imunidade judicial absoluta firmado pela PGR com Joesley Batista, o corruptor confesso da JBS? Ou a tentativa da força-tarefa de Curitiba de gerir recursos devolvidos à Petrobras por meio de um fundo privado? Ou, ainda, o conluio ilegal entre a mesma força-tarefa e o juiz Sergio Moro na condução dos processos contra Lula?

A corporação que alerta contra a “vingança” precisa olhar-se no espelho do desfecho do “caso Lula”. A decisão do STF que reconheceu a parcialidade de Moro ilumina a necessidade de reforma do MP. O mais notório processo de corrupção na história brasileira permanecerá inconcluso para sempre.

Os inimigos de Lula insistirão na narrativa de que existiam provas condenatórias irrefutáveis. Os lulistas persistirão na versão da inocência de um ex-presidente perseguido. A eternização de narrativas polares capazes de reclamar legitimidade é uma mancha indelével de descrédito aplicada ao sistema nacional de justiça –e, ainda, uma lápide apropriada no túmulo de um poder irresponsável.

A PEC em tramitação não tem nem mesmo a pretensão de reformar o MP. Circunscreve-se a uma reforma do CNMP, fazendo muito e pouco ao mesmo tempo.

Muito: a autorização que concede ao órgão de rever atos de integrantes do MP, uma nítida “vingança” destinada a interromper investigações de corrupção. Pouco: a ampliação de 14 para 15 no número de assentos, com a reserva de quatro cadeiras a indicados pelo Congresso, o que mantém a maioria de integrantes do MP, inviabilizando um efetivo controle externo.

Moro confundiu a lei com suas ambições políticas, mas escapou de punição porque abandonou o Judiciário para servir a Bolsonaro. Os procuradores missionários da força-tarefa, que pintaram e bordaram, acabaram expostos pela Vaza Jato mas nunca foram devidamente sancionados. A redoma constitucional os protege, tornando-os imunes às leis com as quais acusam os demais cidadãos.

O Congresso, porém, não quer acabar com a classe dos intocáveis. Prefere estender o privilégio a seus próprios integrantes.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/10/procuradores-pretendem-preservar-estatuto-de-intocaveis.shtml


Merval Pereira: Dallagnol na mira

Dando seqüência à tentativa de desconstruir a Operação Lava-Jato, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) julgará na terça-feira casos envolvendo o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava-Jato em Curitiba. Não são os primeiros, nem serão os últimos casos, pois ao longo de seu trabalho à frente da força-tarefa de Curitiba Dallagnol já teve cerca de 50 reclamações disciplinares contra si, a maior parte vinda de investigados e réus e seus aliados.

Apenas duas delas, e sempre por opinião, mereceram advertências. Por isso, é estranho que na reunião de terça exista a possibilidade de afastamento cautelar devido a um procedimento disciplinar por remoção compulsória por interesse público, impetrado pela senadora Katia Abreu, investigada pela Lava-Jato. Até hoje, foram poucos os afastamentos a bem do interesse público, e ambos por questões totalmente diversas das que Dallagnol está sendo acusado.

Um por trabalho ineficiente em defesa do consumidor, e outro por assédio moral e outras faltas funcionais. Ambos ao fim de um processo em que houve possibilidade de o acusado apresentar sua defesa, não de maneira cautelar. O afastamento cautelar de Dallagnol feriria de morte a garantia de inamovibilidade de integrantes do Ministério Público, o que afetaria a independência do órgão e levaria uma insegurança funcional nos demais membros do órgão investigador, que ficariam expostos à retaliações políticas.

Outro que apresentou Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra Dallagnol foi o senador Renan Calheiros, que pede sua punição por ter defendido a votação aberta para a eleição da presidência do Senado, afirmando que a eleição de Calheiros seria prejudicial ao combate à corrupção. O plenário do CNMP já rejeitou a mudança da caracterização da fala como atividade político-partidária, e negou o afastamento cautelar de Dallagnol pedidos ainda em 2018.

O relator é Luiz Fernando Bandeira de Mello, braço-direito de Renan Calheiros no Senado, onde atua até hoje como secretário-geral da Mesa Diretora. Por essa relação, um grupo de senadores pediu que ele fosse considerado suspeito para relatar os casos. Vários deles já foram julgados em outras reclamações disciplinares e considerados legítimos, como as palestras remuneradas que Dallagnol deu, ou o acordo da força-tarefa com a Petrobras envolvendo a restituição bilionária de multa paga nos Estados Unidos e que ficaria no Brasil com a criação de uma fundação para combate à corrupção.

Uma fundação polêmica, que acabou anulada pelo Supremo, mas, alega a defesa de Dallagnol, aprovada por diversos órgãos como uma solução jurídica legítima. Além disso, há uma questão técnica importante, que pode inviabilizar o julgamento.

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é composto por 14 membros, e é preciso maioria absoluta para aprovar uma remoção por interesse público. No momento, no entanto, existem somente 11 conselheiros em atividade, pois três indicações estão paradas no Senado para aprovação, o que desequilibra a composição do Conselho, pois o Ministério Público fica sub representado.

Há, portanto, uma discussão preliminar que deve ser enfrentada no julgamento de terça-feira: sem sua representação integral, o CNMP pode julgar uma ação dessa envergadura, raramente usada para punir procuradores? A não nomeação de dois representantes do Ministério Público por questões internas do Senado, como a paralisação dos trabalhos devido à pandemia, não é motivo para adiar a decisão? Há ainda a posição do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que abriu guerra declarada contra a Operação Lava-Jato.

Nas votações anteriores, os procuradores sempre tiveram o voto do Procurador-Geral da República, o que não é garantido desta vez. Todas essas circunstâncias formam um quadro que indica, no mínimo, que o julgamento desta terça-feira não está organizado dentro dos melhores padrões, e pode levar insegurança a todos os membros do Ministério Público.

O procurador Deltan Dallagnol é a face mais exposta da Lava-Jato em atividade em Curitiba. O interesse público é o fortalecimento do combate à corrupção, que fica fragilizado se do julgamento sair uma decisão que cheire a mais uma ação contra a Operação Lava-Jato.