congresso em foco

Alessandro Vieira: Auxílio emergencial - A guerra de narrativas que mata

O Congresso constrói soluções urgentes para o país, como o restabelecimento do auxílio emergencial - essa obra do parlamento em parceria com o Executivo que, em plena pandemia, reduziu a taxa de pobreza do nosso país a níveis históricos. Como é de conhecimento público, fui diagnosticado com covid-19, o que não permitirá, por alguns dias, que eu participe presencialmente das negociações em curso no Senado Federal. Claro que nada disso me impedirá, com a ajuda de minha equipe, de ser parte dessa solução tão importante para o país.

Mesmo à distância, estou defendendo os interesses de quem mais precisa, sem abrir mão da responsabilidade e do rigor técnico.

De cara, reconheço e elogio o esforço do colega senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) Emergencial e do líder do Governo, senador Fernando Bezerra (MDB-PE). Porém, mesmo avançando muito, ainda temos problemas relevantes, o que é natural dada a complexidade do tema. Para piorar, vozes externas não têm contribuído com o debate.Leia mais

O ministro Paulo Guedes, por exemplo, nos convida a dar “sinais” para o mercado de respeito à responsabilidade fiscal. Está correto na tese. Não percebe o ministro, porém, que ele mesmo manda “sinais” trocados ao incentivar uma visão catastrófica sobre os impactos da retomada do auxílio emergencial. Da mesma forma, ao insistir em vincular a retomada do auxílio à PEC Emergencial, coisas absolutamente distintas.

Como já demonstraram técnicos relevantes, a exemplo de Felipe Salto, do IFI, da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, não cabe essa vinculação. Se o objetivo desta mistura é pressionar o Congresso, com todo respeito, a tática é tola e com efeitos limitados às já conhecidas guerras de narrativa.

Precisamos urgentemente do auxílio, como precisamos das vacinas, hoje entregues a conta gotas enquanto os hospitais superlotam. E não existe nenhuma divergência sobre essas necessidades.
Já os demais pontos da PEC são medidas de ajuste fiscal que precisam tramitar com celeridade, assim como as reformas estruturantes, mas sem o caráter de calamidade.

Por isso persisto no pedido de “fatiamento”, na linha de emendas minhas e do senador José Serra. Assim teremos a aprovação imediata das cláusulas de calamidade para retomada do auxílio e faremos a remessa das cláusulas de protocolo fiscal para calendário especial na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o que será regrado pelo presidente Pacheco. Registre-se que sugeri duas semanas para essa tramitação especial.

Essa decisão, desde que bem comunicada e com lealdade por parte dos negociadores, será recebida sem sobressaltos. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pode firmar calendário estreito, com compromisso de todos pelo não uso de estratégias protelatórias, como aliás fizemos na PEC da Previdência.

O sinal de que o Brasil precisa é o de respeito às vítimas e suas famílias, não de eterno cortejo a especuladores ou a adeptos da narrativa fratricida do nós contra eles.

Já passou da hora do Congresso Nacional demonstrar o alinhamento com as pautas populares e se debruçar no que milhões de brasileiros realmente precisam: o retorno do auxílio e uma vacinação rápida e para todas. Separando as matérias conseguiremos, sem mais atrasos, devolver aos brasileiros a esperança de dias melhores e o mínimo de dignidade que eles merecem.

Cada dia que passa é mais um dia de fome na casa de milhões de brasileiros. E, quem tem fome, tem pressa. Para isso, peço a ajuda e o apoio de cada cidadão brasileiro, esteja onde estiver.

*Alessandro Vieira (SE) é líder do Cidadania.


Valdir Oliveira: O justiceiro da vontade popular

Não existe quem possa defender a impunidade. As ações de combate a crimes de colarinho branco são apoiadas por toda a população. Não é de hoje que a sociedade repudia atos de corrupção. Noel Rosa, em 1933, já trazia essa pauta com a música Onde Está a Honestidade? O período do rock também foi muito rico nesse tema. Em Alvorada Voraz, Paulo Ricardo até citava os casos famosos de gente importante, como ele dizia. Com tantas insatisfações, Renato Russo chegou até a gritar: “Que pais é esse?”

Passaram-se ciclos de poder, com nomes e partidos diferentes, mas os casos de desvios se mantiveram presente como se a corrupção fosse parte do DNA do poder. A corrupção é parte da imperfeição humana, por isso, a sedução pelo dinheiro ou pelo poder é um perigo constante.Leia mais

Uma investigação mudou a história recente do Brasil e alterou os rumos do país. A partir dela, renasceu a esperança do fim da impunidade e, inevitavelmente, novos heróis nacionais. A operação, conhecida como Lava Jato, saiu da burocracia jurídica dos processos penais e ganhou as ruas, transformando-se em bandeira política de grande mobilização nacional. O que antes era crime de gente importante, como dizia a música de Paulo Ricardo, se transformou em crime hediondo, popularizando a repulsa pela corrupção, como a que sentimos com os crimes que nos chocam, nos atingem a alma.

Autores de crimes de colarinho branco sempre foram considerados inatingíveis pela polícia e pela Justiça. O dinheiro e o poder sempre foram a proteção à impunidade. A compreensão era de que, no campo jurídico, esse embate não lograria êxito. Assim como na operação italiana Mãos Limpas, que parece ter sido a inspiração para a operação Lava Jato, a estratégia usada foi levar a investigação e julgamento para as ruas, para que os acusadores conseguissem lutar no campo político, vez que no campo jurídico a lição mostrava insucessos.

Ao levar a investigação e o julgamento para as ruas, o juiz pôs em risco sua imparcialidade e comprometeu todo o processo. A política é tão sedutora quanto o dinheiro e a corrupção oriunda da vaidade é capciosa. O conhecimento público de um processo de interesse nacional não é ruim, desde que isso não seja maior do que o próprio processo e que não se torne bandeira de outros interesses que não o da própria Justiça. Caso ocorra, a mácula na Justiça atingirá a confiança daqueles que alimentaram a esperança de um país mais justo e colocará por terra a crença que a impunidade não resistirá aos homens de boa fé.

Ao ganhar as ruas, ancorado na esperança do povo brasileiro, o herói nacional correu o risco de transmudar seu papel, de juiz para justiceiro e, efetivamente, o fez. Adotou, como princípio, a máxima de que os fins justificavam os meios e transformou seu julgamento em guerra a qualquer custo, assumindo, também, o lado de acusador, abstendo-se, por consequência, da imparcialidade, fundamental em um processo justo. Existiram, assim, naquela operação, apenas dois polos: o da acusação e o da defesa.

Quem de nós já não se deparou com uma situação onde a raiva despertou a vontade de fazer justiça com as próprias mãos? Seja em um desencontro no trânsito ou no trabalho ou até em agressões a vulneráveis? O despertar da repulsa nos estimula a reagir impensada e impulsivamente, na profunda certeza de que, de fato, os fins justificam os meios. Porém, por vivermos em sociedade, não podemos permitir que esse limite seja ultrapassado. Caso contrário, como um bumerangue, tal processo tortuoso, um dia, voltará, inapelavelmente, contra nós mesmos.

Um justiceiro pode ser fruto de uma insatisfação profunda ou até da busca pelo fim impunidade. Pode ser, também, fruto da vaidade das conquistas individuais. Seja em um caso ou outro, o justiceiro sempre falha com a Justiça, porque, ao ultrapassar o limite da imparcialidade, da lei e das verdades dos fatos, ele contamina o resultado do seu trabalho. Um justiceiro, sob o manto da cegueira de suas razões, tende, ao final, a vitimizar o réu e passa a navegar, ele mesmo, nas águas da injustiça que se propôs a combater.

O fim da operação Lava Jato também traz nova mudança para os rumos do país. Assim, da mesma forma, a condenação a qualquer preço imperará no julgamento do justiceiro, decorrente da frustração, do engodo, do abuso da boa-fé, do sentimento da perda da oportunidade do combate eficaz e limpo da corrupção. O justiceiro se torna réu do próprio julgamento e, com isso, subtrai do povo a esperança da justiça e do fim da impunidade. A corrupção da vaidade é crime tanto quanto a corrupção de recursos públicos.

A história nos relega uma lição. O povo não deve personalizar irrevogavelmente a esperança. Afinal, somos todos imperfeitos, sujeitos a erros que, muitas vezes, nos igualam. O limite entre o juiz e o justiceiro está na lei e jamais devemos ultrapassa-lo, por mais que haja motivos que estimule essa ousadia. Afinal, como Júlio Cesar, na Roma antiga, devemos nos lembrar sempre que somos mortais e jamais poderemos estar acima do bem e do mal. A lei será sempre o limite do nosso poder.

*Valdir Oliveira é superintendente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) no Distrito Federal (DF).


José Serra: Banco Central - Quando autonomia significa mais desigualdade

O Parlamento e o governo sabem que um dos legados da pandemia é o aumento da desigualdade social. Famílias sem acesso a recursos financeiros perdem renda e  emprego, com seus filhos fora da escola, lutando pela sobrevivência. Além disso, não temos orçamento público aprovado nem planejamento financeiro para ajudar essa parcela significativa da população brasileira. É neste cenário que o presidente da Câmara resolveu pautar projeto que institui a independência política do Banco Central, o que tende a aumentar, mais ainda, essa desigualdade.

A proposta é moralmente perversa e deve ser rejeitada, pois a independência política de um Banco Central aumenta a já enorme barreira que separa ricos e pobres. Essa é a conclusão de pesquisadores do Banco Mundial em estudo publicado este ano a respeito do  impacto da independência dos bancos centrais   sobre a desigualdade:“Does Central Bank Independence Increase Inequality?”. Com sólida base teórica, os estudiosos do banco demonstraram a existência de correlação entre a independência do Banco Central e a desigualdade social. Chegaram a três conclusões de fácil compreensão.

Primeiro, a independência dos Bancos Centrais limita o alcance da política fiscal, o que limita a capacidade de um Governo para distribuir recursos. Segundo, incentiva a desregulamentação irresponsável dos mercados financeiros, beneficiando os investidores em bolsa, na medida em que infla os valores dos ativos negociados no mercado. Terceiro, promove indiretamente políticas que enfraquecem o poder de negociação dos trabalhadores, com o objetivo de conter pressões inflacionárias.

A autonomia política do Banco Central é uma pauta que inundou os países industrializados na década de 1970, ajudando a fomentar, na academia, a tese da superioridade da independência dos bancos centrais. Naquele período, muitas democracias aprovaram normas para conferir autonomia a suas autoridades monetárias, com o objetivo de tornar mais efetivo o controle das taxas de juros.

Depois da crise financeira de 2008, o cenário mudou bastante. Hoje os bancos  centrais têm mandato que extrapola, de longe, aquele papel clássico de cinquenta anos atrás, em que as autoridades desses tinham, como única missão, executar a política monetária via definição da taxa básica de juros da economia.

Os bancos  centrais  modernos estão atuando na política monetária em coordenação com a política fiscal, injetando dinheiro para aquecer a economia. O projeto em discussão na Câmara dos Deputados chega a criar um mandato a mais para o nosso BC: promover crescimento e emprego. Esse novo arranjo institucional da política monetária é incompatível com o argumento da soberania política para o esse banco.

No cenário atual, a discussão sobre projetos para garantir independência política para o BC está completamente fora de hora. O Brasil vive uma pandemia das mais graves da história, com hospitais do SUS abarrotados de pessoas infectadas pelo coronavírus. Em algumas localidades, faltam balões de oxigênio para manter pessoas respirando. E o novo presidente da Câmara resolve mostrar serviço, tentando aprovar uma das reformas menos relevantes para o enfrentamento da crise.

Claramente estamos perdendo o foco ao discutir independência do Banco Central, justamente agora. A energia e o tempo do Congresso deveriam estar voltados para a aprovação, antes de mais nada, do orçamento, e discutir como viabilizar um socorro emergencial para as famílias que estão lutando pela sobrevivência. Nada é mais importante no momento.

Neste cenário, o Congresso deveria rejeitar qualquer proposta que possa promover maior desigualdade social. A pandemia já está atuando nessa direção, e o que temos que fazer no Parlamento é combater a desigualdade, como cabe a um poder autônomo da República.

*Jose Serra (PSDB-SP) é senador da República. Foi ministro da Saúde durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1998-2002), ministro das Relações Exteriores durante o governo de Michel Temer (2016-2017), governador de São Paulo e prefeito de São Paulo.


Marcus Pestana: Estamos #JUNTOS

“Somos cidadãs, cidadãos, empresas, organizações e instituições brasileiras e fazemos parte da maioria que defende a vida, a liberdade e a democracia”.

“Somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”.

“Somos a maioria de brasileiras e brasileiros que apoia a independência dos poderes da República e clamamos que lideranças partidárias, prefeitos, governadores, vereadores, deputados, senadores, procuradores e juízes assumam a responsabilidade de unir a pátria e resgatar nossa identidade como nação”.

Assim é aberto o manifesto “estamos #JUNTOS” assinado por expressivas lideranças da sociedade e de diferentes partidos, artistas, intelectuais e por milhares de brasileiros e brasileiras. É o mais expressivo de outras reações da sociedade civil contra a escalada autoritária e a favor da democracia como o BASTA e o SOMOS 70%.

Os manifestos e algumas manifestações de rua mostram que a sociedade brasileira começa a despertar de uma longa anestesia política e se preparando para os embates futuros. Fica evidente que é uma reação às sucessivas mobilizações pela volta do AI-5 e pelo fechamento do Congresso Nacional e do STF, pilares da República e da democracia brasileira. Após 35 anos da transição democrática, imaginávamos que teríamos cristalizado a estabilidade política e institucional na vida do país. A realidade está nos mostrando que essa verdade é relativa e, afinal, que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.

Destoando desta reação uníssona das forças democráticas veio, mais uma vez, o ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva, que no seu narcisismo calculista e doentio disse que “não é Maria vai com as outras” e que não assinaria ao lado de alguns dos signatários do manifesto. Nenhuma surpresa. Em 1985, o PT não votou em Tancredo Neves, timoneiro da redemocratização, no Colégio Eleitoral, contra a candidatura de Paulo Maluf. Expulsou três deputados que entenderam a importância histórica da luta no Colégio Eleitoral e votaram em Tancredo contra a orientação do partido: Bete Mendes, José Eudes e Aírton Soares.

Em 1988, o PT e Lula votaram contra a “Constituição Cidadã”, assim chamada pelo presidente da Assembleia Constituinte, Ulysses Guimarães. Depois acabaram assinando a nova Carta Magna. Em 1992, após o impeachment de Collor, o PT se negou a participar do governo de união nacional em torno do Presidente Itamar Franco, afastando a ex-prefeita de São Paulo e atual deputada federal, Luiza Erundina, que aceitou se tornar ministra-chefe da Secretária da Administração Federal. Havia embutido na atitude um cálculo político oportunista, exclusivista e eleitoreiro, mirando a sucessão presidencial de 1994.

Também diante no Plano Real, de diversas reformas estruturais e da Lei de Responsabilidade Fiscal, no governo de FHC, o PT sobrepôs os interesses partidários aos nacionais, demarcando campo próprio e buscando um isolamento tático. Enfim, como disse Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Ficou famosa a máxima “entre o Brasil e o PT, o PT fica sempre com o PT”. Mas a sociedade brasileira não ficará prisioneira de posturas exclusivistas e auto-referenciadas.

Apesar da pandemia e do necessário isolamento social, ocorreram já algumas manifestações de rua em defesa da democracia. E aí, é importante aprender com as jornadas de 2013. Não é possível que meia dúzia de Black Blocks, tão autoritários como aqueles que pedem um novo AI-5 e agridem as instituições democráticas, comprometam um movimento amplo da sociedade em defesa da liberdade.

Na segunda metade dos anos de 1970 erguemos uma agenda unitária que unificava todos os democratas: anistia ampla, geral e irrestrita; Constituinte livre e soberana e eleições diretas. Este aprendizado deve nos iluminar em 2020. A nossa agenda deve perseguir unir a direita, o centro e a esquerda democráticos e lideranças da sociedade brasileira que não obrigatoriamente convergem em questões estratégicas de longo prazo, mas se unem na defesa da democracia. Devemos procurar o que nos une, e não o que nos divide. Defesa da liberdade e da democracia, defesa das instituições republicanas e democráticas e defesa da Constituição, estes são os pontos. Simples assim, fácil de entender e semente de uma ampla unidade.

A nossa história republicana é turbulenta e não foi fácil construir as bases do maior período democrático da nossa trajetória como povo e Nação. A democracia brasileira está ameaçada. Vários países democráticos assistiram retrocessos indesejáveis. A unidade de todos aqueles que defendem a democracia é essencial para que superemos a pandemia, seus perversos efeitos econômicos e garantamos a integridade de nosso tecido social e a retomada do crescimento. Quem se colocar contra será atropelado pelos fatos e pela dinâmica do processo histórico.


Marcus Pestana: O legado possível da pandemia

Já ficou gasta, pelo excessivo uso, a afirmação de que as crises, por um lado, geram desafios, ameaças e problemas graves, por outro, abrem oportunidades. Do enfrentamento de eventos catastróficos como a atual pandemia do coronavírus e do aprendizado individual e coletivo decorrente, podem nascer mudanças de atitudes, gerando saltos de qualidade nas políticas públicas, no comportamento empresarial e no relacionamento humano e social.

Tudo pode acontecer, inclusive nada. Não é uma decorrência automática. Depende do comportamento de cada um e de todos. A “gripe espanhola” de 2018, que infectou 25% da população mundial da época, 500 milhões de pessoas, e levou a morte de 17 a 100 milhões de pessoas, segundo as precárias e imprecisas estatísticas, se deu em plena 1ª. Guerra Mundial e não obrigatoriamente gerou mais solidariedade e integração entre as Nações e as pessoas, visto que logo à frente tivemos a maior recessão da história em 1929 e a 2ª. Guerra Mundial, de 1939 a 1945.

Sejamos otimistas. Vamos torcer e trabalhar para que a pandemia da COVID-19 produza, no Brasil e no mundo, avanços civilizatórios na direção de uma sociedade mais solidária, humana, justa e democrática.

A saúde, que sempre foi uma preocupação central dos brasileiros, assumiu um protagonismo inédito. O verdadeiro bombardeio de notícias e informações sobre o coronavírus, roubando a cena de outros assuntos da política e da economia, tende a gerar uma atenção maior às políticas públicas de saúde. Um primeiro legado da pandemia, portanto, pode ser o crescimento da consciência de que é preciso aumentar os investimentos em saúde e melhorar muito a gestão de nosso sistema.

O sistema brasileiro de saúde, apesar de no nome o SUS carregar a palavra “único”, é composto de três subsistemas: o sistema público nacional universal, de cobertura integral e gratuita; a saúde suplementar – planos e seguros privados; e o sistema de desembolso direto dos cidadãos – os pagamentos particulares feitos nos balcões das farmácias e laboratórios ou para remunerar serviços médicos e odontológicos.

O SUS é ancorado no texto constitucional e na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080/1990) e baseado no direito de cidadania e no dever do Estado prover os serviços de saúde indistintamente a todos os cidadãos brasileiros. Portanto, um direito determinado pela Constituição brasileira no âmbito das relações Estado/cidadão.

Diferentemente, a saúde suplementar é derivada de uma relação de mercado entre o usuário contratante e as operados e seguros de saúde, baseada numa figura central nas economias de mercado, realidade, porém, muitas vezes esquecida no Brasil: o contrato. A saúde suplementar atende a 47 milhões de brasileiros, ou seja, quase 25% da população.

Nas lacunas existentes no SUS e na saúde suplementar, muitas vezes os brasileiros são levados a tirar o dinheiro do próprio bolso para pagar medicamentos, consultas, exames.

O SUS tem resistido heroicamente à epidemia, embora em vários estados e cidades o sistema hospitalar esteja vivendo um colapso, sobretudo na oferta de leitos de UTI. Vivemos um descompasso crônico no SUS entre os recursos humanos e financeiros disponíveis e as necessidades da população. Isto é fruto de uma realidade histórica desde sua criação que é a do subfinanciamento. Segundo dados da OMS (2014), em dólar equalizado, o investimento público anual por habitante no Brasil gira em torno de US$ 435. Enquanto isso sistemas de acesso universal e cobertura integral em outros países investem muito mais: Portugal (US$ 1.363), Espanha (US$ 1.890), Reino Unido (US$ 3.266), Canadá (US$ 3.704) e França (US$ 3.868). Dinheiro não é tudo. Prova disto é que o país que mais gasta, os EUA, não tem os melhores resultados. Mas não há como fazer mágica.

Quem sabe, com o aprendizado da pandemia, governos, Congresso Nacional, sociedade deem mais atenção ao orçamento do SUS e priorizem este investimento essencial para a sociedade? Numa das inúmeras LIVEs que participei neste período de isolamento social, testemunhei um emocionante e sensível depoimento de um prefeito de uma grande cidade brasileira, que tendo passado dias angustiantes em uma UTI, graças a COVID-19, ao ser perguntado sobre qual o aprendizado pessoal que herdou, ele disse que tinha construído quatro viadutos em seu mandato, mas que a partir de agora teria um novo foco em relação ao sistema de saúde. Será que teremos a mesma percepção coletiva após a pandemia?

Mas outros legados poderão prevalecer. Entre eles, certamente haverá uma revalorização do desenvolvimento científico-tecnológico e da cadeia produtiva nacional da saúde. Todos nós ficamos na torcida por nossos cientistas, que num esforço concentrado e hercúleo, buscam uma vacina ou um tratamento contra o coronavírus. Vamos investir mais em nossos cientistas e pesquisadores? A inovação é a chave do desenvolvimento no mundo contemporâneo. Também, não só no Brasil, ficamos alarmados com a excessiva dependência global da oferta de equipamentos e insumos farmacêuticos ativos (IFAs) de alguns poucos países como China, Índia e Coréia do Sul. Houve uma verdadeira “guerra comercial” para a compra de ventiladores pulmonares, insumos e equipamentos de proteção individual. Haverá mais atenção no Brasil ao setor produtivo nacional e uma política industrial inteligente para que situações assim não se repitam?

Outra conquista possível e que veio para ficar é a telemedicina. Poderemos aumentar e muito a produtividade de nossos escassos recursos e ampliar o acesso aos serviços de saúde com o uso das modernas ferramentas tecnológicas que possibilitam o atendimento à distância. Claro que precisamos de uma boa normatização do assunto. Mas este avanço não pode ficar prisioneiro de razões corporativas.

Ainda como herança, nós certamente poderemos ter uma integração muito maior entre o SUS e a saúde suplementar. Como os recursos públicos são escassos e a saúde suplementar atende a um quarto da população, é fundamental abrir os canais de diálogo e discutir transparentemente as linhas de cooperação, já que quanto melhor for o desempenho da saúde privada, melhor para o SUS. Várias iniciativas governamentais e legislativas têm, nesse momento de crise, buscado o apoio do sistema privado de saúde, que voluntariamente fez doações expressivas para centros de pesquisas, hospitais de campanha, governos, organizações não governamentais de assistência social, disponibilização de leitos de UTI, equipamentos. Muitas vezes estas meritórias iniciativas esqueciam a diferença essencial entra a natureza constitucional do SUS e o fundamento contratual da saúde suplementar. Se queremos que a saúde suplementar seja eficiente e complemente as ações do SUS, não podemos minar a sustentabilidade econômica do setor privado. O diálogo transparente e fundamentado é o caminho da cooperação e da solidariedade.

Por último, mas não menos importante, poderá sobreviver talvez um ambiente mais favorável às ações de prevenção e promoção da saúde e aos autocuidados. Fomos treinados na pandemia pelos profissionais da saúde, pelas autoridades sanitárias e pelos meios de comunicação a investir no autocuidado e na prevenção. Lavar as mãos, usar máscaras, evitar aglomerações. O aumento da consciência sobre a importância da prevenção contra doenças pode ser o maior legado dessa pandemia. Alimentação saudável, atividades físicas, combate ao tabagismo, ao alcoolismo e às drogas, hábitos sexuais saudáveis, monitoramento permanente dos vetores de doenças crônicas (hipertensão, diabetes, entre outras), podem ter um impacto inimaginável sobre os indicadores de saúde.

Como disse, nenhum avanço será automático. O ser humano é o único na face da terra que tem consciência plena, capacidade de aprendizado amplo, possibilidade de transformar a vida. Que os momentos de tensão e angústia provocados pela COVID-19 sirvam de alavanca para, através do aprendizado pessoal e coletivo, conquistarmos uma saúde melhor para todos os brasileiros.


Marcus Pestana: O vírus nosso de cada dia

A população assiste apreensiva, angustiada e perplexa, os desdobramentos da pandemia do novo Coronavírus. E nessa hora, todos têm que se somar a um enorme mutirão social para assegurar as medidas preventivas e a assistência a quem contrair a doença. Na atual epidemia, chama atenção a velocidade de propagação do vírus, expondo contingentes populacionais enormes à doença e sobrecarregando o sistema de atenção à saúde. Não é hora de dividir o país em torno de polarizações inúteis.

A saúde pública avançou muito no Brasil nas últimas três décadas. O SUS, com todas as suas mazelas e dificuldades, é um exemplo de política pública que avançou e produziu resultados. Mas, o SUS tem capacidade limitada de encarar esta sobrecarga. Como imaginar, com a dificuldade de acesso que já temos, a necessidade potencial de criarmos mais 10, 20, 30 mil leitos de UTI, para garantir a assistência aos que poderão contrair a COVID-19? Apenas 47 milhões de brasileiros têm cobertura de planos de saúde.

Silenciosamente, fechamos os olhos para a perda de milhares de vidas brasileiras a cada ano, o que poderia ser evitado com uma priorização efetiva do SUS nos orçamentos públicos, com reformas na saúde suplementar e com a qualificação do sistema, principalmente na atenção primária. Dados preliminares do IBGE para 2018 demonstram que foram 1.315.527 mortes. Quais são as causas? As principais são as doenças crônicas como as do aparelho circulatório (356.178), as neoplasias (227.150), as respiratórias (155.921). Logo a seguir vêm as causas externas, vidas perdidas em função da violência criminal ou no trânsito (150.165) e as doenças derivadas da diabete (80.292). As doenças infecciosas e parasitárias, como as ocasionadas pela atual pandemia, aparecem em sexto lugar (54.814). Não estamos falando de números, mas de vidas.

Estamos em “guerra” contra um inimigo invisível. É preciso que todos, do mais simples cidadão ao Presidente da República, levemos a sério a mudança de atitude necessária e o combate ao Coronavírus. A prevenção é o melhor caminho, ainda que paralise a economia. Depois cuidaremos disso. Se não agirmos radicalmente na prevenção, a fratura exposta dos gargalos do SUS virá à tona.

Estamos vendo o que aconteceu na China e o que está acontecendo na Itália e em toda a Europa. Como secretário de saúde de Minas Gerais fizemos um acordo de cooperação técnica com a Região da Lombardia, a mais rica da Itália. É um dos melhores sistemas de saúde do mundo. Para se ter uma ideia, apenas o orçamento do maior hospital público de Milão, capital da Lombardia, o Niguarda, era igual a tudo que tinha de recursos estaduais para todo o Estado de Minas Gerais, com seus 853 municípios e 20 milhões de vidas. E o sistema hospitalar italiano está à beira do colapso graças à pandemia.

No Brasil, investimos anualmente US$ 435 per capita na saúde pública (OMS/2014). Para dimensionarmos nossa dificuldade de resposta em caso de agravamento da epidemia, vejam quanto investem outros países: Portugal, US$ 1.363; Espanha, US$ 1.890; Itália, US$ 3.258; Reino Unido, US$ 3.266 e França, US$ 3.868.

Portanto, vamos unidos investir pesado na prevenção e na mudança de hábitos pessoais e sociais, enquanto é tempo. Se não tivermos êxito, os limites estruturais de nosso sistema de saúde se manifestarão de forma dramática.


Marcus Pestana: 'Democracia em vertigem' - a arte e a verdade

“A arte existe porque a vida não basta” (Ferreira Gulart)

A inquietude humana nos leva a buscar permanentemente espaços além do real, a fantasia como realização metafórica de desejos e sonhos, a construção da arte como exercício máximo de criatividade e talento. A arte traduz nossa insatisfação com os limites da vida real e a partir das reflexões e dos sentimentos despertados provoca mudanças de atitude e o impulso de fazer concreto o impossível.

A arte não é uma repetição pobre e monótona da realidade. A boa arte é necessariamente provocativa, desafiadora, imaginativa. A relação entre arte e verdade é complexa, além do que, a verdade depende sempre do olhar e dos valores de quem a aborda. Para Adorno, “a arte é a magia livre da mentira de ser verdade”. Já o poeta Manoel de Barros brincou certa vez: “Noventa por cento do que escrevo é invenção, só dez por cento é mentira”.

Dentro de um país radicalmente polarizado ideologicamente a noção de “guerra cultural” ganha cada vez mais protagonismo. A extrema direita enxerga em tudo a presença de um suposto “marxismo cultural” ligado às construções teóricas do italiano Antonio Gramsci a contaminar a maioria das manifestações artísticas de um esquerdismo atroz. Claro que a arte não é imune e impermeável à luta política de seu tempo. Mas toda a tentativa de instrumentalizar a arte, através do didatismo político ou do proselitismo ideológico, fracassou, já que produz arte de baixíssima qualidade. Nada é mais chato e ineficaz do que um livro, um filme ou um poema panfletário. A boa arte é necessariamente sutil, ou quando agressiva, deve ser esteticamente bem construída.

Quando o Brasil concorreu ao Oscar com Fernanda Montenegro em “Central da Brasil” o clima era tipo a “Pátria de chuteiras”. A indicação do filme “Democracia em vertigem”, da diretora Petra Costa e da Netflix, sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff, ao Oscar de melhor documentário destampou o caldeirão da “guerra cultural”. O atual Secretário Especial de Cultura, Roberto Alvim* disse: “(A indicação) mostra como a guerra cultural está sendo travada não só aqui, mas em âmbito internacional”. O PSDB criticou ironicamente nas redes sociais: “Parabéns à diretora pela indicação de melhor ficção e fantasia”.

“Democracia em vertigem” não é ficção, como o realismo fantástico de “Bacurau” ou o drama de duas irmãs em “Vida Invisível”, é um documentário. E adere claramente à narrativa construída pelo PT de que teria havido um golpe. Até que ponto o documentarista pode adulterar a realidade? Como todos sabem, votei a favor do impeachment. E o filme despreza os milhões de brasileiros nas ruas pedindo a saída de Dilma, os crimes fiscais e eleitorais cometidos e, principalmente, o maior escândalo da história brasileira desvendado pela Lava Jato.

Mas, nada deve dar margem para saudosistas dos tempos autoritários recomendarem a volta da censura e do AI-5. Os excessos produzidos pela liberdade devem ser combatidos com mais liberdade. A democracia é eterno aprendizado coletivo. O documentário candidato ao Oscar se coloca claramente a serviço de uma narrativa política. Que outros atores, com fez o MBL, produzam outras versões com um olhar diferente.

Em falar nisso, dia 24 de janeiro, o Festival de Cinema de Tiradentes faz sua abertura. Viva o cinema brasileiro!

*Nota: o blog recebeu o artigo antes da demissão do Secretário.


Marcus Pestana: Intenção e gesto na reforma política

Estamos em plena temporada de reformas em busca de desatarmos os nós que engessam o Brasil. Curioso obervar que a “mãe de todas as reformas” sumiu do mapa. Sem dúvidas, as reformas trabalhista, previdenciária, administrativa e tributária roubaram a cena de sua irmã política. Antes não se falava outra coisa: para destravar a economia e melhorar a sociedade era necessário mudar o funcionamento do sistema político e partidário. Ano par, tinha eleições. Ano ímpar, comissão de reforma política. Porque, de repente, o assunto foi completamente arquivado na legislatura aberta em 2019?

Vários são os motivos. Primeiro, a crise global de representatividade das democracias liberais clássicas, dadas as novas formas de relacionamento entre os cidadãos e o mundo da política, particularmente graças ao vertiginoso crescimento da internet e das redes sociais, que ergueram novas formas de expressão política à margem da dinâmica partidária. Como ninguém sabe muito bem o que o futuro nos reserva e quais serão as novas configurações da democraia, para que mudar?

Segundo, a crescente e irreversível impossibilidade de formação de consensos e maioria em torno das questões centrais da reforma política, após o STF ter derrubado a cláusula de barreira em 2006 e a Câmara dos Deputados ter perdido a última grande chance na votação do relatório de Ronaldo Caiado (2003/2006). A reforma política é do tipo “cada cabeça, uma sentença”. E pior, quem delibera sobre o assunto são os principais interessados e atores do processo. E como o “diabo mora no detalhe”, sempre houve uma grande intenção retórica a favor das mudanças e gestos reais em direção oposta.

Sou a favor do sistema parlamentarista e do voto distrital misto. As recentes superações de impasses e crises de governabilidade na Itália, na Espanha e no Reino Unido fortaleceram minhas convicções. Acontece que a cultura política brasileira é impregnada do personalismo típico do presidencialismo e o parlamentarismo não resistiria a um terceiro plebicito. Ser parlamentarista no Brasil é malhar no ferro frio, é pregar no deserto. Ficamos sempre a espera de um personagem heróico e salvador, podendo atender pelo nome de Getúlio, Jânio, Brizola, Collor, Lula ou Jair.

Também o voto distrital misto, que no meu ponto de vista, é o melhor sistema eleitoral, tem baixa chance de aprovação. Nosso sistema brasileiro é singular e único. Caríssimo, irracional, resultando em baixo vínculo entre representados e representantes e não favorecendo ao fortalecimento dos partidos políticos com instrumentos mediadores no processo decisório. Setenta por cento dos brasileiros, um ano após às eleições, não sabem sequer dizer o nome de seu vereador ou deputado. Ou seja, não há controle social efetivo. Mas os compradores de votos, as celebridades modernas e pós-modernas, os representantes de corporações ou segmentos sociais não têm interesse na mudança. E são maioria absoluta no Congresso.

A necessidade nacional sopra a favor da intenção de reformar a política. Só a cláusula de desempenho e o fim das coligações proporcionais não serão suficientes. Mas por razões múltiplas, principalmente pragmáticas, os atores políticos a quem cabe conduzir a reforma política, por não terem interesse real, discursam a favor, mas seus gestos concretros sempre desmentem as intenções.


Congresso em foco: Polêmica. Cristovam faz inventário dos erros da esquerda e do centro que levaram Bolsonaro ao poder

  

Outra consequência foi o fracasso na tentativa de se reeleger em 2018, pleito em que derrotá-lo nas urnas era uma das tarefas prioritárias de grande parte de uma militância petista que começou a afrontar Cristovam antes mesmo de ele anunciar o voto pró-impeachment.  Tais questões, de caráter mais pessoal, não aparecem no livro Por que falhamos, que será lançado na quinta-feira (5) e ao qual o Congresso em Foco teve acesso em primeira mão. Ali, esse pernambucano de Recife, hoje com 75 anos, faz as vezes de analista e pensador. Propõe um polêmico inventário dos erros dos governos que se sucederam entre 1992 e 2018, isto é, de Itamar Franco a Michel Temer. Governos, vale lembrar, ligados a partidos (sobretudo, MDB, PT e PSDB) e personalidades de alguma maneira comprometidas com os ideais de democracia e justiça social da Constituição de 1988, aquela mesma que Jair Bolsonaro e vários dos seus seguidores não cansam de desdenhar.

Credenciais intelectuais não faltam a Cristovam, discorde-se ou não de suas reflexões. Formado em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal de Pernambuco, doutorou-se depois em Economia pela prestigiada Universidade de Sorbonne, em Paris. Além de governador, senador por dois mandatos e reitor da UnB, trabalhou durante seis anos no Banco Interamericano de Desenvolvimento e foi ministro da Educação de Lula, que o demitiu por telefone. Por que falhamos é o seu 27º livro. Lançado pela Tema Editorial, o livro será lançado inicialmente apenas em versão digital, e com uma novidade: a partir de quinta-feira (5) estará disponível gratuitamente no site da editora.

É livro denso, mas de meras 54 páginas, redigidas sempre na primeira pessoa do plural. O ex-senador se inclui entre os responsáveis pelos equívocos cometidos. Para Cristovam, a eleição de Bolsonaro sairá cara, dado o perfil do presidente eleito: “Não tinha programa nem partido e representava uma visão sectária e retrógada – posições que pareciam superadas desde a redemocratização –, além de não expressar qualquer experiência gerencial”. Mas o questionamento sobre os erros é a parte que lhe interessa  e que explora. Numa referência indireta a Lula, um dos seus alvos é o “culto à personalidade”. Nas suas palavras: “A amarra aos líderes foi uma das principais causas de nossa derrota em 2018. Confundimos Estado com governo, governo com partido, partido com líder. Para proteger nossos líderes, subestimamos a corrupção diante da qual fomos omissos”.

Traremos um pouco de spoilers aqui listando os dez dos 24 erros apontados por Cristovam Buarque:

  1. Legamos um país sem coesão e sem rumo 

“Não nos unimos por um programa que fosse além da democracia e que servisse para orientar o Brasil em novo rumo civilizatório. No lugar de reunirmos forças para fazer um país progressista, preferimos nos dividir em partidos, siglas, sindicatos, corporações – cada um querendo parte do butim que a nova democracia ofereceu aos que apresentavam mais força eleitoral ou capacidade de pressão. (...) Passamos 26 anos fazendo oposição entre nós, uns aos outros. Somente depois de retirados do poder, ministros de diversas pastas nos governos Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer se reuniram para manifestar posições contrárias ao adversário que nos derrotou”. 

  1. Mantivemos o descompasso do Brasil com o progresso mundial 

“Jogamos fora a chance de cortar as correntes que nos amarram ao passado como uma sina histórica. Fomos ‘democratizadores’, mantendo um país injusto, ineficiente e insustentável. Não estivemos à altura como promotores de uma nação progressista, eficiente, justa e sustentável. Desperdiçamos mais uma vez a chance de o Brasil ficar em sintonia com o futuro. (...) Nós tomamos o poder e durante 26 anos não entendemos a revolução em marcha no planeta”. 

  1. Passamos ao largo da utopia educacionista

“Continuamos a falar no velho e relegado direito à educação, sem ver e sem defender que a educação com qualidade é mais do que um direito individual, é o vetor do progresso da eficiência econômica e da justiça social. (...) Passamos ao largo da percepção de que a globalização da economia e das informações simultâneas, os limites ecológicos ao crescimento, a robótica e automação, além do esgotamento do desenvolvimentismo econômico e do socialismo real, levaram ao fracasso das utopias que nos orientavam. Não percebemos que já não é mais possível manipular a economia pela política, sem levar em conta a realidade da globalização e da ecologia, nem é possível impor uma igualdade plena de renda e salário. Uma nova utopia, que não fomos capazes de visualizar, precisa despolitizar a economia para que ela seja eficiente, subordinar a produção e o consumo às restrições ecológicas, tolerar a desigualdade dentro de parâmetros e oferecer a mesma chance para que todos possam ascender socialmente, conforme o próprio talento”. 

  1. Ficamos prisioneiros do populismo e do corporativismo 

“Por falta de visão de uma utopia, caímos no corporativismo e no oportunismo, passando a organizar nossas bandeiras em busca de resultados eleitorais imediatos, mesmo que isso exigisse o aparelhamento e a tolerância com a corrupção na gestão da máquina do Estado e a irresponsabilidade nas contas públicas. Concentramos nossa função política em atender as reivindicações de sindicatos de categorias profissionais, os interesses e as propostas de segmentos identitários e de organizações não governamentais”. 

  1. Desprezamos o ‘espírito do tempo’

“Não vimos que a globalização, as comunicações instantâneas, globais e manipuláveis, e as novas tecnologias fizeram da terra um planeta dividido em um Primeiro Mundo Internacional dos Ricos, com basicamente as mesmas características de renda e consumo, atendimento médico e escolaridade. Até mesmo com as mesmas ideias e gostos estéticos, seja qual for o país geográfico do habitante. No outro lado, temos um Arquipélago Mundial de Pobres com padrões culturais sociais e econômicos diferenciados, solidários apenas pela escassez de bens e serviços essenciais que caracteriza suas vidas, também independente do país geográfico onde vivam. Cada país é cortado socialmente por uma cortina de exclusão, a Cortina de Ouro”.

  1. Permitimos o domínio da corrupção 

“Nosso erro mais visível para a opinião pública foi cair na corrupção, tanto no comportamento quanto nas prioridades. Abandonamos fins revolucionários e adotamos meios corruptos, trocando prioridades básicas, como escolas por estádios, para atender ao gosto imediatista e eleitoral da sociedade e também para receber propinas nessas construções”.

  1. Repudiamos reformas 

“Contentamo-nos com o salto democrático representado pela Constituição, que alguns de nós nem assinamos, mas não fizemos as reformas que dariam o salto progressista que a sociedade espera e carece. Não enfrentamos a necessária reforma do Estado. Ficamos sem fazer a reforma política, sem a qual o Estado brasileiro mantém seus desperdícios, seus privilégios, suas brechas corruptivas. Mantém também seu distanciamento em relação ao povo, seu sistema eleitoral manipulável e mercantil, sua promiscuidade entre poderes – juízes, políticos, empresários, líderes sindicais –, sua justiça ineficiente e protetora dos ricos. Estado gigante, corrupto, ineficiente.

(...) Mesmo as tímidas, mas positivas, reformas do ensino médio durante o governo Temer foram criticadas e enfrentadas por movimentos conservadores de parte de nossos militantes, sem qualquer justificativa progressista. Por acomodamento e submissão às corporações universitárias, oferecemos recursos financeiros, mas não nos propusemos a reformar as estruturas acadêmicas, sem o que a universidade brasileira não participará da construção da sociedade do conhecimento no século 21. A consequência é que até os grandes feitos educacionais, como o aumento no número de vagas no ensino superior e em cursos profissionalizantes, foram anulados por falta de avanços no número e na qualidade dos que terminam o ensino fundamental e o ensino médio. 

(...) Apesar da positiva reforma da responsabilidade fiscal no segundo mandato de FHC, não enfrentamos a necessidade de fazer as reformas que garantiriam o equilíbrio das contas públicas, devastadas pelo descontrolado aumento do custo da máquina do Estado determinado pela Constituição”.

  1. Valorizamos mais o estatal do que o público 

“Confundimos estatal com público e até hoje temos que explicar por que muitos de nós fomos contra a privatização nas telecomunicações, que permitiu a disseminação do direito a um telefone, antes um privilégio de pouquíssimos brasileiros ricos. (...) Ignoramos o fato de que a estatização não criou a oferta de serviços com qualidade que a sociedade precisava, especialmente para os pobres, nem implantou a infraestrutura econômica nas dimensões e eficiências desejadas. Assistimos passivamente ao Estado ser apropriado por empreiteiras, políticos, sindicatos e servidores que o usam para usufruírem poder e vantagens patrimonialistas. Há quase 100 anos o Brasil mantém custosas empresas estatais de saneamento, e mais da metade de nossa população continua a viver no meio de lixo, urina e fezes. Mesmo assim, resistimos à alternativa de usar empresas privadas para executarem e administrar projetos sanitários em nossas cidades, ainda que sob regulação pública”. 

  1. Ignoramos que justiça social depende de economia sólida 

“Os nossos governos Itamar, FHC e Lula fizeram esforços para assegurar uma economia eficiente, mas sofreram pressões desestabilizadoras de parte de nossos partidos e sindicatos, que mantinham a antiga visão de que os gastos públicos seriam o caminho para atender aos interesses dos trabalhadores do setor moderno e oferecer assistência aos pobres, mesmo que isso fosse feito às custas do endividamento público e privado. Aceitamos a ilusão de que o Tesouro Nacional seria como um chapéu de mágico, com disponibilidade ilimitada de recursos financeiros. (...) Por não entendermos a realidade, não fazermos as contas, não acreditarmos na aritmética ou simplesmente por oportunismo eleitoral, muitos de nós continuamos a cometer esses erros, agora na oposição.”

  1. Adotamos o culto à personalidade 

“A amarra aos líderes foi uma das principais causas de nossa derrota em 2018. A recusa da realidade e o culto à personalidade terminaram por aprisionar nossa linguagem, nossas análises, táticas e estratégias, sem metas e propostas para o longo prazo. Confundimos Estado com governo, governo com partido, partido com líder. Para proteger nossos líderes, subestimamos a corrupção diante da qual fomos omissos, sem acusar, julgar, punir nem ao menos criticar os responsáveis pela cobrança de propinas, depredação de estatais e de fundos de pensões. Não combatemos as prioridades equivocadas. Continuamos a defender que prisões de empresários aliados eram o resultado de manipulação política contra nós, os democratas-progressistas, ignorando que a Justiça julgou e prendeu dezenas de políticos e homens de negócio das mais diversas vertentes políticas.” 


Congresso em foco: Polêmica. Cristovam faz inventário dos erros da esquerda e do centro que levaram Bolsonaro ao poder

  

Outra consequência foi o fracasso na tentativa de se reeleger em 2018, pleito em que derrotá-lo nas urnas era uma das tarefas prioritárias de grande parte de uma militância petista que começou a afrontar Cristovam antes mesmo de ele anunciar o voto pró-impeachment.  Tais questões, de caráter mais pessoal, não aparecem no livro Por que falhamos, que será lançado na quinta-feira (5) e ao qual o Congresso em Foco teve acesso em primeira mão. Ali, esse pernambucano de Recife, hoje com 75 anos, faz as vezes de analista e pensador. Propõe um polêmico inventário dos erros dos governos que se sucederam entre 1992 e 2018, isto é, de Itamar Franco a Michel Temer. Governos, vale lembrar, ligados a partidos (sobretudo, MDB, PT e PSDB) e personalidades de alguma maneira comprometidas com os ideais de democracia e justiça social da Constituição de 1988, aquela mesma que Jair Bolsonaro e vários dos seus seguidores não cansam de desdenhar.

Credenciais intelectuais não faltam a Cristovam, discorde-se ou não de suas reflexões. Formado em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal de Pernambuco, doutorou-se depois em Economia pela prestigiada Universidade de Sorbonne, em Paris. Além de governador, senador por dois mandatos e reitor da UnB, trabalhou durante seis anos no Banco Interamericano de Desenvolvimento e foi ministro da Educação de Lula, que o demitiu por telefone. Por que falhamos é o seu 27º livro. Lançado pela Tema Editorial, o livro será lançado inicialmente apenas em versão digital, e com uma novidade: a partir de quinta-feira (5) estará disponível gratuitamente no site da editora.

É livro denso, mas de meras 54 páginas, redigidas sempre na primeira pessoa do plural. O ex-senador se inclui entre os responsáveis pelos equívocos cometidos. Para Cristovam, a eleição de Bolsonaro sairá cara, dado o perfil do presidente eleito: “Não tinha programa nem partido e representava uma visão sectária e retrógada – posições que pareciam superadas desde a redemocratização –, além de não expressar qualquer experiência gerencial”. Mas o questionamento sobre os erros é a parte que lhe interessa  e que explora. Numa referência indireta a Lula, um dos seus alvos é o “culto à personalidade”. Nas suas palavras: “A amarra aos líderes foi uma das principais causas de nossa derrota em 2018. Confundimos Estado com governo, governo com partido, partido com líder. Para proteger nossos líderes, subestimamos a corrupção diante da qual fomos omissos”.

Traremos um pouco de spoilers aqui listando os dez dos 24 erros apontados por Cristovam Buarque:

  1. Legamos um país sem coesão e sem rumo 

“Não nos unimos por um programa que fosse além da democracia e que servisse para orientar o Brasil em novo rumo civilizatório. No lugar de reunirmos forças para fazer um país progressista, preferimos nos dividir em partidos, siglas, sindicatos, corporações – cada um querendo parte do butim que a nova democracia ofereceu aos que apresentavam mais força eleitoral ou capacidade de pressão. (...) Passamos 26 anos fazendo oposição entre nós, uns aos outros. Somente depois de retirados do poder, ministros de diversas pastas nos governos Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer se reuniram para manifestar posições contrárias ao adversário que nos derrotou”. 

  1. Mantivemos o descompasso do Brasil com o progresso mundial 

“Jogamos fora a chance de cortar as correntes que nos amarram ao passado como uma sina histórica. Fomos ‘democratizadores’, mantendo um país injusto, ineficiente e insustentável. Não estivemos à altura como promotores de uma nação progressista, eficiente, justa e sustentável. Desperdiçamos mais uma vez a chance de o Brasil ficar em sintonia com o futuro. (...) Nós tomamos o poder e durante 26 anos não entendemos a revolução em marcha no planeta”. 

  1. Passamos ao largo da utopia educacionista

“Continuamos a falar no velho e relegado direito à educação, sem ver e sem defender que a educação com qualidade é mais do que um direito individual, é o vetor do progresso da eficiência econômica e da justiça social. (...) Passamos ao largo da percepção de que a globalização da economia e das informações simultâneas, os limites ecológicos ao crescimento, a robótica e automação, além do esgotamento do desenvolvimentismo econômico e do socialismo real, levaram ao fracasso das utopias que nos orientavam. Não percebemos que já não é mais possível manipular a economia pela política, sem levar em conta a realidade da globalização e da ecologia, nem é possível impor uma igualdade plena de renda e salário. Uma nova utopia, que não fomos capazes de visualizar, precisa despolitizar a economia para que ela seja eficiente, subordinar a produção e o consumo às restrições ecológicas, tolerar a desigualdade dentro de parâmetros e oferecer a mesma chance para que todos possam ascender socialmente, conforme o próprio talento”. 

  1. Ficamos prisioneiros do populismo e do corporativismo 

“Por falta de visão de uma utopia, caímos no corporativismo e no oportunismo, passando a organizar nossas bandeiras em busca de resultados eleitorais imediatos, mesmo que isso exigisse o aparelhamento e a tolerância com a corrupção na gestão da máquina do Estado e a irresponsabilidade nas contas públicas. Concentramos nossa função política em atender as reivindicações de sindicatos de categorias profissionais, os interesses e as propostas de segmentos identitários e de organizações não governamentais”. 

  1. Desprezamos o ‘espírito do tempo’

“Não vimos que a globalização, as comunicações instantâneas, globais e manipuláveis, e as novas tecnologias fizeram da terra um planeta dividido em um Primeiro Mundo Internacional dos Ricos, com basicamente as mesmas características de renda e consumo, atendimento médico e escolaridade. Até mesmo com as mesmas ideias e gostos estéticos, seja qual for o país geográfico do habitante. No outro lado, temos um Arquipélago Mundial de Pobres com padrões culturais sociais e econômicos diferenciados, solidários apenas pela escassez de bens e serviços essenciais que caracteriza suas vidas, também independente do país geográfico onde vivam. Cada país é cortado socialmente por uma cortina de exclusão, a Cortina de Ouro”.

  1. Permitimos o domínio da corrupção 

“Nosso erro mais visível para a opinião pública foi cair na corrupção, tanto no comportamento quanto nas prioridades. Abandonamos fins revolucionários e adotamos meios corruptos, trocando prioridades básicas, como escolas por estádios, para atender ao gosto imediatista e eleitoral da sociedade e também para receber propinas nessas construções”.

  1. Repudiamos reformas 

“Contentamo-nos com o salto democrático representado pela Constituição, que alguns de nós nem assinamos, mas não fizemos as reformas que dariam o salto progressista que a sociedade espera e carece. Não enfrentamos a necessária reforma do Estado. Ficamos sem fazer a reforma política, sem a qual o Estado brasileiro mantém seus desperdícios, seus privilégios, suas brechas corruptivas. Mantém também seu distanciamento em relação ao povo, seu sistema eleitoral manipulável e mercantil, sua promiscuidade entre poderes – juízes, políticos, empresários, líderes sindicais –, sua justiça ineficiente e protetora dos ricos. Estado gigante, corrupto, ineficiente.

(...) Mesmo as tímidas, mas positivas, reformas do ensino médio durante o governo Temer foram criticadas e enfrentadas por movimentos conservadores de parte de nossos militantes, sem qualquer justificativa progressista. Por acomodamento e submissão às corporações universitárias, oferecemos recursos financeiros, mas não nos propusemos a reformar as estruturas acadêmicas, sem o que a universidade brasileira não participará da construção da sociedade do conhecimento no século 21. A consequência é que até os grandes feitos educacionais, como o aumento no número de vagas no ensino superior e em cursos profissionalizantes, foram anulados por falta de avanços no número e na qualidade dos que terminam o ensino fundamental e o ensino médio. 

(...) Apesar da positiva reforma da responsabilidade fiscal no segundo mandato de FHC, não enfrentamos a necessidade de fazer as reformas que garantiriam o equilíbrio das contas públicas, devastadas pelo descontrolado aumento do custo da máquina do Estado determinado pela Constituição”.

  1. Valorizamos mais o estatal do que o público 

“Confundimos estatal com público e até hoje temos que explicar por que muitos de nós fomos contra a privatização nas telecomunicações, que permitiu a disseminação do direito a um telefone, antes um privilégio de pouquíssimos brasileiros ricos. (...) Ignoramos o fato de que a estatização não criou a oferta de serviços com qualidade que a sociedade precisava, especialmente para os pobres, nem implantou a infraestrutura econômica nas dimensões e eficiências desejadas. Assistimos passivamente ao Estado ser apropriado por empreiteiras, políticos, sindicatos e servidores que o usam para usufruírem poder e vantagens patrimonialistas. Há quase 100 anos o Brasil mantém custosas empresas estatais de saneamento, e mais da metade de nossa população continua a viver no meio de lixo, urina e fezes. Mesmo assim, resistimos à alternativa de usar empresas privadas para executarem e administrar projetos sanitários em nossas cidades, ainda que sob regulação pública”. 

  1. Ignoramos que justiça social depende de economia sólida 

“Os nossos governos Itamar, FHC e Lula fizeram esforços para assegurar uma economia eficiente, mas sofreram pressões desestabilizadoras de parte de nossos partidos e sindicatos, que mantinham a antiga visão de que os gastos públicos seriam o caminho para atender aos interesses dos trabalhadores do setor moderno e oferecer assistência aos pobres, mesmo que isso fosse feito às custas do endividamento público e privado. Aceitamos a ilusão de que o Tesouro Nacional seria como um chapéu de mágico, com disponibilidade ilimitada de recursos financeiros. (...) Por não entendermos a realidade, não fazermos as contas, não acreditarmos na aritmética ou simplesmente por oportunismo eleitoral, muitos de nós continuamos a cometer esses erros, agora na oposição.”

  1. Adotamos o culto à personalidade 

“A amarra aos líderes foi uma das principais causas de nossa derrota em 2018. A recusa da realidade e o culto à personalidade terminaram por aprisionar nossa linguagem, nossas análises, táticas e estratégias, sem metas e propostas para o longo prazo. Confundimos Estado com governo, governo com partido, partido com líder. Para proteger nossos líderes, subestimamos a corrupção diante da qual fomos omissos, sem acusar, julgar, punir nem ao menos criticar os responsáveis pela cobrança de propinas, depredação de estatais e de fundos de pensões. Não combatemos as prioridades equivocadas. Continuamos a defender que prisões de empresários aliados eram o resultado de manipulação política contra nós, os democratas-progressistas, ignorando que a Justiça julgou e prendeu dezenas de políticos e homens de negócio das mais diversas vertentes políticas.” 


Marcus Pestana: Estado, desigualdade e crescimento no Brasil

Todos os governos e sociedade deveriam buscar um modelo de desenvolvimento que conjugasse crescimento econômico, estabilidade, sustentabilidade e justa distribuição de renda. Nem sempre isto ocorre.

No Brasil a desigualdade é extrema. Temos a maior concentração de renda, medida pelo índice de Gini, se comparados com todos os países integrantes da OCDE.

Isto tem levado especialistas a mergulhar no debate das raízes da desigualdade no Brasil e das alternativas de mudança. É o caso do economista e ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, que produziu recentemente interessante estudo que leva o título deste meu artigo e que vale a pena ser lido e debatido.

A preocupação central é atacar as desigualdades no país para “deslanchar um círculo virtuoso de crescimento inclusivo e sustentável”, começando por desfazer a falsa contradição entre crescimento e distribuição de renda, oportunidades e riqueza.

O problema é que não só a desigualdade no Brasil é escandalosa, mas é permanentemente reproduzida por mecanismos institucionais e informais. Exemplo disto é que os dois maiores sistemas públicos, o previdenciário e o tributário, são regressivos. Dito de outra forma, transferem renda dos mais pobres para os mais ricos.

O estudo aponta que as reformas previdenciária, tributária e do Estado e a redução de subsídios e gastos tributários poderiam, ao longo de alguns anos, economizar 9% do PIB.

Do fim da Segunda Guerra Mundial a 1979, a renda per capita brasileira dobrou em relação à dos EUA. Mas a crise do petróleo e o choque de juros internacionais foram fatais. E a partir de então começamos a patinar numa sucessão de crises inflacionárias e de balanço de pagamento, insistindo no erro de apostar no fechamento da economia e na forte intervenção estatal e dando pouca ênfase em educação, produtividade e igualdade. A desigualdade caiu, a partir de 1988, fruto da nova Constituição e das políticas sociais dos governos FHC e Lula, notadamente a valorização do salário mínimo, a melhoria dos indicadores de saúde e os programas como o Benefício de Prestação Continuada (idosos e pessoas com deficiência) e a Bolsa Família. Mas estudos recentes mostram que a queda da desigualdade foi muito menor do que se imaginava.

Mas a má qualidade dos serviços públicos, a grande informalidade no mercado de trabalho e os raquíticos níveis de cobertura no saneamento retratam um quadro social ainda dramático. Soma-se a isto a desigualdade de oportunidades, notadamente na área educacional e a captura do aparato governamental por interesses patrimonialistas.

Armínio Fraga identifica ser possível diminuir drasticamente subsídios diretos e indiretos, introduzir mudanças na tributação da renda da pessoa física e da renda do capital, ampliar a tributação sobre heranças segundo padrões internacionais, combater a informalidade no mercado de trabalho e reduzir as taxas de juros, propiciando uma economia de 9% do PIB, que poderiam ser distribuídos na geração de superávit primário para estancar o agravamento da situação fiscal e do endividamento (3%) e no aumento de investimentos sociais, em pesquisa e infraestrutura (6%).

As escolhas são políticas. Cabe a todos nós optar qual o trecho do Hino Nacional vamos cantar: permanecer “deitado em berço esplêndido” ou mostrar que o” filho teu não foge à luta”.


Marcus Pestana: Em defesa da política, da verdade e do diálogo

Não há outro caminho legítimo para a construção do futuro que não o da democracia. A liberdade é o valor mais precioso na alma humana. Se isso é verdade, há que se cuidar dela. E não há democracia sem política. E ela pressupõe partidos, eleições, candidaturas, participação popular, representantes, respeito à diferença, tolerância, diálogo, construção de consensos e a busca da verdade.

Digo isto porque apesar das eleições de 2018 terem se dado sob um forte sentimento antipolítica, nunca houve tanta participação política como hoje no Brasil, com um debate intenso e acalorado, esbarrando muitas vezes na intolerância e no sectarismo.

Nesta hora, se fazem necessários: equilíbrio, discernimento, serenidade e respeito aos direitos individuais e coletivos. E para isto é fundamental separarmos joio e trigo, justos e pecadores, honestos e corruptos.

Imaginem um deputado honesto, correto, de biografia limpa, respeitado por todos de A a Z, exemplo de ética e compromisso social. Imaginem um deputado federal dedicado e sério que se tornou ao longo dos anos o maior especialista em políticas sociais de toda a Câmara. Imaginem um deputado que pela excelência de seu trabalho conquistou nas urnas sete mandatos, sempre com campanhas modestas, para representar Minas Gerais e particularmente a causa das pessoas com deficiência. Se você conseguiu imaginar, o nome dele é Eduardo Barbosa.

Pois é, neste turbilhão de denúncias, investigações, delações, desvios em que se transformou o Brasil, Eduardo e todos nós fomos surpreendidos com a atitude da Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, que no apagar das luzes de seu mandato, apresentou denúncia contra ele, por supostas distorções na execução pela Federação das APAES de Minas Gerais de convênio oriundo de emendas parlamentares dele.

Como secretário estadual de saúde fiz vários convênios com as APAES de nosso estado nas áreas de fisioterapia, logística, saúde bucal e no credenciamento dos serviços de saúde. Não tenho medo de errar em dizer que a Federação das APAES é a entidade do terceiro setor mais bem organizada de todo estado. Quando cheguei ao Congresso Estadual das APAES para assinar o primeiro convênio, lá estava um graduado técnico do TCU orientado os gestores como bem executar convênios com o poder público. Fomos parceiros nas “Jornadas pela Inclusão” e durante todo o tempo pude testemunhar a profundidade e a seriedade das ações empreendidas.

O Convênio envolvia um milhão de reais. Os investimentos resultaram na realização em 34 cidades mineiras dos Fóruns Regionais, com a participação de 6.262 pessoas, do Fórum Estadual, em Uberlândia, com a participação de 475 pessoas e do Festival Nossa Arte, em São Lourenço, com 2.800 participantes. Só quem já participou pode aquilatar sua imensa importância. O Tribunal de Contas da União aprovou a prestação de contas. E agora surpreendentemente surge esta descabida denúncia.

A vida de Eduardo Barbosa fala por si, ele não precisa de defesa. Mas entre a indignação e a perplexidade não poderia deixar de fazer esse registro.

Que o Poder Judiciário corrija o mais rápido possível este grave equívoco, para que na cabeça de um povo tão desesperançado um político exemplar como ele não seja jogado injustamente no lodaçal de corrupção em que maus políticos jogaram a vida pública brasileira.