comunismo

Alberto Aggio: De Beijing a Roma, os dilemas do pós-comunismo

O ex-PCI aprofundou a democracia e a China se aferra ao nacionalismo autoritário histórico

No ano passado relembraram-se os cem anos da revolução bolchevique, referência maior do chamado “comunismo histórico”. Muitos livros foram publicados, um sem-número de artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo. Seria excessivo imaginar que uma revisão daquele processo histórico, por mais bem feita que fosse, tivesse o condão de superar todas as polêmicas em torno dele. O dado positivo, contudo, é que a “celebração” da efeméride não produz mais o mesmo efeito. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove as divisões que antes promovia entre os simpatizantes do seu ideário.

Imposto o comunismo na Rússia, não apenas o país foi revolvido, como o mundo passou a ser impactado por um sistema antagonista do capitalismo que se transformou num fenômeno global, influenciando vários países e milhões de pessoas. A crença no poder dos comunistas tornou seu movimento uma força global, não havendo no século 20 nenhuma dimensão da vida que não tenha sofrido sua influência. Mas esse movimento guardava paradoxos que, com o tempo, lhe seriam fatais.

Talvez não haja síntese mais fiel à glória e à tragédia do comunismo do que a formulada por Silvio Pons no seu livro A Revolução Global (Fap/Contraponto, 2014). Para ele, o comunismo se constituiu simultaneamente em “realidade e mitologia, sistema estatal e movimento de partidos, elite fechada e política de massas, ideologia progressista e dominação imperial, projeto de sociedade justa e experimento com a humanidade, retórica pacifista e estratégia de guerra civil, utopia libertadora e sistema concentracionário, polo antagônico da ordem mundial e modernidade anticapitalista. Os comunistas foram vítimas de regimes ditatoriais e artífices de Estados policiais”.

Entre os historiadores, em sua maioria, há um consenso quanto ao fracasso do “comunismo histórico”, levando em conta os objetivos que nortearam suas estratégias. De um ponto de vista analítico, não se aceita mais quem busque “erros” específicos dos principais dirigentes e governantes. Suas ações são inscritas em conjunturas precisas e postas como parte dos desafios e dilemas que se afirmaram no processo histórico. É a história in acto o que importa aos historiadores e aos demais intérpretes, e não uma discussão ideológica e justificativa. O que torna evidente a virada na perspectiva de muitos pesquisadores é o fato de a chamada “história do cotidiano” ter garantido o seu ingresso nessa historiografia, retirando centralidade da discussão sobre poder revolucionário e colocando sob novas luzes a história de homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo.

O resultado não é em nada surpreendente. Diversos investigadores têm demonstrado que o comunismo foi incapaz de inspirar uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. Concluem que a revolução bolchevique e o poder soviético não produziram efetivamente uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria em uma “hegemonia civil”) que lhe pudesse dar sustentação. O julgamento é assim categórico e definitivo.

Enganam-se os que pensam que foi uma questão de tempo. Que o capitalismo se afirmou durante séculos e o comunismo necessitaria ser pensando nessa chave. Equivocam-se. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Hoje, numa nova fase da humanidade, o comunismo não é mais do que história e, por essa razão, não há como sustentar que sua prática e seus horizontes possam ainda fazer sentido para os homens e mulheres do século 21.

Entretanto, essa história não está inteiramente arquivada, por conta da fulgurante presença da China na economia global. A sobrevivência do “comunismo capitalista” chinês, baseado num regime ditatorial, que instaurou o capitalismo como modo de produção material, constitui-se hoje no maior enigma quanto aos destinos do pós-comunismo.

Essa alternativa estava inteiramente descartada para os partidos comunistas no Ocidente, em particular para o maior deles, o Partido Comunista Italiano (PCI), ao abandonarem, no início dos anos 1990, o nome, seus símbolos e, especialmente, o que era reconhecido como sua “dupla alma”, isto é, a adesão ao comunismo soviético, (no caso do PCI) sobreposta à defesa da República democrática italiana, vinda à luz com sua colaboração ativa. Acabou prevalecendo o segundo termo da equação como orientação que seguirá presente até o tramonto do comunismo italiano.

A fase pós-comunista do partido de Gramsci, Togliatti e Berlinguer, ao contrário dos chineses, aprofundou a democracia ao se estabelecer como uma força política reformista voltada para a modernização do país e defesa da União Europeia. Abrindo-se para diferentes movimentos e culturas políticas, dentre elas os católicos progressistas, assumiu várias denominações: Partito Democratico di Sinistra (PDS), Democratici di Sinistra (DS) e, por fim, Partito Democratico (PD), nos últimos dez anos.

O pós-comunismo chinês aferra-se ao legado nacionalista e autoritário do comunismo histórico ao mesmo tempo que abre sua economia para o mundo. Essa linha se aprofunda de Deng Xiaoping a Xi Jinping, sem desvios.

Mesmo diante das incertezas da Europa, o caminho do PD parece ser o de superar a fase pós-comunista buscando combinar a ética de defesa do trabalho dos antigos comunistas com o europeísmo social-democrático e sua vertente democrático-reformista. A preponderância de uma ou outra vertente ora o empurra para a oposição, ora lhe abre possibilidades de ser governo.

Não mais comunista nem sequer pós-comunista, o PD talvez seja, na Europa, a possibilidade de um novo sujeito político. Imersa no pós-comunismo, a China parece estar longe disso.

 

 

 


Otavio Frias Filho: Gramsci, esquecido e atual

 

Ainda sobre o tema do centenário da Revolução Russa, é oportuno registrar uma lacuna nas celebrações, a do pensador italiano Antonio Gramsci. Ele foi não só um dos dois marxistas mais inventivos do século 20 (o outro seria o húngaro György Lukács), mas um pioneiro ao intuir as deficiências sobre as quais assentava a experiência soviética. A crítica de Gramsci, embora implícita, tinha mais alcance que a do próprio Trótski e sua teoria do desvio burocrático.

É verdade que está saindo agora "Gramsci e a Revolução Russa" (Mórula Editorial), coletânea de ensaios de especialistas brasileiros e italianos, e que há meses foi publicado um gigantesco "Dicionário Gramsciano" (Boitempo), ambos trabalhos instrutivos, mas apologéticos, voltados a um público de iniciados e militantes.

O próprio Gramsci, porém, está mal editado. As traduções de Carlos Nelson Coutinho estão em parte esgotadas; falta, sobretudo, uma reedição crítica desse autor inesgotável. Escrita quase toda na precariedade extrema dos dez anos que passou numa prisão fascista, até ser libertado para morrer de tuberculose em 1937, aos 46 anos, sua obra são anotações iluminadoras sobre uma imensidade de tópicos, em geral culturais (como Nietzsche, sua área de origem era a filologia).

Gramsci extrapola as fronteiras de uma seita intelectual e pertence ao pensamento humano. Sua escrita, como a do próprio Marx, é plástica e imaginativa, sem aquele automatismo determinista de tantos marxistas que faz a história parecer tão viva quanto um teatro de marionetes. Sua maior contribuição terá sido enfatizar que o poder repousa sobre instrumentos coercitivos, mas nunca dispensa outra dimensão, que se expressa como persuasão e relativo consentimento.

A dimensão coercitiva concerne ao Estado, mas a "sociedade civil" (economia e instituições privadas) é o palco onde se disputa em épocas de crise a "hegemonia" (direção mental da sociedade), exercida habitualmente pelo "bloco histórico" (aliança de classes e grupos antagônicos acoplados a um mesmo modo de produção) por meio de uma ideologia elaborada pela camada de "intelectuais".

Estes podem ser "tradicionais" (quando resquício de modos de produção extintos, que por isso aparentam autonomia social; por exemplo, o clero católico) ou "orgânicos" (quando surgem em resposta a demandas de uma classe ascendente, como técnicos, cientistas, gerentes e publicitários, no caso da burguesia). Quanto ao proletariado, seus intelectuais haveriam de se formar no partido, que assim aparece como príncipe moderno, numa releitura do precursor da ciência política, Maquiavel.

As percepções de Gramsci vão do específico ("a escola é uma luta contra o folclore", no sentido de conhecimento irrefletido) ao mais geral, como a noção de "revolução passiva". Trata-se das modernizações econômicas promovidas não por uma sublevação social, mas pelo próprio partido da ordem, com pouca mudança na estrutura social ("revoluções sem revolução" que o leitor da história brasileira conhece de cor e salteado).

Quando insistia que os comunistas italianos deveriam obter a hegemonia, esse intelectual cedo convertido em dirigente partidário estava oficialmente falando de uma sociedade civil superdesenvolvida, como a italiana. Mas ficava subjacente a ideia de que os revolucionários russos, vitoriosos no surpreendente assalto ao poder, teriam de se manter nele por meios cada vez mais coercitivos, porque não tiveram tempo nem interesse em conquistar consentimento.

Gramsci nunca chegou a ser um dissidente, embora suas críticas ao sectarismo criminal das lutas entre facções bolcheviques fossem conhecidas em Moscou e lhe tenham valido, nos últimos anos, isolamento por parte dos camaradas italianos. Ele definhava na prisão, escrevendo. A sobrevivência de sua obra é devida à cunhada russa, Tatiana Schucht, que salvou seus numerosos "cadernos do cárcere".

Sua atualidade se deve ao menos a dois motivos. A esquerda, depois de tantas aventuras frustradas, entendeu que o programa socialista para a economia funciona mal e concentrou as lutas nas batalhas culturais de cunho identitário. A direita, depois de cinco décadas de hegemonia progressista, seja no âmbito mundial, seja no nacional, volta a articular um discurso cultural conservador. Gramsci é o autor por excelência da política tomada como cultura.

Com boçalidade insuperável, o promotor fascista que pediu a condenação do deputado Antonio Gramsci em 1926 escreveu que "precisamos fazer esse cérebro parar de pensar por 20 anos". Oitenta anos depois de desaparecer, aquele cérebro continua a pensar na mente de quem o lê.

 


O Estado de S. Paulo: Dois livros inéditos no Brasil repassam a história da Revolução Russa

Historiadores Sheila Fitzpatrick e Jean-Jacques Marie têm trabalhos lançados no ano do centenário da Revolução

Marcelo Godoy, de O Estado de S. Paulo / Aliás

As grande rupturas na história permanecem raras e escrever sobre elas jamais é um ato neutro ou inocente. Sheila Fitzpatrick é uma historiadora consciente das armadilhas que seu ofício reserva aos que o escolhem. Uma delas está ligada à necessidade ou não de cortar a história em períodos e como fazê-lo. É este o principal desafio lançado por essa australiana, que frequentou o St Antony’s College, de Oxford, e se tornou uma das maiores especialistas na antiga União Soviética, em seu livro A História da Revolução Russa. Após três décadas de omissão, a obra de Sheila chega atualizada ao Brasil pela editora Todavia.

No último livro de sua obra – A História Deve ser Dividida em Pedaços? –, o francês Jacques Le Goff escreveu que “os períodos têm, por consequência, uma significação particular; na própria sucessão, na continuidade temporal ou, ao contrário, na ruptura que essa sucessão evoca, eles constituem um objeto de reflexão essencial para o historiador”. Diante da raridade das rupturas, Le Goff descreve o “modelo habitual” para a periodização histórica, a longa duração, como “aquele que é mais ou menos longo, com a mais ou menos profunda mutação”. Sheila estuda assim um desses eventos raros na história, cuja primeira vida parecia indicar uma grande ruptura: a Revolução Russa.

E sua obra é marcada por esse desafio: circunscrever o tempo da Revolução. Sheila escolheu o período 1917-1938 como o período revolucionário. Nos anos de Stalin, até o Grande Terror (1937-1938), Sheila vê a conclusão do processo iniciado em 1917. É a revolução pelo alto, iniciada pelo georgiano em 1929, com a coletivização do campo, a rápida industrialização e a eliminação da oposição ao regime. Só depois o regime soviético teria entrado no período pós-revolucionário. A questão é das mais difíceis enfrentadas pelos historiadores. Há quem veja o início do processo revolucionário em 1905 e seu término no Grande Terror. A maioria, porém, circunscreve a revolução ao período de 1917 a 1921, quando é concluída a vitória bolchevique na Guerra Civil.

Para Sheila, o tema das classes sociais é importante para a compreensão do fenômeno histórico até porque “seus participantes-chave o percebiam como tal”. Por fim, a historiadora analisa a violência do período e o terror, cujo principal objetivo era destruir os inimigos da revolução e remover os obstáculos para a mudanças sociais. Sua obra não traz as mutações mais ou menos profundas e mais ou menos longas na vida das pessoas e nas mentalidades. Esse não era seu objetivo.

Sheila começou a pesquisar a história da União Soviética nos anos 1960 e se tornou próxima do grupo que dirigia o jornal Novy Mir. Por enquanto, algumas das principais obras da historiadora – Everyday Stalinism, The Commissariat of Enlightenment (sobre Anatoli Lunacharski) e o Stalin's Peasants – permanecem sem edição no País. Crítica do marxismo, ela diz que a revolução teve duas vidas – a primeira quando era presente e objeto do escrutínio de cientistas políticos. A segunda quando se tornara história. Para Sheila, o significado da Revolução “permanecerá fortemente disputado na Rússia em seu primeiro centenário e depois”.

Guerra Civil. Sheila enfrenta seu objeto de estudo com uma abordagem original e sóbria. De fato, não se encontra em Sheila aquele estilo ou construção intelectual que tornam a história um objeto vulgar a pretexto de fazê-la mais atraente ao leitor comum. Não é esse ainda o caso de outro autor publicado no Brasil nesse ano do centenário de 1917: o historiador francês Jean-Jacques Marie.

Faltam, porém, a Marie a vivacidade e a originalidade de Sheila. Jean-Jacques constrói seu História da Guerra Civil Russa com uma forte presença de relatos de combatentes – falta-lhe a dimensão do povo, o cheiro dos mortos nos povoados abandonados, o rumor das assembleias, o caos econômico e demográfico. Sua pesquisa é extensa, apesar de o livro não trazer notas para esclarecer fontes bibliográficas e documentais.

Jean-Jacques é simpático aos bolcheviques, o que não lhe impede de dar a dimensão da guerra. Primeiro em relação à sua amplitude – cerca de 4,5 milhões de mortos. Depois em relação aos grupos combatentes e suas composições sociais. Por fim, mostra como a fortuna esteve ao lado dos vermelhos, não como resultado do terror ou da violência de brancos, verdes ou vermelhos, mas pela síntese entre a prudência e as armas feita por tantos comandantes bolcheviques que souberam quando era o momento da espada e quando o caminho era o discurso e o convencimento.

 

 

 


Silvio Pons: A História do Comunismo e o Mundo Atual

O historiador italiano Silvio Pons um dos mais respeitados estudiosos do marxismo, esteve no Brasil para o lançamento de “A Revolução Global - História do Comunismo Internacional 1917-1991”, e falou ao programa Milênio (GloboNews)


Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2017/01/silvio-pons-historia-do-comunismo-e-o.html?spref=fb

 


Mário Soares

Luiz Sérgio Henriques: O legado de Mário Soares

Se o século 20 foi breve, começando com a conflagração de 1914 e terminando sob os escombros do Muro de Berlim ou com a dissolução da URSS, seus temas e personagens às vezes só lentamente se despedem de nós, voltando inesperadamente de um relativo esquecimento para nos assombrar com a atualidade de gestos individuais e dramas coletivos que marcaram mais de uma geração. A morte de Mário Soares, figura emblemática do Portugal moderno, propicia um desses retornos: com ela vêm à memória o país anacrônico do fascismo e as promessas da nova democracia, o colonialismo tardio e os capitães de Abril, os rumos pós-revolucionários separados entre a Europa social-democrata e a do “socialismo real”, uma fórmula defensiva que então parecia ainda capaz de emocionar corações e mentes.

Para Portugal naquele momento se dirigiram as atenções de tantos que viam na derrubada do fascismo a possibilidade de uma revolução social à moda antiga, com seu receituário testado no Leste Europeu: a nacionalização ou a estatização da economia, a afirmação inevitavelmente autoritária de um partido sobre o Estado e a sociedade, o poder assentado na aliança entre o povo e os militares progressistas, num movimento que varreria o fascismo e abriria um flanco no Ocidente univocamente regressivo e imperialista.

Essa visão de mundo, evidentemente, supunha uma lógica binária, uma confrontação aberta ou subterrânea entre “campos” contrapostos. Álvaro Cunhal, o inquebrantável dirigente comunista da resistência, fazia-se o principal intérprete dessa extremada “hipótese de Abril”. Uma hipótese ameaçadora, dado que, entre outros limites, a cultura comunista ainda se via às voltas com conceitos enrijecidos, como a ditadura do proletariado. Já nos entregando à especulação contrafactual e ao humor dos anarquistas, vitoriosa tal possibilidade, muito provável que a Pide, a temível polícia fascista, tornasse a ser aberta em seguida, só que sob nova gerência...

Mário Soares era o homem da social-democracia numa de suas florações magníficas. A dar-lhe sustentação estavam dirigentes como Willy Brandt, François Mitterrand, Olof Palme e Bruno Kreisky, para não falar da compreensão e do apoio discreto do eurocomunismo de Enrico Berlinguer. Era a garantia da construção, num horizonte temporal largo e realista, do compromisso social-democrata entre mercado e direitos, capitalismo e democracia. Nada de “comunismo agora”, especialmente na forma soviética, já intrinsecamente corroída, como setores da própria esquerda crescentemente percebiam pelo menos desde a denúncia dos crimes de Stalin, a invasão da Hungria em 1956 e da Checoslováquia em 1968.

Os embates duríssimos com os comunistas e com a centro-direita marcaram a fisionomia política e intelectual de Mário Soares. Adversário desde sempre do fascismo e alheio ao integrismo comunista, Soares, numa frase de rara felicidade que voltou a circular por estes dias, afirmava-se um político socialista, evidentemente de esquerda, mas, antes disso, fundamentalmente um democrata. Nessa adesão irreprimível à democracia constitucional está a chave da grande arte política de Soares. Ou, para evocar termos de início do século breve, a chave da curiosa vitória, em Portugal, dos “mencheviques” sobre os “bolcheviques”, do marxismo antileninista sobre a ditadura “operária” do partido único.

Expressamo-nos metaforicamente, como está claro, uma vez ser duvidoso que a convulsão social de 1974-1975 pudesse ser caracterizada como situação revolucionária clássica, considerando a implantação minoritária da força política, o Partido Comunista, que a ela se aferrava. E, mais uma vez de modo contrafactual, um eventual Estado sovietizado que daí derivasse provavelmente teria tido a mesma sorte de seus coirmãos do Leste Europeu a partir de 1989. Nem é exato chamar de menchevique a orientação do PS português: afinal, a social-democracia europeia ocidental tem uma história própria, autônoma em relação aos nomes e às tendências da política russa de 1917.

O sentido da ação de Mário Soares, enraizada na economia social de mercado, na democracia representativa e na integração europeia, como logo adiante mostraria ser, constitui um capítulo adicional, relativamente tardio, das relações difíceis e nada lineares entre capitalismo e democracia política. Como afirma Habermas, teórico visceralmente comprometido com as liberdades, vistas em perspectiva histórica tais relações entre uma economia florescente e uma repartição mais justa de bens têm sido antes a exceção do que a regra. E, não por acidente, demandam forças de esquerda que se coloquem no terreno do constitucionalismo democrático, que têm ajudado a construir, embora contraditoriamente nem sempre o reconheçam como obra própria.

Hoje, a ação de socialistas como Mário Soares mais uma vez se encontra sob severo risco, a ponto de não poucos recordarem, como termo de comparação novamente saído do século breve, a conjuntura espinhosa dos anos 1930. Naquela altura, o fascismo e o nazismo pareciam em ascensão irresistível, fazendo recuar o liberalismo europeu. O mundo comunista, internamente congelado e precocemente incapaz de apontar um rumo positivo, marcado como estava por seu “pecado oriental”, ora se fechava sectariamente, ora se abria, nos momentos mais afortunados, para a aliança com os liberais e os socialistas, como nas chamadas frentes populares, que renovavam a capacidade de influenciar até a grande intelectualidade democrática.

De modo acidentado, os valores políticos do liberalismo então se salvaram não só por sua inegável força intrínseca, como também pela contribuição da esquerda em seu conjunto. Mais adiante, nos anos 1970, o doce e pequeno país de Mário Soares daria passos decididos no mesmo sentido. E, pensando bem, esse talvez seja o grande desafio que temos diante de nós.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil. Site: www.gramsci.org


Ferreira Gullar: Trump - après moi, le déluge

O capitalismo trumpariano se aproxima do nacionalismo nazista

Se a vitória de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos, sob certos aspectos, foi uma surpresa, sob outros resulta coerente com determinadas mudanças verificadas nas últimas décadas na realidade contemporânea a partir do fim do sistema soviético

O término da Guerra Fria, que dividia o mundo em duas facções hostis, provocou uma série de mudanças políticas, econômicas e ideológicas.

Elas geraram desde o radicalismo islâmico no Oriente Médio até o populismo latino-americano, que vive seus últimos momentos. Mas não só: provocou também reações diversas tanto no capitalismo europeu quanto no capitalismo norte-americano, de que a eleição de Trump é, sem dúvida, uma das consequências mais graves.

É claro que o fim do sistema soviético fortaleceu o capitalismo tanto econômica como ideologicamente, mas também provocou divisões no próprio capitalismo, de um lado favorecendo a tendência mais moderna –que aprendera com o socialismo a lição da igualdade social– mas, de outro, estimulando ideologicamente o capitalismo atrasado, que se valeu do sectarismo comunista para justificar a exploração sem limites e o lucro máximo.

Não é novidade dizer que o sonho da sociedade justa que o comunismo inspirava estimulou o surgimento de partidos e movimentos políticos que, durante quase um século, puseram em questão o regime capitalista, cujo caráter explorador do trabalho humano é indiscutível.

Esses movimentos e partidos, por sua vez, provocaram da parte dos setores mais conservadores reações –nazismo e fascismo foram exemplos extremos, mas não os únicos. Em muitos momentos e países, estabeleceu-se uma divisão insuperável, que se define até hoje como esquerda e direita.

Se é verdade que os erros do regime comunista –mesmo antes de sua derrocada final– impediram uma pretendida hegemonia mundial, o fim dele como realidade política e econômica teria consequências diferentes nos diferentes países capitalistas, indo desde certa socialização do capitalismo em alguns países até, contraditoriamente, a exacerbação da exploração capitalista, já que –segundo estes– ficara demonstrado pela história como a tese de que o capitalismo seria um mal a ser extirpado era resultado de um preconceito e de um erro da esquerda.

E essa tese não foi aceita apenas pelos militantes anticomunistas, mas também pelos setores mais diversos de alguns países europeus que optaram recentemente por governos de direita, não radicais como o de Donald Trump, mas igualmente dispostos a apagar, de uma vez por todas, o pesadelo do anticapitalismo que os assustou por décadas e décadas.

Esse anticomunismo é, portanto, bem mais radical que o europeu, porque a ele se soma a necessidade de erradicar do capitalismo todo e qualquer preconceito socializante, o que o opõe não apenas ao falecido comunismo como também ao chamado capitalismo moderno, minado de intenções progressistas.

Esse caráter do capitalismo trumpariano caracteriza-o como uma opção abertamente reacionária que, não por acaso, o aproxima do nacionalismo nazista, do qual estão excluídos quaisquer sentimentos de solidariedade com o sofrimento humano. Tudo isso é encarado como hipocrisia.

O capitalismo, assim entendido, é o regime dos mais capazes e dos vitoriosos, como Donald Trump.

O que importa é o lucro, ou seja, o aumento do capital e da riqueza, não importando que consequências tenham. Azar daqueles que a natureza criou incapazes.

Por isso mesmo, Trump nega que o desenvolvimento industrial gere o aquecimento do planeta e ameace a sobrevivência da humanidade. Ou seja, "après moi, le déluge" (depois de mim, o dilúvio).

Gostaria de concluir esta crônica tranquilizando o leitor com a seguinte lembrança: todas as tentativas semelhantes a essas, que ignoraram a realidade do processo econômico, político e científico, fracassaram.

Puderam até por algum tempo ganhar o apoio dos menos lúcidos e ressentidos, mas não sobrevivem porque são fruto do sectarismo, de ilusões e de ressentimentos, sem base na realidade.


Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2016/11/o-capitalismo-trumpariano-se-aproxima.html


Ferreira Gullar: Fim do comunismo gerou vazio ideológico que precisa ser preenchido

O "Manifesto Comunista", escrito por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848, deu início a uma visão crítica do regime capitalista. Assim, mudaria a história humana, para o bem e para o mal, durante o último século e meio.

Para o bem porque pôs à mostra a exploração do trabalho humano, posta em prática pelo capitalismo; para o mal, porque, em nome de uma suposta igualdade, criou um regime autoritário e às vezes cruel.

É verdade, porém, que o regime soviético, por excluir de si a exploração capitalista, acendeu no espírito dos que a repeliam uma utopia que, ali, conforme acreditavam, começava a realizar-se.

A morte de Lênin e a ascensão de Stálin tornaram o regime soviético mais sectário e repressivo, levando à divisão da intelectualidade ocidental de esquerda, quando uma parte dela se tornou trotskista.

De qualquer modo, a imagem da URSS foi favorecida pelo surgimento do nazismo e a deflagração da Segunda Guerra Mundial. Esse fato obrigou uma aliança dos países capitalistas com o regime stalinista contra a Alemanha de Adolf Hitler. Terminada a guerra, derrotado o nazismo, o conflito ideológico ressurgiu designado como Guerra Fria.

Após o desgaste provocado pelo stalinismo, o marxismo, no campo ideológico, ganhou novo fôlego com a Revolução Cubana, em 1959.

Em vários países latino-americanos, o sonho comunista renasceu com o surgimento de grupos guerrilheiros. A presença de um país comunista a poucos quilômetros do território norte-americano acirrou o conflito ideológico entre as duas potências rivais. Os arsenais nucleares, porém, de um e do outro lado, impediram o conflito armado.

Não obstante, os norte-americanos, temendo o surgimento de outras Cubas na América Latina, acionaram seus recursos políticos e militares para instaurar ditaduras anticomunistas nos países onde o perigo era maior.

Os guerrilheiros foram praticamente todos eliminados pela repressão militar, o que, se por um lado deteve a luta armada, por outro atraiu a solidariedade de grande parte dos latino-americanos, ressentidos com a truculência dos regimes militares. Em função disso, surgiram partidos que, embora atuando na legalidade, continuavam a alimentar o sonho da revolução anti-imperialista.

Sucedeu que, naquele período, o regime soviético –principal potência militar e ideológica do sistema–, começou a dar sinais de mudanças que culminariam em seu colapso.

Esse fato, que teve importância decisiva no processo político-ideológico de quase todos os países, ganha, na América Latina, uma conotação particular: o projeto revolucionário anti-imperialista, que ali surgira, não tinha mais condições de exibir, como objetivo, um regime que fracassara.

É então que nasce o socialismo bolivariano, inventado por Hugo Chávez e que, na verdade, é um tipo novo de populismo e de que seriam outros exemplos os governos dos Kirchner na Argentina, de Evo Morales, na Bolívia, de Rafael Correa, no Equador, e de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil.

Esse populismo chegou a despertar o entusiasmo de setores intelectuais e estudantis, que não aceitam admitir que o sonho da sociedade justa tenha se extinguido. É certo que, em cada um desses países, o populismo adquiriu caráter específico, ainda que, em todos eles, estivessem presentes argumentos ideológicos da exploração dos pobres pelos ricos e da identificação do imperialismo norte-americano como o inimigo principal a ser combatido.

Mas essa pregação político-ideológica não se sustentou por muito tempo –a não ser em setores restritos da população. Do mesmo modo que os próprios governos populistas, que entraram e crise e se acabaram ou estão a caminho de finarem.

É verdade que esse populismo não tinha a riqueza ideológica do marxismo que, sem dúvida, foi a utopia dominante do século 20. Por isso mesmo, o fim do regime comunista provocou um vazio ideológico, que necessita ser preenchido, uma vez que a sociedade humana, sem utopia, torna-se inviável.