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Malu Gaspar: O xadrez que pode levar ao impeachment de Bolsonaro

Magistrados interpretaram o discurso da Paulista como um ataque não a alguns ministros, mas ao próprio Judiciário

Malu Gaspar / O Globo

O silêncio no zap das autoridades em Brasília depois do discurso de Jair Bolsonaro indicava que o que tinha acabado de acontecer havia mexido com os cálculos políticos de todos eles. Indicava, também, que vai começar uma nova etapa na longa crise vivida pelos poderes. Mas, para saber se ela será capaz de levar ao impeachment, vai ser preciso ver como os líderes do Judiciário e do Congresso, especialmente o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), vão se entender nos bastidores.

Os magistrados interpretaram o discurso da Paulista como um ataque não a alguns ministros, mas ao próprio Judiciário. "Ou tiramos ele, ou ele implanta a ditadura", me disse um interlocutor dos togados.

Todos sabem, porém, que a saída não se dará por canetada de juiz e sim pela política. Para isso precisam de Lira, que nunca teve interesse em afastar Bolsonaro. Pelo contrário. Cada pedido de impeachment só amplia seu poder. Sua cota bilionária do orçamento secreto é a expressão mais concreta disso.

É verdade que desde 2020, quando Bolsonaro anunciou no QG do Exército que "acabou a patifaria, agora é o povo no poder", sua situação se deteriorou bastante. Naquela época, o empresariado ainda o apoiava, a inflação não era um problema e a pandemia não havia matado mais de 580 mil pessoas.

Mas, políticos experientes que são, Lira e os líderes do Centrão não desprezam o apoio recebido pelo presidente nas ruas. Também não vão abrir mão de Bolsonaro antes da aprovação do Orçamento de 2022 e do fundo eleitoral.

Acontece que um processo de impeachment pode levar meses, e nesse tempo serão decididas questões importantes que dependem da Justiça e podem inviabilizar o governo – como o enrosco dos precatórios, os inquéritos contra o bolsonarismo e ações contra o orçamento secreto.

Tais decisões podem ajudar a convencer Lira e o Centrão de que eles têm mais a perder ficando com o presidente do que jogando-o ao mar. Resta saber se a solução das togas e da oposição será politicamente mais eficaz do que a caneta do presidente da República.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/o-xadrez-que-pode-levar-ao-impeachment-de-bolsonaro.html


Elio Gaspari: Há três setes na mesa dele

Bolsonaro está sem rumo

Elio Gaspari / O Globo

Se Donald Trump tinha um plano para a insurreição de 6 de janeiro, durou cerca de seis horas. Se Bolsonaro tinha o seu plano para o 7 de Setembro, durou menos de quatro horas. Às 11h43, ele anunciou a convocação do Conselho da República, sabe-se lá para que, e lá pelas 15h o Palácio do Planalto informou que a reunião estava esquecida.

No seu discurso matutino, Bolsonaro mostrou-se desorientado. Referindo-se ao ministro Luiz Fux, ele disse: “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu, ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos”. A frase não faz sentido. O presidente do Supremo não tem poder para “enquadrar” a Corte. (A menos que Bolsonaro esteja fazendo fé na faixa preta de jiu-jítsu de Fux.) Também não tem sentido o “sofrer aquilo que não queremos”. Primeiro, porque falta dizer o que “queremos”, depois porque falta explicitar o que significa “sofrer”. À tarde, Bolsonaro fulanizou sua carga contra o ministro Alexandre de Moraes: “Ou ele se enquadra ou pede para sair”. Não disse como, nem por quê. Também não explicou o mecanismo legal que poderá livrá-lo de Moraes.

Hoje, ao chegar ao Planalto, Bolsonaro não terá na agenda a tal reunião com o Conselho da República, mas lá estarão os três setes que assombram o Brasil no seu 199º ano de existência:

O litro da gasolina a R$ 7, com a inflação e os juros arriscando chegar a 7%.

Isso para não falar nos 14 milhões de desempregados num país que rala em pandemia que já matou mais de 580 mil pessoas. Todos esses problemas exigem que o governo trabalhe. É serviço para formigas, não para cigarras.

Se qualquer dos problemas que estão sobre a mesa de Bolsonaro pudesse ser resolvido tirando Moraes ou qualquer outro ministro do Supremo, eles certamente mandariam as togas para o Planalto. Contudo, no seu discurso vespertino, Bolsonaro pronunciou a palavra mágica de suas ansiedades: “inelegibilidade”.

Bolsonaro tem uma só preocupação: continuar na Presidência. Teme perder a eleição, por isso continua satanizando as urnas eletrônicas. Sabe que corre o risco de ser declarado inelegível pelo que fez e deixou fazer em suas campanhas e antecipa-se. Declará-lo inelegível em 2022 por malfeitorias de 2018 dará ao processo legal um cheiro desagradável de tapetão.

Nada melhor que chamar os eleitores, computar os votos e empossar o candidato que tiver mais votos.

Até a hora em que Bolsonaro terminou seu segundo discurso, o 7 de Setembro de 2021 transcorreu em paz. Ficou apenas uma ameaça de Bolsonaro: ele diz que não cumprirá ordens da Justiça que vierem a desagradá-lo. A ver.

Bolsonaro diz que continuará dentro das quatro linhas da Constituição, mas ameaça sair do quadrado, sem dizer como. Falta pouco mais de um ano para a eleição, e novas crises virão.

Os três setes continuarão sobre a mesa do presidente, com suas próprias tensões. As ruas continuarão abrigando gente que acredita em cloroquina, no grafeno, no nióbio e nas fraudes das urnas eletrônicas.

A História oferece um refresco. Os restos mortais de Napoleão chegaram a Paris em 1840, 19 anos depois de sua morte. Naqueles dias, só no manicômio de Bicêtre, havia 14 Napoleões.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/ha-tres-setes-na-mesa-dele-25188247


Vera Magalhães: Falta vacina para conter Bolsonaro

Arthur Lira é cúmplice dos sucessivos crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro

Vera Magalhães / O Globo

Os remédios da Constituição de 1988 podem ser eficazes para evitar que Jair Bolsonaro dê um golpe de qualquer dimensão ou natureza, mas não são suficientes para removê-lo do posto diante de suas diárias e cada vez mais diretas ameaças à própria existência da democracia. O que nos leva à possibilidade real de termos de conviver por um ano e três meses com esse caos provocado única e exclusivamente pelo presidente da República, caso alguns atores não sejam instados a mudar sua conduta.

Falta ao nosso ordenamento jurídico uma vacina, o tipo de rito que permita conter de forma mais clara e rápida esse tipo de golpismo do século XXI, de que o presidente brasileiro é um expoente cada vez mais peculiar, porque tanto bebe das fontes internacionais quanto passa a ser visto como case a inspirar outros aprendizes de ditadores, pelas dimensões e pela importância estratégica do Brasil.

O impeachment, tratamento clássico para crimes de responsabilidade e para momentos em que governos se mostram disfuncionais, não é uma opção concreta no momento, mesmo diante da exorbitação de todos os limites cometida por Bolsonaro em seus dois discursos neste 7 de Setembro de conformação antidemocrática.

Arthur Lira é cúmplice dos sucessivos crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro não só contra os demais Poderes, mas também no enfrentamento da pandemia. Só deixará de ser conivente se houver uma pressão tremenda de todos os partidos do Centrão, grupo que coordena à base de dinheiro público na veia. Como ainda não cessou a fonte de recursos, inútil contar com isso.

A saída propugnada pelo ministro Ricardo Lewandowski em artigo recente — enquadrar o presidente da República por crime contra a existência do próprio Estado Democrático — depende da ação do procurador-geral da República, o igualmente cúmplice Augusto Aras. Ainda que ele seja tomado de uma independência súbita, uma eventual denúncia apresentada pelo procurador-geral contra o presidente tem de passar pelo crivo da mesma Câmara comandada por Lira.

O que nos leva à angustiante situação de estarmos num labirinto, presos a Bolsonaro, a seus arbítrios e à rede de condescendência que foi criando em torno de si à base de assaltos diários nunca contidos contra as instituições.

Ele não se moderará. Depois de romper todos os limites do bom senso na Esplanada dos Ministérios e na Avenida Paulista, nada indica que recuará. Pelo contrário: além de ameaçar não cumprir decisões judiciais, reciclou a ameaça de não aceitar o resultado das urnas.

Que não se incorra no erro de subestimar seu poder de persuasão contando cabeças nos protestos deste feriado: foram muitas, o suficiente para manter o Brasil preso a uma agenda distópica daqui até as eleições, para incalculável prejuízo da economia, do tecido social e das mesmas instituições que resistem aos trancos e barrancos a atentados contra sua existência.

Diante da constatação do impasse, ministros do STF reconhecem a inexistência de mecanismos específicos para lidar com o golpismo altamente digital, financiado de forma sub-reptícia, que subverte conceitos como liberdade de expressão e a própria democracia. Daí por que os inquéritos que atualmente estejam sob a responsabilidade do ministro Alexandre de Moraes sejam a barreira possível à expansão desse mecanismo — e, justamente por isso, o alvo da ira bolsonarista.

Que se dependa de instrumentos provisórios e, mesmo eles, de alcance limitado para moderar um presidente incontrolável é a prova cabal de que a Constituição pode não ruir diante das investidas de Bolsonaro contra ela, mas sairá bastante esvaziada e combalida, como de resto todo o país, dos quatro anos de turbação da vida nacional a que os eleitores nos condenaram em 2018.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/falta-vacina-para-conter-bolsonaro.html


Bruno Boghossian: Ameaça de Bolsonaro ao STF já representa manobra autoritária

Ao indicar atropelo a decisões do tribunal, presidente prepara terreno para golpe final em 2022

Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo

Jair Bolsonaro conseguiu o que queria. Com a articulação de empresários do agronegócio, líderes religiosos e políticos aliados, o presidente levou uma quantidade razoável de gente para as ruas de Brasília, São Paulo e outras cidades. Não houve tanque na praça dos Três Poderes para fechar o STF, mas o capitão já lançou uma manobra autoritária.

Bolsonaro nunca demonstrou interesse em permanecer no campo da democracia, e o movimento feito pelo presidente no 7 de setembro expôs de maneira aberta o projeto para expandir seus poderes. Nos discursos para os manifestantes, ele disse que ministros do Supremo deveriam mudar de comportamento, "ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos".

ameaça explícita tem dois objetivos imediatos: intimidar o tribunal e abrir caminho para que Bolsonaro descumpra determinações judiciais. "Ou entram nos eixos, ou serão simplesmente ignoradas da vida pública", disse o presidente, em vídeo divulgado ainda pela manhã.

O movimento é golpista porque um presidente não tem o poder de definir os limites que ele deve ou não respeitar. É autoritário porque vem acompanhado de sinais nada velados de uso da violência, com acenos às Forças Armadas, incentivo ao envolvimento da polícia e incitação de militantes que falam claramente em invadir o Congresso e o STF.

Os primeiros alvos de Bolsonaro são as decisões do Supremo que incomodam sua família e seu grupo político, como a prisão de aliados e as investigações sobre ameaças ao processo eleitoral. Em 2022, essa mesma plataforma tende a ser explorada para ignorar decisões de tribunais superiores durante a campanha e desrespeitar o resultado da urna.

Essas investidas também ajudam Bolsonaro a reaglutinar parcelas de uma base de apoio que esmoreceu ao longo do governo. Até aqui, parece improvável que a expansão desse núcleo seja suficiente para garantir uma vitória no voto, mas pode ser forte o bastante para dar sobrevida a seu plano de melar as eleições.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/09/ameaca-de-bolsonaro-ao-stf-ja-representa-manobra-autoritaria.shtml


Hélio Schwartsman: É preciso agir contra os ataques de Bolsonaro

Num país mais decente, Bolsonaro já teria sofrido impeachment há tempos

Hélio Schwartsman / Folha de S. Paulo

O tão temido 7 de Setembro de Bolsonaro não produziu mais do que discursos delirantes e incidentes isolados, como era mais ou menos esperado. O problema é que a coisa não acabou. O capitão reformado segue à frente do Executivo e continuará a investir contra os outros Poderes. Nesse contexto, o Dia da Pátria foi uma escalada, precipitada pelo desespero de quem vê suas chances de reeleição minguarem, mas ainda assim uma escalada. Devemos esperar mais ataques à democracia.

Num país mais decente, Bolsonaro já teria sofrido impeachment há tempos. Ao nem sequer abrir um processo para avaliar se o presidente comete crimes de responsabilidade, a Câmara dos Deputados normaliza suas atitudes antidemocráticas. Felizmente, a resistência ao golpismo presidencial não está limitada ao Parlamento. A cúpula do Judiciário, alvo dos principais ataques de Bolsonaro, sentiu na pele a pressão e resolveu reagir.

A capacidade de resposta do STF e das cortes superiores, porém, é limitada, porque a Constituição blinda o presidente contra ações penais. Elas só podem ser iniciadas com o aval do procurador-geral da República e de 2/3 dos deputados. Mas é possível tentar frear o presidente por outras vias. O TSE já tem os elementos para considerá-lo inelegível em 2022. Também é possível encarcerar os aliados mais exaltados do capitão reformado e até algum dos filhos. No limite, o STF poderia determinar medidas cautelares contra um presidente que comete crimes inafiançáveis e imprescritíveis descritos na Constituição.

Esses são remédios de emergência que talvez se façam necessários. A resposta correta, contudo, como venho insistindo aqui há mais de um ano, teria sido o impeachment. Um observador benigno pode até achar que a população foi enganada pela campanha mentirosa de Bolsonaro quando o elegeu. Mas não há desculpa para a sociedade que tolera ver ataques constantes à democracia sem tomar uma atitude.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/09/e-preciso-agir-contra-os-ataques-de-bolsonaro.shtml


Ruas foram espuma, projeto de golpe continua, elite ainda é conivente com Bolsonaro

Não houve putsch das falanges bolsonaristas, mas mais um dia de progresso do golpe

Vinicius Torres Freire / Folha de S. Paulo

No 7 de Setembro, Jair Bolsonaro cometeu mais alguns crimes de responsabilidade, motivo de processo de impeachment, entre outros que podem se tornar objeto de inquérito e condenação no STF. Na noite desta terça-feira (7) lúgubre, uns senadores haviam decido ir ao Supremo pedir a investigação por meio de uma “notícia-crime”. Os ministros, por sua vez, por ora ainda discutiam a elaboração de uma “mensagem dura” (hum...), apesar de Bolsonaro ter chamado alguns deles de “canalhas” e de dizer, aliás outra vez, que pode ou não obedecer a decisões do tribunal maior.

Vai ter consequência? Uns governadores, uns gatos pingados do PSDB e um ou outro partido centróide passaram a sussurrar a palavra “impeachment”. Um tucano manco, aliás meio bolsonarista, umas andorinhas depenadas e um monte de galinhas gordas de emendas não fazem um verão neste tenebroso inverno de Bolsonaro. As elites precisam tomar vergonha na cara (...), pois o tirano não vai parar a não ser que seja confrontado objetivamente. Se não o fazem, estão a dizer, na prática, que essa alternativa ou qualquer outra são piores do que Bolsonaro. Em geral, o mundo político se ocupa apenas e mal e mal de eleição, sem que ao menos exista oposição organizada, menos ainda da “terceira via”.

Que mais aconteceu em mais um dia de golpeamento da República e do projeto dos Bolsonaro de fugir da polícia? A espuma das ruas.

Sim, Bolsonaro até que juntou muita gente em São Paulo, cerca de 125 mil pessoas na Paulista, na conta razoável da Polícia Militar (este jornalista esteve lá), o equivalente a 1% da população da cidade. Sim, poderia ter acontecido algo de muito mais grave, mortes, depredação das sedes dos Poderes etc. No essencial, foi o de sempre.

Grosso modo, nas ruas houve a espuma de aglomerações covidárias em São Paulo e uns arreganhos de falangistas mais organizados em Brasília, financiados pelo agro ogro e por outros empresários bolsonaristas. No entanto, o Domingo no Parque autoritário paulista foi uma reunião meio cansada e não muito sensacional de gente convertida, não de batalhões fascistas prontos para a marcha (ainda reclusos em certos quartéis, clubes de tiro e milícias).

Bolsonaro falou para o “público interno” e não tratou de assunto real do país, nem para fazer demagogia: fome, inflação, falta d’água e luz, de emprego. Em Brasília, disse ao público que chamaria o “Conselho da República”, a quem mostraria fotos da sua força nas ruas. Era uma bravata para a galera e uma ameaça avacalhada e inviável de decretar um estado de sítio ou algo assim.

A espuma fez borbulha em mais um dia de trabalho do bolsonarismo: a normalização do golpe e a tentativa de espalhar medo, de intimidação física, um tanto frustrada. O problema está aí: Bolsonaro continua a tocar o seu projeto sem que seja impedido de maneira decisiva, um sucesso relativo. Normalizou a discussão de golpe. Sujeitou o país à tutela militar: gente da política e dos Poderes vai até os quarteis perguntar se vai haver golpe.

Na prática, conseguiu fazer com que a maior parte da elite política e econômica aceitasse seu programa de destruição do “sistema”, elite que apenas se moveu diante da ameaça explícita e reiterada do golpe de Estado. Até agora, a degradação selvagem do país havia sido tolerada: saúde, educação, desumanidade, preconceito, cafajestagem, “rachadinha”, administração comezinha do governo, desprezo internacional, em parte e por alguns justificada pelos 30 dinheiros de meia dúzia de “reformas”, muitas delas porcas.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/09/ruas-foram-espuma-projeto-de-golpe-continua-elite-ainda-e-conivente-com-bolsonaro.shtml


Ricardo Noblat: Os dois senhores de Arthur Lira – Bolsonaro e Lula

O presidente da Câmara dos Deputados mantém cada pé num barco. Ele, de fato, é quem parece irremovível

Blog do Noblat / Metrópoles

Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, ficou o 7 de Setembro em Brasília e não perdeu a chance de reforçar sua eventual candidatura à sucessão de Bolsonaro, deitando mais falação a favor da democracia, desta vez por meio das redes sociais.

Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados, ao que consta, teria se refugiado no seu Estado e recolheu-se ao silêncio. Ele sabe que passará por mais uma temporada de pressões para que abra um processo de impeachment contra Bolsonaro.

Resistirá o quanto puder. Vê ainda vantagen$ a extrair de sua aliança com o presidente da República, e não apenas monetárias. E considera que as condições para a abertura de um processo de impeachment não estão dadas. De resto…

O impeachment não interessa àquele que poderá vir a ser o seu futuro patrão – Lula. Por ora, quer uma situação mais confortável do que a do ex-presidente? Lula em ascensão nas pesquisas de intenção de voto, Bolsonaro em queda e cada vez mais isolado.

O plano de Lira é reeleger-se presidente da Câmara para mais um mandato de dois anos. Isso só poderá acontecer em fevereiro de 2023, com Bolsonaro reeleito ou Lula presidente.

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/os-dois-senhores-de-arthur-lira-bolsonaro-e-lula


Eliane Catanhede: A lei da física e da política - Toda ação gera uma reação

Bolsonaro é bom de gogó, mas não é mágico para mudar a realidade de 580 mil mortos, desemprego, inflação

Eliane Catanhede / O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro é capaz de tudo, até de transformar uma vitória em derrota. Ele deu uma demonstração de força e conquistou poderosas fotos de multidões em Brasília, Rio e São Paulo neste 7 de Setembro, mas jogou tudo fora ao irritar as instituições com seu discurso golpista e blefar com a convocação do Conselho da República, sabe-se lá para que fim.

Em desvantagem no Conselho da República, que reúne também os presidentes e líderes da maioria e da minoria na Câmara e no Senado, ele teve de ajustar a proposta no fim do dia. Em vez de Conselho da República, tratava-se do Conselho do Governo, restrito aos seus ministros, que são aliados, amigos e submissos. E para quê? Para nada.

A esquerda cometeu dois erros. O primeiro foi tentar enfrentar as manifestações pró Bolsonaro com protestos contra ele, provocando comparações constrangedoras, já que os atos bolsonaristas foram muito mais concorridos, como esperado. O segundo erro foi tentar reduzir o peso das multidões que foram às ruas, enroladas na bandeira nacional e no nosso verde e amarelo, para endeusar o mito e atacar o Supremo e a democracia.

As fotos e vídeos das manifestações realmente impressionam, porque elas lotaram a Esplanada dos Ministérios, a Praia de Copacabana e a Avenida Paulista. Uma expressiva multidão de fiéis, que acreditam piamente no discurso barato do presidente de que o Supremo é que ameaça a democracia e ele é o salvador da Pátria, o Quixote contra as instituições.

Foi uma manifestação de força política de Bolsonaro, mas isso segue a lei da física e da própria política: toda a ação gera uma reação. Ele venceu a batalha desta terça-feira, 7 de Setembro, mas a guerra continua. Nada como um dia atrás do outro. Depois de terça, vem quarta, quinta, sexta e muita água vai rolar debaixo dessa ponte até outubro de 2022, em condições bastante adversas para a reeleição.

Bolsonaro é bom de gogó, mas não é mágico o suficiente para mudar a realidade: 580 mil mortos de Covid, as negociatas das vacinas reveladas pela CPI, além de desemprego, inflação, cesta básica, gasolina, gás de cozinha, juros e conta de luz subindo. E onde está o presidente? Que reunião ele fez? Que determinações deu? Quando manifestou preocupação para os brasileiros? Nada.

A primeira reação dos partidos é reveladora: quanto mais o presidente radicaliza e põe gente na rua para defender o indefensável, mais aumenta a pressão pró impeachment. E os ministros do Supremo se reuniram ontem para combinar um posicionamento comum hoje, em favor da Justiça, do equilíbrio institucional, da democracia. Ou seja: contra Bolsonaro.

Enquanto os poderes se unem, chocados com o desequilíbrio do presidente da República, vale uma reflexão: que tal o tricampeão Nelson Piquet virando as costas para o pai, cassado pelo AI-5, para defender o golpista, o golpe e manifestações que pedem a volta da ditadura militar? E que tal a multidão badalando o operador das rachadinhas, Fabrício Queiroz, como herói? Já tivemos heróis melhores...

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-lei-da-fisica-e-da-politica-toda-a-acao-gera-uma-reacao,70003834043


Rosângela Bittar: Caricatura do ditador

Bolsonaro seguirá neste rumo até a imprevisível cena final. Que não será pacífica

Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo

Formou-se uma multidão surpreendente para dois comícios de atração única. Eventos irregulares da campanha eleitoral permanente de um presidente decidido a manter-se no poder a qualquer custo. Bandeiras e faixas produzidas na mesma fábrica de fantasias e ilegalidades. Encontros sem espontaneidade, que passaram por uma linha de montagem cara, industrial, e de cobertura nacional.

Deu tudo certo. Com seus 58 milhões de votos de 2018 hoje reduzidos, pela rejeição, a menos de 32 milhões, ele não pode se queixar do resultado. Não há certeza, porém, que tenha sido uma renovação de confiança ou voto na reeleição.

Bolsonaro não faria essa mobilização à toa e não se deve, portanto, descartar nenhuma intenção mais ambiciosa a partir de agora.

O presidente atribuiu um protagonismo inédito ao ministro Alexandre de Moraes (STF), tentando jogar contra ele até os que, em meio às multidões, não sabiam de quem se tratava. Foi pensando em Moraes que Bolsonaro disse a frase-chave do seu discurso ao garantir que não será preso. O ministro é o condutor dos inquéritos das notícias falsas e dos atos antidemocráticos, crimes em que estão investigados seus filhos e presos amigos, cúmplices e membros do famigerado gabinete do ódio, além de empresários financiadores do esquema. O mesmo Moraes será presidente do Tribunal Superior Eleitoral quando estiver em votação a inelegibilidade. Uma das duas alternativas de desfecho legal do seu drama. A outra é o impeachment.

Diante das multidões, Bolsonaro nunca pareceu tão isolado do Brasil e do mundo. Em confronto com a maioria dos brasileiros favorável à democracia, às suas instituições e ao próprio estado de direito. Como demonstram os manifestos que estão pipocando País afora.

Os bolsoblocks, que já andavam desaparecidos, não são tantos como se esperava. Deu para perceber que, entre seus eleitores, há cidadãos normais: vacinados, racionais, que acreditam ser a Terra redonda e respeitam a ciência. Não são, como Bolsonaro, caricaturas. Existem, aceitam passagens e hospedagens para uma viagem recreativa no feriado e topam animados o papel de figurantes que representaram.

À distância, parece incapaz de ter a inteligência tática que demonstra. Acredita-se que haja alguém a guiá-lo na concepção e execução das suas insanas ações presidenciais. Será alguma liderança da direita internacional? Isto explicaria o grande número de faixas escritas em inglês para dar satisfações a alguém no exterior.

Seja o que for, Bolsonaro seguirá honrando o método que explora, no seu repertório político, três elementos: a covardia, a boa-fé do povo e a violência.

A covardia é um dos elementos típicos de seu discurso. Ele nunca assume a autoria de nada, diz sempre que age por delegação quando foi ele quem determinou tudo: o que dizer, o que pedir. É dele a voz do comando e da ordem de execução. Assim conduz tanto a milícia digital como a claque matinal diária do cercadinho da porta do Alvorada.

Outro elemento de tal método são as falsas informações que acabam ganhando credibilidade popular. A falsidade é instrumento poderoso de ação política e arma eleitoral deste grupo. Bolsonaro decidiu, inclusive, legalizá-la, por medida provisória inconstitucional, assinada anteontem, tornando-a livre de punição. É esta a liberdade de expressão por ele reclamada nos comícios. Assim, salva a própria pele e a dos propagadores de infâmias e mentiras à sua volta. Muitos brasileiros acreditam que podem virar jacaré, assim como acreditam na fraude eleitoral da urna eletrônica.

O terceiro elemento do método é a violência. Bolsonaro não tem recuo possível, seguirá neste rumo até a imprevisível cena final. Que não será pacífica. Na intenção firme de instalar-se como ditador, fez das manifestações do 7 de Setembro uma evidência do golpe que colocou em andamento.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,caricatura-do-ditador,70003834038


Luiz Carlos Azedo: As máscaras do fracasso

No Dia da Independência, cujas comemorações sequestrou, Bolsonaro não apresentou um projeto para o país, nem falou dos nossos verdadeiros problemas

O presidente Jair Bolsonaro, ontem, nos atos políticos realizados na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e na Avenida Paulista, em São Paulo, cruzou “as quatro linhas da Constituição de 1988”. Mostrou seu verdadeiro tamanho, mas ele não é maior do que um quarto do campo do eleitorado, conforme as pesquisas de opinião que avaliam o seu desempenho e o do governo. Por isso mesmo, a opção de governar apenas para seus partidários, em vez de fazê-lo para todos os brasileiros, e desafiar a ordem democrática e os demais Poderes da República, principalmente o Supremo Tribunal Federal (STF), pode lhe custar muito mais caro do que imagina.

Além de escolher o caminho da derrota eleitoral em 2022, Bolsonaro pede para ser considerado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e para que seja aberto o seu processo de impeachment pelo presidente da Câmara, com apoio até dos partidos do Centrão. No Dia da Independência, cujas comemorações sequestrou, Bolsonaro não apresentou um projeto para o país, nem falou dos nossos verdadeiros problemas: crise sanitária, recessão, desemprego, inflação, crise fiscal, isolamento internacional. Para mascarar seu fracasso, agravou ainda mais crise com o Supremo, que pode se tornar disruptiva.

De uma só vez, nas manifestações, cometeu vários crimes eleitorais, daqueles que já custaram o mandato e/ou a reeleição de muitos prefeitos e alguns governadores. Fez campanha eleitoral antecipada; usou recursos públicos em benefício próprio; o dinheiro de caixa dois financiou viagens de fanáticos apoiadores. Bolsonaro elevou o patamar de seus desatinos autoritários. Para o mundo político e jurídico, pirou de vez. Fez ataques e ameaças frontais aos demais poderes, pregou a desobediência civil. Anunciou que pretende reunir o Conselho da República ainda hoje, para enquadrar os ministros do STF Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. O primeiro é responsável pelo inquérito das fake news e será o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições, cargo hoje ocupado pelo segundo. Bolsonaro disse com todas as letras que não haverá eleição com urna eletrônica.

“Amanhã, estarei no Conselho da República. Juntamente com os ministros. Para nós, juntamente com o presidente da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, com esta fotografia de vocês, mostrar para onde nós todos deveremos ir”, disse em Brasília. “Não aceitaremos que qualquer autoridade usando a força do Poder passe por cima da Constituição. Não mais aceitaremos qualquer medida, qualquer ação, qual-quer sentença que ve- nha de fora das quatro linhas da Constituição. Nós também não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos três Poderes continue barbarizando nossa população. Não podemos aceitar mais prisões po- líticas no nosso Brasil”, completou.

Cartazes dos manifestantes pediam o afastamento dos ministros do Supremo e uma intervenção militar. O Dia da Independência foi transformado na antessala de um golpe de Estado. Bolsonaro tentou colocar contra a parede o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux: “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder vai sofrer aquilo que não queremos. Porque nós valorizamos, reconhecemos e sabemos o valor de cada Poder da República. Nós todos aqui na praça dos Três Poderes juramos respeitar a nossa Constituição. Quem era de fora dela ou se enquadra ou pede para sair”, desafiou.

Executivo unitário
Fux, agora, terá que adotar medidas em defesa da instituição que preside e dos demais integrantes da Corte. Bolsonaro vem tomando atitudes na linha da teoria do “Executivo unitário”, tese defendida pela extrema direita norte-americana, adotada pelo presidente George Bush, dos Estados Unidos, logo após os ataques às Torres Gêmeas, em 2001, com a tomada de decisões sem consulta ao Congresso nem à Suprema Corte. O direito constitucional dos Estados Unidos afirma que o presidente da República possui o poder de controlar todo o Poder Executivo federal, com base no Artigo Segundo da Constituição dos Estados Unidos.

A teoria do Executivo unitário é uma resposta ultraconservadora ao porquê a autoridade deve ser respeitada. Para exercer o poder, é preciso fundamentá-lo juridicamente. Bolsonaro quer ampliar seu poder com base em fundamentos jurídicos que distorcem a Constituição de 1988, como sua interpretação do artigo 142, que regula o papel das Forças Armadas.

Na democracia, os pilares da validação do poder estão escorados na concessão pelo povo de autoridade e limites para os governantes, estabelecidos quando aquele (o povo) atribuiu a esses (os governantes) o exercício do poder soberano. Como atribuição, e não cessão (e nem concessão divina), os poderes de um governo só podem ser legitimamente exercidos dentro dos limites legais que lhes foram impostos. Por ter sido eleito pelo voto direto e ser o “comandante supremo” das Forças Armadas, Bolsonaro acredita que o Supremo não pode confrontar suas decisões, o que não é caso. Quem avaliza ou não a legitimidade de seus atos é o Supremo, não o contrário.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-as-mascaras-do-fracasso

Luiz Carlos Azedo: A invenção do brasileiro

O imaginário nacional foi construído a partir de duas ideias-força: um ‘povo novo’, que surgiu da miscigenação; e a unidade nacional, fundindo povo e território no Estado-nação

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Tudo começou com a famosa carta de Pero Vaz de Caminha, que somente veio a ser impressa no Brasil em 1817, no Rio de Janeiro, cinco anos antes da independência. A Terra Brasilis reproduzia mitos que povoaram o imaginário europeu desde as viagens de Cristóvão Colombo: “novo mundo”, “paraíso perdido”, “bom selvagem” etc. Mas a invenção dos brasileiros, digamos assim, é uma obra dos mineiros. A Inconfidência, em 1789, nos legou o nosso primeiro grande mártir nacional, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, preso àquela ocasião; depois, enforcado e esquartejado, em 21 de abril de 1792. E a ideia de nação formada a partir dos que aqui nasceram.

Até então, o que cá havia eram portugueses, baianos, pernambucanos, paulistas, fluminenses e gaúchos, que protagonizaram a ocupação e expansão territorial na qual o Estado antecipou a nação, mas sempre muito atrás desses desbravadores. Notável foi a façanha dos paulistas, aliados às tribos tupi-guarani, na ocupação do território e na organização do mercado interno, bem como o trabalho dos africanos escravizados na nossa economia de exportação e na vida doméstica.

A partir do século XIX, a invenção do brasileiro ganhou fôlego, principalmente com o Romantismo. Durante todo o Império, buscou-se um projeto estético-político para o Brasil, uma identidade homogeneizadora, acima das diferenças étnicas e de classe. O imaginário nacional foi construído a partir de duas ideias-força: um “povo novo”, que surgiu da miscigenação; e a unidade nacional, fundindo povo e território no Estado-nação. A língua falada nos meios urbanos e o sincretismo religioso católico, desde o período colonial, seriam fundamentais.

Apesar de o Grito do Ipiranga ser a sua representação épica, encarnada por Dom Pedro I, a Independência não foi um fato isolado. No dia 7 de setembro de 1822, não haveria instituições minimamente organizadas no Brasil se a família real portuguesa não houvesse aportado em 18 de janeiro de 1808, fugindo de Napoleão Bonaparte, que invadira Portugal. A chegada de D. JoãoVI e toda sua comitiva transformaria a colônia explorada à exaustão em sede do Reino, com suas instituições de Estado, com as províncias brasileiras elegendo deputados às Cortes Gerais de Lis- boa, após a expulsão dos franceses.

Transformou-se por completo a situação política dos brasileiros. Houve reorganização das províncias: em 1821, as antigas capitanias foram emancipadas como províncias. Como os interesses do Brasil na votação da Constituição Portuguesa em 1821 foram frustrados, D. Pedro I convocou uma Assembleia Constituinte para elaborar uma Constituição para o Reino do Brasil. Somente a partir de 3 de maio de 1823, ou seja, após a proclamação da Independência, os representantes das Províncias reuniram-se. A chamada Constituinte da Mandioca leva esse nome popular porque era preciso ter pelo menos 500 alqueires de mandioca para se candidatar, e mais de 250 alqueires para votar.

Poder absoluto
Surgiram dois grandes partidos: o português e o brasileiro. O primeiro representava grandes comerciantes da Corte e apoiavam o absolutismo de D. Pedro; o segundo, os médios e pequenos comerciantes e os grandes fazendeiros, e defendia a redução de seus poderes imperiais. As ideias republicanas radicais, que emergiriam com força no Período Regencial, eram muito minoritárias. Antônio Carlos de Andrada e Silva, irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva, foi relator do anteprojeto de Constituição. Com 272 artigos influenciados pelas ideias do Iluminismo, defendia a soberania nacional e o liberalismo econômico. O escravismo e o latifúndio não entraram em pauta — colocavam em risco os interesses da aristocracia rural brasileira.

Havia ameaças de intervenção do governo liberal das Cortes Gerais. Bahia, Pará e Cisplatina pretendiam se manter unidos a Portugal, o que provocou as Guerras de Independência. A Assembleia Constituinte, porém, entrou em confronto com o Imperador, que não aceitou a tentativa de redução do seu poder, inclusive sobre as Forças Armadas, e a dissolveu, em 12 de novembro de 1823. A Constituição de 1824 foi outorgada por D. Pedro I e lhe garantia amplos poderes. O direito à propriedade privada foi incorporado à Carta com objetivo de proteger o regime escravocrata.

A Monarquia preservaria o projeto de reunificação do império colonial português de D. Pedro I, até a abdicação, em 7 de abril de 1831. Desde então, alternamos períodos de centralização e descentralização do poder. Havia no Brasil 4,5 milhões de habitantes, sendo 800 mil índios, 1 milhão de brancos, 1,2 milhão de negros escravizados e 1,5 milhão de mulatos, pardos, caboclos e mestiços. Éramos nós, os brasileiros.

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Luiz Carlos Azedo: O Louco Sagrado

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

A carta O Louco é a última do Tarô— a de número 22—, mas também é considerada a carta 0 (zero), ou seja, pode ser o início e/ou o fim do baralho. O Louco não tem numeração certa; como um coringa, entra na linha da jogada e a interrompe, deixando tudo em suspenso e abrindo um novo horizonte, completamente indefinido. Segundo os esotéricos, essa persona não é nada ponderada, enfrenta os seus desafios sem planejar. No jogo de Tarô, O Louco tanto pode ser considerado uma carta benéfica, porque revela a necessidade de se arriscar, quanto também pode pôr tudo a perder, porque não pondera seus atos nem avalia as circunstâncias. O Louco é sócio da imprudência, da falta de paciência e das precipitações. Tudo a ver com o presidente Jair Messias Bolsonaro.

A eleição do atual presidente da República foi uma cartada eleitoral do antipetismo exacerbado, de políticos, militares, servidores públicos, empresários e da classe média mais conservadora e empobrecida. As consequências agora estão aí: catástrofe sanitária, fracasso econômico, crise política, mais desigualdades sociais e um pogrom cultural. Mas também é um fenômeno antropológico, que precisa ser estudado para além das análises políticas e econômicas, porque sua existência tem a ver com a nossa cultura e as características mais profundas do nosso povo, com tradições de origens ibéricas medievais.

Nosso sebastianismo, por exemplo: a busca de um salvador da pátria, inspirada em Dom Sebastião I, que desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Sem herdeiros, a crise do trono levou Portugal à perda da independência para a Espanha, com a União Ibérica, e ao nascimento da lenda de que, numa manhã de nevoeiro, D. Sebastião voltaria à pátria para libertá-la. As cartas de Tarô surgiram mais ou menos nessa época, entre os séculos XV e XVI no norte da Itália, e foram criadas para um jogo praticado por nobres e senhores das casas mais tradicionais da Europa continental. Hoje, são muito usadas por esotéricos aqui no Brasil, para uso divinatórios, cujos significados são derivados principalmente da Cabala, a vertente mística do judaísmo.

Nossa memória coletiva ancestral pode ser ativada por símbolos, que funcionam como ilustrações para os anseios da alma humana, segundo o psicólogo Carl Gustav Jung, no estudo dos Arquétipos. O Tarô é uma espécie de história em quadrinhos sobre os nossos dramas. O Louco do Tarô é uma representação do “Louco Sagrado”, cujo estereótipo remonta à época do Apóstolo Paulo, em Coríntios, ao conclamar seus seguidores a “serem loucos por amor a Cristo”, como agora fazem o presidente Jair Bolsonaro e seus mais fanáticos partidários.

Na Idade Média, a patética figura do eremita tolo e indefeso, apesar de pouco inteligente, ganhou força popular porque era moralmente virtuoso ou puro. O “Louco Sagrado” era uma representação mítica de uma visão alternativa de mundo, como o Dom Quixote de Miguel de Cervantes, no Renascimento; uma imagem que, depois, viria a ser muito recorrente nas comédias de teatro, cinema e televisão, como as figuras de Carlitos, do genial Carlos Chaplin, e os Três Patetas.

Messias
Foi a propósito do “patético” nos meios de comunicação de massa que o filósofo alemão Theodor Adorno, em Mínima moralia (Editora Azougue), escreveu que tão errado quanto crer na existência do “Louco Sagrado”, é imaginar que podemos fazer qualquer julgamento baseados apenas na nossa razão, ou seja, de forma fria e racional. Fazer julgamentos criteriosos, equilibrados, abandonando a emoção é tão improvável quanto fazer um julgamento justo sem o uso da inteligência. Segundo Adorno, “quando for eliminado o último traço de emoção de nosso pensamento, não restará nada para pensarmos”.

Desde a década de 1990, neurologistas têm mapeado o cérebro e conseguido demonstrar com exatidão os processos de razão, de emoção e, consequentemente, o processo de decidir e julgar. Novos equipamentos permitem conhecer com mais detalhes a dinâmica cerebral, tornando possível mensurar a complementaridade entre as sensações e os raciocínios lógicos, as duas faces daquilo que nos torna humanos. No futuro próximo, o presidente Jair Bolsonaro será objeto de estudos de toda ordem, inclusive de natureza psicológica. Seu papel transgressor é incompatível com a liturgia do cargo que exerce e os parâmetros da Constituição de 1988, daí o isolamento político a que chegou, em relação à maioria da opinião pública e ao establishment nacional, que o apoiou em 2018.

Entretanto, o seu carisma e caneta cheia de tinta, em razão da Presidência, demonstram poder capaz de gerar grandes incertezas sobre o futuro, como O Louco do Tarô. O presidente da República encarna para certos segmentos da população o Louco Sagrado indispensável aos movimentos messiânicos. É como se tivéssemos uma espécie de Antônio Conselheiro, o líder de Canudos, na Presidência da República. As manifestações do dia 7 de setembro, não se fala de outra coisa, servirão de parâmetros de adesão a essa distopia que estamos vivendo. Seus fanáticos seguidores estão levando muito a sério o Messias de seu nome.

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