competitividade

Ribamar Oliveira: Um país viciado em subsídios

Só com o setor automotivo, o gasto será de R$ 5,9 bi

O lamentável comunicado da empresa Ford, de que vai encerrar suas atividades produtivas no Brasil depois de mais de um século, recoloca uma questão essencial para os dias de hoje, em que o setor público está quebrado, como informou o presidente Jair Bolsonaro, referendado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Até quando a sociedade brasileira vai conviver com um nível tão elevado de subsídios ao setor produtivo, estimados pela Receita Federal em R$ 307,9 bilhões neste ano, pouco abaixo de 4% do Produto Interno Bruto (PIB). Somente com o setor automobilístico, a previsão que consta da proposta orçamentária de 2021 é de um gasto de R$ 5,9 bilhões.

O gasto tributário ocorre quando o Poder Público concede anistia para determinada empresa ou setor, quando adia o pagamento de impostos ou contribuições, quando concede isenções de caráter não geral, quando reduz a alíquota de um tributo ou muda sua base de cálculo para conceder um tratamento preferencial a um grupo de contribuintes específico. Nestes casos, há uma renúncia de receita. Ou seja, o governo deixa de arrecadar.

Bolsonaro disse que a Ford não informou o verdadeiro motivo de sua saída do Brasil. Segundo o presidente, a empresa americana deixou o país porque o governo não aceitou dar a ela mais subsídios. Ele afirmou que, ao longo do tempo, a empresa recebeu R$ 20 bilhões dos cofres públicos sob a forma de incentivos. A verdade é que, desde que a indústria automobilística se instalou por aqui, ela fez pressão contínua sobre os dirigentes do país por benefícios tributários e creditícios que lhe garantissem a rentabilidade.

Dados da Receita Federal mostram que, de 2011 a 2020, o gasto tributário com o setor automotivo alcançou R$ 42,5 bilhões em valores correntes ou R$ 50,2 bilhões a preços de dezembro de 2020. Se a previsão para este ano for incluída na conta, o total sobe para R$ 48,5 bilhões, em valores correntes, ou R$ 56,1 bilhões, a preços de dezembro de 2020. O valor é quase duas vezes o que o governo gasta por ano com o programa Bolsa Família, que atende mais de 14 milhões de famílias carentes.

As empresas do setor automobilístico de qualquer região podem usufruir do programa Rota 2030, que prevê a dedução do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) do valor correspondente à aplicação da alíquota do IRPJ e da CSLL sobre até 30% dos dispêndios realizados no país, desde que sejam classificáveis como despesas operacionais e aplicados em pesquisa e desenvolvimento. Adicionalmente, podem realizar, com isenção, a importação de partes, peças, componentes, conjuntos, subconjuntos, acabados e semiacabados, e pneumáticos, todos novos e sem capacidade de produção nacional equivalente, destinados à industrialização de produtos automotivos.

As empresas montadoras e fabricantes de veículos automotores instaladas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste fazem jus a crédito presumido do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) como ressarcimento do PIS/Pasep e da Cofins, desde que apresentem projetos que contemplem novos investimentos e a pesquisa para o desenvolvimento de novos produtos ou novos modelos.

Vale lembrar que esses são apenas os gastos tributários federais. Muitas dessas empresas receberam vultuosos benefícios estaduais e municipais, desde vantagens relacionadas ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) até doações de terrenos para a instalação de suas unidades produtivas.

A montanha de subsídio não foi suficiente para evitar a atual crise por que passa o setor automobilístico brasileiro. Ao contrário, como disse ontem o economista Marcos Lisboa, em entrevista à “Folha de S. Paulo”, a crise no setor vem de longa data e era previsível que várias unidades se tornariam inviáveis. “Só não eram antes pela quantidade de subsídios, então ficamos reféns de dar incentivos para preservar a produção de algo não eficiente no país”, afirmou.

O setor automotivo não é, no entanto, o único a receber uma enxurrada de subsídios. Na verdade, nem sequer ocupa as primeiras posições. Há benefícios tributários em profusão para todos. Medicamentos, produtos farmacêuticos e equipamentos médicos recebem subsídios, assim como embarcações, aeronaves, gás natural, todos os produtos da cesta básica, biodiesel, motocicletas e água mineral, para citar alguns. São subsídios com prazos indefinidos e, a maior parte deles, sem avaliações conhecidas sobre os seus resultados.

O gasto com benefícios tributários passaram de 2% do PIB, em 2003, para 4,5% do PIB em 2015. De lá para cá, o governo tem obtido pequenas reduções, pois eles ficaram em 4,3% do PIB em 2018. Para 2021, o governo estima que eles fiquem pouco abaixo de 4% do PIB, embora ainda não tenha explicado como isso ocorrerá.

Desde 2018, os parlamentares tentam forçar o governo a definir uma estratégia de redução dos subsídios. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019, por exemplo, determinou que o governo apresentasse um plano de revisão dos subsídios, com um cronograma de redução de cada benefício para, no prazo de dez anos, diminuir a renúncia de receita para 2% do PIB. O plano foi apresentado ao Congresso, mas, até hoje, não foi divulgado oficialmente.


William Waack: Um duro recado

Para multinacionais como a Ford, o Brasil é visto como incapaz de sair do marasmo

saída da Ford do Brasil não é um veredicto contra o governo de Jair Bolsonaro. É um pouco pior. É um veredicto desagradável sobre o Brasil na comparação internacional – não importa quais tenham sido os erros (alguns óbvios, como produtos equivocados) da montadora em suas estratégias de mercado.

Em primeiro lugar, o que a postura da montadora indica é que afastados das principais inovações somos uma grandeza negligenciável em termos de tamanho de mercado. Ela está desmentindo a frase muito surrada, segundo a qual o Brasil tem um tamanho (em termos de mercado) que nenhuma multinacional pode se dar ao luxo de ignorar.

Em segundo lugar, a saída dela apenas confirma o que o setor industrial brasileiro vem “denunciando” há pelo menos uma década: o ambiente de negócios geral no País está piorando ao longo dessa linha do tempo – os últimos dez anos, durante os quais os benefícios tributários concedidos especialmente ao setor automotivo triplicaram em relação ao PIB, sem que viessem os esperados resultados.

Esse último aspecto é relevante para se entender qual é o “recado geral” que a saída da Ford está dando à sociedade brasileira. Na expressão consagrada pelo economista Marcos Lisboa, somos reféns da nossa postura da “meia-entrada”. Ela explica como o conjunto acaba pagando por aquilo que alguns não precisam pagar.

“Meia-entrada” – o subsídio, o incentivo, a renúncia fiscal – é entendida como um direito adquirido inalienável. Às vezes garantido pela Justiça (o que gera insegurança jurídica), às vezes negociado por lobbies bem-sucedidos (num Legislativo de baixa representatividade) ou reiterados por governadores e prefeitos engalfinhados em guerra fiscal. O resultado geral é o agravamento do estado no qual vegetamos há mais de uma década: economia semiestagnada, atrasada em produtividade, fechada, com baixa capacidade de competição especialmente no setor industrial.

Esse diagnóstico é de razoável consenso não só entre economistas, mas foi adotado também por várias correntes políticas. É a partir dele que o governo Jair Bolsonaro montou algumas de suas principais promessas eleitorais, traduzidas na intenção, manifestada pelo ministro Paulo Guedes, de “salvar a indústria contra os próprios industriais”. Ainda no começo de dezembro do ano passado Guedes afirmava que aproveitaria o momento de reorganizar a saída da dupla crise (econômica e sanitária) para “cortar subsídios” (ocorreu em parte quanto aos creditícios, mas não aos tributários).

No caso específico da Ford, informações de bastidores dão conta de que a decisão de sair do Brasil já tinha sido tomada em 2018, e foi adiada por razões exclusivamente políticas por parte da empresa: não queria dar a impressão de que o fazia (abandonar nosso país) por desaprovar o vencedor das eleições daquele ano. Se, de alguma maneira, a montadora antecipava que o ambiente de negócios brasileiros se alteraria de maneira positiva, perdeu até aqui a aposta e optou pelo “stop loss”.

Aqui voltamos ao “recado geral” deixado pela saída da Ford. É a constatação de que nossa política, não importa o partido no poder, não foi capaz de construir o grande consenso em torno da pauta da produtividade, da competitividade, das reformas estruturantes do Estado, do efetivo combate à desigualdade, miséria, injustiça social. E agora, distraída por reeleição, pandemia e sufoco fiscal, parece tão distante como sempre de criar a convergência necessária.

Evidentemente que a Ford ou qualquer outra grande corporação não é “juiz” dos nossos destinos nem ocupa qualquer posição “moral” para determinar o que somos ou deixamos de ser. Ou que jamais erre nas decisões de investir ou desinvestir. Mas o que ela acabou de fazer é um alerta gritante: lá fora estamos sendo vistos como capazes apenas de produzir mais do mesmo – e esse mesmo não é satisfatório.