comissão da verdade

general Eduardo Villas Bôas

Alvaro Costa e Silva: Como é boa a comida do quartel

Picanha, bacalhau, cerveja e uísque: não basta participar do governo; é preciso comer e beber bem

Em seu livro-depoimento, o general Eduardo Villas Bôas não trata de picanha nem de cerveja. Os assuntos abordados pelo comandante do Exército nos governos Dilma e Temer são mais indigestos: ataques ao politicamente correto e ao movimento antirracista, pressões e alertas ao STF contra o perigo de conceder habeas corpus a Lula, a luta pela preservação moral do país e a preocupação de as Forças Armadas não se envolverem em política.

O último apelo teve efeito contrário: um batalhão de militares da ativa e da reserva ocupa hoje cargos no governo. Portanto, não custaria nada ao general pedir que a caserna, num momento em que grande parte da população não tem o que comer, maneirasse o apetite. E os gastos.

Ao longo de 2020, as Forças Armadas usaram dinheiro público para comprar mais de 700 toneladas de picanha e 80 mil cervejas. Haja churrasco. De lombo de bacalhau, foram 140 toneladas; para rebater, caixas de uísque 12 anos. Desconfiados de superfaturamento nas aquisições, deputados enviaram uma representação ao procurador-geral da República. A ver no que vai dar (se é que vai dar em alguma coisa).

Em recente coluna (9 de fevereiro), lembrei meus tempos de recruta zero no forte de Copacabana. A alimentação funcionava em regime de castas, a dos soldados e cabos, a dos sargentos e a dos oficiais. Estes se reuniam no cassino para café da manhã, almoço, jantar e ceia. No rancho dos recrutas nunca comemos algo nem parecido com picanha. O prato de resistência tinha apelido: “galinha atropelada”. Dava para encarar. O maior sacrifício era o cardápio das terças: peixe. Não importando se frito ou ensopado, causava uma azia que só desaparecia na terça seguinte.

Nas corridas pelo calçadão da praia, o sargento dialogava aos berros com a tropa: “Ela é boa!”, ao que respondíamos: “Muito boa!”. “O que é que é boa?” “A comida do quartel!”.


Cristina Serra: Será possível mandar militares de volta para os quartéis?

 De volta à política 30 anos depois do fim da ditadura, eles ocupam milhares de cargos, acumulam salários, privilégios e benesses

O livro "General Villas Bôas - conversa com o comandante", do professor da FGV Celso Castro, joga luz sobre a atuação dos militares no período mais turbulento da história recente do país, que vai do impeachment de Dilma Roussef à eleição de Jair Bolsonaro.

A revelação mais importante é sobre o famoso tuíte do comandante do Exército, em abril de 2018, com ameaças ao STF na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula. Villas Bôas informa que o tuíte teve um "rascunho" e que foi "discutido minuciosamente" por generais do Alto Comando. Nas palavras do entrevistado: "Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente, até por volta das 20h, momento em que liberei o CComSEx [centro de comunicação do Exército] para expedição."

Sim, foi isso mesmo que você leu. Villas Bôas confessa que a tradição golpista segue firme e forte entre os fardados e que o topo da hierarquia do Exército tramou para afrontar a mais alta corte do Judiciário brasileiro. Qual o comando constitucional que autoriza militares a exercer tutela sobre o poder civil? Em nome de quem? Como se sabe, o Supremo rejeitou o HC de Lula, preso dias depois. E agora, STF?

Em meio a tortuosos raciocínios sobre geopolítica e um ego que transborda das páginas, Villas Bôas deixa claro que as Forças Armadas não engoliram a Comissão Nacional da Verdade ("foi uma facada nas costas"), dá versões duvidosas sobre alguns acontecimentos e faz comparações despropositadas. Uma delas: que a desintrusão de não indígenas da reserva Raposa Serra do Sol (RR) equivale aos "pogroms de Stalin" na extinta União Soviética.

De volta à política 30 anos depois do fim da ditadura, os militares ocupam milhares de cargos, acumulam salários, privilégios e benesses. De mãos dadas com Bolsonaro, também são responsáveis pela catástrofe que já custou a vida de 240 mil brasileiros, até agora. A grande dúvida é quando —e se— será possível mandá-los de volta para os quartéis.