colapso na saúde

William Waack: Cada um por si

A pandemia acelerou a já existente perda de autoridade do governo

Já é lugar comum afirmar que o maior efeito da pandemia ao redor do mundo foi o de acelerar ou agravar problemas já existentes. No caso do Brasil, ela escancarou a falta de governo, além da desigualdade, miséria e ignorância, mazelas bem antigas. No Brasil, a pandemia não “inventou” a má gestão pública nem o desperdício de recursos. Ela ensinou que não há governo efetivo sem capacidade de liderança política – outro problema do qual padecemos há tempos. 

A extraordinária incapacidade de Jair Bolsonaro para liderar e coordenar criou com a pandemia um fenômeno novo na política brasileira. É o cada um por si dos entes da Federação, e a instituição da dupla de primeiros ministros nas figuras dos presidentes das casas legislativas. Em linguagem militar, talvez ainda familiar a alguns ocupantes do Planalto, o Estado Maior da crise não está como deveria estar na Casa Civil e no Ministério da Saúde (instâncias do Executivo sob o comando nominal de generais) mas, na prática, foi para o Congresso

É nas casas legislativas que se decide agora o essencial para se tentar minorar os devastadores efeitos da maior tragédia da nossa história recente. É para lá que correm prefeitos e governadores na linha de frente do combate ao vírus. É lá que se negocia a aprovação de um mínimo de ajuda que impeça pessoas de morrer de fome. É lá que existe pressa e urgência para flexibilizar e acelerar a aquisição de imunizantes por quem quer que seja, incluindo empresas privadas. O arcabouço jurídico foi criado pelo STF, que transformou um de seus integrantes em virtual ministro da Saúde. 

Um resultado evidente dessa situação cujo alcance Bolsonaro não parece ter percebido ainda é a profunda desmoralização política associada a um governo visto como incompetente. Presidentes anteriores já foram desmoralizados por eventos abrangentes em parte piorados por eles mesmos, como ocorreu com Sarney/Collor (hiperinflação) e Dilma (recessão). No caso de Bolsonaro, além do estelionato econômico eleitoral do qual Paulo Guedes está se tornando cúmplice, é a pandemia que acelera perigosa desmoralização. 

A confluência de crise econômica, tragédia de saúde pública e incapacidade de liderança política (com seus graves riscos de populismo fiscal) compõe a “tempestade perfeita” mencionada por agências de classificação de risco ao publicarem no começo da semana cenários a curto prazo para o Brasil. O agravamento da crise de saúde pública faria as demandas sociais crescerem em ritmo mais rápido do que o “tempo político” necessário para a aprovação de medidas de contrapartida à continuidade da ajuda emergencial, trazendo ainda mais insegurança aos agentes na economia. 

Bolsonaro está no modo de sempre, dedicado a buscar culpados e livrar-se de responsabilidades. A aparente tranquilidade com que enfrenta um quadro que se agrava nitidamente vem de dois fatores proporcionados por sua estreita visão da realidade. O primeiro é a percepção de garantia política dada pela dupla de primeiros ministros – que, na verdade, mal controlam as próprias casas, como ficou demonstrado no episódio da PEC da imunidade ou impunidade dos parlamentares. 

O segundo é o aparente conforto trazido pelo aparelhamento das instâncias superiores do Judiciário – nomeações “casadas” para o STJ e STF, em estreito entendimento com os movimentos políticos evangélicos. Percalços jurídicos policiais de curto prazo em relação à família do presidente estão afastados, ao mesmo tempo em que não existe nada remotamente parecido à presença de uma Lava Jato para criar dificuldades políticas agudas para o atual governo (como aconteceu com Dilma). 

Desmoralização é um fenômeno político forte e de difícil reversão, que costuma nascer e se propagar primeiro nos vários componentes de elites (administração pública, setores empresariais e financeiros, profissionais liberais, elites culturais em sentido amplo). A perda de autoridade de Bolsonaro já se fazia sentir antes da pandemia, fato demonstrado pela maneira como o Legislativo e o STF encurtaram seu poder. A pandemia, como se diz, acelerou o que já existia. 


Merval Pereira: O futuro não chega

A aposta parecia factível em 2003. Se o Brasil crescesse em média 3,6% ao ano, chegaria em 2050 a ser a quinta economia do mundo, ultrapassando a Itália em 2025, a França em 2031, Inglaterra e Alemanha em 2036. Ela constava de estudo da Goldman Sachs que lançou ao mundo a sigla Brics, países que eram vistos como o futuro da economia mundial: Brasil, Índia, Rússia e China.

Mas a projeção não levou em conta peculiaridades brasileiras, como o maior escândalo de corrupção já desvendado no país, quiçá no mundo, uma crise econômica provocada por uma presidente que acabou impedida pelo Congresso de continuar governando, a chegada ao governo de um capitão tresloucado, uma pandemia que mata mais de 1.800 pessoas por dia. Resultado: a economia brasileira teve um crescimento na última década de pífio 0,3% ao ano, com o resultado de 4,1% negativos anunciado ontem pelo IBGE.

Após crescer 4,7%, em média, durante o período de 2004 a 2007 e de se expandir em 5,2% em 2008, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, em 2009, caiu 0,3%. De 1990 a 2003, o crescimento médio foi de 1,8%; de 80 a 2003, 2%. Essa média cresceu um pouco com o resultado dos 8 anos do governo Lula, que teve um crescimento médio de 4% ao ano, mas voltou ao nível de 2% no governo Dilma.

O país já teve também períodos de crescimento sustentado de níveis asiáticos: de 1950 a 1980, média de 7,15%; de 1960 a 1969, média de 6,12%; de 1970 a 1979, de 8,78%. O problema é que já tivemos crescimento médio de 5,3% durante 50 anos, mas ele caiu nos últimos 40 anos, crescendo menos que o PIB mundial. Entre 1981 e 1990, o PIB brasileiro cresceu a mísero 1,55% ao ano. Daí até 2000, o crescimento médio foi de 2,65% ao ano, até 2010 chegou a 3,7%, retomando a performance prevista pela Goldman Sachs.

De um país que era visto como o futuro da economia mundial, junto com Rússia, Índia e China (Brics), o Brasil perdeu quase metade de sua participação no PIB do mundo nos últimos anos. Em 1980, representava 4,3% e, nesta década, passará a menos de 2,5%. O estudo da Goldman Sachs, coordenado pelo economista Jim O’Neill, lançado em 2003, mas com a medição a partir de 2000, mostra que o Brasil manteve-se no trilho da projeção até 2014, quando a crise do segundo governo Dilma jogou o número para baixo.

O economista Robinson Moraes, coordenador de pesquisa econômica do jornal “Valor”, fez uma projeção para o crescimento do Brasil nas duas últimas décadas, comparando com o previsto pelo estudo americano: deveríamos ter crescido 101,7% nos últimos 20 anos e crescemos apenas 43,6%. O Brasil, que no começo da década era a sétima economia do mundo, passou a cair de posição a partir de 2014, chegou a oitava economia em 2017, a nona até 2019 e hoje encontra-se na 12ª posição entre as maiores economias, ultrapassado por Canadá, Coreia do Sul e Rússia.

O ministro Paulo Guedes, numa espécie de recado metafórico, disse que, se o país tomar o rumo errado, dentro em pouco seremos uma Argentina, ou talvez até Venezuela. Isso na semana em que se debatia a intervenção do presidente Bolsonaro na Petrobras, para controlar o reajuste de preços da gasolina (“o cidadão tem que encher o tanque do carro”, disse o futuro presidente da Petrobras, general Joaquim Luna e Silva) e do diesel, por causa dos caminhoneiros.

A desmoralização que vem sofrendo com as seguidas intervenções do presidente na área econômica — também o Banco do Brasil vai trocar seu presidente, que pediu para sair depois que Bolsonaro estranhou o fechamento de agências — parece ter colocado Guedes em posição de aguardo. Está tentando a última cartada, apostando no compromisso do presidente da Câmara, Arthur Lira, de levar adiante as reformas.

Mas, se ficar aguardando essa boa vontade dos parlamentares e o engajamento de Bolsonaro, pode ficar sem tempo de reagir. A partir do segundo semestre, não haverá mais espaço para discussão de reformas, ainda mais as impopulares, como a administrativa, e as difíceis, como a tributária. Guedes também alertou que, se quisermos ser igual à França ou à Alemanha, teremos que fazer um esforço para o outro lado, durante bons 20 a 30 anos. Em 2050, onde estaremos?


Miguel Nicolelis: 'Brasil pode cruzar a marca de 3.000 óbitos diários por covid-19 nas próximas semanas'

Cientista defende um ‘lockdown’ nacional para evitar colapso sanitário. “Vamos entrar numa situação de guerra explícita. Podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”

Felipe Betim, El País

Médico, neurocientista e professor catedrático da universidade Duke (EUA), Miguel Nicolelis coordenou ao longo da pandemia de coronavírus o Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a covid-19. Deixou o grupo no final de fevereiro após meses traçando previsões e orientando os governadores sobre quais medidas deveriam tomar para conter a curva de contágios e evitar o colapso de hospitais públicos e privados. Uma catástrofe que, afirma em entrevista ao EL PAÍS por telefone nesta quarta-feira, está prestes a ocorrer. “Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”, afirmou o médico, que também é colunista deste jornal.

Na conversa, ele afirma que, de acordo com seus cálculos, nos próximos dias o país começará a registrar 2.000 mortes diárias. Horas depois, o Ministério da Saúde registrou 1.910 mortes por covid-19, mais um recorde. “A possibilidade de cruzarmos 3.000 nas próximas semanas passou a ser real”, prevê. Ele argumenta que aumentar o número de leitos já não adianta e que a única saída é decretar um lockdown nacional pelas próximas três semanas.

Pergunta. O que esperar para as próximas semanas ou dias?

Resposta. Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos. A possibilidade de cruzar 2.000 óbitos diários nos próximos dias é absolutamente real. A possibilidade de cruzarmos 3.000 mortes diárias nas próximas semanas passou a ser real. Se você tiver 2.000 óbitos por dia em 90 dias, ou 3.000 óbitos por 90 dias, estamos falando de 180.000 a 270.000 pessoas mortas em três meses. Nós dobraríamos o número de óbitos. Isso já é um genocídio, só que ninguém ainda usou a palavra. O que são 250.000 mortes sendo que a vasta maioria poderia ter sido evitada?

P. São Paulo voltou para a fase vermelha e fechou comércios e serviços não essenciais. O que pode acontecer com o Estado?

R. Acho que São Paulo vai colapsar. Campinas já colapsou. Rio Preto colapsou. Ribeirão Preto está no mesmo caminho. A cidade de São Paulo não vai aguentar. O Hospital Emilio Ribas já está 100% e com fila de espera. O Hospital das Clínicas, que tem um dos maiores números de leitos de UTI do Brasil, está com 80% de ocupação e vai colapsar.

P. Estados têm apostado na abertura de novos leitos. Abrir novos leitos adianta?

R. Não tem mais médico, não tem mais enfermeiro. Todo mundo sabe, e os políticos sabem também, que a velocidade de crescimento do vírus é exponencialmente mais veloz que a capacidade de criar, equipar e por gente no leito de UTI. Não tem como combater isso criando mais vagas nos hospitais. É a típica estratégia de maquiagem. Aumenta os leitos, mas os leitos às vezes nem funcionais estão, mas vão para a conta e diminui a taxa de ocupação.

P. O que fazer então? Os governadores e secretários da Saúde pressionaram nesta semana o presidente Jair Bolsonaro por medidas.

R. É precisodecretar lockdown de pelo menos 21 dias e pagar um auxílio financeiro para que as pessoas fiquem em casa. Os governadores sabem que o Governo Federal não vai fazer nada, estão querendo empurrar a responsabilidade. Estou sugerindo desde de novembro de criar uma Comissão Nacional com a sociedade civil, governadores e Supremo, que precisa decretar uma tutela judicial no Ministério da Saúde. Uma intervenção. E essa Comissão Nacional ficaria responsável por tomar decisões e supervisionar toda a logística.

P. Mas a população já não respeita as medidas de restrição. Acataria um lockdown?

R. A população nunca teve uma mensagem correta da gravidade da pandemia porque não temos nenhum estadista no país. As pessoas estão falando de sucessão presidencial em 2022 quando o país está morrendo na pandemia. Faltou decisão política e visão estratégica. Faltou as pessoas eleitas pensarem não nos lobbys econômicos e políticos que as sustentam, mas nos cidadãos como prioridade. É preciso bancar uma decisão. John Barry, o maior historiador norte-americano de pandemias, escreveu que, mesmo com a ciência moderna, o que decide o destino de uma sociedade na pandemia é a decisão política, a opção política dos líderes de defender a população. Por isso que você é eleito, para liderar mesmo nos momentos em que a coisa correta a ser feita é impopular. É preciso convencer a população de que aquilo precisa ser feito.

P. Caso não haja lockdown nacional, como tudo indica... O vírus não tem uma dinâmica própria, em que o contágio sobe muito, chega a um pico e depois começa a descer por causa da sazonalidade, entre outras questões?

R. Não quando se tem um vírus mutando fora de controle e se novas variantes são mais letais e mais contagiosas. Cada variante tem sua dinâmica própria. Como você falou, cresce, chega ao pico e cai. Mas se você tem dezenas de variantes superpostas umas nas outras... Acabaram de detectar a variante da Califórnia em Minas Gerais, porque alguém veio de avião dos Estados Unidos e trouxe ela. Nós recomendamos fechar os aeroportos em agosto. Repetimos em setembro. E evidentemente a Infraero não deu bola. Temos no Brasil a reunião de todas as variantes, inclusive as nossas próprias. Essa é a bomba relógio.

P. Sendo assim, quem teve covid-19 meses trás pode acabar se reinfectando?

R. Se você foi contaminado com a variante inicial brasileira, os anticorpos que você desenvolveu são nove vezes menos eficientes para combater a nova variante amazônica. Por que temos que tomar a vacina contra a Influenza a cada ano? Porque as variantes surgem. Mas o que estamos tendo de número de infecctados do coronavírus é muito grave, então a chance do vírus mutar é muito maior.

P. Você mencionou em outra entrevista a possibilidade de colapso funerário. Como isso pode se dar?

R. Porto Alegre já está entrando, um hospital teve de comprar containers para estocar os corpos porque não estava dando conta de manejá-los. Isso é Manaus. A população cidade de São Paulo é nove vezes maior que a de Manaus. A Grande São Paulo é 20 vezes maior. Se a cidade São Paulo cai, todo o Estado de São Paulo cai. É como uma guerra mesmo: quando um batalhão importante cai, todas as forças armadas são comprometidas. É um efeito cascata. Minha metáfora é que somos Stalingrado, estamos cercados neste momento.


Marcos Fuch: Brasil avança na epidemia do autoritarismo

Estudo em parceria com a Conectas antecipado pelo EL PAÍS em janeiro revelava como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas à pandemia. Operação de sabotagem segue sendo realizada por Bolsonaro mesmo diante de colapso da rede de saúde

A defesa primordial da vida deveria ser o direito mais básico a ser tutelado pelo Estado, mas a resposta brasileira ao enfrentamento da covid-19 não tem priorizado a proteção da vida e da saúde dos brasileiros. Um recente estudo realizado pelo Cepedisa (Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário) da USP, em parceria com a Conectas, com base em mais de 3.000 normas produzidas pela União desde o início da pandemia, revela como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia. O levantamento foi obtido com exclusividade pelo EL PAÍS no fim de janeiro.

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A mesma pesquisa avaliou a propaganda contra a saúde pública, como o discurso político que mobilizou argumentos econômicos, ideológicos e morais com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas e promover o ativismo político contra as medidas necessárias para conter o avanço da doença.

Mesmo diante do colapso iminente do sistema público e privado de saúde em diferentes estados, o presidente Jair Bolsonaro segue atacando os gestores públicos que optam por adotar as necessárias―e impopulares ― medidas de distanciamento social. Enquanto as campanhas de vacinação não decolam, o distanciamento social e o uso da máscara são as medidas mais eficazes apontadas por autoridades sanitárias de todo o mundo para reduzir a rapidez do contágio do novo coronavírus e de suas novas variantes.

Ao ir na contramão da ciência, aprofundando a negligência e o negacionismo, temos observado uma estratégia de uso da pandemia para implementar a agenda Bolsonaro de retrocessos sociais e de retirada de direitos. O próprio ministro Ricardo Salles acabou por nos alertar quando, em reunião ministerial de abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado após determinação do Supremo, declarou a intenção de aproveitar os holofotes direcionados à cobertura da covid-19 para “passar a boiada” do desmonte da proteção ambiental.

A pandemia foi usada como justificativa, por exemplo, para restringir direitos trabalhistas, alterar a Lei de Acesso à Informação, intervir na escolha de reitores das universidades federais e até para tentar mudar o rito de aprovação de medidas provisórias e, com isso, oferecer poderes plenos ao presidente de legislar sem intervenção de outros poderes. Muitas dessas medidas foram revertidas pelo Supremo ou pelo Congresso, impondo derrotas ao governo, mas intensificando os desgastes das instituições democráticas.

Houve ainda outros episódios que atacaram frontalmente os princípios do estado democrático, como quando se tirou do ar os dados epidemiológicos da covid-19, incentivou a invasão de hospitais de campanha ou promoveu aglomerações em protestos que pediam intervenção no STF (Supremo Tribunal Federal).

O Governo Bolsonaro também usou a pandemia como forma de atacar ou retirar direitos de minorias, como indígenas e quilombolas, migrantes e refugiados e a população carcerária ― todos grupos altamente vulneráveis aos efeitos do coronavírus e que antes mesmo da pandemia vinham sofrendo retiradas de direitos pelo Governo Bolsonaro.

Os indígenas e quilombolas precisaram recorrer ao STF para obrigar a União a elaborar um plano de contingência contra a pandemia que respeitasse suas necessidades. O Executivo Federal chegou a vetar, de um projeto de lei aprovado pelo Congresso de proteção às populações indígenas no contexto da covid-19, itens tão básicos como garantir o suprimento de água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.

No que se refere aos direitos dos refugiados, desde março de 2020 o governo promove restrições seletivas a pessoas provenientes da Venezuela, país assolado por grave e generalizada crise de direitos humanos. Sob a justificativa de conter a pandemia, refugiados que consigam chegar na fronteira são impedidos de pedir proteção no Brasil e são sumariamente deportados, ainda que turistas sejam permitidos de entrar por via aérea e a fronteira com Paraguai seja a única terrestre aberta, e a despeito de a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) não apresentar uma recomendação neste sentido.

Por fim, a população carcerária, altamente exposta a infecções em razão das condições insalubres e de superlotação dos presídios brasileiros, não foi nem ao menos considerada como grupo prioritário da campanha de vacinação elaborada pelo Ministério da Saúde. As audiências de custódia, aquelas em que a pessoa presa em flagrante deve passar diante de um juiz no prazo de 24 horas para verificar a legalidade da prisão, seguem sendo realizadas por videoconferência na maioria dos estados ― algo que limita a capacidade de identificar indícios de tortura.

Se ainda não sabemos como, por quanto tempo e em quais circunstâncias teremos que conviver com a pandemia, podemos assegurar que os estragos do autoritarismo e conservadorismo que assolou o Brasil levarão anos para serem superados. Enquanto a maior pandemia da história recente já cobrou mais de 255 mil vidas no Brasil, experimentamos o avanço acelerado da epidemia do autoritarismo que corrói as instituições democráticas e ataca o pacto social estabelecido pela Constituição de 1988.

Marcos Fuchs é diretor da ONG Conectas Direitos Humanos