Cláudio Gonçalves Couto

Cláudio Gonçalves Couto: Golpismo e destruição

Não é só o discurso de Bolsonaro que atenta contra a democracia, mas também medidas concretas de articulação autoritária

Com o Brasil à beira de atingir 300 mil mortos oficiais por covid-19, o presidente Jair Bolsonaro achou por bem se refestelar com seus apoiadores, à frente do Alvorada, no dia de seu aniversário. Fosse só isso, seria indecoroso, mas não ultrapassaria os limites do que a democracia admite. Contudo, houve mais. Novamente o chefe do governo federal investiu contra seus pares nos Estados, acusando-os de serem tiranetes e emendando: “Podem ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade.”

Ou seja, o presidente da República sugeriu que contra a “tirania” de governadores e prefeitos - que apenas exercem suas competências constitucionais no combate à pandemia - pode usar o poder armado dos militares por ele chefiados e, ainda, mobilizar suas tropas civis - formadas por aqueles que ajuda a armar. Não é novidade. Na famigerada reunião ministerial tornada pública por decisão do ex-ministro do STF, Celso de Mello, Bolsonaro deixou claro que armava as pessoas para que pudessem se insurgir contra governadores e prefeitos cujas ações divergem das que preconiza.

Ainda na festa de aniversário, o presidente disse: “Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.

O que é “esticar a corda” nesse caso? É não lhe obedecer? É seguir políticas distintas daquelas por ele preferidas, optando pelo que preconizam autoridades sanitárias e científicas mundo afora? Por que isso seria “esticar a corda” e não apenas atuar como governos subnacionais autônomos numa federação? Ou ainda, na realidade, não é ele quem estica a corda, desrespeitando a autonomia política dos entes federados?

Bolsonaro é incapaz de reconhecer como legítima qualquer ação que não lhe seja subserviente - e isso, mesmo quando promovida por quem não lhe deve obediência alguma. Diante disso, como fazem os populistas autoritários (com o perdão da redundância), recorre ao “seu povo” - composto apenas por aqueles que o apoiam e seguem. Ao dizer que esse povo particular compõe, junto com as “suas” Forças Armadas, um corpo de combate em prol da sua noção também particular de democracia ¬- que contempla apenas esse povo particular -, Bolsonaro ameaça com um golpe de Estado. Não há como interpretar diferentemente, considerando a forma como trata atores políticos que a ele se opõem ou simplesmente não se curvam.

Alguém poderia replicar que Bolsonaro apenas diz que fará “qualquer coisa... que está na nossa Constituição” (o presidente tem fixação por pronomes possessivos). O problema é que a leitura constitucional bolsonarista também é muito particular. Não fosse, ele reconheceria as competências de Estados e municípios, o papel do governo federal como coordenador (mas não comandante) de políticas intergovernamentais e a decisão do STF relativa a isto - que não lhe desobrigou de nada, pelo contrário. Portanto, quando Bolsonaro invoca a Constituição é preciso ter clara a forma como a interpreta. E, assim como em todos os outros casos, ele a vê como mero instrumento de seus objetivos e desejos particulares.

Fossem apenas palavras ao vento, seria grave, mas não tão perigoso. O problema é que o presidente toma providências concretas. Ao aboletar milhares de militares em cargos comissionados, com suas respectivas gratificações, Bolsonaro aparelha o Estado e coopta o segmento armado da burocracia pública. Ao dar a esse mesmo grupo benesses corporativas, como o singular aumento previsto no orçamento, reforça essa cooptação. Por esses meios, busca de fato tornar “suas” as Forças Armadas.

Já com as normas sobre armas baixadas pelo Executivo, o presidente municia grupos na sociedade com os quais tem vínculos antigos e que lhe apoiam - notadamente os Clubes de Atiradores e Caçadores (CACs). Ao transferir a tais organizações privadas até mesmo a prerrogativa eminentemente estatal de certificar quem está ou não apto a se armar, Bolsonaro facilita a criação de potenciais tropas de assalto privadas. É esse “povo” que compõe seu exército, ao lado dos verde oliva - como ele mesmo disse. Portanto, as diatribes bolsonarescas não são meras palavras ao vento; elas têm lastro na construção de uma aliança armada e apostam na violência como solução para os impasses políticos em que a liderança de Bolsonaro enreda o país.

Em paralelo a essa construção de um poder paralelo, ocorre também uma desconstrução. Desde o começo, a Presidência de Bolsonaro tem obrado para desmontar instituições, políticas públicas longamente consolidadas, espaços de participação democrática e noções de convivência política e social. A devastação ambiental, a radicalização política, o ataque violento e intimidatório a críticos e à imprensa não alinhada, bem como as mortes evitáveis produzidas pelo descalabro sanitário, tudo é resultado de iniciativas governamentais claras - não são ocorrências fortuitas.

Esse desmonte favorece o cenário de caos, em que o recurso a soluções extremas e ilegais se torna mais propício. O ambiente anômico esboçado pela greve dos caminhoneiros, em 2018, tornou mais plausível o discurso extremista do então candidato, Jair Bolsonaro. O colapso sanitário e econômico que agora se produz, por empenho do próprio governo que o deveria mitigar, novamente abre espaço para aventuras.

O contrapeso vem do fato de que a Bolsonaro se opõem, cada vez mais fortemente, atores de peso no concerto político, como governadores, empresários, órgãos de imprensa e lideranças internacionais - que se dão conta da ameaça por ele representada e do estrago que promove. Esses atores têm dois desafios pela frente: primeiro, deter a escalada autoritária e destruidora do presidente da República, talvez o apeando do cargo; segundo, preparar-se para um logo e penoso processo de reconstrução nacional, que será inescapável diante da destruição humana, ambiental, institucional social e econômica produzida pelo bolsonarismo.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP


Cláudio Gonçalves Couto: Quando o rabo abana o cachorro, ou a eterna volta do Centrão que nunca se foi

Pressionado pelas ameaças de impeachment e pelas investigações que o acossam, Bolsonaro inverteu a lógica do presidencialismo de coalizão com as eleições de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco

Durante seu primeiro ano e meio de mandato, Jair Bolsonaro tentou cumprir uma promessa impossível que fez a seus eleitores, mas que a bem da verdade fez mesmo foi a si próprio: governar sem base de sustentação no Congresso. No país do presidencialismo de coalizão, Bolsonaro fez muitos crerem (e talvez ele mesmo tenha acreditado) que montar uma coalizão presidencial decorreria de uma escolha do presidente, em vez de ser uma imposição institucional. O apoio desbragado de seu Governo a Arthur Lira na Câmara e a Rodrigo Pacheco no Senado mostraram que, ao menos momentaneamente, o chefe de Governo cedeu à realidade do funcionamento de nosso presidencialismo multipartidário.

coalizão que Bolsonaro agora monta, contudo, tem lá suas particularidades. Primeiramente porque, diferentemente de seus antecessores, o atual mandatário não dispõe de um partido que possa capitanear essa aliança. Sarney contou com o velho PMDB, FHC com o PSDB e Lula com o PT. Jair dinamitou as relações com a legenda de ocasião pela qual se elegeu e para cujo inchaço contribuiu —o PSL. No lugar dela, ficou sem nada, já que a tentativa de construir o Aliança pelo Brasil naufragou miseravelmente. O resultado imediato desse fracasso foi o grande fiasco presidencial nas eleições municipais, em que o presidente não dispôs de uma agremiação sua, que pudesse fazer crescer e reforçar sua base país afora —para além do insucesso quase geral dos candidatos avulsos apoiados por ele.

O outro desdobramento dessa situação aparece agora. O presidente é mais caudatário de uma coalizão legislativa à qual aderiu do que o contrário. Durante obiênio de Rodrigo Maia se falava em parlamentarismo branco, uma analogia imprecisa para descrever o que era, na realidade um Governo congressual. Nesse contexto, o Executivo, indisposto a articular uma base parlamentar e incapaz de liderar o processo legislativo, reivindicava os méritos pela aprovação de medidas que, embora convergissem com sua agenda na área econômica, eram aprovadas mais a despeito do que graças ao Governo. Não à toa colheu seguidas derrotas na derrubada de vetos, caducidade de medidas provisórias e irrelevância congressual da pauta reacionária de costumes.

Pressionado pelas ameaças de impeachment e pelas investigações que o acossam, acossam seus familiares e apoiadores radicais, Bolsonaro inverteu a lógica do presidencialismo de coalizão, em que os partidos do assim chamado Centrão aderem ao Governo do dia em troca de benesses estatais —razão pela qual entendo que sejam mais bem definidos como partidos de adesão. Em vez disso, é Bolsonaro que adere a eles, mostrando que por vezes, na política, ocorre de o rabo abanar o cachorro.

Tal inversão é reveladora não só da fragilidade estrutural desse Governo —dependente que é da proteção dos partidos de adesão por meio de uma coalizão defensiva—, mas também do quão tênue é a conversão de Bolsonaro à moderação democrática inerente ao presidencialismo de coalizão. O presidente da segunda metade do mandato não se tornou mais comedido; apenas recuou. Para isso, lançou mão dos vultosos recursos disponibilizados pelo “orçamento de guerra” da pandemia para cooptar a maioria que elegeu Arthur Lira, provocando rachas em partidos que até então mantinham certa independência com relação ao Executivo, como o DEM, o PSDB e o MDB.

O caso do DEM é particularmente notável e merece comentário à parte. A agremiação logrou, durante os anos petistas, manter-se na oposição. Isso levou à sua diminuição congressual, com parlamentares menos programáticos abandonando o barco e rumando para os partidos de adesão que constituíram a base fisiológica das coalizões petistas (PP, PL/PR, PTB, PRB, PSD, PMDB). A longa travessia no deserto pareceu ser recompensada com a entrada no Governo Temer, a conquista da presidência da Câmara por Rodrigo Maia e o bom desempenho nas últimas eleições municipais. Ou seja, o DEM mostrou não se tratar de um partido de adesão —à diferença do PMDB. Mas eis que agora o partido sucumbe ao fisiologismo e ao regionalismo (notadamente o baiano), embarcando de vez na nau adesista. Embora tenda a render frutos no plano regional, tal manobra reduz muito a capacidade do partido de liderar uma coligação competitiva nas próximas disputas presidenciais. Afinal, partidos programaticamente invertebrados têm dificuldade de se incumbir dessa tarefa.

É bem verdade que para esse desfecho contribuiu decisivamente o estilo imperial e a voracidade de Rodrigo Maia. Ao mesmo tempo que se indispôs com os colegas de Câmara, dispensando-lhes mais desdém do que atenção, apostou demasiadamente na possibilidade (sempre algo dissimulada) de uma nova recondução à presidência da Casa. Seu fracasso nesse intento acabou por levar de roldão também as pretensões de seu colega de partido e então presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Com isso, Maia não apenas se isolou no DEM e fora dele, mas perdeu o timing para construir sua sucessão. Quando tentou fazê-lo, Lira já estava muitas braçadas à frente, contando ainda com o substancial auxílio da busca aflita do Governo por proteção congressual. Ambição em excesso (como na relutância em construir um sucessor para valer) e não fazer as coisas no tempo certo são dois erros mortais que frequentemente acometem políticos até então bem-sucedidos, mas inebriados com o próprio sucesso. Costumam custar caro, como mostram tantos casos na história.

A questão agora é saber se o Governo Bolsonaro terá mais do que proteção congressual, ao menos enquanto compensar para os partidos de adesão e suas lideranças se manterem atrelados ao barco governista. No Senado, a maioria que elegeu Pacheco contra a candidata identificada com o lavajatismo, Simone Tebet, congrega forças que estão muito longe de apoiar o bolsonarismo e suas agendas —como PT, PDT e Rede. Na Câmara, embora Lira não tenha tido o apoio dos partidos da oposição de esquerda, contou com votos que ultrapassam em muito as hostes bolsonarescas, e que dificilmente se repetirão quando (e se) temas da pauta reacionária de costumes forem a votação. Ou seja, uma coisa é ter apoio suficiente para evitar um impeachment, CPIs incômodas e outras iniciativas tormentosas —ou seja, uma base defensiva. Outra, bem diferente, é fazer avançar uma agenda própria altamente controversa, contando para isso com os votos de uma coalizão que o Governo não lidera, pois em vez de ela ter aderido a ele, foi ele que aderiu a ela.

E tudo isso, claro, sem contar com a forma como tal base se comportará caso se mantenha a queda de popularidade do atual presidente. Nessa frente, as perspectivas não são das melhores, tendo em vista a situação econômica, a condução na pandemia e, por último, mas não menos importante, a decepção que Bolsonaro provocou em boa parte de seus antigos eleitores ao fazer justamente aquilo que prometera combater: a velha política do Centrão —ainda que em sua versão invertida.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV EAESP, produtor do canal do YouTube e podcast ‘Fora da Política Não há Salvação’.


Cláudio Gonçalves Couto: Como destruir um país

Se há algo que o Brasil bem fazia, era vacinar

A agenda do combate à corrupção culminou, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro. Trata-se de agenda negativa pois, mais do que propor um programa de governo, alardeia a necessidade de limpar o país. Um dos equívocos dessa agenda (não o único) está na suposição de que, feito isso, o resto se resolve sozinho, ou quase.

Contra “a roubalheira do PT”, o que alguns definiram como uma “escolha difícil” foi, para outros, uma decisão fácil: “Bolsonaro e os militares, pelo menos, não são corruptos”, diziam. Que o republicanismo não é atributo dessa turma já ficou evidente na tour de force em defesa do clã Bolsonaro e suas rachadinhas, bem como nas benesses concedidas a militares pela atual gestão - por exemplo, ganharam um novo plano de carreira, enquanto outros foram agraciados com a reforma previdenciária; e asseguraram um cabideiro de empregos federais suficiente para toda a seção de roupas da Riachuelo. Claro, sem esquecer do casamento tardio com o Centrão, apesar de todas as invectivas bolsonaristas e militaristas contra o que se chamava de “velha política”. Foi noutro dia que o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, cantarolou: “E se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão...”.

Se o combate à corrupção definitivamente não é objetivo desse governo, o que lhe resta? Talvez a agenda liberalizante de Paulo Guedes, diriam. Quanto a essa, durante o primeiro ano, o que avançou em termos de reforma se deveu não ao Executivo (que, quando muito, não atrapalhou), mas ao Congresso e, em especial, à coalizão legislativa liderada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Um número interessante diz respeito ao plano de privatizações: o governo Bolsonaro, com Salim Mattar à frente, privatizou menos do que a gestão petista de Lula, no mesmo espaço de tempo. Isso significa.

Se não é corrupção, nem economia, é preciso procurar noutros lugares. Certamente o governo levou adiante seus objetivos nas áreas ambiental (com a devastação promovida por Ricardo Salles), cultural (com o desmonte das políticas e a captura ideológica e sectária dos órgãos do setor), da violência (com a facilitação do armamento popular e a dificultação do rastreio de armas e munições), da política externa (com a transformação do Brasil num pária internacional e a multiplicação por mais de 17 vezes do gasto em publicidade governista no exterior), de direitos humanos e participação cidadã (com o desmonte dos órgãos participativos na administração federal, assim como o ataque a políticas de ação afirmativa e proteção a grupos vulneráveis), na educação (com o vilipêndio da autonomia universitária, nomeando-se dirigentes estranhos ao processo legal de escolha) e na saúde, pela sabotagem a políticas de combate à pandemia e pelo aparelhamento militarista do Ministério e da Anvisa.

Nota-se que temos, portanto, um governo que em vez de promover uma agenda positiva de políticas e reformas institucionais, opera para destruir o que foi longamente edificado. Não digo aqui construído desde o início da redemocratização, pois mesmo políticas e instituições geridas anteriormente a ela, obras inclusive dos governos da ditadura militar, têm sido devastadas.

Tendo em vista a situação que vivemos, em meio à pandemia, um aspecto merece destaque. O ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, acompanhado na pasta por seu exército de Brancaleone, tem conseguido a proeza de perturbar o funcionamento de uma das políticas sanitárias mais bem sucedidas do mundo em desenvolvimento e, por isso mesmo, uma das iniciativas mais longevas e positivas dos governos militares: o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que remonta ao governo de Ernesto Geisel (aquele presidente que considerava Bolsonaro um “mau militar”).

O PNI foi edificado a partir da bem-sucedida Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), que operou sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS, esse órgão “globalista”, no léxico olavista do chanceler Ernesto Araújo) e da Organização Pan-americana da Saúde (Opas, um órgão que bolsonaristas creem estar a serviço da Cuba comunista). Essa campanha visava retirar o Brasil da condição de último país das Américas em que a varíola ainda era endêmica e foi levada a cabo pelo presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro mandatário do regime militar.

Embora artífice de uma ditadura fardada, Castelo e seus companheiros percebiam a importância de cooperar com organismos internacionais e combater doenças por meio da vacinação. Hoje, Bolsonaro, Pazuello e seus colegas de armas sabotam diuturnamente a vacinação. Ora pelas dúvidas lançadas pelo presidente sobre a necessidade ou a segurança de imunizantes desenvolvidos pela comunidade científica mundo afora; ora pela barbeiragem logística capitaneada por Pazuello, incapaz de adquirir seringas e agulhas para mais do que 2% da necessidade. E há ainda as declarações do presidente, afirmando que não se vacinará, ou do general da saúde, afirmando que não é preciso ansiedade diante de uma doença que (em conta subestimada) já dizimou 200 mil brasileiros e, nos últimos dias, abate mais de mil cidadãos a cada 24 horas.

Tendo em vista nosso histórico, expertise e estrutura (assegurada a partir de 1988 pelo SUS) em políticas de imunização, o Brasil deveria estar entre os primeiros países do mundo a iniciar a vacinação de seus habitantes. É difícil imaginar que qualquer um dos concorrentes de Bolsonaro em 2018 fosse capaz de tamanha proeza: procrastinar deliberadamente o início da vacinação num país que, desde os anos 1970, é exemplo internacional de boas políticas nessa área.

Em consonância com a agenda destruidora nos demais setores (apontados acima), a desconstrução que se opera na saúde, de forma geral, e nas políticas de imunização, particularmente, é o que melhor caracteriza o governo de Bolsonaro e seus generais.

Não se trata apenas de incompetência, embora se trate também dela; o que vemos levado a cabo por esse governo é um claro projeto de destruição.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP


Cláudio Gonçalves Couto: Bolsonarismo e lava-jatismo

Moro não teria como ser um limitador do autoritarismo de Bolsonaro, pois sua concepção da política é similar à do chefe

Quando o então juiz, Sergio Moro, foi convidado para o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, houve quem acreditasse que ele seria aquele capaz de colocar freios aos notórios ímpetos autoritários do presidente eleito. Moro era visto por esses otimistas como possível bastião do estado de direito num governo cuja liderança principal nunca lhe demonstrara apreço. O curioso otimismo talvez se justificasse se fosse Moro, ele mesmo, em sua carreira de magistrado, referência para a defesa do império da lei, dos direitos individuais e do devido processo legal. Contudo, quando se considera o que foi a Operação Lava-Jato, não é esse o quadro.

Conduções coercitivas a rodo, de pessoas que sequer sabiam que deveriam depor e, logo, nunca se negaram a fazê-lo; prisões preventivas a perder de vista, até que os presos, ainda não condenados, nem de alta periculosidade, decidissem confessar ou delatar algo; aceleração considerável de processos de determinados réus; condução das audiências de forma a intimidar os advogados de defesa; divulgação politicamente oportuna de informações relativas a processos - como a delação de Antonio Palocci, às vésperas do primeiro turno de 2018; grampos em escritório de advogados do réu; e, por último, mas não menos importante, o vazamento de um grampo telefônico tomado em momento não autorizado pelo próprio juiz, envolvendo autoridade fora do alcance de sua jurisdição - no caso, a presidente da República.

Algo foi esquecido? Provavelmente sim. Porém, tudo já era conhecido previamente ao anúncio do convite para o ministério e, portanto, antes também das revelações da Vaza-Jato pelo “The Intercept”, que demonstraram existir conluio do juiz com procuradores - estes últimos, sempre bom lembrar, parte do processo, não seu árbitro.

A ilusão de que Moro pudesse ser o dique às tendências autoritárias de Bolsonaro decorre da normalização do arbítrio na Lava-Jato, em nome do combate inclemente à chaga da corrupção. Ela explica a leniência de cortes superiores com excessos cometidos pela operação, como ficou claro na decisão do TRF-4 sobre abusos do juiz que a chefiava, em especial o vazamento do telefonema presidencial, irregularmente captado.

Para justificar a não punição de Moro por seus abusos, afirmou o desembargador relator do caso: “É sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada operação ‘Lava-Jato’, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no Direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”. Ainda complementou: “a ameaça permanente à continuidade das investigações da operação ‘Lava-Jato’, inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional (...) as investigações e processos criminais da chamada operação ‘Lava-Jato’ constituem caso inédito, trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas”.

Trocando em miúdos: o ineditismo da situação permite uma justiça de exceção. Ocorre que a Operação Lava-Jato, que perdura por seis anos, rotinizou a exceção, normalizando-a. Moro e seus companheiros no Ministério Público foram artífices dessa normalização, coonestados pelo restante da hierarquia judicial, sob pressão da empolgação pública, do cansaço em relação à corrupção e do apoio acrítico, apaixonado ou mesmo cínico de segmentos importantes da imprensa. A normalização do Estado de Exceção, contudo, tem nome: chama-se ditadura.

Portanto, como esperar do heroico propulsor do Estado de Exceção judicial no país que se transformasse subitamente em freio limitador de um presidente de vocação autoritária? Seria de se supor, na verdade, exatamente o oposto: que Moro se convertesse naquele capaz de dar forma jurídica ao autoritarismo bolsonarista, desenhando seus contornos legais.

O pacote anticrime, consideravelmente corrigido pelo Congresso - mas que continha na versão originária, proposta pelo ministro, algo como o excludente de ilicitude de assassinatos cometidos sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” - é um exemplo de como dar forma legal ao arbítrio. Nesse caso, não se trata apenas da perseguição a corruptos e criminosos do colarinho branco, supostamente alvos preferenciais de Moro, mas de ações que dão ao Brasil a liderança mundial da letalidade policial, preferencialmente de jovens pobres e negros - sob elogios da família Bolsonaro e silêncio do ministro.

Essa convergência de propósitos é visível não apenas na lealdade de Moro ao projeto bolsonarista, antecipada por suas ações como juiz e pelo apoio público de sua esposa ao candidato de extrema direita na eleição presidencial. Ela se nota também na mistura de lavajatismo e bolsonarismo nos movimentos de base da nova direita extremista (como o movimento Nas Ruas); na ideia de que, em nome da “justiça”, o respeito a direitos fundamentais e ao devido processo é “mi-mi-mi”; na tentativa de criminalizar a imprensa, que revela impropriedades da atuação de agentes “da lei”; e na acusação a críticos e opositores de cumplicidade com malfeitorias.

Assim, a disputa intestina, entre Moro e Bolsonaro, não contrapõe concepções políticas significativamente distintas. Ambos têm estilos pessoais diferentes e conseguem apelar a públicos que se sobrepõem considerável, mas não completamente. A maior discrição e polidez do ex-magistrado, se lhe tira o carisma por um lado, amplia seu alcance por outro. Não ter vínculos obscuros com milicianos e que tais também é vantagem, pois lhe reduz as vulnerabilidades. Não à toa segue mais popular do que o chefe e com boa chance de lhe dar uma rasteira se for expelido. Por isso mesmo, para além das afinidades de fundo, o mais interessante para Bolsonaro é o manter vinculado a si. Para Moro, pode ser exatamente o oposto, sob o risco de ser tragado pelas confusões de um governo ao qual dá seu respaldo, mas com cujos problemas pode acabar se fundindo.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP


Cláudio Gonçalves Couto: As instituições estão funcionando?

Corrosão democrática se dá não só entre os três poderes; importam fronteiras entre religião e Estado, civis e militares

Já há muitos anos que se debate no Brasil sobre a qualidade do funcionamento de nossas instituições: se funcionam bem, se funcionam mal, ou se simplesmente funcionam. Por óbvio que pareça, nunca é demais lembrar que “funcionar” significa cumprir alguma função. Portanto, a dúvida sobre a operação das instituições diz respeito a quão capazes são elas de resolver os problemas para os quais foram criadas.

A renitente insatisfação, expressa nos infindáveis clamores por alguma reforma política, provém de uma série de fatores: a percepção negativa de nossa estrutura institucional e de seus atores pela população, os seguidos escândalos de corrupção, o custo proibitivo (ou mesmo obsceno) de campanhas eleitorais, a baixa representatividade de um sistema em que eleitores sequer se lembram daqueles nos quais votaram, os muitos abusos cometidos por diferentes agentes do Estado, a ineficiência e a ineficácia do setor público, os privilégios de corporações estatais, a politização da Justiça, a insegurança jurídica Enfim, a lista é longa.

Se tivermos como métrica o bom funcionamento absoluto, nunca estaremos satisfeitos - nem aqui, nem alhures. Não à toa, em trabalho já antigo, o filósofo político e jurista, Norberto Bobbio, dizia que a democracia tinha diversas promessas não cumpridas - e segue tendo. Mas podemos nos perguntar se, mesmo não funcionando de forma ideal, as instituições democráticas dão conta minimamente dos problemas que devem resolver ou evitar - como a própria destruição da democracia.

A pergunta segue pertinente no Brasil atual diante dos temores do autoritarismo bolsonarista, por um lado, e da crença de que as estruturas organizacionais do Estado brasileiro, bem como os atores políticos, dão conta de conter os ímpetos mais perigosos do atual governo. Numa leitura mais otimista, como a de meu colega da FGV Ebape, Carlos Pereira, a democracia brasileira não ruiu e provavelmente não ruirá, pois atores judiciais e políticos têm operado eficazmente para conter ou mesmo reverter excessos do governo, corrigindo seus rumos. Congresso e Judiciário têm tomado decisões concretas nessa direção, impondo derrotas ao Executivo, moderando políticas e resguardando direitos.

Analistas mais pessimistas, como Celso Rocha de Barros, apontam a vocação autoritária do governo e suas medidas concretas de desmonte de instituições e perseguição a atores relevantes no âmbito de suas atribuições. Se considerarmos a forma como se destrói o aparato fiscalizador na área ambiental, o aparelhamento ideológico e a censura que ocorrem na cultura, a diluição da fronteira entre o Estado laico e certas denominações religiosas, ou mesmo o estímulo da retórica presidencial a ações violentas na cidade e no campo, temos razões para nos preocupar. Nessas frentes, o funcionamento dos freios e contrapesos da democracia tem sido menos efetivo e a lenta e gradual erosão do ambiente democrático ocorre, dia após dia.

Já que há uma metáfora física na ideia clássica dos freios e contrapesos, levemo-la um passo adiante. Mecanismos desse tipo são sujeitos a tensões, desgaste e têm limite para sua resistência. Assim como o não uso tende a deteriorar um mecanismo, o uso abusivo pode causar seu colapso. O estilo de governo do bolsonarismo exige uma operação severa dos dispositivos institucionais, que operam sob tensão constante, precisando limitar, corrigir ou frear as iniciativas governamentais incessantemente. Os freios de um veículo existem para pará-lo ou controlar sua condução, mas quem desce a serra com o pé no breque corre o risco de não conseguir frear justamente quando chegar à planície.

O governo mediante confronto contínuo força os demais atores a operar quase que todo o tempo na contenção, aumentando o desgaste e desperdiçando energias que poderiam ser mobilizadas de forma mais construtiva. O Congresso derruba vetos presidenciais como nunca, deixa caducar Medidas Provisórias de forma inaudita, reverte decretos presidenciais em montante inédito - sobretudo para um primeiro ano de governo. O Judiciário, em particular o STF, é mobilizado para por freio a seguidas iniciativas do governo que violam direitos ou desrespeitam preceitos legais. Se existe a máxima jornalística de que quando um cão morde um homem não há notícia, mas quando o inverso ocorre há, vivemos num país em que todos os dias a imprensa, atacada pelo presidente, noticia mordidas governamentais em cachorros e humanos.

E, nesse sentido, o tempo interessa, pois relações humanas são sensíveis a ele. O modus operandi belicoso do governo produz mais desgaste quanto mais o tempo passa. Resistir um ano é possível; será possível seguir mais três no mesmo ritmo? Qual o limite da paciência dos demais atores? Qual o limite da paciência do governo com as contenções que lhe são impostas? E, para além dos enfrentamentos com os outros poderes do Estado, há também aspectos preocupantes na partidarização das forças de segurança. Em matéria desta semana na Supercoluna de O Estado de S. Paulo, Marcelo Godoy aponta que o “Bolsonarismo invade os quartéis da PM”.

Ou seja, além da fronteira borrada entre governo e religião, o bolsonarismo também tem produzido o transbordamento da disputa política para dentro dos batalhões. Em evento de outubro, na PM paulista, familiares de sargentos que se formavam vaiaram o governador e receberam o presidente aos gritos de “mito”. Em discurso nesse mesmo evento, Bolsonaro associou a atuação da PM ao combate à esquerda, arrancando aplausos do público. Note-se que não se trata apenas das Forças Armadas, mas das polícias militares nos estados, mais capilarizadas, atuantes e acostumadas a lidar cotidianamente com a violência. Que instituições operam para conter esse processo em curso, de partidarização dos agentes armados do Estado? Há mecanismos institucionais capazes de fazer isso? Difícil de ver.

O tempo dirá se temos mais razão para sermos otimistas ou pessimistas. Neste momento, o que se vislumbra nesta seara são sinais bastante ambíguos.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP


Cláudio Gonçalves Couto: O antipluralismo bolsonarista

Liberalismo do governo Bolsonaro é manco, expressando-se unicamente na política econômica. Trata-se de um disfarce

Uma das principais referências políticas do bolsonarismo é a Hungria de Viktor Orbán - como já deixou claro em mais de uma ocasião o filho 03, Eduardo Bolsonaro, líder ideológico local do movimento capitaneado pelo pai. Em célebre discurso de 2014, Orbán expressou seu desejo de transformar a Hungria numa “democracia iliberal”, como já o seriam a Rússia de Vladimir Putin e a Turquia de Recep Tayyp Erdogan. Nesses regimes, o apoio plebiscitário de uma maioria ao líder entronizado lhe permite governar passando por cima de eventuais limites.

Assim, restringe-se ou mesmo se elimina a liberdade de imprensa; perseguem-se e até se encarceram opositores; combate-se a independência dos centros de produção intelectual autônoma - como as universidades e as artes; deslegitima-se a oposição, apontando-lhe como formada por traidores da pátria - não existiria, como no Reino Unido, uma oposição “de” Sua Majestade, mas apenas “a” Sua Majestade. O modus operandi da democracia iliberal passa por sufocar as divergências e subalternizar as minorias não alinhadas à linha dominante, personificada pelo líder máximo e amparada plebiscitariamente no apoio de uma maioria baseada em critérios identitários - como valores, etnia, religião ou um conjunto de todas essas coisas.

Liberalismo não é só econômico, mas político e social
O caráter “democrático” das democracias iliberais residiria unicamente em seu plebiscitarismo, na expressão da vontade majoritária em eleições e outras votações nas quais a competição política é prejudicada porque a oposição é sabotada ou reprimida, bem como o debate público aberto é substituído pelo oficialismo dos discursos governamentais e pela retórica voltada a deslegitimar discordâncias. Dessa perspectiva, jornalistas são categoria em extinção e devotada a produzir “fake news”, universidades são lugares de balbúrdia e ideologização, educadores não alinhados são doutrinadores pervertidos, artistas dissidentes são sórdidos e mentirosos, opositores são bandidos e traidores.

Diferentemente de suas antecessoras da antiguidade clássica, as democracias do século XX se notabilizaram por serem, justamente, liberais. Não houve uma única democracia passível de ser chamada por tal nome que não tenha contido o elemento liberal - ou seja, competitivo e limitador do poder. Em sua célebre obra, “Poliarquia”, Robert Dahl observou que os regimes democráticos realmente existentes (chamados por ele de poliarquias), eram a combinação de participação política ampliada (direito ao voto e à elegibilidade) e competição política plural.

O processo de democratização contemporâneo, portanto, significaria avançar em dois eixos de um plano cartesiano: o da participação/inclusão (com contingentes cada vez maiores da população detentores de plenos direitos políticos, tendendo à universalização) e o da liberalização (com uma competição política cada vez mais intensa e diversa). A ideia de poliarquia, portanto, é justamente essa: a do poder plural. Logo, o pluralismo e a competição que dele decorre são características inescapáveis do regime democrático que só é democrático sendo liberal.

Daí se depreende que a ideia de democracia iliberal é um oxímoro, ou seja, uma contradição nos termos. A expressão foi cunhada originalmente por Fareed Zakaria para descrever sinteticamente esses regimes em que competição e pluralismo são suprimidos, dando lugar apenas ao apoio majoritário, seja nas ruas, seja nas urnas. Antes dessa formulação de Zakaria, tecida por ele criticamente a esse tipo de regime, o jurista do Terceiro Reich, Carl Schmitt, já concebia a democracia de forma antipluralista - porém, para defender esse formato. Dizia ele: “Em toda a verdadeira democracia está implícito que não só o igual seja tratado igualmente, mas que, como consequência inevitável, o não igual seja tratado de modo diferente.Portanto, a democracia deve, em primeiro lugar, ter homogeneidade e, em segundo - se for preciso - eliminar e aniquilar o heterogêneo”.

E quem seriam os não iguais, os heterogêneos? Ora, os opositores, os dissidentes, os infiéis, os seguidores de modos de vida dissonantes daqueles da maioria, os críticos à linha dominante. A eles o que cabe? A eliminação e a aniquilação, como apontava Schmitt. Foi o que, durante o Terceiro Reich, se abateu sobre judeus, ciganos, comunistas, homossexuais e todo tipo “heterogêneo”. É o que pregam hoje os “democratas iliberais” como Orbán, Putin, Erdogan, Maduro e Bolsonaro.

Além dos ataques repetidos de seu governo à imprensa, à comunidade científica, aos professores e aos artistas - estes desferidos preferencialmente por seu lugar-tenente na área cultural, Roberto Alvim - Bolsonaro também deixa claro, repetidas vezes, o viés schmittiano (ainda que provavelmente sem tê-lo lido) de sua concepção de democracia. Disse ele em 2017, na Paraíba: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. Contudo, para não irmos tão longe no tempo, tomemos uma declaração de dezembro último, diante do Alvorada: “Não tem essa história de branco e negro. Somos iguais e ponto final. Cultura é para maioria, não é para minoria, não”. Ou pouco antes, em novembro, num culto evangélico em Manaus: “Se nós somos a maioria, por que cedemos à minoria? O senhor é professor de Direito Constitucional, mas eu entendo que a lei tem que ser feita para atender às maiorias e não às minorias. Respeitamos as minorias, mas nós, a maioria, o povo é que deve conduzir o destino de uma nação”.

Equiparando povo à maioria, Bolsonaro exclui os grupos minoritários da condição de membros desse povo, vedando-lhe a legitimidade de participar da condução dos destinos da nação. O respeito às minorias aí enunciado torna-se, portanto, mera escusa retórica: respeitamos as minorias, desde que caladas e subalternas. Essa é a própria negação do pluralismo, que não respeita apenas minorias caladas e submissas, mas considera legítimos também seus pleitos e é capaz de conviver com a diversidade.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP


Cláudio Gonçalves Couto: Que centro é este?

Eleitorado se deslocou à direita, mas parte se assustou com o radicalismo bolsonarista: abre-se espaço para um centro

2019 foi marcado pela discussão sobre a polarização que marcaria nossa política. Frequentemente, o termo foi tomado como sinônimo de extremismo ou radicalização política. Polarização não tem a ver com isso, mas com a contraposição de alternativas políticas claras. É assim que historicamente Democratas e Republicanos polarizam a política nos EUA, Conservadores e Trabalhistas no Reino Unido, Socialistas e Republicanos na França.

No Brasil, entre os anos 90 e 2014, a polarização foi entre um partido social-liberal (o PSDB) e um social-democrata (o PT). Na medida em que o PT caminhou para o centro, deslocou o PSDB para a direita, configurando uma típica polarização centro-esquerda/centro-direita, cujo centrismo foi acentuado nos dois casos pela necessidade de coalizões. Assim, o vermelho oposicionista do socialismo petista se debotou, assumindo tons rosados no governo, enquanto o social-liberalismo tucano se tornou menos social e mais liberal, primeiro pela imposição das reformas econômicas, depois pela oposição ao adversário à sua esquerda, o PT.

As jornadas de junho de 2013, a Lava-Jato, o impeachment e o impopular governo de Michel Temer mudaram as coisas. Muito enfraquecido num primeiro momento (como se notou nas eleições municipais de 2016, quando perdeu 60% de seus prefeitos), o PT recuperou algo de sua força depois, chegando ao segundo turno das eleições presidenciais e fazendo a maior bancada na Câmara. Com isto, manteve-se como um polo da disputa, sendo o ator principal à esquerda do espectro nas eleições nacionais.

Contudo, à direita, o PSDB (associado ao governo Temer e ao establishment) minguou, culminando no vexaminoso desempenho de Geraldo Alckmin na disputa presidencial e na redução das bancadas congressuais do partido. O eleitorado à direita, que votava no PSDB (ou contra o PT) desde os anos 90, migrou para Jair Bolsonaro e deu ao PSL a maior votação para a Câmara de Deputados. Mesmo nas disputas estaduais, deram-se bem candidatos que se alinharam ao bolsonarismo durante a eleição, como Wilson Witzel no Rio de Janeiro e João (Bolso)Dória em São Paulo. Criou-se uma nova polarização, entre uma esquerda socialdemocrata momentaneamente mais estridente e uma extrema-direita oriunda da margem do sistema político.

Nos anos 50 do século passado surgiu um teorema que tentava explicar o comportamento do eleitorado em tais polarizações, em eleições majoritárias. Esboçado inicialmente por Dunkan Black (“On the rationale of group decision-making”) e depois aprimorado por Anthony Downs (Uma teoria econômica da democracia), o “teorema do eleitor mediano” supõe que o eleitorado apresenta uma distribuição normal entre esquerda e direita, concentrando-se a maior parte dele ao centro. Desse modo, o idealizado eleitor mediano (aquele localizado a meio caminho entre cidadãos dos dois lados do espectro ideológico) seria o votante a ser conquistado, pois o competidor à esquerda já teria garantida a maioria dos votos à esquerda do mediano, enquanto o competidor à direita teria a maioria dos votos do seu lado. A dinâmica dessa competição levaria esquerdistas e direitistas a caminharem para o centro, em busca do voto decisivo, moderando-os.

O teorema faz bastante sentido e ajuda bem a entender a lógica das eleições e dos partidos em cenários nos quais de fato o eleitorado se distribua em duas metades praticamente iguais, na forma de uma curva normal simétrica da esquerda à direita. Porém, por vezes a distribuição se torna assimétrica e o eleitor mediano se desloca consideravelmente para um dos flancos do espectro ideológico, carregando para ali a maior parte do eleitorado. A vitória de Bolsonaro no segundo turno mostrou que em 2018 o eleitor mediano se deslocou bastante para a direita, explicando a debacle do PSDB já no primeiro turno: o antipetismo tucano se mostrou insuficiente para grande parte dos votantes, que preferiram um candidato mais radicalmente antagonista ao petismo. E como Bolsonaro se apresentava como alternativa radical não apenas ao esquerdismo petista, mas também ao establishment político de um modo geral (em que se enquadrava o PSDB), levou consigo a maioria.

Hoje, após um ano de governo, com suas peripécias e confusões, parte do eleitorado se vê assustada com o bolsonarismo e seu radicalismo, que não arrefeceu após a vitória eleitoral, como supunham alguns. No outro polo (o que não é o mesmo que dizer no outro extremo), a esquerda petista mantém o discurso e a postura que alienaram boa parte de seus eleitores, desapontados com o desastre econômico do governo Dilma, com os escândalos de corrupção e com a incapacidade de uma transformação. Desse modo, surgiu espaço para um denominado (e autodenominado) “centro”, que procura se apresentar como opção tanto ao petismo como ao bolsonarismo. Há aí um pouco de tudo.

Parte desses centristas não são nada novos. São o “Centrão”: conglomerado de partidos de adesão e políticos de viés conservador e fisiológico, dispostos a apoiar quaisquer governos, desde que recompensados com cargos, verbas e políticas para os segmentos que representam corporativamente. Estes, porém, dificilmente articulam candidaturas presidenciais.

Outra parte é uma nova direita pós-tucana, de discurso conservador, liberal quase só economicamente, antipolítico, focado na ideia de gestão pública como gerencialismo, e na segurança pública como guerra - como o Bolsonarismo. Dória e Witzel estão aí.

É desse campo que também surge Luciano Huck, com seu antipetismo visceral, postura de moderno e liberal também politicamente (não só na economia), vindo de fora da política para renová-la. Talvez seja, dos três, o mais efetivamente centrista - já que os outros são claramente direitistas.

Por fim, até Ciro Gomes tenta ocupar esse espaço, à centro-esquerda. Começou na eleição, desvinculando-se do PT, e seguiu depois, atacando petistas sempre que possível. Resta saber se além de alienar o eleitorado à esquerda, conseguirá convencer centristas. Não será fácil.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP e colunista convidado do “Valor”