cinema

RPD || Henrique Brandão: Uma história de amor e resiliência

Maid já entrou para a lista de séries mais queridinhas da Netflix, superando O Gambito da Rainha

Henrique Brandão / RPD Online

A minissérie ‘Maid” (Empregada Doméstica), em exibição na Netflix, é um dos grandes sucessos de todos os tempos do canal de streaming. Lançada em primeiro de outubro, a produção se tornou a mais vista da plataforma, com cerca de 67 milhões de espectadores, superando, inclusive, a incensada “O Gambito da Rainha, vista por 62 milhões de pessoas e tida, até então, como a campeã de audiência entre as minisséries. 

O fenômeno mundial do canal é a série coreana “Round Six”, lançada quase ao mesmo tempo e vista, até agora, por 111 milhões de espectadores ao redor do mundo. Certamente, esse número será maior quando você estiver lendo esse artigo. Dado o estrondoso sucesso, a série, galinha dos ovos de ouro da Netflix, ganhará uma continuação. 

E aqui vale explicar a diferença entre os dois formatos: as séries, como é o caso de “Round Six”, podem ganhar continuações infindáveis, a depender, sobretudo, do sucesso comercial da produção. A última temporada de uma série deixa sempre em aberto a possibilidade de novos desdobramentos da trama (um “gancho”, como se diz no jargão técnico), que ganhará outra temporada e episódios inéditos, sucessivamente. Já a minissérie, termina no último episódio da primeira e única temporada. São relatos “fechados”. Muitas vezes narram histórias reais ou são adaptações de livros.  

É o caso de ‘Maid”, adaptado de “Maid: Hard Work, Low Pay, and a Mother's Will to Survive” (2019), livro de memórias escrito por Stephanie Land, best-seller da lista do “New York Times”. 

A minissérie narra a trajetória de Alex, jovem mãe que dá duro fazendo faxina a fim de ganhar alguns caraminguás para poder criar a filha sozinha, em meio a um ambiente hostil de violência psicológica e pouca ajuda familiar. 

São muitos os perrengues. O marido, o pai e a sogra de Alex têm ou tiveram problema com o álcool. A mãe, bipolar, vive em um mundo próprio de ilusões e que a impossibilita de atender aos apelos de ajuda da filha. Para onde se vira, Alex é obrigada a superar obstáculos que parecem fáceis de lidar, mas que se mostram muito mais complexos do que aparentam à primeira vista: o que parecia porto seguro se revela instável. A estrada da vida se converte numa espiral que a leva sempre de volta ao ponto de partida.  

Lido assim, pode até parecer enredo barato, de dramalhão mexicano, ou então de séries maniqueístas, que mostram a mocinha perseverante em luta contra o mundo cruel que a cerca. Não é o caso. Em “Maid”, o que se vê na tela são seres humanos retratados em suas nuances, com todas as suas contradições, angústias, erros e acertos.  

No marasmo das paisagens da pequena cidade em que se desenrola a trama, o passado contamina o presente e turva o horizonte. Em determinado momento, a mãe de Alex revela a falta de perspectiva dos habitantes do lugar: ela nasceu ali, sua mãe também e a avó idem. Por que partir? – questiona, diante da insistência da filha em mudar de cidade. 

Certo dia, o marido de Alex, bêbado, esmurrou a parede, quebrou objetos e esbravejou injúrias.  Na calada da noite, com a filha Maddy no colo, Alex aproveita para escapar. A violência que sofre não é física, mas deixa marcas profundas na alma. O que a leva a se livrar daquele ambiente opressor, onde só o medo prevalecia. 

Fugir foi só o começo. Desde então, mãe e filha empreendem uma cruzada que passa por dormir no chão da estação das barcas ao acolhimento provisório em um abrigo para vítimas de violência doméstica. De faxina em faxina, sujeita a humilhações e a salários miseráveis, tendo que lidar com a indiferença da burocracia, Alex apenas sobrevive. É mais uma “invisível” que o Estado ignora. O que a mantém resoluta na sua luta é o amor por Maddy. 

Com uma história real dessas, é grande a possibilidade de escorregar para o exagero, carregar nas tintas. O roteiro, no entanto, muito bem estruturado, evita o melodrama. Não há choros de esguichos, tampouco gargalhadas retumbantes. 

A brilhante interpretação de Margaret Qualley como Alex, acrescenta meios-tons à direção sóbria da minissérie. A intimidade da relação que estabelece com Rylea Nevaeh Whittet, a criança de dois anos que interpreta sua filha, é impressionante. Andy MacDowell faz o papel da mãe de Alex. Na vida real, Qualley é filha de MacDowell.  

Para quem quiser conhecer uma outra faceta de Margaret Qualeey, aqui vai a dica: ela é também bailarina. Sua performanceno comercial do perfume "Kenzo World", de 2016, dirigido por Spike Jonze, (https://www.youtube.com/watch?v=itqQS_gpNHM) é de tirar o fôlego. Ninguém diria que se trata da mesma pessoa. A moça é danada. Puro talento. 


Saiba mais sobre o autor
Henrique Brandão é jornalista e escritor


Luiz Carlos Azedo: Histórias que se cruzam na resistência ao regime militar

Dois filmes e duas histórias que mostram um passado de radicalização política que não deve se repetir

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Vale a pena ver o filme Marighella, dirigido por Wagner Moura, com Seu Jorge esbanjando talento na telona, no papel de Carlos Marighella, em 1969, no auge da atuação da Ação Libertadora Nacional (ALN), o grupo guerrilheiro que liderava e foi dizimado pelo delegado Sérgio Fleury.

Em contraponto, sugiro também o documentário Giocondo Dias, Ilustre Clandestino, de Vladimir de Carvalho, disponível no Canal Brasil, que reúne depoimentos sobre o líder comunista que substituiu Luiz Carlos Prestes na Secretaria-Geral do PCB. Ambos mostram um passado de radicalização política que não deve se repetir.

Moura dirigiu um blockbuster político, que utiliza os recursos da ficção e dos filmes de ação para fazer um recorte histórico da vida de Carlos Marighella, inspirada na excelente biografia de Mario Magalhães sobre o líder comunista carismático que arrastou para a luta armada jovens militantes do antigo PCB e um grupo de padres dominicanos.

Carvalho fez um garimpo de imagens, a partir dos depoimentos de militantes que participaram do resgate de Giocondo Dias, o líder comunista clandestino que havia ficado isolado, após o desmonte da estrutura do velho Partidão, em 1975, quando 12 integrantes do Comitê Central foram assassinados e milhares de militantes foram presos.

Marighella e Giocondo fizeram parte do chamado “grupo baiano”, que lideraria a reorganização do PCB no final do Estado Novo, em 1943, tecendo uma aliança pragmática com Getúlio Vargas para o Brasil entrar na II Guerra Mundial contra o Eixo: Armênio Guedes, Moisés Vinhas, Aristeu Nogueira, Milton Caíres de Brito, Arruda Câmara, Leôncio Basbaum, Alberto Passos Guimarães, Jacob Gorender, Maurício Grabois, José Praxedes, Osvaldo Peralva, Boris Tabakoff, Jorge Amado, João Falcão, Fernando Santana, Mário Alves e Ana Montenegro, nem todos baianos.

O cabo Giocondo Dias era um mito comunista, somente ofuscado por Luiz Carlos Prestes. Havia liderado a tomada do poder em Natal (RN), no levante comunista de 1935, no qual Prestes fora preso. Na ocasião, levou três tiros de um dos comandados, ao proteger com o próprio corpo o governador do Rio Grande Norte, Rafael Fernandes Gurjão, a quem Giocondo havia dado voz de prisão.

Escondido para se recuperar dos ferimentos, sobreviveria a 13 facadas, em luta corporal com um capanga do proprietário da fazenda onde estava. Preso, cumpriu um ano de cadeia até a anistia de 1937, a chamada “Macedada”, concedida para legitimar o golpe do Estado Novo. Essa experiência influenciaria sua visão sobre a luta armada.

Estudante de engenharia, Marighella largou a faculdade em 1934 para atuar no PCB no Rio de Janeiro, sendo preso a primeira vez em 1936. Também foi libertado na “Macedada”, porém, acabou novamente preso em 1939 e foi libertado em 1945, com a redemocratização. Voltou para a Bahia e se elegeu deputado federal, integrando a bancada comunista na Constituinte de 1946.

Giocondo viria a ser eleito deputado estadual. Com a cassação de seus mandatos, foi encarregado da segurança do líder comunista Luiz Carlos Prestes, na clandestinidade, enquanto Marighella se destacaria na liderança do PCB em São Paulo, durante os governos Dutra e Vargas.

As divergências

Após a morte de Joseph Stalin, em 1953, com a realização do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 1956, a cúpula do PCB entrou em crise. O Comitê Central somente se reuniria dois anos depois, para destituir a Executiva liderada por Arruda Câmara e João Amazonas, que mantivera em segredo as denúncias dos crimes de Stalin feitas por Nikita Kruschov, o novo líder soviético.

Giocondo, que fora um dos artífices da aliança do PCB com Juscelino Kubitscheck (PSD) nas eleições de 1955, com Alberto Passos e Armênio Guedes, articulou a Declaração de Março de 1958, na qual o PCB assumiu o compromisso com a defesa da democracia. E emergiu da crise como segundo homem na hierarquia partidária, sob a liderança de Prestes. Giocondo e Marighella, porém, divergiram quanto à “política de conciliação com imperialismo” de Juscelino.

No governo Jango, Marighella defendeu a reforma agrária “na lei ou na marra”, Giocondo condenou o radicalismo das ligas camponesas. O primeiro apoiou a “revolta dos marinheiros”, o segundo considerou o movimento de cabo Anselmo uma provocação.

Quando os militares destituíram Jango, Marighella acreditou que bastaria o brigadeiro Francisco Teixeira bombardear as tropas do general Mourão Filho, que marchavam em direção ao Rio de Janeiro, para derrotar os golpistas, enquanto Prestes, o “Setor Mil” (militares da ativa), Giocondo e outros dirigentes concluíram que Jango estava politicamente derrotado e a resistência armada resultaria num inútil de banho de sangue.

Para Giocondo, a derrota da ditadura exigia longa resistência, a partir da formação de frente democrática, como de fato ocorreu. Inspirado na Revolução Cubana, Marighella acreditava que poderia transformar a derrubada do regime militar na revolução socialista. Em tempo: às vésperas do golpe de março de 1964, Prestes articulava a reeleição de Jango.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-marighella-e-giocondo-historias-que-se-cruzam-na-resistencia-ao-regime-militar/

Primeiro filme dirigido por negra, Amor Maldito aborda homossexualidade

Longa-metragem será discutido em live de pré-comemoração ao centenário de arte moderna

João Vitor, da equipe da FAP*

Em 1984, o filme Amor Maldito, de Adélia Sampaio e com teor pornochanchada, abordava temas considerados tabus, como homossexualidade e preconceito sobre essa questão. O longa será debatido, nesta quinta-feira (28/10), a partir das 17 horas, em live da série de eventos online da Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP), em pré-comemoração ao centenário da Semana de Arte Moderna.

Assista!





Baseado em fatos reais, Amor Maldito é o primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher negra no Brasil. O público poderá conferir o debate com participação da crítica cultural Glênis Cardoso e do diretor-geral da FAP, Caetano Araújo, no canal da fundação no Youtube, na página da entidade no Facebook e na rede social da biblioteca.

A história do filme Amor Maldito se passa na década de 1960. Em contexto machista, duas mulheres se apaixonam e decidem morar juntas. Contudo, segundo o enredo, uma delas passa a ser acusada erroneamente de homicídio, depois de sua parceira atirar-se da janela de seu apartamento por desespero ao descobrir gravidez indesejada com amante.

O drama, que tem como pano de fundo a relação entre duas mulheres, é marcado pela homofobia. Uma vez que a cena do suposto crime apontava a inocência da personagem, ela era castigada por causa de sua orientação sexual.

A avaliação da palestrante é de que as pessoas que acusam a personagem são extremamente caricatas, hipócritas e conservadoras. “A intenção do filme é mostrar o quão errado essas pessoas estão nessas contradições”, afirma ela.

Críticos avaliam que o filme pode ser considerado à frente de seu tempo por entregar discussões pertinentes que sofreram censura à época.

A obra cinematográfica tem 1h15 de duração, foi produzida pelas companhias A. F. Sampaio Produções Artísticas e Gaivota Filmes e tem teor pornochanchada.

Glênis diz que a pornochanchada foi uma forma de distribuir o filme. Segundo ela, havia necessidade de alguém para financiá-lo, mas à época era difícil vender um filme de amor entre pessoas do mesmo sexo. Então, conforme acrescenta, resolveram “disfarçá-lo” de pornochanchada.

*Integrante do programa de estágios da FAP

Ciclo de Debates: O modernismo no cinema brasileiro 

Webinário sobre o filme: Amor Maldito, de Adélia Sampaio
Dia: 28/10/2021
Transmissão: a partir das 17h
Onde: Perfil da Biblioteca Salomão Malina no Facebook e no portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira

Webinar debate o livro Terras do Sem-fim de Jorge Amado

Com canções nacionais, filme Brasil Ano 2000 remete a tropicalismo

Modernismo no cinema brasileiro

Lançado há 50 anos, filme Bang Bang subverte padrões estéticos do cinema

Projeto cultural de Lina e Pietro Bardi é referência no Brasil, diz Renato Anelli

Filme Baile Perfumado é marco da “retomada” do cinema brasileiro

Romance de 30, um dos momentos mais autênticos da literatura

Com inspiração modernista, filme explora tipologia da classe média

Webinário destaca “A hora da estrela”, baseado em obra de Clarice Lispector

Obra de Oswald de Andrade foi ‘sopro de inovação’, diz Margarida Patriota

O homem de Sputnik se mantém como comédia histórica há 62 anos

‘Desenvolvimento urbano no Brasil foi para o espaço’, diz Vicente Del Rio

‘Mário de Andrade deu guinada na cultura brasileira’, diz escritora

Influenciado pelo Cinema Novo, filme relaciona conceito de antropofagia

Mesmo caindo aos pedaços, ‘quitinete é alternativa de moradia em Brasília’

‘Semana de Arte Moderna descontraiu linguagem literária’, diz escritora

‘Modernismo influenciou ethos brasileiro’, analisa Ciro Inácio Marcondes

Um dos marcos do Cinema Novo, filme Macunaíma se mantém como clássico

Filme premiado de Arnaldo Jabor retrata modernismo no cinema brasileiro


RPD || Lilia Lustosa: Belmondo, Nouvelle Vague e cia

Movimento cinematográfico mostrou uma França mais moderna, dinâmica. Jean Paul Belmondo era seu grande ícone

Em setembro, o mundo perdeu um de seus grandes atores, Jean-Paul Belmondo. Símbolo maior da Nouvelle Vague, movimento cinematográfico francês revolucionário que, inspirado no neorrealismo italiano e no cinema-verdade de Jean Rouch, acabou por influenciar diversos novos cinemas em todo o mundo. 

Desde o lançamento de Acossado, naquele março de 1960, o cinema mundial nunca mais seria o mesmo. Não por ter sido esta a pedra fundamental do movimento, mas, mais precisamente, por ter se convertido em uma espécie de manifesto da Nouvelle Vague, ao apresentar na telona estética e temática totalmente novas. O filme, dirigido por Jean-Luc Godard e baseado em argumento de François Truffaut, mandou às favas as regras já consolidadas do cinema comercial, trocou o tripé pela câmera na mão, usou película fotográfica ultrassensível para escapar da obrigatoriedade dos estúdios e ainda transformou bandidos em protagonistas, levando plateias inteiras a torcerem para que Michel (Belmondo), mesmo depois de ter roubado um carro e matado um policial, escapasse para Roma com a bela Patricia (Jean Seberg).

A partir dali, o mundo começava a entender que já não era mais preciso se render à predatória indústria cinematográfica norte-americana, nem à francesa, nem a qualquer outra. E que era possível, sim, realizar bons filmes com poucos recursos, câmeras leves, ao ar livre, equipe reduzida, tratando de temas moralmente questionáveis. Foi a retomada do “cinema de autor”, preconizado pelos vanguardistas dos anos 1920/30. 

No Brasil, um dos herdeiros da Nouvelle Vague foi o Cinema Novo, que adotou a câmera na mão como slogan e levantou a bandeira da independência dos grandes estúdios, nacionais e internacionais. A liberdade era o grande lema dos jovens cinemanovistas que viam nessa nova maneira de fazer cinema uma forma de descolonizar também sua cultura. Filmes como Os Cafajestes (1962), de Ruy Guerra, beberam diretamente da fonte do movimento francês, sendo vistos com admiração até mesmo pelos próprios críticos do Cahiers de Cinéma, berço da Nouvelle Vague. No filme de Guerra, Norma Bengell protagonizou o primeiro nu frontal da história do cinema brasileiro. Um escândalo para a época! 

Mas o Cinema Marginal também assimilou características da “marginalidade” do movimento francês, levando-os, porém, a um paroxismo nunca visto no Brasil. O crítico e cineasta Jean-Claude Bernardet aponta várias influências de Godard em O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, filme-marco deste movimento que sucedeu o Cinema Novo. Para ele, Acossado teria sido o filme que mais influenciara o cineasta paulista em sua obra. O anti-herói Jorge (Paulo Villaça) tinha muito de Michel-Belmondo, seu suicídio tendo sido moldado, porém, a partir da morte de outro personagem de um filme de Godard, Ferdinand de O Demônio das Onze Horas (1965), também interpretado por Belmondo. 

Já nos Estados Unidos, a Nouvelle Vague impulsionou o nascimento da New Hollywood, deixando como herança a liberdade temática adotada a partir de então, com tramas que passavam a dialogar mais diretamente com o contexto sociopolítico daqueles rebeldes anos 60. Tópicos como igualdade racial e de gênero, pacifismo e liberdade sexual passaram a aparecer sem pudor nas telas de cinema. Anti-heróis viraram protagonistas e foram ganhando espaço no coração dos espectadores. Algo impensável até a estreia de Bonnie e Clyde (1967), de Arthur Penn, filme que abriu portas para uma nova geração de cineastas, composta por Scorsese, Coppola, Spielberg, Georges Lucas e outros. Diretores que mergulharam Hollywood em outra dimensão estética, sendo até hoje venerados e idolatrados por um sem-número de cinéfilos mundo afora. Cineastas que influenciaram, por sua vez, outras gerações que seguem trabalhando em busca de novas inspirações e tecnologias que possam revolucionar ainda mais a sétima arte. 

Mas, voltando à França e ao grande ícone da Nouvelle Vague, Belmondo nunca hesitou em assumir que não era lá muito fã daquele tipo de cinema que ele considerava “intelectual” demais… Um dos filmes em que mais gostou de atuar foi O Homem do Rio (1964), de Philipe de Broca, uma aventura nada nouvellevaguiana, rodada em Paris e no Brasil, uma espécie de live-action de Tintim, em que Adrien (Belmondo) viaja por terras tupiniquins para salvar sua amada Ignès (Françoise Dorléac), raptada por índios sul-americanos. Certamente, um retrato-clichê de nosso país, mas que serviu para conquistar espaço nas telas e nos corações dos franceses e de todo o mundo.  

Merci et au revoir, Belmondo! 


*Lilia Lustosa é formada em Publicidade, especialista em Marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, França.


Luiz Carlos Azedo: As almas mortas e a montanha

Milhões de pacientes passaram pelas enfermarias. O que mudou no modo de vida e na forma de pensar dessas pessoas?

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

“Diga- me, mãezinha, têm morrido camponeses seus? — Nem me fale paizinho — dezoito homens! Disse a velha com um suspiro. — E tudo gente boa que morreu, bons trabalhadores. É verdade que nasceram outros depois, mas o que valem? É tudo criançada; mas o fiscal chegou, mandando pagar a taxa por alma, da mesma forma. Os homens estão defuntos, mas eu tenho que pagar como se estivessem vivos.”

No livro Almas mortas, o escritor ucraniano Nikolai Gogol ironiza a servidão russa na época do czar Pedro, o Grande, que resolveu cobrar impostos sobre todas as almas. Cobrava até de quem não era católico, apesar de não ser nada religioso. Os proprietários de terras eram obrigados a pagar os impostos pelo número de servos, inclusive os que haviam morrido. Pável Ivánovitich Tchítchicov, o personagem central do romance, resolve ganhar dinheiro com isso.

Charmoso, educado, sagaz e boa pinta, usa de convencimento para enganar pequenos proprietários. Aproveita-se da burocracia russa ineficiente, e do regime de servidão e da miséria, para hipotecar almas como se todas estivessem vivas e, com isso, obter lucro. Se o proprietário vende uma alma, para Tchitchicov, o vendedor não perde nada. Pelo contrário, ele economiza no imposto que teria que pagar e ainda ganha uma quantia em rublos. Quanto ao comprador, essas almas mortas passarão a fazer parte do seu patrimônio.

O plano de Tchitchicov é simples. Ao comprar almas mortas a partir de pequenos proprietários de terra, esses servos permanecem em livros dos fazendeiros até o próximo recenseamento e, muito embora mortos, são tributáveis. Ao comprá-los, aliviam a carga fiscal dos proprietários. Seu plano é instalar esses servos mortos nas listas fiscais de uma propriedade distante, em que ele vai, então, ser capaz de obter uma hipoteca generosa do governo e sair com uma pequena fortuna. Certos aspectos da pandemia de covid-19 aqui no Brasil lembram o romance de Gogol.

Ultrapassamos a marca de 600 mil mortes por covid-19, mantendo, porém, uma média de 500 óbitos por dia. Na sexta-feira, quando atingimos esse patamar, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, deu uma entrevista coletiva minimizando o fato, para destacar que: (1) o governo está empenhado em viabilizar a terceira dose da vacina contra a covid-19 e (2) um número muito maior de pessoas diagnosticadas com a doença se recuperou. De fato, cerca de 20,6 milhões de pessoas tiveram covid-19 e sobreviveram; no momento, 285.032 estão enfermas.

O trauma coletivo
A forma burocrática da entrevista e a falta de empatia do ministro estão em linha com a política sanitária do governo federal. Contaminado na viagem do presidente Jair Bolsonaro à ONU, mesmo sem sintomas, teve que fazer três semanas de quarentena em Nova York, para voltar ao Brasil. Sua desastrosa atuação durante a pandemia também está sendo investigada pela CPI do Senado. Os senadores deverão concluir seus trabalhos nas próximas semanas e, segundo o relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), as consequências serão inquéritos civis e criminais, a serem conduzidos pelo Ministério Público, a Polícia Federal e o Tribunal de Contas da União (TCU). O relator proporá a demissão do ministro Queiroga e/ou a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro, por crime de responsabilidade. Estamos no Brasil, a um ano das eleições, e o nosso país, como dizia o maestro Antônio Carlos Jobim, não é para principiantes: nada de demissão nem impeachment.

Nossa realidade vai além das obras de ficção. Muita incompetência e espertezas macabras foram desnudadas pela CPI da Saúde, porém, nada se aproxima tanto da história de Gogol como o caso macabro da Prevent Sênior, empresa que se especializou no atendimento de idosos, em cuja estratégia de tratamento, além do “kit cloroquina”, nos casos graves, segundo denúncias de médicos e pacientes, os “cuidados paliativos” seriam uma espécie de eutanásia não consentida, para dizer o mínimo. O trauma coletivo da pandemia no Brasil é irreversível, principalmente para os familiares e amigos desses 600 mil mortos por covid-19.

Graças ao SUS, milhões de pacientes passaram pelas enfermarias dos hospitais, alguns com longas internações. O que mudou no modo de vida e na forma de pensar dessas pessoas? O escritor alemão Thomas Mann, cuja mãe era brasileira, ao descrever as polêmicas entre pacientes num sanatório de Davos, nos Alpes suíços, fez um mosaico do que estava acontecendo na Europa à beira da I Guerra Mundial. N’A montanha mágica, a tuberculose muda a noção de tempo durante a internação, enquanto a vida segue o curso trágico da História e médicos charlatães oferecem aos ricos pacientes falsas opções de cura. Naquela época não existia a penicilina; hoje, temos também as vacinas contra a covid-19.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-as-almas-mortas-e-a-montanha

‘Urna eletrônica é motivo de orgulho para todos nós’, diz Jairo Nicolau

Autor de livros sobre política brasileira, professor da UFRJ e da FGV critica ataques de Bolsonaro

Cleomar Almeida, da equipe FAP

Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), o cientista político Jairo Nicolau critica os ataques do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) contra a urna eletrônica e ao processo eleitoral brasileiro. Ele concedeu entrevista exclusiva à revista Política Democrática online de setembro (35ª edição), lançada nesta sexta-feira (3/9).

“Esse sistema foi colocado em xeque pelo senhor Jair Bolsonaro. Poderá ser um período grande de desconfiança, de crises políticas graves”, afirmou ele. A revista é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. O conteúdo pode ser conferido, gratuitamente, na versão flip, no portal da entidade.

Veja, aqui, a versão flip da Política Democrática online de setembro (35ª edição)

Nicolau é autor de vários livros sobre a política brasileira, como História do Voto no Brasil (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002) e Sistemas Eleitorais. (Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004). O último deles, publicado já durante a epidemia, é “O Brasil dobrou à direita: Uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018”.

Mestre e doutor em Ciências Políticas no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), com pós-doutorado na Universidade de Oxford e no King’s Brazil Institute, Nicolau diz que o processo político eleitoral brasileiro é um dos mais eficientes do mundo. “Continuo otimista com relação a nossa urna eletrônica e, agora, com o voto biométrico. É, sem dúvida, motivo de orgulho, não de polêmica, para todos nós, brasileiros”, asseverou.

 "A urna eletrônica foi um grande passo para aperfeiçoar o processo de votação no Brasil. É, assim, um sucesso tanto contra a corrupção como na adulteração da vontade do eleitor no momento da votação e, claro, depois na contagem dos votos", avaliou o cientista político, na entrevista à Política Democrática online de setembro.

Segundo o entrevistado, estima-se que a militância do presidente da República, na suspeição do voto digital, possa ter contaminado cerca de um terço do eleitorado. "O estrago é tão lastimável como irreversível. Poderá ser um período grande de desconfiança, de crises políticas graves", lamentou.

Nicolau lembrou que, até há pouco tempo, as fraudes ocorriam em dois momentos. O primeiro deles era na votação propriamente dita. “Todos aqui somos da época da urna de lona, da cédula de papel, e nos lembramos de como era difícil controlar as fraudes, mesas sendo arranjadas para facilitar que certas forças políticas comparecessem para encobrir o comparecimento de uma pessoa, votar no lugar de outra”, afirmou.

A fraude, de acordo com o professor, também ocorria na hora da apuração, quando todas as cédulas eram depositadas sobre mesas situadas em ginásios esportivos. “Pegava-se um uma cédula, lia-se o nome de um e cantava-se o nome de outro. Se não tivesse um fiscal ali, na hora de transformar os votos contados para os boletins de urna, ninguém detinha as fraudes. Fui presidente de sessão eleitoral durante muitos anos e acompanhei as apurações e lembro bem de alguns casos”, afirmou.

Na entrevista à revista Política Democrática online, Nicolau também comentou temas como o sistema político brasileiro, reforma política, fragmentação partidária e processo eleitoral, entre outros.

Confira, aqui, a relação de todos os autores da 35ª edição

A íntegra da entrevista pode ser conferida na versão flip da revista, disponibilizada no portal da entidade. Os internautas também podem ler, na nova edição, reportagem sobre descaso do governo com a cultura e artigos sobre política, economia, meio ambiente e cultura.

Compõem o conselho editorial da revista o diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado, Caetano Araújo, o jornalista e escritor Francisco Almeida e o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques. A Política Democrática online é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado.

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RPD 35 || Leonardo Ribeiro: Um meteoro no país das pedaladas

Bolsonaro aposta na legalização de pedaladas fiscais com a PEC 23, que traz mudanças sobre a forma de pagamento de precatórios

O orçamento federal será atingido em cheio por um meteoro na forma de precatórios, e um míssil precisa destruí-lo antes do vultoso impacto fiscal. Foi dessa forma que o Ministério da Economia anunciou um passivo de R$ 90 bilhões em 2022, valor bem superior aos R$ 55,0 bilhões do ano corrente. Ato contínuo, o Governo apresentou solução heterodoxa para destruir o tal meteoro: uma Proposta de Emenda Constitucional – a PEC 23 – para parcelar pagamentos de precatórios acima de determinado valor, criando modalidade de ajuste fiscal do tipo “devo, não nego, pago quando puder”. Análise menos ligeira das entranhas da proposta revela negligências e boa dose de irresponsabilidade fiscal por parte das lideranças do Poder executivo, que parecem apostar na legalização de pedaladas fiscais para enfrentar as eleições no ano que vem.  

Para começar, é importante reconhecer o tamanho do meteoro anunciado pela equipe econômica. O Poder Executivo conta com R$ 95 bilhões para manter programas governamentais – as chamadas despesas discricionárias. Isto quer dizer que a conta de precatórios a ser paga pelo Governo equivale a um novo orçamento discricionário.  Para quem não sabe, despesas discricionárias são aquelas que podem ser cortadas no curto prazo, diferentemente daquelas ditas obrigatórias (previdência social e salários de funcionários públicos, por exemplo). E precatórios nada mais são do que títulos emitidos pelo Governo para atestar a obrigação de se pagar uma quantia de valores a pessoas, ou empresas, que ganharam na justiça o direito de receber do poder público um quinhão de recursos: é uma dívida do Estado.  

Sabe-se também que desde 2016 vigora na administração pública federal regra fiscal que impede o crescimento das despesas públicas a taxas superiores à da inflação. Tal regra é conhecida como Teto de gastos. Matematicamente, é fácil demonstrar que o Governo não conseguirá quitar as dívidas com precatórios sem comprometer o funcionamento da máquina pública. Isto porque não há espaço fiscal para acomodar tantas despesas no mesmo orçamento.  

 Diante desse dilema – pagar precatórios ou manter em operação a máquina pública -, o Governo encaminhou para o Congresso a PEC 23 com objetivo de parcelar o pagamento dos precatórios devidos. A estratégia é clara: postergar o pagamento de despesas obrigatórias para não efetuar cortes no orçamento discricionário em magnitudes que paralisariam a máquina pública. Pode-se dizer que tal medida envolve negligências e irresponsabilidade fiscal. 

Negligência por que não fica claro nessa barafunda o motivo pela qual os relatórios oficiais do Governo não identificaram no radar a chegada deste meteoro na forma de precatórios. O anexo de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), por exemplo, não traz análises prévias sobre o crescimento sideral das despesas com precatórios e seus impactos no financiamento das políticas públicas.  É impensável imaginar esse tipo de negligência em uma empresa privada de grande porte; porém, é ainda mais espantoso o Ministro da Economia - acostumado a lidar com riscos no mercado financeiro - não ter farejado o aerólito fiscal a tempo. Ou se o fez, não deu a devida importância à transparência de eventos que podem afetar o equilíbrio das contas públicas. 

 A essa negligência soma-se também boa dose de irresponsabilidade fiscal. O parcelamento de precatórios se resume a uma medida que esconde a situação real das contas públicas, na medida em que posterga o pagamento de despesas obrigatórias. Esse tipo de prática lembra as pedaladas fiscais praticadas nas eleições de 2014: atos ilegais que serviram para gerar resultados fiscais fictícios. Se aprovada a PEC 23 do jeito que foi apresentada pelo Governo, manobras fiscais estariam sendo constitucionalizadas, sinalizando que o Governo federal não honra as dívidas com precatórios, que nada mais são do que obrigações financeiras decorrentes de sentenças judiciais.  

De todo modo, o Poder judiciário vem sinalizando caminhos alternativos ao propor teto para pagamento de precatórios - medida similar à proposta do Poder Executivo, mas que dispensaria a necessidade de PEC. No entanto, a participação do Congresso Nacional será fundamental para trazer segurança jurídica. Uma solução poderia ser desenhada no sentido de excluir do Teto de gastos o excesso de gastos com precatórios, fortalecendo-se a governança em torno da gestão fiscal e sentenças judiciais. O parcelamento deve ser evitado a todo custo, pois não se trata de um meteoro no país das pedaladas. 


*Leonardo Ribeiro é analista do Senado Federal e especialista em contas públicas. Foi pesquisador visitante da Victoria University, Melbourne, Austrália.  

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD 35 || Arlindo Fernandes de Oliveira: O que se pode esperar de uma CPI

CPIs têm o poder fiscalizatório sobre aquilo que tem a ver com o trato da coisa pública. Algumas balançaram o país, como a do PC Farias e a CPMI dos Correios

São recorrentes os questionamentos quando alguma casa legislativa institui uma comissão parlamentar de inquérito, a CPI. Um deles é sobre se Comissão vai produzir os resultados que dela se espera ou se “vai dar em pizza”.  É tema legítimo e vale a pena comentar. O Congresso Nacional, suas Casas, assim como as instituições do poder legislativos dos estados e municípios têm três funções básicas: legislar, fiscalizar o Poder Executivo e servir de espaço para o debate público. A primeira função é a definida pelo seu nome: “poder legislativo” e as demais lhe são vinculadas.  

As comissões existem para dar funcionalidade à Casa, a organização do trabalho parlamentar em comissões se dá por razões práticas. E, numa democracia, cabe a quem venceu as eleições, a maioria, governar. E à minoria cumpre fazer oposição. Assim, as CPIs são a expressão constitucional do direito e do dever da minoria. 

Por isso, como reiterou o Supremo Tribunal Federal, o requerimento de uma CPI subscrito por um terço da Casa Legislativa, cria a comissão, e deve implicar sua instalação, desde que fundado em fato determinado e por prazo certo. Como enfatizou o STF, pela voz do Ministro Celso de Mello: 

 Preenchidos os requisitos constitucionais (CF, art. 58, § 3º), impõe-se a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito, que não depende, por isso mesmo, da vontade aquiescente da maioria legislativa. Atendidas tais exigências (CF, art. 58, § 3º), cumpre, ao Presidente da Casa legislativa, adotar os procedimentos subsequentes e necessários à efetiva instalação da CPI, não se revestindo de legitimação constitucional o ato que busca submeter, ao Plenário da Casa legislativa, quer por intermédio de formulação de Questão de Ordem, quer mediante interposição de recurso ou utilização de qualquer outro meio regimental, a criação de qualquer comissão parlamentar de inquérito. (...)."[1] 

Uma CPI dispõe de poderes semelhantes àqueles que as leis endereçam ao Poder Judiciário no momento da instrução processual penal. Por conta deles, e de seu natural apelo mediático, é comum que se exija de uma CPI alcançar propósitos, alguns alheios à sua natureza, como colocar as pessoas investigadas na cadeia ou aplicar as punições que são de competência de outra instituição. Para cobrar de nossos representantes que atuam em CPI as atitudes que constitucionalmente lhe cabem, cabe recordar isso.  

Para que a cidadania democrática cobre de uma CPI aquilo que ela pode e deve dar, o Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios, que investigou o chamado Mensalão, é didático: 

Os objetivos de uma CPI devem ser claramente definidos e proclamados, até para que não se estimulem ilusões, e não se pretenda alcançar objetivos que não lhe dizem respeito. 

Pode-se exigir de uma CPI: que contribua para a transparência da Administração Pública, à medida em que revela, para a cidadania, fatos e circunstâncias que, de outra forma, não seriam de conhecimento público; Que, na qualidade de órgão do Poder Legislativo, possibilite o exame crítico da legislação aplicável ao caso sob investigação; que proponha à Casa respectiva do Congresso Nacional, sempre que cabível, a abertura de processo contra Senador ou Deputado Federal – ou outro agente político - quando o nome desse parlamentar estiver vinculado a fatos ou atos que possam implicar prejuízo à imagem do Congresso Nacional, ou seja, sempre que ali se possa identificar possível quebra do decoro parlamentar; que interceda junto aos órgãos responsáveis da Administração Pública para sustar as irregularidades e/ou práticas lesivas que suas investigações identifiquem; que aponte ao Ministério Público os fatos que possam caracterizar delitos ou prejuízos à Administração Pública para que esse órgão estatal possa promover a responsabilidade civil e penal correspondente; e que proponha modificações no arcabouço legal e institucional, de forma a contribuir para o aperfeiçoamento constante da democracia no País, evitando a reincidência no fato determinado objeto de investigação.” 

[1] MS 26.441, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 25-4-2007, Plenário, DJE de 18-12-2009. 


* Arlindo Fernandes de Oliveira é consultor legislativo do Senado Federal e especialista em direito constitucional e eleitoral. 

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

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RPD 35 || JCaesar: Charge


* JCaesar, autor da charge da Revista Política Democrática Online, é o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA.

** Charge produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD 35 || Sergio Denicoli: Já é 2022 na internet

Bolsonaristas e lulistas já deram início não-oficial à campanha eleitoral para 2022 e estão praticamente sozinhos no campo virtual de batalha

Não se engane com o calendário eleitoral oficial. Nas redes sociais, 2022 já se iniciou. Os candidatos mais atentos estão atuando na velocidade das fibras óticas. Mesmo porque, como a internet é fragmentada em bolhas, o período de campanha determinado pelo TSE é extremamente curto para alavancar uma candidatura. Muito deferente dos nostálgicos anos analógicos, quando a sociedade era pautada pelos jornais, rádios e TV, e o horário eleitoral gratuito marcava de fato o início da disputa. 

O curioso desse contexto é que o ano eleitoral realmente começou, mas não para todos. Bolsonaro e Lula já estão confortavelmente em campanha, abarcando 82,9% do total das menções aos presidenciáveis, no Twitter, segundo dados da AP Exata Inteligência Digital, medidos em agosto. O presidente conta com uma fatia maior de menções, atingindo 54%, ao passo que o ex-presidente alcança 28,2% das menções. 

Os demais pré-candidatos têm participações residuais. Vez ou outra conseguem polemizar algum tema e aparecem um pouco mais, só que rapidamente voltam a uma expressividade de figurante. Estão nesse patamar Ciro Gomes, João Dória, Eduardo Leite, Rodrigo Pacheco e Sérgio Moro. Os demais nomes, até o momento, são redondamente inexpressivos nas redes. 

Bolsonaristas e lulistas, portanto, estão praticamente sozinhos no campo virtual de batalha, que, hoje, é a principal arena da disputa. Bolsonaro atua para desviar o foco dos problemas reais do país e cria uma agenda própria de temas, fazendo com que internautas e a imprensa o sigam.  

Assim, conseguiu transformar em amplo debate nacional a questão do voto impresso e agora coloca como prioridade na política brasileira as decisões do Supremo Tribunal Federal, apimentando a cortina de fumaça com o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Morais. É estratégico. Ao pautar a nação de acordo com os temas de seu interesse, o presidente deixa em segundo plano questões como a inflação galopante, a crise energética e o desemprego. Se não agisse proativamente, certamente seria engolido pela agenda baseada nos resultados negativos de setores importantes da gestão federal. 

Já Lula evita a agenda ditada por bolsonaristas e busca reforçar sua liderança pessoal, tentando se livrar da imagem de corrupto, que o acompanha desde a Lava Jato. Tem apelado para o lado emocional das redes e busca passar imagem de vigor físico, mostrando as coxas e a jovem namorada, e também esbanja sorrisos, banhos de mar e atitudes conciliadoras. Assim, além de tentar impor a ideia de pertencer a uma esquerda muito próxima do centro, também fecha o espaço para críticas de que, aos 75 anos, já não teria o vigor necessário para comandar o país. Ou seja, mistura vitalidade e diplomacia. 

Mas, se as duas principais lideranças políticas do país conseguem dar um banho nos adversários na internet, elas também sofrem para ultrapassar barreiras e falar para além dos convertidos. Romper a bolha de influência é algo extremamente difícil, uma vez que ambos apresentam rejeições bastante altas. Também de acordo com dados de agosto da AP Exata, 60% das menções a Lula no Twitter são negativas. Índice muito próximo do de Bolsonaro, que abarca 62% de menções negativas. 

Teoricamente, haveria espaço para uma terceira via. No entanto, para que o eleitor escolha um caminho novo, é preciso que ele enxergue a estrada. E o problema do chamado “centro” é que os nomes que se apresentam não estão sendo vistos como alternativas capazes de romper a polarização. 

O mais curioso é que, dominando quase que a totalidade das conversações nas redes, petistas e bolsonaristas dominam também as ruas. Assim, tornam concreta a percepção de que seus líderes têm apoio popular. O centro ainda patina nesse sentido. Tem buscado ocupar espaços de rua e já marcou uma manifestação para o dia 12 de setembro. Mas ainda não entendeu que lideranças abstratas não significam muita coisa. É preciso se libertar das amarras partidárias, das articulações em Brasília, e focar na arena rede. Hoje a terceira via é fatalmente composta por retardatários com dificuldades em alcançar os reais protagonistas do processo. 

Desde que a internet se consolidou como o principal meio de debate político, os que não perceberam a mudança e se focam em cartas de protesto divulgadas pela imprensa e entrevistas metódicas, com palavras bonitas bem colocadas, estão sendo excluídos do processo a olhos vistos. Internet é “tiro, porrada e bomba”, mas há ciência por trás, e o mapa a mina são os dados. Lula e Bolsonaro sabem disso, por isso avançaram um ano à frente dos concorrentes.  


*Sérgio Denicoli é pós-doutor em Comunicação pela Universidade do Minho (Portugal) e Westminster University (Inglaterra), e também pela Universidade Federal Fluminense. Autor dos livros “TV digital: sistemas, conceitos e tecnologias”, e “Digital Communication Policies in the Information Society Promotion Stage”. Foi professor na Universidade do Minho, Universidade Lusófona do Porto e Universidade Federal Fluminense. Atualmente é sócio-diretor da AP Exata, empresa que atua na área de big data e inteligência artificial.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.


RPD 35 || Otávio do Rêgo Barros: Relações entre civis e militares, uma reflexão

Cabe à sociedade a responsabilidade de garantir o papel das Forças Armadas, fortalecendo-as como instrumento independente de Estado

“Para abolir a guerra há que remover suas causas que residem na imperfeição da natureza humana” (Liddell Hart)

Vivemos tempos sombrios com a falta de ordenamento de nossa realidade. Uma discussão sobre o papel das Forças Armadas se instalou para além dos muros dos quartéis. 

A atuação imoderada do chefe do Poder Executivo, a incentivar o envolvimento de militares nas ações políticas de governo, potencializou a questão. Somou-se a esse inconveniente, posturas contestáveis dos outros Poderes da República. O Legislativo, com tendência mesquinha de enxergar os interesses paroquiais, e o Judiciário, em suposta cruzada moralizadora, que ultrapassa o senso cotidiano de equidade. Formou-se um torvelinho de opiniões divergentes, desamparadas de conhecimento qualificado, que anuvia grupos da sociedade.  

Tomando por base o trabalho do professor Samuel Huntington, O soldado e o Estado (BIBLIEX, 2016), abordarei aspectos das relações entre civis e militares, contextualizados para o Brasil contemporâneo. Para fins de enquadramento, o livro foi publicado em 1957, período alcunhado de Guerra Fria, no qual a incômoda ascensão da União Soviética se projetava sobre a águia americana. 

A incompreensão da sociedade diante da obrigação do profissional das armas em ser pragmático perenizou-se com o correr dos tempos modernos. O militar é o mais pacifista dos integrantes de uma comunidade. Suas experiências o fazem conhecer a desgraça final dos conflitos humanos e os efeitos deletérios para a sociedade. Justifica-se seu pessimismo.  

Ele tem o dever de se posicionar publicamente sobre fatos que afetem a missão da organização e o desempenho profissional. O verdadeiro comandante, vestido da couraça envelhecida de homem das armas, jamais permitirá que seu julgamento seja deformado por conveniências políticas. 

A responsabilidade do militar perante o Estado é de natureza tríplice. Exerce uma função representativa, uma função consultiva e uma função executiva. O ordenamento dessas relações é capital para a política de defesa do país e procura consolidar um sistema de pesos e contrapesos entre o civil e o militar, sem sacrifício de valores sociais. Nos pratos da balança se equilibram, em posições opostas, o lícito interesse corporativo do militar e o necessário controle pela sociedade em ambiente democrático.  

Mais recentemente, o artigo 142 da CF/88, que elenca as missões “pétreas” nas Forças Armadas, vem sofrendo ataques. “Transitou em julgado, não cabe recursos”, embora encontremos grupos defensores de uma revisão sob um entendimento difuso de um papel de poder moderador das Forças Armadas, defendido em ambientes inelásticos, personalistas ou eivados de interesses políticos. Admito a necessidade de se reflexionar a missão constitucional das Forças, incorporando-se dinamismo modernizador ao conceito, que aclare possíveis imperfeições no texto. Não obstante, não se promovam modificações por contenciosos de momento. 

Voltemos à balança. Na disputa daqueles interesses está o nó de górdio das relações entre civis e militares. O grau em que eles entram em conflito depende das exigências de segurança externa e interna, e da natureza e força dos valores incrustados na sociedade. 

Entre nós, Terra Brasilis, a disputa se amplia pelo afastamento da sociedade ao tema, quase uma irresponsabilidade. Poderíamos justificar o desatino pelo baixo nível educacional que se reflete na incompreensão dos assuntos que envolvem Forças Armadas.  

Quem deveria assumir o papel de ator principal da peça defesa nacional? O povo brasileiro consciente! Mas, inconscientemente, ele transfere a responsabilidade de conduzir a cena aos próprios militares. 

A simbiose civil militar só se concretiza por meio de uma sólida obra de arte, que os torne interdependentes. Os batentes da ponte são a posição institucional dos militares, sua influência na sociedade, bem como a natureza da ideologia dos grupos nominados. A predominância egoísta de qualquer dos fatores fissura a estrutura, ofendendo a estabilidade da Nação. O que, convenhamos, não se espera em um país maduro democraticamente.  

É crucial fortalecer a segurança das instituições sociais, econômicas e políticas contra ameaças externas (das quais a médio prazo estamos libertos) e contenciosos internos (ardentes nos últimos tempos). Esses, a meu ver, sem soluções a curto prazo.  

Deixo-lhes uma reflexão: qual a natureza do corpo de militares que a sociedade deseja e pretende arcar? Enxuto e profissional ou abrangente e social? Envolvido em política ou abrigado dessas tentações?  

Os cenários de guerra não são mais westfaliano, quando se subordinavam à confrontação entre estados-nação. Agora, viceja a “guerra de quarta geração”, sem fronteiras, inimigos sem rosto e objetivos não palpáveis. O centro de gravidade é a vontade de lutar, e a opinião pública, genuína ou forjada. 

Por tudo isso, cabe à sociedade a intransferível responsabilidade de avaliar adequações que possam ser necessárias ao papel das Forças Armadas. Protegê-las contra corsários em busca de credibilidade. Fortalecê-las como instrumento independente de Estado, peça importante da estabilidade interna e da dissuasão externa tão somente em nome do povo brasileiro. 

Paz e bem! 


* Otávio Santana do Rêgo Barros é general de Divisão do Exército Brasileiro (R1). Doutor em Ciências Militares, foi porta-voz da Presidência da República (2019-2020). Comandou, no Rio de Janeiro, a força de pacificação nos complexos do Alemão e da Penha e a segurança da Rio+20. Foi Chefe do Centro de Comunicação Social do Exército.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

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RPD 35 || André Amado: A construção de um personagem

André Amado analisa, em seu artigo, como se constrói personagens fortes e inspiradores, capazes de levar os leitores a viverem histórias inesquecíveis

Peguei ao acaso I’ll Walk Alone, de Mary Higgins Clark, para ler. Ato sem pensar. A autora já publicou mais de 30 títulos, muitos dos quais frequentadores de listas de best-sellers, duas razões que, em geral, me levam a descartar a escolha. Acontece que, num primeiro exame, logo nos agradecimentos, me deparei com a seguinte declaração: 

Cheguei ao final, o que quer dizer que a história foi contada, a jornada, concluída, e as pessoas, que no ano passado não passavam de produto de minha imaginação, viveram a vida que escolhi para elas, ou, melhor dizendo, que elas escolheram para elas mesmas. 

Clark acabava de desmontar meus preconceitos contra livros de produção em massa, preconceitos que, de resto, não faziam o menor sentido para quem, como eu, era admirador habitual de Michael Connelly e John Grisham, ambos autores prolíferos de obras de sucesso. Enfim, na beirada de uma estante, não são raras demonstrações de incoerência. 

Fascinou-me que, em uma frase, Clark expusesse um dos dilemas centrais dos romancistas: alimentar a autonomia dos personagens de suas histórias, ou, ao contrário, controlar até mesmo a respiração deles. Em uma palavra, confessaria Ray Bradbury (1920-2012): “Meus personagens escrevem a história para mim. Eles me dizem o que querem, e eu lhes digo para ir em frente. Acompanho seus movimentos, datilografando o texto à medida que eles correm ao encontro do destino”. Já Vladimir Nabokov (1899-1977) decretaria: “Se eu quiser que meus personagens atravessem uma rua, eles atravessam e ponto!”. 

Por sorte, a riqueza dessa discussão rejeita posições extremadas. Gustave Flaubert (1821-1880), a quem se atribui um dos pilares da literatura ocidental, diria: “O escritor tem de atuar como Deus: está em todas as partes, mas nunca é visível”. Ernest Hemingway (1899-1961), outro grande nome da galeria de escritores, centraria o debate: “Ao escrever uma novela, o escritor deve criar um ser vivo, não pessoas com personagens”. Era a pista de que precisava Milan Kundera (1929-...) para afirmar: “O personagem não é a simulação de um ser vivo. É um ser imaginário… Dom Quixote é quase impensável como ser vivo e, no entanto, em nossa memória, que personagem é mais vivo do que ele?”. 

Duas outras referências me enchem as medidas. A primeira, atribuída a Michelangelo: Não faço esculturas, apenas retiro o excesso de pedras. A outra, de um escritor japonês, por cujo Nobel em Literatura sigo torcendo. Trata-se de Haruki Murakami, que assim se expressou em Killing CommendatoreSempre desfrutei o momento, cedo de manhã, em que olho intensamente para a tela toda branca. Chamo-a de ‘Tela Zen’. Ainda não pintei coisa alguma, mas é mais do que um mero espaço em branco. O que se esconde naquela tela branca é o que haverá de emergir. Olhando mais atentamente, descubro várias possibilidades, que se cristalizam perfeitamente em como devo prosseguir. Este é de fato meu momento de prazer. O momento em que a existência e não-existência se reconciliam”. 

Quem sabe não seja esta a melhor maneira de se construir um personagem: reconciliar o que queremos que ele seja e o que ele mesmo pretende ser? 


*André Amado é escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.