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Jean-Luc Godard é um diretor, roteirista e crítico de cinema franco-suíço | Foto: TV Pampa

Revista online | Godard, o gênio exausto

Vladimir Carvalho*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)

A morte consentida de Jean-Luc Godard pode sinalizar para muitos o final de uma era cinematográfica marcada desde a primeira vanguarda, nos anos 1920, por uma incessante busca de legitimação de uma atividade artística que, de cara, se autodenominava de Sétima Arte, com técnica e linguagem próprias. Cedo seria respaldada pela formação de uma mentalidade que nasceu com os cineclubes, os críticos e as revistas especializadas – o que hoje é conhecido de forma generalizada por cinefilia. Teorias e posturas estéticas renovadoras já se faziam sentir ao tempo do cinema soviético com Sergei Eisenstein, Dovijenko, Dziga Vertov e outros até a explosão que foi o Cidadão Kane, de Orson Welles, nos anos de 1940.

Na década posterior, os franceses jogaram papel importante a partir da ação desenvolvida pela Cinemateca Francesa e com o aparecimento do grupo liderado por André Bazin, grande influenciador e principal crítico da revista Cahiers du Cinéma, que se tornaria célebre e em cujo agitado seio surgiria o até ali desconhecido franco suíço. Ao lado de outros, como François Truffaut, Jacques Rivette, Eric Rohmer e Claude Chabrol, compondo a tendência que seria conhecida, ou apelidada, de “jovens turcos”. Mais tarde, alguns deles se renderiam aos encantos da prática cinematográfica como ativos diretores que defendiam a todo custo a autonomia de um cinema autoral, desde ali, em confronto com o poderio dos produtores que condenavam por princípio o filme clássico francês e valorizavam uma política de autores.

Nesse clima de camaradagem solidária, o futuro autor de Acossado (1960) pontificou-se como um ferrabrás da crítica atento à condução moderadora de Bazin, mas em franco contraste com Georges Sadoul, um marxista militante, que sempre defendeu o cinema soviético não só do período eisensteiniano como também os das gerações posteriores. Godard foi desde sempre um anarquista, pontificando-se na avaliação e cotação dos filmes, no famoso Conseil des Dix, da revista.

Em 1960 Godard vai à “guerra” com uma narrativa desconcertante e uma linguagem inédita até aquele momento. O público delirou com Acossado, e a crítica foi obrigada a reconhecê-lo. Segue-se com igual liberdade estética, Uma Mulher é uma Mulher (1962) e O Desprezo (1963). Depois a política faz a festa em Masculino, Feminino (1966); a moda godardiana continua em Made in USA (1966) e em A Chinesa (1967), que radicaliza em termos de desdramatização e nos aspectos políticos. É um cinema diametralmente oposto aos clássicos americanos, mas que tinha muito da simpatia que os “jovens turcos” nutriam pelos filmes B, nos Cahiers. Porém, ainda não era, claro, o Godard radical e em mutação do Grupo Dziga Vertov, do final dos anos 1960, e que, em Maio de 68, se confunde com os estudantes revoltados, filmando nas barricadas de Paris.

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E foi nessa rumorosa onda de 1968, num veemente protesto contra a demissão do carismático Henri Langlois, da curadoria mor da Cinemateca Francesa, que o Festival de Cannes foi atropelado e quase não aconteceu. Godard protagonizou a cena principal, pendurado nas cortinas do Palais, impedindo que as sessões começassem, com ampla cobertura da imprensa. Em Paris, a redação dos Cahiers, na rua Marbeuf, virara um comitê de agitação em favor dos estudantes; e a temperatura subiu quando o filme de Jacques Rivette, A Religiosa, foi proibido. Novamente é um empedernido Godard que toma as dores e defende Rivette e seu filme, rompendo com o grande André Malraux, então ministro da Cultura, em carta que passou aos anais como uma irrespondível peça de condenação do Estado gaullista.

Entretanto, no âmbito de certa crítica, “a sua utopia de um cinema marxista, de parceria autoral com a classe trabalhadora, resultou tão frustrada quanto a aliança dos estudantes com os proletários da Renault”, como argutamente observou o crítico e escritor Sergio Augusto.

A propósito do perfil muitas vezes contraditório do autor de Je Vous Salue Marie (1985), podemos recordar aqui episódio ocorrido durante o Festival Internacional do Filme, o histórico FIF, do Rio de Janeiro. Godard compareceria ao mesmo para a apresentação do seu filme Alphaville. Tudo acertado, pouco depois ele mandou um telegrama desistindo de participar, num gesto de protesto e condenação da ditadura militar no Brasil. Instalada a confusão, surpreendeu a todos, negando peremptoriamente a autoria da mensagem, e atribuindo-a a terceiros. Quando tomou conhecimento da negaça, o crítico Robert Benayon, da revista Positif, rival dos Cahiers, presente ao evento brasileiro, desabafou para quem quisesse ouvir. Para ele, tratava- se de “mais uma daquele fascista!”. Nesse tempo, andava o autor dessas notas, trabalhando como assistente de Arnaldo Jabor, num filme que realizou sobre o FIF, Rio, Capital do Cinema, e ouviu os comentários acerca desse lance, nos bastidores da sede da mostra, no Copacabana Palace.

Essa época no Rio foi muito marcada pelos filmes e paixão pelos diretores da Nouvelle Vague. Uma pequena multidão de cinéfilos não arredava o pé das sessões do Cinema Paissandu, no Flamengo. Ali enturmei-me levado pelas mãos de Cosme Alves Neto e assisti, imerso na euforia da rapaziada, a quase todos os filmes de Godard lançados ali naquele ano de 1968. A cidade tomada pelo alvoroço político e pela revolta em virtude da morte de Edson Luiz, secundarista assassinado pela polícia no restaurante Calabouço, no aterro do Flamengo, estava transtornada. O clima era de insegurança e medo, mas filmes como Tempo de Guerra, de Godard, nos convocavam à ação, e, portanto, era também do Paissandu que partíamos para engrossar as fileiras da célebre Passeata dos Cem Mil. O Maio de 68 estava fresquinho em nossas agitadas cabeças. Mesmo sabendo das restrições ao autor de Masculino, Feminino, taxado até de fascista pelo pessoal da revista Positif, numa linha editorial que confrontava com os Cahiers du Cinéma, eu pouco ligava. Já havia lido os elogios de Georges Sadoul à Aruanda, o filme de Linduarte Noronha, em que atuei como roteirista e assistente, e num rompante juvenil pouco me interessava que Godard o achasse um stalinista superado pelo tempo, que já era tomado pelo revisionismo que resultou das sérias denúncias feitas por Kruschev; nem tomáramos conhecimento das restrições de Lévi Strauss ao franco suíço; tampouco da ojeriza que Jeanne Moreau lhe dedicava. Godard vivia agora a sua febre maoísta junto ao Grupo Dziga Vertov. E era nosso herói.

Muito depois é que tomaríamos conhecimento das peripécias do nosso ídolo quando da realização de seu filme Vento do Leste. Ele proporia a Glauber Rocha, que fazia importante participação na obra, que juntos destruíssem o cinema como arte. O brasileiro, sagaz como sempre, logo sacou que Godard começava a sucumbir à depressão e militava numa espécie de autodestruição, e a sua resposta foi a de que ele, Glauber, ao contrário, optava pela construção de um cinema inovador e de salvação, no Brasil e no Terceiro Mundo.

Confira, abaixo, galeria de imagens:

Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
História do cinema brasileiro deve ser lembrada | Foto: Roman Rybaleov/Shutterstock
Vladimir Carvalho, um grande cineasta | Foto: FAP
Ticket cinema | Foto: ktsdesign/Shutterstock
O cinema é um do maiores entretenimento da sociedade | Foto: Fer Gregory/Shutterstock
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Cinema brasileiro | Foto: AlexLMX/Shutterstock
Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
História do cinema brasileiro deve ser lembrada | Foto: Roman Rybaleov/Shutterstock
Vladimir Carvalho, um grande cineasta | Foto: FAP
Ticket cinema | Foto: ktsdesign/Shutterstock
O cinema é um dos maiores entretenimentos da sociedade | Foto: Fer Gregory/Shutterstock
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Cinema brasileiro | Foto: AlexLMX/Shutterstock
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Um dos maiores nomes do cinema mundial | Foto: Cinevitor
História do cinema brasileiro deve ser lembrada | Foto: Roman Rybaleov/Shutterstock
Vladimir Carvalho, um grande cineasta | Foto: FAP
Ticket cinema | Foto: ktsdesign/Shutterstock
O cinema é um dos maiores entretenimentos da sociedade | Foto: Fer Gregory/Shutterstock
Jean Paul Godard nos bastidores do filme Ária, em 1987 | Foto: Cinevitor
Cinema brasileiro | Foto: AlexLMX/Shutterstock
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Gênio consumado, mas profundamente contraditório e iconoclasta, talvez naquele momento já se manifestasse no espírito de JLG o quadro psíquico que o dominou no fim da vida, depois da realização de filmes não tão brilhantes e plenos de vigor, como os daquela fase em que fez sombra a toda uma geração do cinema francês da Nouvelle Vague. Oriundos quase todos dos Cahiers, o qual terminou, é bom lembrar, por apoiar o Cinema Novo brasileiro, especialmente promovendo seus autores mais importantes e mais afinados com o ideário da revista, como é o caso de Glauber Rocha, Cacá Diegues e Gustavo Dahl.

Embora tumultuada, a existência de Godard foi profícua e intensa, mas sua morte assistida parece se justificar pelo cansaço e esgotamento que o vitimou, e sua descida se deu também pela inexorável ação, digamos assim, da força da gravidade em vista do peso de seus 91 anos. Que descanse em paz!

Sobre o autor

*Vladimir Carvalho é um cineasta e documentarista brasileiro de origem paraibana.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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O cineasta Jean-Luc Godard durante o Festival de Cannes, em 1987 - AFP

Morre Jean-Luc Godard, o grande mestre da nouvelle vague no cinema, aos 91

Inácio Araujo*, Folha de São Paulo

Jean-Luc Godard, o ícone da nouvelle vague, morreu nesta terça-feira. Ele teria recorrido ao suicídio assistido, não por estar doente, mas muito cansado, de acordo com o relato de um familiar ao jornal francês Libération. A prática é permitida na Suíça, onde Godard vivia.

O diretor por trás de uma revolução no cinema veio de uma família de banqueiros riquíssima, mas procurou se afastar por completo dessa riqueza e foi como operário que financiou seu primeiro curta-metragem.

Mais tarde, já morando em Paris, ele roubou do avô um exemplar de um livro autografado por Paul Valéry especialmente para o avô, de quem era muito amigo. Godard podia ter pedido dinheiro em casa, mas preferiu o furto. Era sua forma de mostrar o desejo de independência.

Quando escreve seu primeiro artigo para a já mundialmente famosa revista Cahiers du Cinéma, há 70 anos, deu ao seu texto o nome de "Defesa e Ilustração da Decupagem Clássica". Expunha ali as virtudes dos filmes feitos e montados à maneira clássica, pois, como explicitaria quatro anos mais tarde, a montagem e a direção de um filme são a mesmíssima coisa.

Isso ele fez na revista daquele que foi "o pai espiritual" dos jovens redatores da revista —André Bazin, o criador da teoria realista do cinema moderno, para quem a montagem era não mais do que uma trapaça.

Jean-Luc Godard foi assim desde sempre —iconoclasta. Gostava de pôr tudo em questão, até ele mesmo.

Confira filmes de Jean-Luc Godard

Jean Seberg e Jean Paul-Belmondo em cena do filme 'Acossado'; de 1960 Divulgação

Em 1959, questionaria o cinema inteiro, com "Acossado", sua retumbante estreia. Tudo era improvisado. Não havia roteiro. Pela manhã, o diretor tomava as notas sobre o que pretendia filmar naquele dia. Encerrava as filmagens quando entendia que a inspiração tinha acabado.

A classe cinematográfica tradicional, tão atacada nos Cahiers pela turma da nouvelle vague, se regozijava com aquele filme que, diziam, seria impossível de montar.

Doce ilusão. Não só "deu montagem", como a mais moderna do mundo. Aquela em que cada "raccord" —isto é, o encontro entre dois planos— parecia desafiar os postulados do "bom cinema" e anunciar o futuro de sua arte.

Desde então mudaram os parâmetros da montagem. Mas também os da filmagem. Com seu fotógrafo, Raoul Coutard, criou um estilo de reportagem, cinema com câmera na mão, sem luz artificial, ou quase, captação das ruas ao vivo, longe dos estúdios, um tanto de ficção e um tanto de documentário no mesmo filme.

Godard libertou o cinema de todas as convenções que o prendiam a um determinado tipo de forma. Sacudiu a poeira da sua arte com tal ênfase que com um único filme se tornou um diretor essencial para o conhecimento do cinema.

Sua arte era "a verdade em 24 quadros por segundo", disse. Era também a mais próxima do homem, pois a única que o captava por inteiro em seu tempo e espaço, sem intermediários. Mestre das frases de efeito (mas não só de efeito), postulou, com seu amigo Eric Rohmer, a superioridade de sua arte —"o cinema é um pensamento que toma forma, bem como uma forma que permite pensar".

Godard gostava da liberdade. Inclusive da de mudar de filme para filme. Cada filme era um novo experimento. Gostava, por isso mesmo, do cinema mudo, aquele de um tempo "em que o cinema ainda não sabia o que era" e se buscava, filme após filme. Antes de ser arte ou modo de expressão, o cinema se confundia então com a liberdade e a descoberta permanente.

Cena do filme 'Acossado', do diretor Jean Luc Godard Divulgação

Quando passou da crítica à direção, Godard desafiou todas as regras estabelecidas. Se as regras diziam que não se faz um primeiro plano com lente grande angular, ele fazia. Se diziam que não se pode usar branco para evitar o brilho, ele usava. Cada filme parecia ir em um sentido diferente do anterior. A contradição não deixa de ser uma forma de arte.

Além de Raoul Coutard, o fotógrafo, sua companheira nessa primeira fase foi a atriz dinamarquesa Anna Karina, por quem se encantou vendo um filme publicitário e com quem se casaria pouco depois, lançando seu rosto, já, em "Uma Mulher É u ma Mulher", de 1961.

O casamento duraria menos que a parceria. "Alphaville", de 1965, é o primeiro filme que eles fizeram depois da separação —e em não poucos momentos uma declaração de amor do cineasta por sua musa. Fariam ainda "Made in USA", de 1966.

A única fidelidade de Godard, desde então e até agora, foi à atualidade. Podemos vasculhar sua filmografia. É sempre do presente, de algo que o atrai ou inquieta que seus filmes estão falando. Além disso, se permitiu sempre ser contraditório.

A contradição atingiu também sua vida pessoal, como relata sua segunda ex-mulher, Anne Wiazemsky. Tão revolucionário na arte, podia ser doentiamente ciumento em casa. Casa que, por sinal, podia usar como locação. É Wiazemsky, de novo, quem relata a dureza de ser forçada a retomar pelo diretor, em cena, na manhã seguinte, a mesma discussão que tivera com ele, e no mesmo lugar, na noite anterior.

Para o bem e para o mal, assim construía sua arte. Seu amigo Eric Rohmer, também diretor, dizia que Godard era como um ladrão, que pilhava uma imagem aqui, uma citação literária ali, depois um trecho de música, depois a imagem de um outro filme, juntava tudo e transformava numa ideia própria. Assim montava seus painéis, colando pedaço a pedaço, às vezes desorientando o espectador que por vezes procurava ali uma profundidade que Godard mesmo nunca procurou. Sua arte era a do olhar, a da pele.

Era, também, do momento. Cada filme de Godard é uma espécie de documentário sobre o momento em que é feito —"O Pequeno Soldado", a Guerra da Argélia; "Alphaville", o totalitarismo informativo; "O Demônio das Onze Horas", a sociedade de consumo; "Weekend", a sociedade automobilística e seus congestionamentos-monstro; "A Chinesa" e a ascensão do maoísmo.

A esse último, por sinal, Godard aderiu nos idos de 1968. Renegou sua obra anterior, deixou o cinema comercial, passou a fazer filmes coletivos destinados à classe operária, que, verdade seja dita, não se sensibilizava muito com eles.

Godard passou daí às séries em vídeo, quando nenhum cineasta ousava usar essa tecnologia. Que importa? Godard experimentava. Foi experimentando que chegou à TV, com as séries "Seis Vezes Dois", de 1976, e "France, Tour, Détour, Deux Enfants", de 1977.

A partir daí, seus filmes podem ser definidos, cada vez mais, por um novo gênero —o ensaio cinematográfico. Nem ficção, nem documentário, às vezes os dois, às vezes nenhum. Voltou ao circuito comercial com "Salve-se Quem Puder (A Vida)".

Ora trouxe grandes estrelas, como Johnny Halliday e Isabelle Huppert, ora lançou talentos, como Marushka Detmers. Cada vez mais solitário, ele se recolheu à sua casa na Suíça e, não raro, apenas juntando pedaços de filmes de outros, soube impor, pela montagem, sua visão das coisas. Falou das guerras na Europa, da ascensão do neoliberalismo, da América, do socialismo.

Cena do filme 'A visitante francesa', trabalho mais recente Isabelle Huppert, que terá pré-estreia em São Paulo Divulgação

Desde "Acossado", que sedimentou também o poder de seu ator-fetiche Jean-Paul Belmondo, até os mais recentes filmes-ensaio, é possível gostar ou não de sua arte, "entender" ou não o que está lá, achar chato ou não. Mas três coisas não se poderá negar: a primeira é que se contam nos dedos os artistas com a inteligência e a inquietude de Godard; a segunda, cada vez que ele pôs a câmera para filmar, combinou cores, moveu seus atores e produziu beleza; a terceira, desde que começou a filmar o cinema nunca mais foi o mesmo.

O solo em que pisamos, quem o fecundou foi Godard. Com chatices e erros, mas também e sobretudo com gênio e grandeza.

*Texto publicado originalmente no portal da Folha de São Paulo.


Cacá Diegues: Gladiador defunto mas intacto

Gláuber Rocha foi uma luz muito intensa

Há pessoas que, quando morrem, não é nem justo que não tenha nada melhor do lado de lá. Semana passada, no dia 22 de agosto, celebramos 39 anos da morte de Gláuber Rocha, nosso maior e mais discutido cineasta brasileiro. É até injusto reduzir seu talento e sua importância à palavra “cineasta”, aprisioná-lo nessa atividade. Gláuber foi tudo o que era possível ser no mundo da cultura, da criação e dos costumes, em seu tempo e para além dele.

Na Bahia, onde nasceu, ele começou sua agitação e fez seus primeiros filmes de curta-metragem, assim como os longas impactantes “Barravento” e “Deus e o diabo na terra do sol”. Além dos filmes e do cinema, Gláuber inaugurou uma vida de ideias e inquietações que o tornariam um pensador indispensável do Brasil e do mundo em que vivia. Segundo Nélson Pereira dos Santos, mestre de toda a nossa geração, “o Cinema Novo é quando Gláuber Rocha chega ao Rio de Janeiro”. Era ele que cobrava, de cada um de nós, a contribuição ao que deveria ser o Brasil nas telas. Ou as telas do Brasil.

É bobagem tentar decifrar os sonhos de Gláuber, tudo o que lhe atormentava como projeto. Gláuber não tinha sonhos, tinha delírios. Delírios tão belos e explosivos, destrutivos e criativos, quanto o mundo em que ele gostaria de ter vivido. Quase no fim de sua vida, em Sintra, Portugal, ele me deu a ler o roteiro de um novo filme que pretendia fazer na Europa. No final desse filme que nunca foi feito, depois de uma guerra planetária de extermínio, envolvendo forças políticas da época, todas sujas e repudiáveis, o mundo simplesmente se desfazia. Na última cena, o casal de heróis navegava em frágil embarcação, em direção à derradeira ilha tropical, onde iriam viver seu amor sozinhos e em paz.

Além da luz que os filmes de Gláuber deitaram sobre seu tempo, seus gestos de insatisfação, em textos contundentes e aparições na televisão, sempre foram decisivos para a formação do que foi o Brasil de seu tempo. A cada escândalo provocado por suas declarações sobre cinema, política ou costumes correspondia uma nova forma de pensar o assunto, ainda que não fosse a que ele sugeria. Gláuber era uma fábrica artesanal de ideias que não se encontravam em livro algum, de nenhuma tendência. Na melhor das hipóteses, ele as confrontava com amigos de confiança, a quem nunca deixou de consultar. Um guerreiro incansável que enchia seus próximos com tanta doçura.

O que em Gláuber chamavam de “loucura” tinha sempre uma clara estratégia; e a estratégia não é um hábito de loucos. Ninguém no mundo, mesmo seus contemporâneos e aqueles que conviveram com ele, jamais entenderá Gláuber completamente, como se acaba entendendo um poema de Jorge de Lima, por exemplo. Ser um mistério permanente, fonte inesgotável de novas revelações e descobertas à medida que o tempo passa, é o que caracteriza os poucos seres excepcionais, que a angústia e a iluminação humanas são capazes de produzir.

Já repeti algumas vezes que Gláuber Rocha foi um cometa que passou em nossas vidas, uma luz muito intensa e bela que atravessou rápido demais nosso firmamento. Tão cedo veremos nada igual; mas também não esqueceremos, nunca mais, o que vimos. Penso que a melhor epígrafe para Gláuber está no que ele mesmo escreveu, em 1978: “A descoberta poética do final do século será a materialização da eternidade”.

Gláuber sempre fará falta. Ele certamente não deixaria passar em brancas nuvens a declaração do embaixador americano, Todd Chapman, em entrevista recente, sobre o 5G, a internet das coisas, a evolução mais radical do universo digital. O leilão da rede 5G no Brasil está previsto para 2021, e Mr. Chapman afirma que, se o Brasil optar pela tecnologia chinesa da Huawei, reconhecidamente a mais avançada hoje, terá que “enfrentar as consequências”. Não gosto do regime chinês e de seu modo de vida, detesto o autoritarismo que, neste momento, se espalha pelo mundo, à direita e à esquerda. Mas o que é que a embaixada americana tem a ver com nosso futuro tecnológico? Gláuber não deixaria barato.


2020 começa bem para cinema brasileiro, diz Lilia Lustosa à Política Democrática Online

Crítica de cinema analisa, em artigo na revista da FAP, obras cinematográficas de grande destaque

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O ano de 2020 começou bem para o cinema brasileiro. A afirmação é da crítica Lilia Lustosa, em artigo publicado na 17ª edição da revista Política Democrática Online. “Primeiro foi a indicação do Democracia em Vertigem (2019), de Petra Costa, ao Oscar de melhor documentário. Em seguida, foi a vez de Meu Nome é Bagdá (2020), de Caru Alves de Souza, levar o Grande Prêmio do Júri Internacional na Mostra Generation do Festival de Berlim, dedicada a produções sobre a juventude”, escreveu ela na publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira).

» Acesse aqui a 17ª edição da revista Política Democrática Online!

De acordo com Lilia, Berlinale, o mais politizado dos grandes eventos internacionais de cinema, esteve bem verde e amarela neste ano. A autora observa que o júri, que teve Kleber Mendonça Filho como membro, teve de avaliar o recorde de 19 filmes brasileiros (algumas coproduções) competindo em diversas categorias, incluindo a principal (Urso de Ouro) com Todos os Mortos (2020), de Caetano Gotardo e Marco Dutra, que integram o coletivo paulista Filmes do Caixote. “Sinais do prestígio e do excelente nível que nossa cinematografia atingiu”, escreve a crítica de cinema.

Desde 1898, quando Afonso Segreto registrou as primeiras cenas brasileiras a bordo do navio Brésil, até os dias de hoje, o caminho não tem sido fácil. “Problemas de falta de regulamentação e de orçamentos escassos, somados à dificuldade para inserir filmes no circuito comercial, vêm desde sempre obstruindo as veredas de nossa cinematografia”, lamenta Lilia.

Apesar disso, segundo a autora do artigo publicado na revista Política Democrática Online, pode-se dizer sem medo que a qualidade do cinema brasileiro melhora a cada ano. Desde os anos 1930, de acordo com ela, o país produz obras belíssimas, como o Limite (1931), de Mário Peixoto, pouco conhecido entre nós, apesar de ter sido eleito pela Associação de Críticos Brasileiros como o maior filme nacional de todos os tempos. Ou ainda Ganga Bruta (1933), de Humberto Mauro, que impressionou tanto o historiador de cinema francês Georges Sadoul, que este tratou logo de incluí-lo entre os maiores cineastas do mundo.

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