China

Miguel Caballero: Os recados de Renan para Bolsonaro e os militares na abertura da CPI da Covid

Não faltaram recados e indiretas a Jair Bolsonaro, embora Renan Calheiros tenha evitado citar nominalmente o presidente da República. Em seu discurso na primeira sessão da CPI da Covid, o relator, porém, foi mais direto ao falar das Forças Armadas, botando o dedo diretamente na relação que é uma das principais bases de apoio do governo Bolsonaro.

Em dois anos e meio, os militares apoiaram o presidenciável Jair Bolsonaro, ocuparam muitos postos na administração federal e, em que pesem alguns estremecimentos e rompimento com os que foram demitidos do governo, os principais atritos entre o presidente e os militares se restringiram à preocupação manifestada fora dos microfones de que um mau desempenho do governo contamine a imagem das Forças Armadas. Esse ponto jamais esteve tão em risco como agora, e a CPI será um novo teste da solidez dessa aliança.

Não se trata de esperar que os militares, categoria longe de ser homogênea, abandone ou não o presidente. Mas o Exército, especialmente, dificilmente escapará do escrutínio da CPI, e precisará limitar até que ponto poderá dividir responsabilização sobre erros da crise com o governo.

A fala de Renan tocou em pontos sensíveis na caserna. Citou as “454 mortes em combate na Segunda Guerra Mundial”, episódio quase sagrados para as Forças, lembrando em seguida que diariamente morre um número maior de brasileiros. “O que teria acontecido se tivéssemos enviado um infectologista para comandar nossas tropas?”, perguntou Renan. “Porque guerras se enfrentam com especialistas, sejam elas bélicas ou sanitárias. A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na Saúde. Quando se inverte, a morte é certa. E foi isso que aconteceu”.

É muito possível, porém, que a CPI tenha de ir além da participação de militares na gestão de Eduardo Pazuello. Embora Renan tenha dito em seu primeiro discurso que “não é o Exército que estará sob análise”, as investigações que a comissão fará sobre propaganda e distribuição de remédios sem eficácia cientificamente comprovada pode alcançar a compra de insumos e produção da hidroxicloroquina pela Força. O Exército, inclusive, já foi instado pelo Tribunal de Contas da União a, juntamente com o Ministério da Saúde, prestar esclarecimento sobre os gastos com a produção e distribuição do remédio.

Uma eventual convocação de um militar da ativa, fardado, a dar depoimento na mesa da CPI, é uma cena com grande potencial de danos à imagem das Forças Armadas.

O último comandante do Exército, general Edson Pujol, perdeu o posto após divergência públicas com o presidente no discurso de combate à pandemia.

No seu retorno ao protagonismo do noticiário político, Renan Calheiros reservou também outros recados. Um dos principais articuladores da resistência da classe política à Lava-Jato, repetiu no discurso ataques ao ex-juiz Sergio Moro — “não vou condenar ninguém por convicção” — e aos procuradores da antiga força-tarefa de Curitiba — “aqui nessa CPI não vai ter PowerPoint”.

Opositor ao governo Bolsonaro, o senador não perdeu a oportunidade de lançar uma alfinetada ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Numa referência indireta à inércia da PGR para investigar possíveis crimes do presidente na pandemia, Renan afirmou que “CPIs vicejam quando os canais tradicionais de investigação se mostram obstruídos e isso é um ensinamento histórico”.

Por fim, fez também uma provocação a Bolsonaro, mesmo sem citá-lo. Ao elogiar o Supremo Tribunal Federal (STF) por ter garantido à minoria do Senado o direito de instalação da CPI após atingir as assinaturas necessárias, afirmou que o tribunal foi “terrivelmente democrático”, fazendo questão de usar o advérbio preferido do presidente sempre que afirma, há dois anos, que indicará um evangélico para o Supremo.


Bernardo Mello Franco: O primeiro milagre da CPI

A CPI da Covid já produziu seu primeiro milagre: transformou Flávio Bolsonaro num defensor do isolamento social. Ontem o senador tentou convencer os colegas a deixar a investigação para depois. “Por que não esperar todo mundo se vacinar?”, sugeriu.

A preocupação tardia com a doença não foi a única surpresa do discurso. Com a pele bronzeada pelas férias no Ceará, o primeiro-filho atacou o presidente do Senado, o relator da CPI e até a bancada feminina. O falatório não virou votos para o governo, mas escancarou o desespero do clã presidencial.

Pelo que se viu ontem, a família tem motivos para temer a comissão. Na sessão inaugural, a tropa bolsonarista levou um baile. Flávio ainda foi obrigado a engolir uma descompostura da senadora Eliziane Gama. Ela avisou que ali não era lugar para chute na porta e ironia machista. Só faltou dizer que o Zero Um não estava em Rio das Pedras.

Quando a reunião começou, os governistas se agarraram à liminar que impedia Renan Calheiros de assumir a relatoria. Foi uma tática desastrada. Como se previa, a decisão foi derrubada rapidamente. O senador se sentou na cadeira e desceu a lenha no Planalto.

“Vamos dar um basta aos suplícios, à inépcia e aos infames”, discursou. Ele atacou o negacionismo e prometeu “apontar culpados”. Num recado a Jair Bolsonaro, citou os genocidas Augusto Pinochet e Slobodan Molosevic. “O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes, e eles devem ser punidos”, arrematou.

Renan também criticou a entrega do Ministério da Saúde ao general Eduardo Pazuello, que no domingo passeava sem máscara num shopping de Manaus. “A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na saúde. Quando se inverte, a morte é certa”, disse.

O emedebista não se limitou à retórica: de cara, apresentou 11 requerimentos. A lista inclui a convocação de quatro ministros da Saúde, a requisição de documentos e o compartilhamento do inquérito das fake news.

No dia em que a comissão entrou em campo, Bolsonaro usou cinco palavras para defender seu desempenho na pandemia. “Eu não errei em nada”, garantiu. O capitão vai precisar de outro milagre para convencer a CPI.


Vera Magalhães: Caem todas as máscaras

Os ministros Paulo Guedes e Luiz Eduardo Ramos merecem ser convocados para depor na finalmente instalada CPI da Covid só com base nas declarações estarrecedoras que, sem saber que eram gravados, emitiram na reunião desta terça-feira do Conselho Nacional de Saúde Suplementar.

Num dos ataques verborrágicos que sempre tem e, depois de flagrado, diz ter sido mal interpretado, o ministro da Economia do Brasil diz, numa só tacada, que os chineses inventaram o coronavírus (teoria conspiratória sem comprovação), mas produziram vacinas ruins, piores que as dos americanos, para combatê-lo.

A vacina chinesa CoronaVac é uma das poucas de que os brasileiros dispõem para se proteger do vírus. Só está disponível por ação do governo de São Paulo e do Instituto Butantan, porque o governo a que Guedes serve boicotou sua aprovação e disse por muito tempo que não a compraria.

Teve de comprar porque o presidente Jair Bolsonaro, chefe de Guedes, optou por não comprar as vacinas “melhores”, da Pfizer, quando lhe foram oferecidas com antecedência e em larga escala. Tudo isso será objeto de escrutínio da CPI.

O ministro da Economia do Brasil também lamentou o aumento na expectativa de vida, atribuindo a ele, e não ao show de incompetência do governo de que faz parte, a falta de insumos, leitos e vacinas. É um escárnio inconcebível diante de quase 400 mil mortos pela covid-19.

O colega de Guedes na Casa Civil, general do Exército brasileiro Luiz Ramos, também no quentinho de uma reunião que imaginava não estar sendo registrada em áudio, confessou uma molecagem: ter tomado vacina escondido (!) porque seria a orientação do governo.

Aqui escancara outra razão por que a CPI tem de existir, e por que ele tem de se sentar no banco dos depoentes: além de boicotar a compra de vacinas, o governo de que Ramos e Guedes fazem parte difundiu desinformação que alarmou a população, reduziu a confiança na imunização como forma de debelar a pandemia e não promoveu a campanha de informação e conscientização que era seu dever produzir. Esses itens constam da tabela que a Casa Civil que Ramos produziu, um dos poucos documentos que atestam afirmações reais sobre o governo já produzidos na era Bolsonaro.

Longe do confessionário dos homens públicos de Brasília, um ex-companheiro de primeiro escalão de Guedes e Ramos, o general Eduardo Pazuello, escolheu a dedo a cidade que vivenciou o maior caos do morticínio de Covid-19, Manaus, para ser um fanfarrão e desfilar sem máscara num shopping center.

O homem que assinou o protocolo indefensável do tratamento precoce com cloroquina, que, segundo o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten, foi o grande responsável pela não aquisição de vacinas, que negligenciou os avisos sobre a falta iminente de oxigênio na mesma Manaus em que tira sarro na cara dos brasileiros enlutados, tem de se sentar logo no banco da CPI para prestar contas sobre sua atuação criminosa à frente de um ministério para o qual nunca poderia ter sido nomeado num país decente, por um presidente que levasse uma emergência sanitária a sério.

Não foi só Pazuello que tirou a máscara diante do país. Guedes e Ramos, com suas falas indignas, também foram desmascarados, ainda que a contragosto, diante da sociedade. O que mais se pode esperar deste governo, que, mesmo com uma investigação contra si instalada no Senado Federal, age com tamanha desídia?

Nada parece chamar esses homens à responsabilidade. Diante desse quadro de cinismo de Estado, é sinal da nossa desgraça que seja alguém com o currículo de Renan Calheiros a comandar as investigações. Não terá sido a primeira vez. Os que hoje condenam Renan há muito pouco tempo chamavam Eduardo Cunha de herói pela condução do impeachment de Dilma Rousseff. As máscaras estão todas no chão. Que se punam os culpados.


Cristovam Buarque: Não basta a China

A construção do Brasil é tarefa dos brasileiros

No excelente livro “Brasil, construtor de ruínas: Um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro” a jornalista escritora Eliane Blum escreveu que: “Como o mundo regido pelo capital não ficaria encantado por um presidente que tornava os ricos mais ricos e os pobres menos pobres sem precisar redistribuir a riqueza nem ameaçar privilégios de classe?” […] “A mágica de Lula só era possível devido ao aumento da exportação de matérias primas e movida especialmente pelo crescimento acelerado da China”.

Outra vez é a China que está nos salvando com sua vacina, além de continuar como o grande parceiro comercial. Se não fosse a China, nossa situação sanitária estaria muito mais desesperadora. Mas quando a epidemia passar, o Brasil não estará bem, mesmo que tenha UTIs livres. Não vamos contar com a China para resolver os problemas do Brasil.

A injeção de dólares vindos da China no período Lula permitiram aumentar a renda e o consumo inclusive das camadas mais pobres, mas não se fez o que era preciso para enfrentar o quadro real da pobreza: saneamento, educação de base com qualidade universal, transporte público eficiente e confortável, garantia de emprego, paz nas ruas. Os governos não iniciaram qualquer reforma estrutural sobretudo na área social, a recessão, desemprego, inflação, e agora a epidemia, desfizeram os ganhos puramente monetários e conjunturais. Sem as reformas na educação, na saúde, na economia, a China não basta.

Estes problemas são nossos e nos cabe enfrentar escolhendo governos que demonstrem compromissos para resolver os problemas nacionais. Mas isto exigirá estratégias de anos, por governos que entendam os problemas, tenham estratégias resolvê-los e saibam coordenar e conduzir o país neste rumo.

Deste caótico, negacionista, obtuso, antipatriota governo atual não se pode esperar um rumo para o país. Para 2022, a tarefa é conseguir um novo governo que traga de volta aceitação da ciência e respeito à verdade, recupere as bases da democracia, enfrente as sequelas da epidemia, retome o prestígio do país no exterior, proteja nossos recursos nacionais, especialmente nossas reservas florestais. Para isto, é preciso uma unidade de todos que se opõem ao atual governo, como foi proposto por um recente artigo assinado por Milton Seligman, Benjamin Sicsú, Mauro Dutra. Eles propõem a unidade de todos os democratas na escolha de um candidato único, e que este assuma o compromisso de ficar apenas um mandato, e deixar para 2026 as disputas entre os diferentes programas e ideias para construir o Brasil.

A China foi decisiva para as realizações na primeira década dos anos 2.000, graças ao Lula, está sendo decisiva com sua vacina, apesar do Bolsonaro, mas a China não basta. A construção do Brasil é tarefa dos brasileiros, e o primeiro passo será dos eleitores em 2022, impedindo a reeleição do atual desgoverno, um passo anterior aos eleitores deverá ser dos líderes partidários escolhendo candidatos que unifiquem e tenham baixa rejeição.

*Cristovam Buarque foi governador, ministro e senador


O Globo: Ex-chanceler cita teorias da conspiração, diz que não se alinhou aos EUA e que teve boa relação com a China

Ernesto Araújo publica seu primeiro texto depois de deixar o Itamaraty, no qual defende sua gestão e não faz nenhuma autocrítica

André de Souza e André Duchia, O Globo

BRASÍLIA - Hoje funcionário da gestão administrativa do Ministério das Relações Exteriores, o ex-chanceler Ernesto Araújo publicou, neste sábado, um texto em seu blog pessoal no qual defende sua gestão, encerrada há pouco menos de duas semanas sob pressão do Senado.

No texto, similar a tantos que escreveu ao longo de seu período à frente do Itamaraty, Araújo cita teorias da conpiração, defende-se da crítica frequente de que submeteu a soberania do Brasil ao governo de Donald Trump, afirma que teve boa relação com a China e lista o que considera ser realizações de seu mandato. O texto não inclui nenhuma autocrítica.

Araújo dedica boa parte do texto a contrariar quem o acusa de alinhar automaticamente a política externa brasileira à do governo de Trump. O chanceler diz que, no lugar disso,  na verdade a política externa do governo de Jair Bolsonaro teria eliminado um suposto "desalinhamento automático" anteriormente vigente.

Araújo disse que não embarcou em "sequer uma única iniciativa com os Estados Unidos que não correspondesse à racionalidade dos interesses brasileiros". De acordo com ele, todas a iniciativas que "tomamos com os EUA contribuíram para o incremento dos investimentos e do comércio, para o aumento de nossa capacidade tecnológica, para nosso desenvolvimento na área de defesa, para o combate ao crime organizado e ao terrorismo em nossa região, para a promoção dos nossos valores básicos como o direito à vida e a liberdade religiosa, para nosso acesso a grandes foros internacionais, para a construção de um mundo que seja favorável à democracia e à liberdade".

Na prática, porém, as conquistas junto aos Estados Unidos foram poucas. O Brasil suspendeu unilateralmente vistos de cidadãos de lá, sem exigir reciprocidade. Abriu mão de status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC), condição que lhe garantia algumas vantagens, em troca do apoio dos Estados Unidos para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas, com a troca de governo nos Estados Unidos, em que o ex-presidente Donald Trump deu lugar a Joe Biden, esse apoio ficou em suspenso. Além disso,o próprio Trump reduziu a importação do aço brasileiro.

ex-ministro, conhecido por seus longos textos e sua concepção política considerada irrealista, cita também teorias da conspiração, como uma "junção narcotráfico-terrorismo-corrupção-socialismo na América Latina (o complexo criminoso-político consubstanciado no foro de São Paulo)" — o foro, no caso, de fato existe, mas não no sentido usado pelo chanceler, que, assim como o ideólogo Olavo de Carvalho, o compara a um poderoso complô de criminosos, acusação nunca provada.

Araújo também volta a abordar a teoria do grande reset, tese conspiracionista comum na extrema direita internacional que, citando um grupo de trabalho econômico do Fórum de Davos, afirma haver um complô para reorganizar as sociedades globais a partir da pandemia.

Araújo aborda também as acusações de que desgastou as relações brasileiras com a China,  afirmando que manteve "relações produtivas com a China evitando atritos em torno das questões de Hong Kong, Taiwan e uigures, que hoje opõem a maioria dos países democráticos do mundo" ao país asiatico.

Araújo afirma que, apesar disso, "teve que exigir da Embaixada chinesa em Brasília o respeito ao Brasil e suas leis". A afirmação faz referência à crise diplomática entre o Brasil e a China no começo da pandemia, quando a embaixada chinesa reagiu com veemência a uma declaração do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro, acusando Pequim pela disseminação da Covid.  Na ocasião, entendeu-se que o comportamento de Araújo agravou a crise.

Segundo ele, não houve qualquer problema comercial com a China por questões políticas, o que seria provado pelo fato de o Brasil ter sido "o país do mundo que mais recebeu vacinas e insumos de vacinas contra a Covid fabricados na China", informação confirmada pelo próprio embaixador da China em entrevista ao GLOBO.

O ministro também defendeu a posição do Brasil de não acompanhar a proposta da Índia de quebrar patentes de vacinas contra a Covid-19, afirmando que ela é "inviável diante da resistência de muitos membros". Segundo ele, há uma "narrativa torpe e caluniosa de que meu trabalho prejudicava a obtenção de vacinas, e de que bastaria minha saída do cargo para que mais vacinas afluíssem ao Brasil".

Sem especificar, o ministro se refere a acordos bem-sucedidos de "todos os tipos com União Europeia, Estados Unidos, Japão, Israel, Índia, EFTA, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Marrocos, Chile, Uruguai, Paraguai, Polônia, Hungria e outros".

Ele não se refere a como no acordo com a União Europeia o Brasil cedeu em demandas antigas, sem contrapartidas. Não fala, tampouco, que a ratificação do pacto pelos países da UE está congelada e é considerada muito improvável durante o governo Bolsonaro, após vários países Estados-membros se manifestarem contrários ao acordo, exigindo contrapartidas ambientais do Brasil.

Na área ambiental, considerada uma das mais desgastadas internacionalmente pelo atual governo, Araújo disse que foi o idealizador do fundo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) com recursos para o setor, e que trabalhou com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, "para concretizar uma nova mentalidade em relação à Amazônia, centrada no investimento produtivo sustentável e na bioeconomia, gerando emprego e renda, ao lado da luta contra o desmatamento ilegal".

Apesar das críticas à China e também à Venezuela, Araújo elogiou outros países com governos nacional-populistas ou autoritários, como Rússia, Hungria e Polônia, além das ditaduras árabes como a Arábia Saudita. Ele não diz que não houve nenhuma visita oficial a nível de chefe de Estado ao Brasil de lideranças de uma grande potência europeia em seus dois anos à frente do Itamaraty, nem o desgaste que a relação entre o Brasil e países como França e Alemanha sofreu nesse período.

Araújo atacou ainda críticos de sua política externa, chamando-os de "embaixadores aposentados lobistas" ou de políticos acusados de corrupção. O ex-ministro disse também que abriu dois órgãos vinculados ao Itamaraty — a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e o Instituto Rio Branco — "a novas correntes de pensamento, principalmente ao pensamento conservador, antes completamente ausente desses espaços".

A referência à Funag se refere a palestrantes sem experiência internacional, adeptos de teorias da conspiração, que fizeram discursos anticientíficos contra o uso de máscaras de proteção, comparando-as aos expurgos soviéticos. No Instituto Rio Branco, uma das primeiras medidas do ex-chanceler foi eliminar o curso sobre a América Latina.


Luiz Carlos Azedo: Duas derrotas num só dia

Bolsonaro anunciou um novo remédio para o tratamento da covid-19, a proxalutamida, medicamento utilizado para tratamento de câncer de próstata e de mama

O presidente Jair Bolsonaro sofreu duas derrotas ontem, ambas no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma foi a decisão acachapante do plenário da Corte em favor de governadores e prefeitos que determinarem o fechamento temporário de templos religiosos para combater a propagação da pandemia da covid-19, durante os períodos de rígido distanciamento social, cujo resultado foi 9 a 2. A outra, a liminar do ministro do STF Luís Roberto Barroso a favor do mandado de segurança dos senadores Alessandro Vieira (SE) e Jorge Kajuru (GO), do Cidadania, determinando a imediata instalação da CPI da Covid-19 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que vinha empurrando o assunto com a barriga há 65 dias.

CPIs são uma prerrogativa da oposição, desde que tenham número mínimo de subscrições para instalação, o que é o caso. O que muda com a instalação da CPI é que o presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga e, principalmente, seu antecessor, o general Eduardo Pazuello, passarão a ter muitas dores de cabeça em razão de tudo o que ocorreu durante a pandemia até agora. Na lógica da oposição, a CPI é a banda de música dos pedidos de impeachment. O negacionismo de Bolsonaro tem um histórico de atitudes e medidas contra a política de isolamento social, mas também contra a compra e produção de vacinas, o uso de máscaras etc. É um prato cheio para a responsabilização criminal pelo elevado número de mortes que vem ocorrendo.

Rodrigo Pacheco segurou a instalação da CPI enquanto pôde, pressionado por Bolsonaro e pelo Centrão, mas contrariou os seto- res da oposição, inclusive os que o apoiaram. Com seu estilo conciliador e habilidoso, manobrou demais e acabou provocando mais uma intervenção do Supremo no Congresso. Agora, a oposição tem prerrogativas constitucionais e regimentais para fazer uma devassa no Ministério da Saúde. Como a base do governo é majoritária no Senado, o Palácio do Planalto tentará controlar a CPI, voltando-a contra governadores e prefeitos, mas isso fará com que o cacife dos partidos de Centrão aumentem nas negociações com o presidente da República.

Vacinas
Em sua live semanal, ontem, Bolsonaro voltou a criticar o isolamento social e defendeu “outras medidas” para combater a pandemia do novo coronavírus. Aproveitou para anunciar um novo remédio para o tratamento da covid-19, a proxalutamida, medicamento utilizado para tratamento de câncer de próstata e de mama. “É uma possibilidade. Um outro possível remédio que estará à disposição de todo o Brasil. Esperamos que dê certo”, disse. Também defendeu o exercício físico, que segundo ele, aumenta em oito vezes a velocidade de recuperação da doença.

Enquanto Bolsonaro flerta com o curandeirismo, a covid- 19 continua avançando no Brasil. Registrou 4.249 óbitos e 86.652 novos casos nas últimas 24 horas, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Com isso, o número de mortos pela doença chegou a 345.025, e o total de casos aumentou para 13.279.857. Na quarta-feira, foram registrados 3.829 óbitos e 92.625 novos casos. Ou seja, por falta de vacinas e isolamento social adequado, a escalada da pandemia continua.

Para complicar a situação, há 12 dias o Instituto Butantan não produz novas vacinas por falta de insumos. Ontem, reconheceu que a remessa de matéria-prima da CoronaVac está atrasada, mas anunciou que já foi liberada na China e deverá chegar a São Paulo até 20 de abril. O princípio ativo da vacina era para ter chegado ontem. De acordo com o Butantan, o lote de 3 mil litros de insumos é suficiente para a produção de 5 milhões de doses da vacina. Uma segunda remessa, com mais 3 mil litros, está prevista para chegar até o final do mês. O atraso não vai impactar as entregas previstas ao Ministério da Saúde: 46 milhões até o final de abril. O Butantan já disponibilizou 38,2 milhões de doses ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) e ainda possui cerca de 3,2 milhões de vacinas no controle de qualidade, que devem ser liberadas até o dia 19 de abril.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-duas-derrotas-num-so-dia/

China tem investimentos em 25 estados brasileiros, diz Luiz Augusto de Castro Neves

Informação é do presidente do Conselho Empresarial Brasil-China, em artigo na Política Democrática Online

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

“No Brasil, os investimentos chineses estão presentes em 25 estados da federação”, diz o presidente do Conselho Empresarial Brasil-China, o economista Luiz Augusto de Castro Neves, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de março.

Com periodicidade mensal, a revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.

Confira a Edição 29 da Revista Política Democrática Online

“A China consolida-se como ator de primeira grandeza no cenário internacional, seu produto interno bruto já é o maior do planeta, se medido em paridade de poder de compra (e provavelmente será o primeiro a preços de mercado ainda nesta década), e sua presença já se faz sentir em todos os quadrantes do mundo”, afirma Neves.

Relações fundamentais

Ele, que é embaixador no Japão, na China e no Paraguai, afirma que as relações econômicas e comerciais sino-brasileiras têm sido fundamentais para evitar o agravamento da crise econômica. Segundo ele, o país asiático continua a crescer muito mais do que a média da economia mundial e sua demanda por produtos brasileiros não para de crescer.

“Nosso desafio, nesse contexto, é buscar aproveitar plenamente as janelas de oportunidade que se nos abrem na China”, assevera ele, analisando o contexto das relações econômicas entre os dois países.

De acordo com Neves, as relações entre o Brasil e a China podem ganhar outra dimensão quando se examina a parceria entre os dois países com um olhar de longo prazo. “Sobretudo quando se tem em mente que a demanda externa desempenhará um papel central na retomada do crescimento da economia brasileira”, afirma.

Arrocho fiscal

O profundo desequilíbrio fiscal em que o Brasil se encontra, de acordo com Neves, dificilmente será corrigido nos próximos anos, levando a um crescimento modesto da demanda interna.  Ele também é membro do Conselho de Administração do Grupo Pão de Açúcar.

O aproveitamento pleno das janelas de oportunidade requer do Brasil, segundo ele, aumento de competitividade internacional mediante investimentos em infraestrutura, em capital humano, bem como fortalecer o ambiente de negócios.

“Em suma, precisamos ter estratégia de longo prazo em nossas relações com a China e, sobretudo, fazer nosso ‘dever de casa’”, assinala ele, que é ex-secretário-geral adjunto das Relações Exteriores e ex-diretor-geral para as Américas no Itamaraty.

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Veja todas as 29 edições da revista Política Democrática Online


RPD || Luiz Augusto de Castro Neves: Relações Brasil-China - Um olhar de longo prazo

Desde 1974, quando o Brasil reatou relações com a China, muita coisa mudou no país asiático, agora detentor do maior produto interno bruto do planeta e principal parceiro econômico brasileiro, com investimentos em 25 estados da Federação

O Brasil estabeleceu relações com a China em 1974, em plena vigência do regime militar, inequivocamente anticomunista. Examinando com alguma atenção as relações da China com a América Latina verificamos, em primeiro lugar, que a quase totalidade desses estabelecimentos de relações teve lugar a partir do ingresso da China nas Nações Unidas e da histórica viagem do presidente Richard Nixon a Pequim. Um exame mais acurado dá conta de que afinidades ideológicas tiveram pouco ou nenhum papel no relacionamento chinês com os países latino-americanos – a maior parte desses países estava, ao longo da década de 70, submetida a regimes militares de direita, adeptos de uma decidida retórica anticomunista. Houve duas exceções: Cuba, cujas relações foram estabelecidas após a ascensão de Fidel Castro, e Chile, logo no início do governo de Salvador Allende.

Mesmo em relação a Cuba, à época o único país marxista-leninista da região, as cubano-chinesas foram até 1995 marcadas por desacordos e distanciamentos, decorrentes em boa medida da controvérsia sino-soviética. Em 1966, Fidel Castro denunciou o governo chinês na abertura da conferência tricontinental de Havana e acusou a liderança chinesa de “senilidade”. A posição cubana refletia, na verdade, seu alinhamento com a política externa soviética, e sua reaproximação com Pequim só teve lugar a partir do desaparecimento da União Soviética. 

O reatamento de relações com a China em 1974 foi objeto de intensa controvérsia entre as autoridades militares brasileiras, boa parte das quais expressamente contrária ao reatamento. O então ministro do Exército, general Sylvio Frota, apresentou por escrito seu parecer, alegando que “a orientação político-ideológica do mestre do comunismo chinês, verdadeiros deus de uma religião sincretizadamente professada por mais de 800 milhões de amarelos ansiosos por expandirem-se e ocuparem os vazios do ecúmeno, hoje já carentes no globo terrestre, mas cobiçados, em especial, no Brasil e na África Negra”.  

Nos primeiros anos, o reatamento não levou a maiores iniciativas de parte a parte, por razões chinesas e brasileiras: a China estava imersa naquele momento no grande pandemônio político-ideológico, a chamada revolução cultural. Além disso, a saúde precária de Mao Zedong já propiciava o início de surda batalha por sua sucessão. No Brasil, por sua vez, o reatamento causara celeuma, sobretudo em meios militares que davam sustentação regime. O ministro do Exército dizia que o reatamento era uma iniciativa do Itamaraty (e não do presidente, como que a subtrair-lhe importância política). Além disso, o governo do general Geisel estava às voltas com o processo de abertura política, que acabou por levar, alguns anos mais tarde, à demissão do próprio ministro do Exército. Assim, não houve incialmente clima propício, nem de um lado, nem de outro, para iniciativas concretas de maior envergadura entre o Brasil e a China. 

Hoje vivemos em outro mundo. A China consolida-se como ator de primeira grandeza no cenário internacional, seu produto interno bruto já é o maior do planeta, se medido em paridade de poder de compra (e provavelmente será o primeiro a preços de mercado ainda nesta década), e sua presença já se faz sentir em todos os quadrantes do mundo. No Brasil, os investimentos chineses estão presentes em 25 Estados da federação. As relações econômicas e comerciais sino-brasileiras têm sido fundamentais para evitar o agravamento da crise econômica que atravessamos, na medida em que a China continua a crescer muito mais do que a média da economia mundial, e sua demanda por produtos brasileiros não para de crescer. Nosso desafio, nesse contexto, é buscar aproveitar plenamente as janelas de oportunidade que se nos abrem na China. As relações entre o Brasil e a China podem ganhar outra dimensão quando se examina a parceria entre os dois países com um olhar de longo prazo, sobretudo quando se tem em mente que a demanda externa desempenhará um papel central na retomada do crescimento da economia brasileira. O profundo desequilíbrio fiscal em que nos encontramos dificilmente será corrigido nos próximos anos, levando a um crescimento modesto da demanda interna. 

O aproveitamento pleno das janelas de oportunidade já mencionadas requer, de nossa parte, aumentar nossa competitividade internacional mediante investimentos em infraestrutura, em capital humano, bem como fortalecer o ambiente de negócios. Em suma, precisamos ter estratégia de longo prazo em nossas relações com a China e, sobretudo, fazer nosso “dever de casa”. As oportunidades são imensas, desde que saibamos aproveitá-las, o que me leva a concluir com a citação de Candide, personagem de Voltaire: “celà est bien dit, mais il faut cultiver notre jardin” (Está tudo dito, mas precisamos cultivar nosso jardim)

* Luiz Augusto de Castro Neves  é Presidente do Conselho Empresarial Brasil-China. Embaixador no Japão, na China, e no Paraguai. No Itamaraty, foi Secretário-Geral Adjunto das Relações Exteriores e Diretor-Geral para as Américas.  Presidente do CEBRI e atualmente é Vice-Presidente Emérito. Membro do Conselho de Administração do Grupo Pão de Açúcar, Cursou Ciências Econômicas na UFRJ e é Mestre em Economia pelo University College da Universidade de Londres.


Demétrio Magnoli: Biopolítica da pandemia

Narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada

A eclosão da Covid-19 em Wuhan, em dezembro de 2019, foi muito mais ampla do que se imaginava. Naquele mês, circulavam ao menos 13 variantes da cepa A do novo coronavírus na cidade chinesa, uma indicação de que a doença já se difundia, silenciosamente, havia tempo. A descoberta da missão da OMS na China lança luz sobre a transformação de uma epidemia localizada na mais dramática pandemia desde a gripe espanhola.

O percurso derivou de uma conjugação de fatores políticos e biológicos. Sob o peso de um lockdown aplicado com a força implacável de um Estado totalitário, Wuhan emergiu da onda de contágios com poucos milhares de mortos. As cifras modestas desarmaram os espíritos no resto do mundo, semeando a complacência inicial. Daí, em março de 2020, uma avalanche de óbitos atingiu a Lombardia, deflagrando o lockdown italiano, logo replicado em diversos países europeus.Hoje sabemos que o desastre não seria tão trágico sem a mutação D614G, sofrida pelo vírus na Europa, fonte das variantes dominantes no resto do mundo. O coronavírus da cepa “original” (A) era menos transmissível que o B.1, difundido fora da China. Não é preciso ser um Estado totalitário para impor um lockdown decisivo. A diferença entre a China e a Itália situou-se na esfera da biologia. Mas o fenômeno desvenda a escala das responsabilidades políticas da China.
árvore de mutações virais não tinha sido desenhada em meados de 2019. Naquele ponto, diante do chocante contraste entre a taxa de óbitos em Wuhan e na Lombardia, analistas suspeitaram que a China escondia pilhas de cadáveres. Sabe-se, agora, que isso não ocorreu.

Obcecado pelo segredo, hipnotizado por cálculos de prestígio, o regime chinês suprimiu a notícia dos primeiros casos detectados e ocultou a extensão dos contágios. O tempo perdido propiciou a disseminação subterrânea do vírus fora da China e a eclosão das variantes que vergaram o mundo inteiro.Vírus mudam sem parar, mas só prevalecem as mutações que aumentam suas oportunidades de reprodução. Normalmente, essa regra evolucionária reduz a letalidade, pois matar o hospedeiro contribui negativamente na velocidade de transmissão. A regra, porém, parece não valer para o novo coronavírus porque a fase de contágio intenso se dá nos dias iniciais da doença, quando a carga viral concentra-se na garganta. Assim, do ponto de vista do vírus, uma letalidade maior não traz desvantagens.
Desse modo, explica-se o surgimento recente de variantes não só mais transmissíveis como, também, mais letais no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil. As novas ondas pandêmicas resultam, ao menos em parte, da trajetória evolutiva de um vírus que se espalhou por toda a humanidade, expandindo suas oportunidades de mutação.
A história da pandemia, que começa a ser contada, impugna o elogio da China. A narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada. A verdade é que o regime chinês lidou com um vírus menos eficiente. Inversamente, é falsa a afirmação de que o Ocidente fracassou no combate à pandemia. A verdade é que, por culpa da China, reagiu tardiamente, quando a Covid já se disseminara nas sociedades, e enfrentou variantes mais transmissíveis do vírus.

2021, Ano 2 da pandemia, abre a etapa da imunização. A China, triunfante no Ano 1, vacina em ritmo lento, enquanto EUA, Reino Unido e, logo, União Europeia, protegerão antes suas populações.

A balança geopolítica tende a se inclinar para o lado das sociedades imunizadas, que poderão reabrir com segurança suas economias e suas fronteiras. Mas, no fim das contas, tudo depende de uma escolha política crucial de Joe Biden. Se os EUA se fecharem no nacionalismo vacinal, perderão sua vantagem potencial. Se, pelo contrário, liderarem o esforço de vacinação dos países em desenvolvimento, virarão o jogo.


RPD || Dawisson Belém Lopes: A política externa brasileira num labirinto borgiano

Pária mundial “por opção”, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo, o governo Bolsonaro é responsável por um dos piores momentos da política externa brasileira, deixando de perseguir interesses concretos do país

Não faz muito tempo, o Brasil jactava-se de seu universalismo. Era o país que não conhecia inimigos. Alcançava praticamente todo recanto do planeta com sua rede diplomática. Chefiava organismos prestigiosos, como a OMC e a FAO, e cedia seus nacionais para tribunais e cortes internacionais. Orgulhava-se de sua chancelaria. Tinha no Ministro das Relações Exteriores um signo da melhor tradição intelectual. Liderava agendas centrais, como a do meio ambiente, e era consultado em assuntos de direitos humanos, governança da internet, paz e segurança. Nossa República Federativa fazia boa figura no teatro global.

Esse tempo de bem-aventurança, contudo, ficou para trás. O Brasil, hoje, é “pária por opção” – invocando aqui palavras do chanceler Ernesto Araújo. Num contexto de desafios, em que despontam a rivalidade sino-americana e o arrasamento pandêmico, o governo federal vê diminuir a margem para manobrar. Opções estratégicas sobre a mesa vão minguando, à medida que nos indispomos com potências e abdicamos de pretensões de liderança no entorno geográfico, deixando de perseguir interesses concretos do país.

Responsável por mais de 30% do comércio externo brasileiro, a China é quem ajuda a manter as contas no azul. A despeito disso, Jair Bolsonaro e asseclas hostilizam Pequim sem cessar, desde a campanha eleitoral, em 2018, até o presente. Xi Jinping já emite, por meio de seus representantes empresariais e diplomáticos, ameaças de represália. Segundo lugar entre parceiros comerciais, além de maiores investidores no Brasil durante a década de 2010, os Estados Unidos também são fundamentais no grande esquema das coisas. Porém, como o incumbente do Planalto amarrou os destinos da nossa nação a Donald Trump, não se deve esperar atitude benevolente de Joe Biden no porvir.

Entre europeus, nada muito distinto. Terceira parceira comercial, a Holanda rejeitou, pela via parlamentar, o acordo UE-Mercosul, sob argumento de defesa da Amazônia. A Espanha, quinta no ranking do comércio externo, é governada pela esquerda, o que dificulta interlocução mais profícua. A Alemanha vive às turras com o maior país da América do Sul; além do desgaste da imagem, negócios permanecerão parados enquanto as práticas ambientais não forem revistas. A França, outra investidora no Brasil, faz objeção vocal à política ambiental e, como os chineses, planeja deixar de comprar os grãos que movem o agronegócio pátrio.
Na América Latina, a configuração não é menos dramática. Por quase um ano, os chefes de Estado de Brasil e Argentina (esta, a nossa quarta maior parceira comercial) não trocaram uma palavra sequer. O silêncio foi rompido recentemente, por iniciativa de Buenos Aires, mas os canais seguem obstruídos. Já o oitavo lugar no ranking de parceiros comerciais, o México, também é liderado pela esquerda, o que inviabiliza o diálogo – segundo a lógica sectária bolsonarista. México e Argentina coordenam entre si as iniciativas regionais, na ausência do Brasil. Jorge Castañeda, ex-chanceler mexicano, resume o imbróglio: “o Brasil ficará isolado em seu autoritarismo.”

Uma nota sobre a pandemia. O enfrentamento brasileiro ao novo coronavírus foi considerado, numa amostra de 98 países, o pior de todos, segundo think tank australiano. Parte dessa desastrosa condução deveu-se à incompetência nas mediações com o restante do mundo. Com uma indústria farmacêutica que importa 90% de seus insumos e diante da opção por não investir na fabricação de imunizante nacional para controlar o espalhamento da covid-19, o Brasil tornou-se refém de suprimento externo. Em tempos de escassez, porém, cada estado favorece primeiramente a população local. De exemplo em políticas públicas para vacinação em massa, passamos a figurar entre os que, pela incapacidade de lidar com a doença, sabotam o esforço de contenção do vírus.

Diante de fracassos retumbantes na política externa, como reagem o presidente da República e seu chanceler? Em gestos que exemplificam um descolamento de fatos e estatísticas, Bolsonaro e Araújo reúnem a fina flor da direita populista – de Andorra à Ucrânia, passando por Hungria e Índia – para clamar por “liberdade” e “família”, ao mesmo tempo em que flertam com monarquias teocráticas do Oriente Médio. Talvez seja o que lhes tenha restado no tabuleiro geopolítico. Como num conto de Borges, fica para o observador a incômoda sensação de que, quanto mais avançamos por estas sendas, mais se bifurcam os caminhos do labirinto.

*Dawisson Belém Lopes é Professor Associado de Política Internacional e Comparada na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais e, desde março de 2018, Diretor-adjunto de Relações Internacionais da UFMG.


Luiz Augusto de Castro Neves: ‘Papel do Itamaraty se tornou secundário’

Pragmático, governo da China busca outras vias de negociação, como os governadores, diz Luiz Augusto de Castro Neves

Francisco Carlos de Assis, O Estado de S.Paulo

Para o embaixador do Brasil em Pequim, de 2004 a 2008, e hoje presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), Luiz Augusto de Castro Neves, o governo chinês optou pelo pragmatismo e não tem levado em consideração os ataques recebidos de alguns membros do governo brasileiro. “O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades”. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estadão.

Apesar do discurso ‘antichina’ do governo, a exposição das exportações brasileiras à China saltou de 28%, em 2019, para 32%, em 2020. Teremos uma repetição deste aumento este ano?

Sim. A China, embora tenha crescido 2% no ano passado, sofreu uma desaceleração muito grande, o que gerou uma capacidade ociosa que deverá ser preenchida este ano. E o Brasil se mantém ainda em recessão e tem aumentado as exportações para o mercado chinês e reduzindo suas importações. O aumento das exportações para a China se dá por sua economia estar crescendo mais que a economia mundial.

Mesmo com as compras de insumos para vacinas as importações de produtos chineses não devem ter destaque este ano?

A compra de produtos chineses, de modo geral, tende a se estabilizar ou até diminuir. As importações dos insumos necessários para a fabricação de vacinas contra a covid-19, quantitativamente, não serão decisivas, no agregado, para gerar um aumento nas importações. Nossas importações da China são basicamente de bens intermediários essenciais para a indústria.

Os ataques feitos à China por membros do governo não causam ruídos nas negociações comerciais entre os dois países?

O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades. São manifestações vinculadas ao governo e que exprimem posições pessoais. Mas o que tem prevalecido é o pragmatismo e, bem ou mal, a China ainda é o nosso maior parceiro comercial.

Recentemente, os chineses andaram negociando com governadores e com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. É uma forma de reduzir o papel do Itamaraty, do Ministério das Relações Exteriores?

A China vai sempre negociar com interlocutores eficazes. O ex-presidente Michel Temer negociou com eles com a anuência do governo federal, mas é fato que o papel do Ministério de Relações Exteriores se tornou secundário. Mas esta tem sido uma tendência mundial. Se antes as negociações comerciais eram de exclusividade do Ministério de Relações Exteriores, hoje Estados e empresas privadas têm seus próprios canais de conexão com o mundo.


Roberto Abdenur: ‘Houve uma destruição da política externa brasileira’

Comércio com os EUA também foi afetado, apesar das concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura de 'subserviência', avalia ex-diplomata

Douglas Gavras , O Estado de S. Paulo

O saldo dos dois primeiros anos de governo Bolsonaro nas relações exteriores é destrutivo, avalia o ex-embaixador na China Roberto Abdenur. Na entrevista a seguir, o ex-diplomata, que também já representou o Brasil em Washington, ressalta que a postura de “subserviência” do governo brasileiro em relação ao ex-presidente americano Donald Trump foi ruim para o País sob diferentes aspectos. 

É possível classificar a relação atual do Brasil com a China como uma dependência comercial?

A China despontou como parceiro comercial brasileiro, graças à imensa demanda por commodities, mas não creio que o Brasil seja dependente deles, no sentido de que eles não têm poder para ditar rumos ao governo brasileiro, assim como não éramos dependentes dos Estados Unidos, quando o peso deles era maior na balança brasileira. 

O que temos é uma parceria? 

Temos uma parceria estratégica, que ajudei a lançar quando era embaixador em Pequim, até o início da década de 1990. De lá para cá, isso floresceu, graças ao extraordinário crescimento da China. Na época, já via o avanço chinês com otimismo, mas não imaginei que eles fossem sustentar esse crescimento por quase 30 anos, e que o país se transformaria em uma potência econômica, comercial, militar e tecnológica. 

Como definir a política externa brasileira no atual governo?

O que houve nos dois anos de Bolsonaro é que o Brasil não teve, a rigor, uma política externa. Houve uma destruição da diplomacia. As coisas de que falam o chanceler, Ernesto Araújo, e os assessores da ala ideológica são devaneios, uma nuvem de teorias da conspiração. Chegamos a considerar as próprias Nações Unidas algo indesejável. Nos tornamos o único país do mundo que ataca o multilateralismo.

O saldo da relação muito próxima entre Bolsonaro e Trump é negativo para o Brasil, portanto?

No ano passado, houve um forte encolhimento do comércio com os EUA, muito por conta da pandemia, mas também por protecionismo. O ex-presidente Donald Trump impôs tarifas abusivas sobre aço, alumínio e etanol brasileiros. O comércio foi afetado, apesar de todas as concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura inacreditável de subserviência.

A afinidade entre os dois governos feriu o interesse nacional?

Na primeira metade de seu mandato, Bolsonaro se pendurou em Trump. Também já fui embaixador em Washington e as relações com os EUA eram conduzidas de outra forma. Havia diferença de tom, mas também uma linha de continuidade que atravessou governos tão diferentes entre si, como o de Sarney, Collor, FHC e Lula.

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