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César Felício: A reforma será permanente

Se o cenário se complicar, convém estudar Portugal

Qualquer reforma da Previdência que permita uma economia acima de R$ 500 bilhões em dez anos já será bem vinda para muitos agentes do mercado. Os desenredos de Jair Bolsonaro em sua confusa coordenação política impactam pouco as expectativas porque o nível de exigência foi significativamente rebaixado. A experiência vivida no governo Temer trouxe ensinamentos.

O consenso que se pode obter no Congresso para a aprovação da reforma é limitado, incompatível com a sustentabilidade do sistema a longo prazo. Daí porque é considerado estratégico se conseguir a desconstitucionalização geral que está embutida na proposta do governo, com a remissão de diversos itens para a definição por projetos de lei complementar, com quórum significativamente mais baixo, como observou anteontem Ribamar Oliveira em coluna neste jornal.

A reforma da Previdência estará permanentemente na pauta. Será tema todos os anos, para todos os governos e todos os legisladores. A desconstitucionalização pereniza a aposentadoria como tema de debate, independentemente do nível de incerteza que isso trará para todos os segurados. Do ponto de vista político, seria um extraordinário triunfo do poder Executivo, já que não é necessário demonstrar como é mais fácil se obter maioria absoluta do que o quórum constitucional. Em relação ao Congresso, o Legislativo estaria cedendo em uma prerrogativa: a de ter maior controle sobre a modulação do texto da Carta.

Face a isto, qual a importância de uma reforma do sistema previdenciário que pode ficar comprometida quando for introduzida a norma da capitalização, e os benefícios de quem está dentro da repartição perderem sustentação atuarial? Os problemas vão sendo vividos dia a dia. Como na famosa frase atribuída ao ex-vice-presidente Marco Maciel, as consequências vêm depois. O importante é que Bolsonaro concretize o primeiro passo, e ambiente para isso existe.

A estratégia bolsonarista é diferente do que previa a linha de ação da vertente do mercado representada, por exemplo, pelo grupo reunido pelo ex-presidente do Banco Central, Arminio Fraga, que propunha um sistema de repartição mais duro, com menor margem de negociação, bastante centrada em se obter um grande resultado fiscal, convivendo com uma regra de capitalização mitigada, válida para quem nasceu a partir de 2014. Coincidia no propósito de desconstitucionalização do tema, mas estabelecia-se um gradualismo para manter a sustentabilidade.

As dificuldades em relação ao tema começam a tornar divisível o momento em que os brasileiros terão que estudar a fórmula portuguesa. Em janeiro de 2011, ainda no governo do socialista José Sócrates, foi criada uma contribuição extraordinária, incidente em todos os benefícios, que cortava 10% do que excedia € 5 mil mensais, tanto do setor público quanto do setor privado. Não foi suficiente. Cinco meses depois, foi criado um redutor para os pagamentos acima de € 1,5 mil. No ano seguinte, já no governo de Passos Coelho, um conservador, a contribuição extraordinária passou a podar 25% na faixa entre € 5 mil e € 7 mil e 50% acima disso. Em janeiro de 2013 passou a incidir um cobrança para os aposentados que recebiam mais de 1.350, de pelo menos 3,5%. Em agosto, as pensões superiores a € 600 passaram a ser afetadas. De 2014 em diante o torniquete começou a ser afrouxado lentamente, por pressão do Judiciário.

2020
A eleição de 2020 já se desenha no horizonte e a grande dúvida é o tamanho do empuxo da onda de extrema-direita. A magnitude do fenômeno no ano passado estimula candidaturas como a do Delegado Francischini em Curitiba, ou a de Joice Hasselmann em São Paulo. Mesmo no Nordeste o desempenho de Bolsonaro na eleição presidencial mostra que a esquerda se arrisca a perder bastante terreno.

Ele ficou em primeiro lugar no primeiro turno em Natal, Recife, Maceió e Aracaju, por exemplo. Nas capitais da Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, o resultado se repetiu no segundo turno.

A questão é que a popularidade do presidente inevitavelmente perderá terreno até o fim do próximo ano. Os indicativos neste sentido da pesquisa CNT/MDA divulgada terça são importantes neste sentido. O levantamento apontou um índice de bom/ótimo próximo a 39%, enquanto 29% de pesquisados classificaram a administração como regular. É sugestivo anotar que em uma pesquisa feito pelo Datafolha na virada do ano a expectativa em torno da gestão era boa ou ótimo para 65% dos entrevistados, e de regular para 17%. Em linhas gerais, parece ter havido uma migração do sentimento positivo para uma posição de expectativa neutra, o primeiro estágio para a desaprovação.

Candidatos cujo único capital é a identificação com o presidente tendem a se ressentir, o que não significa que o viés conservador do eleitor se dissipe e que tenhamos em 2020 uma maré vermelha.

Existirá uma avenida para ser percorrida por aqueles que dialogam com este eleitorado assentados em outras bases que não o bolsonarismo explícito. É uma vertente que pode ajudar os atuais prefeitos que podem tentar um novo mandato, mesmo aqueles que sabidamente atravessam um mal momento, como o tucano Bruno Covas ou o prefeito do Rio, Marcelo Crivella. É cedo para descartá-los.

Um possível freio à perda de substância do bolsonarismo está nas mãos do próprio Congresso. O pacote de Sergio Moro, e todas as iniciativas tocadas pelo ministro, que foi bombardeado nas redes sociais pela extrema-direita e obrigado e recuar da nomeação da desarmamentista Ilona Szabó para a suplência de um conselho consultivo, representa o que há de agenda transversal neste governo, que traduz o sentimento da imensa massa de eleitores que se movimentou em direção à candidatura de Bolsonaro na última eleição, sobretudo no ano em que a Lava-Jato chega ao quinto aniversário.


César Felício: A arbitragem de perdas

Bolsonaro está fadado a fazer a reforma possível

As reformas da Previdência de hoje, em regra, são um jogo onde quase todos perdem. A regra vale para o Brasil e para o mundo. Arma-se um cenário em que se tem, de um lado, o Estado, tentando reter recursos, e do outro dependentes de assistência social, trabalhadores, empregados públicos, em alguns casos empresários, todos submetidos a rodadas adicionais de sacrifícios, pagando mais e trabalhando mais. Nada mais fácil do que armarem-se grandes frentes contra a reforma.

No ano passado, Putin aproveitou a distração na Rússia provocada pela Copa do Mundo para propor uma reforma da Previdência elevando de 60 para 65 anos a idade mínima para homens e de 55 para 63 a das mulheres. Houve grandes protestos populares e Putin foi obrigado a ceder um pouco para obter a chancela do Congresso.

A proposta de Bolsonaro impõe perdas a quase todos, ainda que de forma assimétrica - a base é mais poupada do que o topo - e há um ganhador, o sistema financeiro, a depender do avanço da capitalização. É natural a resistência ao projeto e a tendência que sua aprovação não seja sumária e seu conteúdo seja diluído. Isto não quer dizer que o ambiente para a vitória governista não exista, como já se tratou nesta coluna, mas demandará grande capacidade da articulação da base em saber a hora de ceder e estabelecer as linhas das quais não poderá transigir. Por enquanto esta linha ainda não foi traçada, já que o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, disse que não há nenhum ponto intocável na PEC da Previdência, conforme relatou a repórter Ana Krüger no Valor PRO na tarde de ontem.

A reforma da Previdência de Bolsonaro, conforme o que venha a ser proposto em relação à capitalização, carrega uma ironia, em se tratando de um governo com tamanha participação de militares de reserva: marca a reversão de um modelo de seguridade social impulsionado nos governos Castelo Branco, Médici, Geisel e Figueiredo. Retorna-se a um dos fundamentos do que havia antes.

Quando o sistema previdenciário começou a ganhar corpo no Brasil, nos anos 30, o regime que havia era o da capitalização. Getúlio centralizou as antigas caixas de pecúlio nos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) conforme a corporação. Havia o dos servidores do Estado, o dos marítimos, o dos bancários, o de transportes e cargas, o dos comerciários e assim por diante. A contribuição era tripartite: aportavam o Estado, o setor patronal e o trabalhador. O benefício seria concedido conforme o que fosse acumulado, individualmente. Quem dava as cartas era o Ministério do Trabalho, e esta é uma diferença essencial em relação ao modelo bolsonarista.

No Brasil de Vargas, em uma primeira fase o regime de capitalização depauperou as aposentadorias, conforme demonstram os pesquisadores Lara Lúcia da Silva e Thiago de Melo Teixeira da Costa, no artigo "A Formação do Sistema Previdenciário Brasileiro: 90 anos de história", de 2016, disponível no site da "Revista Administração Pública e Gestão Social". Em 1931, o valor da aposentadoria média era de R$ 18.442,37 por ano, em valores de 2015. Em 1945 caiu para ridículos R$ 5.744,86. Os fundos, contudo, se acumulavam: em 1939 o saldo correspondia a 70,8% da receita.

No período histórico seguinte, entre 1946 e 1964, o caixa dos IAPs tornou-se o motor da máquina política ancorada no clientelismo. À época não havia separação entre o sistema de saúde e o da previdência e os institutos criaram hospitais para seus segurados. O gasto com assistência médica em relação à receita sobre contribuições pulou de 3,6% para 26% entre 1947 e 1965. Mas cada um cuidava da sua corporação: em uma lógica de capitalização, ainda que sob controle estatal, a universalização do bem-estar social não fazia sentido.

O caixa dos IAPs também bancou investimentos de infraestrutura, como os da Chesf, por exemplo. Como o sistema de financiamento era tripartite, o ônus do Tesouro aumentava conforme a expansão do sistema, que pulou de 2,7 milhões de segurados em 1945 para 4,4 milhões em 1960. À medida que a crise fiscal do governo se agravava, o Estado retardava seus aportes. Quando os militares tomaram o poder, em 1964, a capitalização comandada pelo Estado era um regime falido.

Por meio de diversas medidas, os governos militares implantaram o regime de repartição, agora em declínio. Os IAPs foram unificados no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), o financiamento passou a ser exclusivamente do trabalhador e das empresas, o Estado ficou com o comando. Na Constituição de 1967, imposta por Castelo Branco, estabeleceu-se a diferença de cinco anos entre a aposentadorias de homens e mulheres. No governo Médici, a aposentadoria foi estendida ao trabalhador rural, independentemente de contribuição. No de Geisel, a gestão do sistema de saúde foi transferida para uma autarquia separada. Figueiredo calibrou o financiamento, estabelecendo que aposentados e servidores deveriam contribuir para o sistema e aumentando as alíquotas previdenciárias do setor privada.

A previdência social daquele tempo, está claro, era injusta, mas se tornou mais universal do que era antes. Não havia preocupação em cortar benefícios, a inflação se encarregava de corroer seus valores. O que se quer argumentar com esta digressão histórica é que a concepção do modelo previdenciário que nos anos 90 começou a ser reformado nasceu no período militar. E tal como o modelo anterior, ele também faliu.

Com a redemocratização, os quatro presidentes que reformaram a Previdência miraram no corte de benefícios, sempre de maneira insuficiente para conter a escalada do déficit. Coube a Fernando Henrique substituir o tempo de trabalho pelo tempo de contribuição, como pré-requisito de aposentadoria e desestimular as requisições precoces com o fator previdenciário. Lula limitou o benefício integral para o funcionalismo que entrasse na máquina pública de 2003 em diante. Dilma regulamentou os fundos complementares para os servidores públicos. Temer nada conseguiu, mas não por falta de tentativa. Tiveram todos o azar, por assim dizer, de serem obrigados a arbitrarem perdas dentro da lógica democrática. Bolsonaro também terá o ônus de fazer uma reforma incompleta. Outras virão.

*César Felício é editor de Política.


César Felício: À espera do condutor

Cenário para reforma é favorável, mas não é possível errar

O mundo político tende a aguardar o restabelecimento pleno do presidente Jair Bolsonaro para dar início à batalha pela reforma da Previdência. Não há possibilidade de delegar responsabilidades neste momento dada a baixíssima tolerância ao erro que existe em relação a este tema no Congresso e no mercado.

Bolsonaro governa nas circunstâncias históricas mais propícias nos tempos recentes para realizar uma reforma da Previdência substantiva. É uma constatação mesmo de fontes que não têm motivos para apoiar o ajuste. A pista livre e seca, contudo, não impede que o condutor lance o carro no barranco. Ninguém pode arbitrar a negociação a não ser o presidente da República, que precisa curar-se de uma pneumonia antes de decidir sobre a idade mínima.

Um atraso de alguns dias na alta de Bolsonaro, por si só, não tem muito efeito na reforma. Como alerta o cientista político Cristiano Noronha, vice-presidente da consultoria Arko Advice, antes da instalação da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, a emenda da Previdência não tem como tramitar. Ressalvada a possibilidade do quadro de saúde do presidente se deteriorar, o que parece causar algum ruído entretanto são possíveis erros de comunicação sobre a recuperação presidencial da cirurgia de reversão da colostomia. Quem já passou pelo procedimento considerou exageradamente otimista as previsões iniciais de que a cirurgia duraria apenas três horas, e de fato ela durou mais, bem como avaliou que a previsão inicial de alta em apenas uma semana pouco conservadora. Talvez fosse mais prudente não ter alimentado este tipo de expectativa. Mas quem defende uma reforma profunda tem motivos para estar razoavelmente otimista.

Bolsonaro retoma a meada que Temer interrompeu depois do vendaval da JBS, com a legitimidade do voto e o mérito de ter tratado do tema durante a campanha. Não prometeu manter direitos "nem que a vaca tussa" como a sua antecessora Dilma. O agravamento da crise fiscal empurra governadores e prefeitos para se envolverem na reforma da Previdência, de um modo que não se observou no governo de Lula. A mudança nas regras atuais conta com apoio quase consensual da mídia e o ministro da Economia, Paulo Guedes, conta com um grau de credibilidade que compensa fartamente a sua inexperiência na máquina pública.

Por último, Bolsonaro tem contra si uma oposição no meio sindical, enfraquecida, não apenas pela reforma trabalhista de 2016, mas também pela derrocada petista, o que não era o caso de Fernando Henrique Cardoso nos anos 90. "O governo tem todas as condições para aprovar a reforma", resumiu o cientista político Antonio Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Está portanto nas mãos do presidente a aprovação da proposta.

Cabe a Bolsonaro não errar. Nada menos que 23 dos novos deputados atendem pela alcunha de capitão, sargento, major, cabo, delegado ou general. Destes, 14 são do PSL, ou quase um quarto da bancada da sigla. Os deputados com patente, um deles inclusive com o hábito de andar fardado pelo Congresso, representam pouco mais de um terço dos 61 integrantes da "bancada da bala", segundo cálculo do Diap. Bolsonaro não conseguirá fazer uma reforma da Previdência ampla sem pactuar com cuidado a situação de policiais e militares.

Reduzida a 77 deputados, de acordo com o Diap, a bancada ruralista tende a pressionar por condições diferenciadas para o trabalhador rural. Esta também deve ser uma demanda da bancada nordestina, de forma um pouco generalizada. São representantes de Estados em que o eleitorado rural ainda representa um contingente importante. Por outro lado, a proposta de capitalização da previdência tende a mobilizar os deputados de alguma forma vinculados ao sistema financeiro.

Definidas as linhas gerais do texto e azeitada a articulação, Bolsonaro precisa calibrar o calendário. Uma reforma da Previdência ambiciosa, por meio de uma emenda constitucional nova, não se aprova em poucas semanas, como quer fazer crer o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Há que se pensar, com muito otimismo, em aprovação na Câmara em julho e no Senado entre setembro ou outubro, se tudo der certo, na avaliação de Queiroz. Ele lembra que a reforma mais rápida foi aprovada por Lula em 2003, e tramitou por nove meses no Congresso. Ainda assim, foi votada depois de um acordo para que o Senado sugerisse alterações em uma PEC paralela.

Reforma trabalhista
O fenômeno não é brasileiro, é global: a automação da indústria, que começa a se estender para o setor de serviços, destrói empregos e induz a um movimento de redução de custos do trabalho. A liberalização do comércio mundial, e, em alguns casos, da imigração reforçam a tendência de desvalorização da mão de obra local.

Se a realidade por si só é amarga, a mistificação não precisaria ser feita. Soa cínico o discurso oficial de que o trabalhador jovem poderá optar no futuro entre ter uma carteira de trabalho azul, a porta da esquerda, com todos os direitos e poucas ofertas, ou outra verde-amarela, porta da direita, produto da livre negociação entre empregado e empregador.

Jovem que entra no mercado de trabalho não tem outro ativo para oferecer a não ser a disposição para topar qualquer empreitada. Não está na posição de escolher coisa alguma. Está claro que quem terá a opção é o empregador, a quem caberá estabelecer todas as cláusulas contratuais. A relação é obviamente assimétrica.

Na construção do discurso antitrabalhista oficial ganha destaque a identificação da CLT com a Carta del Lavoro, de Mussolini. Confundem, deliberadamente, ideologia com história. É fato que Getúlio inspirou-se no ditador italiano, mas Mussolini não era um demiurgo. Os acontecimentos históricos nas primeiras décadas do século 20, em especial a Revolução Russa e a catástrofe de 1929, levaram ao poder governos que procuraram intervir nas relações sociais para mantê-las sob controle. Foram criadas válvulas de escape, na Itália fascista, nos Estados Unidos de Roosevelt, no Reino Unido durante os governos trabalhistas, na Argentina de Perón, no México de Cárdenas. É por um imperativo histórico, e não ideológico, que no mundo inteiro estes mecanismos de proteção estão sob ameaça ou sendo revertidos.


César Felício: No Legislativo, a tradição que se renova

Rodrigo Maia pode virar o negociador central da reforma

O resultado da eleição para o Congresso Nacional no ano passado, com o extermínio de lideranças parlamentares consagradas, prometia uma revolução nos usos e costumes das duas Casas. Nada indica que será assim nas eleições para as presidências das mesas diretoras da Câmara e do Senado, que começam hoje e podem se estender até sábado.

Entre os deputados, Rodrigo Maia caminha para uma reeleição tranquila. No Senado o quadro é mais nebuloso, com algum favoritismo de Renan Calheiros, o que significaria o prolongamento da hegemonia do MDB. Seus adversários a mais curta distância são Tasso Jereissati, Simone Tebet e Davi Alcolumbre. Salvo na hipótese de vitória deste último, a combinação de resultados na Câmara e no Senado indica um Legislativo que pode convergir com o Palácio do Planalto, mas não será dócil a ele. O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode ficar muito fragilizado e perder relevância na negociação da reforma da Previdência.

Um articulador da candidatura de Maia relatou como o deputado resistiu ao vento renovador e construiu sua frente. O atual presidente da Câmara entrou em contato com todos os novos parlamentares, inclusive com os recém-chegados na atividade política, antes mesmo de começar a receber o aval das cúpulas.

O primeiro momento delicado envolveu o PSL. Uma briga interna no partido deixou evidente, em grupo de WhatsApp, que o filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, operava contra Maia.

Para que o PSL fosse enquadrado, acionou-se o ministro da Economia, Paulo Guedes, com quem Maia tem antiga relação. O ministro foi à luta, encontrou-se com a bancada do PSL e teria tratado do assunto também com o presidente. A mensagem foi a seguinte: para se aprovar a reforma da Previdência, era preciso reeleger Rodrigo Maia. Se a ideologia prevalecesse na escolha do novo presidente da Câmara, os obstáculos seriam muito mais relevantes.

Na condição de fiador da reforma da Previdência, será o deputado do DEM o negociador principal do texto que irá a voto na Casa. Onyx ficará escanteado na negociação como ficou no processo eleitoral do Legislativo, no que depender de Maia.

Para manter a rédea firme no processo, é provável que Rodrigo Maia trabalhe para que a relatoria da reforma da Previdência continue nas mãos de Arthur Maia, que é do DEM e que exerce a mesma função em relação à reforma encaminhada pelo ex-presidente Michel Temer.

O segundo obstáculo sério no caminho de Rodrigo Maia foi o PP. O partido reagiu mal quando se tornou pública a guinada do PSL em direção ao atual presidente da Câmara e em razão disso a candidatura de Arthur Lira (AL) ganhou impulso. Segundo o articulador de Rodrigo Maia, o PP é muito mais perigoso do que o PSL, por ser muito mais orgânico na Câmara. É um partido conhecedor dos meandros que poderiam forjar uma aliança letal com a esquerda.

No PSL há uma grande incidência de influenciadores digitais, mas para a alegria dos veteranos, seu peso político é muito relativo. Os 'youtubers", como é usual entre as subcelebridades, querem cada um brilhar por conta própria, não formam correntes entre si. Salvo os integrantes de movimentos suprapartidários, como o MBL, atuam de modo isolado. Com os deputados eleitos sem vida política ou partidária anterior, Rodrigo Maia jogou na retranca: os encontros foram amenos, sem uma barganha clara de favores por votos.

No Senado, Renan tenta se impor dentro de um paradoxo: é o candidato com mais aceitação e mais rejeição simultaneamente. Suas pretensões ganharam força conforme a evolução das desventuras do senador eleito Flávio Bolsonaro. O filho do presidente pode vir a necessitar de blindagem no Conselho de Ética para sobreviver como parlamentar, e ninguém poderá oferecê-la com mais desenvoltura do que Renan. O senador alagoano conta com três capacitações em seu currículo: é um especialista em sobreviver, em salvar aliados, como José Sarney na década passada, e em afundar aliados, como Collor, na década retrasada, e Dilma, há apenas três anos. Nestes campos, Tasso e Simone Tebet não se comparam a ele.

Embora o próprio Flávio Bolsonaro tenha acenado com neutralidade, o presidente e seu entorno foram longe demais nas articulações contra Renan, sobretudo Onyx Lorenzoni. No Senado, a preferência oficial foi para um dos candidatos, Davi Alcolumbre, que encontra dificuldades em se firmar como a alternativa anti-Renan. O alagoano ofereceu a paz ao Planalto, mas pode se eleger com o sangue nos olhos, a depender do que acontecer hoje no Senado.

Resta claro, portanto, que a partir de fevereiro existe o risco de as duas casas do Congresso desencadearem uma ofensiva para derrubar o ministro da Casa Civil, com o endosso do ministro da Economia. A salvaguarda de Onyx é a de ser um bolsonarista de primeira hora, ao contrário da elite parlamentar. Chegou no entorno do presidente antes de Guedes, e a lealdade sempre é um ativo valorizado por presidentes sem uma base política muito ampla.

Para a reforma da Previdência trafegar com mais facilidade, o avanço de uma agenda conservadora no Congresso pode não ser suficiente. Haverá pressão para a distribuição de cargos nos Estados. A cúpula engoliu em seco não ter mais o comando dos ministérios, mas os cargos de menor escalão são vitais para a base. Vocalizar esta pressão de alguma maneira poderá ser a primeira missão que caberá a Rodrigo Maia desempenhar.


César Felício: A cartucheira de Flávio está cheia

Senador eleito tem muitas linhas de defesa a explorar

O exército que guarda o senador eleito Flávio Bolsonaro ainda tem muitas linhas de defesa a serem rompidas, antes da sobrevivência política do primogênito do presidente ser dada como ameaçada. É verdade que o coração do grupo político que empalmou o poder está exposto com o escândalo e talvez toda a sequência de disparates que aconteciam no gabinete de Flávio na Assembleia não tenha vindo à tona. Há várias maneiras, contudo, do caso não dar em nada.

A primeira linha, decerto a principal, estará nas mãos do ministro Marco Aurélio Mello, dentro de dez dias. O pedido da defesa do senador eleito, acolhido por Fux, não trata apenas da questão do foro ao qual Flávio deve responder. Sobre este ponto, Marco Aurélio já sinalizou que não deve aceitar a reclamação. Também menciona que o Ministério Público do Rio de Janeiro, de certo modo, provocou o Coaf a detalhar as operações suspeitas, o que configuraria quebra de sigilo e demandaria autorização judicial. É uma questão sobre a qual não é possível prever a decisão do relator.

Flávio pode se tornar beneficiário de uma briga que a princípio não é a sua: a luta do Judiciário para demarcar limites à atuação do Ministério Público. A reclamação pode ser a ocasião para ficar estabelecido se o Coaf pode ou não atender a pedidos do Ministério Público, uma decisão que pode ter um alcance muito maior do que a polêmica sobre o sigilo do filho do presidente. Pode marcar uma inflexão na tendência de fortalecimento do Ministério Público que se tornou patente nos últimos anos.

A segunda linha é a sombra de alguma ação governamental no caso Flávio. Esta hipótese estava em baixa, já que o Planalto tem sinalizado que trata -se de uma situação particular do parlamentar, que deve se defender sozinho. A tese é de que Bolsonaro iria erguer um cordão sanitário em torno do próprio filho, soltando sua mão e o entregando à correnteza. A consulta pública aberta pelo Banco Central dá margem para que se coloque em dúvida se o cordão sanitário vai mesmo existir. Se o Banco Central acabar com a compulsoriedade de uma transação potencialmente suspeita ser comunicada ao Coaf, o cheque de R$ 24 mil de Fabrício Queiroz para a madrasta do senador, a primeira-dama Michelle Bolsonaro, poderia ter passado despercebido.

Em Davos, Sergio Moro procurou estancar a manobra com dois movimentos: em um "quebra-queixo" com jornalistas disse que a sugestão do BC "não era decisão tomada". "O governo ainda vai se posicionar", garantiu. Mais adiante, em entrevista para a Reuters, o ministro procurou ser claro: "O governo nunca vai interferir no trabalho dos investigadores ou no trabalho com promotores". O tempo dirá se Moro prevaleceu ou foi vencido.

O BC publicou uma nota para dizer que a sugestão na realidade vai apertar, e não afrouxar o controle sobre transações, já que os bancos terão de monitorar todas as transações e reportar o que considerarem suspeito. Seria uma maneira de os bancos aprimorarem seus controles, de acordo com a autoridade financeira. É uma maneira também de cortar os poderes do Coaf, que deixaria de receber informações compulsórias e passaria a ter informações espontâneas.

Parece claro haver uma disputa entre Sergio Moro e Banco Central sobre o tema. O Coaf dependerá de uma autorregulação bancária para poder atuar?

É outra queda de braço que pode beneficiar Flávio.

Escalada
Vive-se no Brasil agora uma incerteza sobre o funcionamento de mecanismos de controle sobre o poder central. Com uma canetada, o vice-presidente Hamilton Mourão ampliou ontem a capacidade do governo de atribuir o selo de "ultrassecreto" a documentos e dados passíveis de serem alcançados pela Lei de Acesso à Informação. O carimbo poderá ser usado por funcionários que exercem cargo de comissão. É muito mais gente para colocar a venda.

Já no primeiro dia do governo, com a Medida Provisória 870, o governo estabeleceu supervisão e monitoramento sobre organismos internacionais e organizações não governamentais indistintamente, recebam elas ou não recursos públicos. O mesmo instrumento legal levou a órgãos como o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) a temerem, no limite, pela criação de restrições orçamentárias que ameacem a sua própria existência, temas que já foram tratados nesta coluna e na de Malu Delgado, publicada na quarta-feira.

A onda de violência que atinge o Ceará levou o presidente a usar as redes sociais para colocar na ordem do dia a proposta do senador Lasier Martins que reforça a lei antiterrorismo. Pelo projeto de Lasier, elogiado por Bolsonaro, é tipificado como terrorismo "incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir qualquer bem público ou privado", se o objetivo for pressionar os governantes. É uma amplitude tão grande que permite abarcar neste critério a derrubada de uma torre de transmissão e a pichação de um muro.

Wyllys
A desistência de Jean Wyllys de exercer o mandato é um ato político, mais além da possível ameaça que pesa à sua vida. Wyllys cria um constrangimento de porte ao governos federal e estadual em um momento de baixa em sua carreira.

Wyllys surgiu como figura pública na condição de celebridade instantânea, após vencer um programa BBB, e elegeu-se como militante da causa LGBT. Mas se notabilizou por antagonizar e ser antagonizado por Jair Bolsonaro e seu filho Eduardo. "Eles fizeram um jogo de ganha-ganha. Um serviu de escada para o outro", comentou uma vez, cinicamente, um dos mais poderosos congressistas do país. Não foi bem assim.

Foi reeleito com apenas 24.295 votos, o menos votado dos 46 deputados do Rio de Janeiro. Entrou na sobra de quociente aberta pela votação de Marcelo Freixo. Em 2014 havia conseguido 144.740 sufrágios.


César Felício: Terceiro setor na mira

ONGs temem monitoramento criado por Bolsonaro

O alerta máximo foi acionado no terceiro setor. Existe apreensão em relação ao governo federal entre organizações não governamentais, desde as mais alinhadas com bandeiras tradicionalmente da esquerda até as bancadas pelo sistema financeiro.

Nos próximos dias caberá ao ministro da secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz, desarmar o confronto que está montado com as entidades da sociedade civil ou levá-las a uma espécie de oposição ao Palácio do Planalto. A polêmica está no inciso II do artigo 5º da Medida Provisória 870, de 1º de janeiro. É a MP inaugural do governo Bolsonaro, que determinou as atribuições dos ministros palacianos. Trata-se de um dispositivo de uma única frase: estabelece que cabe à Secretaria de Governo "supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional".

Para um grupo de 47 ONGs que solicitou imediatamente uma audiência a Santos Cruz, a MP abre espaço para uma espiral intervencionista. "Para resguardar o espaço cívico brasileiro, o que deveria ser garantido no momento é exatamente o contrário. É assegurar mecanismos para a sociedade civil sem fins lucrativos monitorar e acompanhar as atividades e ações do governo", disse a cientista política Ilona Szabó, do Instituto Igarapé, centro de estudos especializado em políticas de segurança pública e sobre drogas.

O Igarapé recebe recursos dos governos do Canadá, Noruega, Reino Unido e da Fundação Open Society, do investidor de origem húngara George Soros. O magnata ganhou notoriedade por especular contra a libra esterlina, nos anos 90, mas usa boa parte de seu patrimônio para financiar instituições progressistas e liberais. Mais recentemente, foi forçado a encerrar suas atividades na Hungria por se sentir ameaçado por um antigo auxiliar, o atual primeiro-ministro Viktor Órban, uma das referências ideológicas de Bolsonaro e dos primeiros chefes de Estado a cumprimentá-lo após a posse, dia 1º de janeiro.

O modo como Órban encaminhou seu país para uma vertente autoritária já é objeto de uma literatura vasta na ciência política internacional. Um de seus métodos é o de agir contra instituições e entidades que vigiam o Poder. Ele interferiu no Ministério Público, na Corte Constitucional, mudou as regras eleitorais, sufocou as empresas de mídia e, por fim, criou uma norma que permite ao governo banir ONGs que sejam consideradas uma ameaça à segurança nacional.

Ilona, neta de húngaros, ressalta que Santos Cruz, militar com presença destacada em missões internacionais, conhece bem o terceiro setor e tem o perfil de uma pessoa aberta ao diálogo. O temor não é direcionado a ele, mas ao contexto maior que o governo Bolsonaro pode significar. "O populismo em si representa um risco. Na Hungria, Rússia e Polônia houve restrições do espaço da sociedade para divergir", diz a ativista.

No limite, as entidades ameaçam judicializar a questão, caso a supervisão, coordenação, monitoramento e acompanhamento do governo signifique intervenção. "Dentro da Constituição você tem dispositivos que asseguram a manifestação da sociedade de forma autônoma e livre, desde que respeitadas as regras e princípios legais", disse a diretora executiva do Centro de Liderança Pública (CLP), Luana Tavares. O CLP capacita lideranças públicas e recebe apoio do BTG Pactual, B3 e Credit Suisse, entre outros. Luana faz referência claro a três incisos do artigo 5º da Constituição, aquele trata de direitos e garantias individuais e que é cláusula pétrea. São os que permitem a liberdade de associação e que vedam a interferência estatal.

Pode-se argumentar que a medida tomada por Bolsonaro significaria zelo com o uso de recursos públicos, mas o argumento é duvidoso. Atuam no Brasil cerca de 800 mil organizações não governamentais. Destas, cerca de 10 mil recebem recursos do governo federal ou dos estaduais, em sua maioria para programas nas áreas de saúde e educação. Estão sob escrutínio de diversos órgãos de controle. "O que todos devem se perguntar é porque isto aparece agora?", indaga o cientista social Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Dieese. A entidade mantém contratos e convênios com o poder público, a quem presta serviços.

A pergunta do dirigente do departamento intersindical de estatística é retórica. Todos imaginam o que motiva o cuidado do governo em acompanhar de perto estas entidades. A autopreservação é um instinto natural e a tendência de monitorar quem o monitora sobressai em governos que não primam pela formação de consensos.

Está claro nas últimas duas décadas, pelo menos, que a representatividade social dos partidos está em queda e entidades da sociedade civil ganharam peso no debate político. É um fenômeno que não pode ser superestimado - ONGs não derrubaram governos e nem elegeram presidentes - mas que ajuda a entender por que se abriu espaço para a vitória de um político como Jair Bolsonaro.

A ameaça concreta à base de apoio de um grupo político que concentra o poder não está no meio partidário. Não será o PT, cuja presidente, a senadora Gleisi Hoffmann viaja a Caracas para render homenagens a um ditador como Maduro, que desgastará neste instante a Bolsonaro. E nem Ciro Gomes com suas entrevistas. Antes pelo contrário, antagonizar estas forças tende a vitaminá-lo. Trata-se de um jogo jogado.

Villas Bôas
Passa o comando do Exército hoje o general Eduardo Villas Bôas. Afora o destemor com que enfrentou doença grave, ele ficará marcado por representar um ponto de inflexão. Por 20 anos não se conheceu o som da voz dos comandantes da Força, na algaravia do debate político. Em entrevista há dois meses, ao jornal "Folha de S.Paulo", o general relatou como se esforçou em ter o que chamou de "domínio da narrativa", frente à pressão crescente, muito estimulada por militares da reserva, para que os generais entrassem no jogo político, o que terminou por acontecer. O general alertou: o ativismo dentro dos quartéis é "um risco sério". Saber se o próximo comandante, Edson Pujol, pisará no freio ou no acelerador, ou deixará o carro descer a ladeira no embalo, será essencial para a democracia.


César Felício: A esperança de nada ser como antes

Bolsonaro depende mais de Moro do que de Guedes

Desde Deodoro da Fonseca, não houve presidente assim. Jair Bolsonaro ganhou sem alianças e montou um ministério excludente. Exceção ao titular da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, de origem cearense, não há nordestinos em um primeiro escalão com quatro paranaenses, quatro gaúchos, quatro fluminenses, dois políticos do Mato Grosso do Sul e um colombiano. Mesmo que se desconte a falta de equilíbrio regional, é uma pasta que não lança pontes para quem não votou em sua chapa no segundo turno.

Bolsonaro é visto por alguns como um presidente tutelado, mas a rigor cedeu pouco. Arquitetou o governo como se propôs, atendendo fartamente aos setores que sustentaram sua campanha: militares da reserva, com vínculos importantes na caserna, e radicais da internet. Foi obrigado a manter o Ministério de Direitos Humanos, e o entregou a uma pastora pentecostal. Teve que deixar o Ministério do Meio Ambiente e o destinou para um aliado da bancada ruralista.

Paulo Guedes é fiador de um contrato estabelecido quase um ano antes da eleição, mas há aí uma relação de interdependência. Uma agenda como a que o futuro ministro da Economia pretende engatar necessita de um presidente popular que consiga administrar expectativas. Não há outro modo de implantar um ajuste fiscal amargo sem explosão social.

O principal gesto de Bolsonaro para o mundo exterior, não irrelevante, frise-se, foi convidar Sergio Moro. Bolsonaro não poderá ter o anticomunismo, ou mesmo o antipetismo, como seu principal lastro, à medida que Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni forem gerando agendas negativas com reformas econômicas amargas e pactuações no Congresso.

É Moro que sinaliza para a esperança de nada ser como antes. Da sua capacidade de gerar fatos positivos dependerá parte do sucesso de Bolsonaro e do próprio Paulo Guedes.

Fim de ciclo
"A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram", disse Ulysses Guimarães no discurso de promulgação da Constituição de 1988, já no final de sua fala, na hora dos agradecimentos. Era um discurso que procurava situar a importância daquele momento histórico como um dos últimos atos de encerramento de um ciclo, o do regime militar. Ulysses proclamou que a elite política de então, reunida na Assembleia Nacional Constituinte, tinha "ódio da ditadura, ódio e nojo".

A releitura deste discurso em um dia como o de ontem, quando se completou 50 anos do AI-5 e se divulgou a notícia da morte da viúva de Paiva, tem um sabor arqueológico indisfarçável. Estamos em outra era. Ulysses desmoralizava a era passada do ponto de vista objetivo e moral. O país hoje está cheio de ódio e nojo, e o grupo político que soube empalmar o poder aproveitou-se disso, mas claramente não é à ditadura.

O manifesto de Ulysses em 1988 era abrangente como o é a Constituição em vigor, luz de estrela já extinta. No mesmo discurso em que bateu o prego no caixão de 1964, o deputado falecido em 1992 afirmou que "a corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública".

Primeiro mandamento. Ulysses parecia perceber onde claudicava a nova ordem que se abria, produto de uma transição rara na América Latina, em que os militares se retiraram sob o manto de uma anistia que liberou a todos de qualquer autocrítica sobre o que havia se passado nas décadas anteriores.

A corrupção e o asco que ela desperta nunca foram um fator irrelevante no jogo político brasileiro. É preciso lembrar que a imagem do regime militar em seu encerramento neste aspecto também estava comprometida. A do regime democrático que se encerrou em 1964 também.

Toda ruptura foi marcada pela esperança do saneamento, invariavelmente frustrada. Ao tomar o poder com a revolução de 1930, lá estava esta semente plantada no discurso de Getúlio Vargas: "Comecemos por desmontar a máquina do filhotismo parasitário, com toda a sua descendência espúria. Para o exercício das funções públicas, não deve mais prevalecer o critério puramente político. Confiemo-las aos homens capazes e de reconhecida idoneidade moral", afirma, em uma fala onde prometeu extirpar ou inutilizar os agentes da corrupção "por todos os meios adequados".

Getúlio é um exemplo longínquo, os mais recentes dispensam maiores apresentações, como o de Janio Quadros e Collor.

Ódio e nojo em relação ao que passou sempre marcam os fins de ciclo, seja a uma elite que não entregou o que prometeu, seja a uma ditadura brutal, que provocou e mascarou assassínios em seus porões, como foi a de algumas décadas atrás. Jair Bolsonaro está às vésperas de tomar posse esforçando-se para explicar as nebulosas movimentações que aconteciam no gabinete do filho na Assembleia Legislativa, mas portador de uma grande esperança, como mostrou a pesquisa de ontem do Ibope.

Um contingente poderoso de eleitores acha que Bolsonaro não vai roubar e não vai deixar roubar e pensa que este deveria ser de fato o primeiro mandamento. No levantamento encomendado pela CNI, 64% dos entrevistados acham que Bolsonaro será um bom ou ótimo presidente e 37% pensam que a corrupção é um problema que será atenuado sob seu governo.

Saúde e o desemprego vêm na frente da corrupção como o problema mais citado, mas o conjunto dos dados induz a pensar que o eleitor intui que Bolsonaro terá desempenho melhor em outras áreas. Os eleitores que acham que os males da saúde serão suavizados é de 31%.