cesar felício

César Felício: O vento da mudança no Supremo

Substituição de Celso de Mello irá mudar equação no STF

Para mudar a cara do Supremo Tribunal Federal, o presidente Jair Bolsonaro talvez não precise de um cabo e de um soldado, ou de aumentar de 11 para 21 o número de seus integrantes, como chegou a propor durante a campanha. É possível que seja desnecessário para este propósito antecipar a idade de aposentadoria dos ministros, conforme os bolsonaristas mais fanáticos propuseram na Câmara. E nem promover de baciada processos de impeachment no Poder Judiciário, outra iniciativa dos aliados incondicionais do presidente.

A troca que o presidente empreenderá este ano, com a aposentadoria compulsória do decano, o ministro Celso de Mello, subverte toda a equação. Ele completa 75 anos no dia 1º de novembro.

Muita atenção se dá ao perfil de quem vai entrar. Se será o ministro da Justiça, Sergio Moro, ou, como parece mais provável agora, alguém “terrivelmente evangélico”, conhecedor mais profundo da Bíblia do que dos códigos. Outra vertente que permite antever quão emblemática pode ser a substituição é olhar as características de quem sai de cena.

Decano não é propriamente uma função, é um personagem do qual o ator titular pode representar o papel inteiramente ou não. O decano exerce naturalmente força contrária a mudança de tradições, é um ponto de equilíbrio entre diversas tendências e vaidades.

A politização extremada do Supremo - incapaz de estabelecer jurisprudência firme em diversos pontos, dado ao consenso quase impossível de seus membros, mergulhado no debate partidário que está- revestiu o decano de outra característica: a de ser uma voz da casa, uma espécie de presidente honorário do colegiado. Nos últimos anos, a voz de Celso de Mello soou mais alto que a de Cármen Lúcia e Dias Toffoli, para ficar apenas nos últimos presidentes.

Exemplos recentes neste sentido, compilados por Felipe Recondo e Luiz Weber, autores do livro “Os Onze”, publicado no ano passado: em abril de 2018, na ocasião do julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tentava impedir sua prisão após a condenação em segunda instância, o então comandante do Exército Eduardo Villas Bôas fez a sua famosa mensagem pelo Twitter em que disse que a Força compartilhava “do anseio de todos os cidadãos de bem”. Celso de Mello respondeu ao que lhe pareceu uma ameaça encoberta em plenário: “Em situações tão graves assim, costumam insinuar-se pronunciamentos ou registrar-se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir”.

Meses depois, veio à tona a fala de Eduardo Bolsonaro em que o filho do hoje presidente bravateou que bastava um soldado e um cabo para fechar o Supremo, “sem desmerecer o soldado e o cabo”. Mello voltou a se pronunciar, desta vez pela imprensa. Chamou a declaração de inconsequente, golpista, irresponsável, inaceitável e autoritária.

No ano seguinte, com Bolsonaro já na Presidência, Mello pediu - e foi atendido - para que se pautasse para a votação em plenário a ação de inconstitucionalidade que criminalizava a homofobia, da qual ele era relator. Ao proferir seu voto a favor da criminalização, citou a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, por pedir que meninas vestissem rosa e meninos azul. Afirmou que esta era uma visão de mundo que restringia liberdades fundamentais da população LGBT.

Depois da publicação do livro, é possível lembrar outra atuação de Celso de Mello em que ele se colocou como um ator contra veleidades antidemocráticas. Na ocasião em que o perfil do presidente Jair Bolsonaro divulgou um vídeo em que um leão era acossado por hienas, uma delas identificada como o STF, o ministro respondeu quase de imediato, à imprensa: disse que o vídeo parecia partir de quem “desconhece o dogma da separação de poderes e, o que é mais grave, de quem teme um Poder Judiciário independente e consciente de que ninguém, nem mesmo o presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”.

É esse o ministro que sai de cena no fim de ano, em uma troca que, além de colocar a assinatura de Bolsonaro na Suprema Corte, também altera a ordem de votação, as expectativas, as possibilidades de aliança dentro do Judiciário. É difícil que o personagem de decano seja exercido do mesmo modo por Marco Aurélio, que se aposenta alguns meses depois, ou por Gilmar Mendes, a partir de abril do próximo ano. Em que pese o trânsito político e o conhecimento jurídico que nenhum dos muitos inimigos de Gilmar é capaz de negar, o futuro decano é, de longe, o ministro do Supremo com pior imagem, alvo de nada menos que nove pedidos de impeachment. A chance deles prosperarem é próxima de zero, mas tolhem o ministro de exercer o papel de referência da Corte.

O Judiciário cultiva a imagem de ser um esteio do direito da individualidade frente às tendências majoritárias na opinião pública e no centro do poder político. Mas não há que se tomar essa intenção manifesta como um postulado. A decisão a favor da censura ao especial de Natal do grupo “Porta dos Fundos”, proferida pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Benedicto Abicair é sugestiva de que o Brasil vive novos tempos.

Acionado para se manifestar a respeito do caso, o ministro Dias Toffoli, fez o que se esperava, que é derrubar a liminar. Fica o assombro portanto com o fato da censura ter sido estabelecida por um juiz de segunda instância nas circunstâncias em que foi concedida, dias depois de uma investida que se pretendeu terrorista contra a produtora do vídeo. A defesa do exercício da liberdade de expressão, feita por Toffoli, é um sinal alentador para quem acredita que o vento da mudança não arrastará a tudo.

*César Felício é editor de Política.


César Felício: A injeção de óleo canforado, de novo

Governo demonstra que quer focalizar investimento social

O presidente Jair Bolsonaro encerra seu primeiro ano do governo pagando décimo-terceiro para os beneficiários do Bolsa Família, um fato político com dois efeitos significativos. O primeiro é que ele não está exatamente parado ou indiferente em relação à necessidade de estabelecer compensações sociais aos efeitos da sua estratégia econômica liberal. O segundo é que há sinais abundantes de que o governo pretende se aventurar na estrada da focalização de benefícios.

O número de ganhadores do Bolsa Família não é estático, flutua de um mês para o outro, com entrada e saída de gente. Da criação da transferência de renda até o governo Dilma, a trajetória da quantidade de beneficiários era crescente. Em julho de 2014, chegou a 14,204 milhões de benefícios pagos. Era a antevéspera da eleição em que a presidente havia prometido “fazer o diabo” para ganhar, como de fato ganhou.

No governo Temer, houve um pente fino para limpar o cadastro e o número de beneficiários começou a cair, até bater em 12,7 milhões de beneficiários em julho de 2017, em pleno ambiente de crise econômica. A partir daí a trajetória de crescimento foi retomada e Temer encerrou seu governo pagando a bolsa para 14,1 milhões de famílias, quase o teto de Dilma, em dezembro de 2018.

No governo Bolsonaro, o número embicou para baixo: já são sete meses de queda consecutiva no número de beneficiados, hoje em 13,17 milhões. É mais dinheiro para menos gente. Quase 1 milhão a menos.

Está na área social um dos dois únicos ministros do governo Temer que Bolsonaro decidiu preservar, o emedebista Osmar Terra. Eis uma área em que o presidente não quis inovar.

O ministro é um bolsonarista recente, convertido só no ano da eleição ao credo reacionário, mas esteve por trás de tudo o que foi feito nas últimas décadas em termos federais na área social fora do petismo. Foi secretário-executivo do Comunidade Solidária, no governo Fernando Henrique. A administração tucana criou diversos programas de transferência de renda focalizados, para populações de municípios particularmente pobres ou então com condicionalidades aos beneficiários bastante rígidas. As iniciativas daquele tempo chegaram a ser chamadas de “injeção de óleo canforado” por um governador à época, o de Sergipe Albano Franco, e tiveram efeito eleitoral, ainda que limitado.

Com alarde, o tucano lançou em 2001 o projeto Alvorada, uma injeção de recursos adicionais para as 390 cidades que tinham índice de desenvolvimento humano abaixo de 0,5. Um dos principais motores do programa eram os cartões magnéticos para pagamento aos beneficiados. As pequenas peças de plástico foram concebidas para deixar bem claro que a ajuda brotava do Palácio do Planalto, e não de prefeituras, instituições sociais, governos estaduais ou o que quer que fosse. O número de cidades com IDH abaixo de 0,5 despencou de 390 para 23. Das 50 cidades mais pobres em 1991, só três permaneceram nesta mesma condição em 2002. O candidato tucano à Presidência, José Serra, ganhou em 26 destas cidades e Lula em apenas 13. Nos grandes centros, o desemprego e a violência em alta anularam a vantagem tucana nos grotões. Dos 62 maiores colégios eleitorais, Lula triunfou em 57.

O PT colocou a transferência de renda em escala exponencial e estendeu sua capilaridade para os pequenos e pobres municípios em que estavam ausentes. A política rende frutos até hoje. Fernando Haddad ganhou nos 48 dos 50 que, em 2002, eram os mais pobres, e Bolsonaro não foi vencedor em nenhum. Já nas grandes, o sinal se inverteu.

Bolsa Família não é a única política social compensatória do governo Bolsonaro com redução de escopo. Movimento muito mais drástico deve acontecer com o programa Minha Casa, Minha Vida. Foi divulgado que o governo está para lançar uma espécie de voucher para as famílias com renda até R$ 1,2 mil para comprar um imóvel novo ou construir um. Na versão atual do programa, há um subsídio de 90% para a faixa de renda de até R$ 1,8 mil adquirir uma propriedade. Desta vez será menos benefício para menos gente. Não só a faixa atendida será menor, como o benefício financeiro passa a ter teto mais baixo do que os R$ 95 mil que vigoravam em São Paulo, Rio e Distrito Federal até ano passado. De todo modo, será um avanço em relação à situação atual. O governo só está liberando recursos para a conclusão dos projetos em andamento. Não há contratações novas.

Onde o governo mais acerta é na saúde. O programa Médicos pelo Brasil propõe-se a ter o mesmo efetivo de 18 mil profissionais que o petista Mais Médicos chegou a ter, mas com remuneração maior e direcionamento para pequenas cidades do Norte e do Nordeste, onde de fato o acesso da população à saúde é menor. O desenho do programa, portanto, é melhor. A questão agora é saber se a classe médica irá se inscrever no programa bolsonarista. A conferir.

No curto prazo, a política social focada poderá dar a Bolsonaro algum dividendo nas pesquisas que o escândalo envolvendo o filho senador está tirando. Dezembro costuma ser um mês com mais dinheiro no bolso, e portanto há um repique na popularidade de presidentes. Foi nesta época do ano que Lula bateu seu recorde, em 2010, ao conseguir 87% de aprovação; e até Dilma no fatídico 2013 cresceu em dezembro, de 37% para 43%, segundo o CNI/Ibope. Nada mais natural, portanto, que Bolsonaro tenha uma boa notícia na pesquisa a ser divulgada hoje.

A sombra de Queiroz, o suspeito de ter coordenado a “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa contudo, deita raízes, que independem da conclusão ou não do inquérito conduzido pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. É uma brecha que pode afastar ainda mais o bolsonarismo do lavajatismo, motor importante para a eleição do ano passado. Algo que pode ficar em estado de dormência para eclodir, com mais força, adiante.


César Felício: O preço da liberdade

São poucos os que não chegaram à constatação de que o atual presidente só não golpeia as instituições por falta de oportunidade

A frase, muito repetida, é de 1790 e trata-se da adaptação do trecho de um discurso de um advogado irlandês pouco conhecido no Brasil, John Curran. “A condição sobre a qual Deus deu liberdade ao homem é a vigilância eterna; a qual, se quebrada, torna a servidão ao mesmo tempo consequência de seu crime e castigo de sua culpa”. O preço da liberdade, pois, é a eterna vigilância, como têm alertado recentemente governadores, dirigentes partidários e observadores da cena política brasileira.

Do PSDB ao PCdoB, do MDB ao Republicanos, do PL ao Psol, da sala de um banqueiro na Faria Lima a simpósios de cientistas políticos, ao longo do ano, a frase foi frequentemente citada quando os interlocutores foram convidados a refletir sobre o que tem significado este primeiro ano do governo Bolsonaro. São poucos os que não chegaram à constatação de que o atual presidente só não golpeia as instituições por falta de oportunidade. A estratégia é a de contenção permanente, em um ambiente onde o risco de um golpe não está sendo negligenciado.

Brasil vive guerra fria particular que favorece Bolsonaro
O próprio presidente e seu entorno ajudam seus vigilantes nos momentos de grande vacilação, em que a tese do golpismo parece excessivamente frágil por não responder a perguntas essenciais. Por exemplo, qual seria um possível pretexto para uma ruptura institucional? A resposta não tardou. Ora, que dúvida! Um novo AI-5 se justifica em um cenário de conturbação social, em que a turba enlouquecida promova saques, incêndios, depredações e o caos absoluto. É o que os arautos do bolsonarismo supõem que esteja acontecendo no Chile.

Na realidade, até o momento, a classe política chilena procura saídas para a insatisfação popular dentro da institucionalidade. Uma demonstração disso é a convocação de uma assembleia constituinte. Outra demonstração foi a mudança de gabinete que o presidente Sebástian Piñera promoveu. Fala-se no país da construção de um sistema de seguridade social mais consistente. Se tudo isso irá ou não acalmar as ruas, cedo para dizer, mas o fato é que ninguém, por ora, tem apregoado um AI-5 naquele país.

Bolsonaro mantém o revólver sobre a mesa, até com certo deboche. Ontem foi flagrado pelo microfone aberto durante a cúpula do Mercosul, em uma brincadeira, perguntando se “não dava pra dar um golpe não?” e continuar na Presidência pro-tempore do bloco. O presidente exercita o bom humor em um momento em que a democracia e a tolerância são sentimentos em baixa no mundo.

Vive-se tempos de intolerância, de origem ainda a esclarecer. Há autores que ligam o desprestígio da democracia com a crise econômica global e outros com as desordens no Oriente Médio deste século, tudo tendo como catalisador o avanço da inteligência artificial e a multiplicação exponencial do arsenal de manipulação de informação de que se dispõe atualmente.

O medo é um sentimento poderoso que se espalha pelas redes. Uma pesquisa global coordenada no ano passado pela Fundação de Inovação Política do Instituto Republicano Internacional, um ‘think tank’ francês, realizou 36 mil entrevistas em 42 países e deixou evidente que as ondas de pânico não conhecem fronteiras. Segundo o levantamento, intitulado “Democracias sob tensão”, há mais brasileiros inquietos com uma potencial ameaça islâmica do que americanos e britânicos (62% a 54% e 53%, respectivamente), um dado que surpreende, já que no Brasil nunca houve atos terroristas de motivação religiosa.

Surpreende ainda mais, dado que o levantamento mostrou, mais uma vez, que o brasileiro é muito tolerante. O percentual de pesquisados que diz que não se incomoda com opiniões políticas diferentes das suas no Brasil simplesmente é o maior do mundo. Mas de cada quatro brasileiros, três preferem mais ordem, ainda que com quem menos liberdade. Só um em cada seis brasileiros confia na mídia. Já a percepção da Internet e das redes sociais é amplamente positiva.

Quem se dispõe a exercer a eterna vigilância sobre Bolsonaro - partidos políticos, o parlamento, a mídia, a Justiça - são instituições todas em crise. A eterna vigilância, neste caso, em tese, pode não ter o aval popular. O povo, de certa forma, estaria aberto a uma ditadura regeneradora. Se Bolsonaro é a pessoa capaz de exercer este papel messiânico é outra coisa. Falta ao presidente popularidade para tal - trata-se de um dirigente com taxas apenas medianas de aprovação, abaixo das obtidas por outros presidentes eleitos nos últimos anos, considerando o mesmo tempo decorrido de governo.

Não há, contudo, outro candidato a Bonaparte no horizonte. Em um movimento que pode ter sido definitivo para consolidar seu poder e o mais importante que fez desde a vitória nas urnas, o presidente neutralizou Sergio Moro, rival capacitado para atrair este tipo de idolatria, ao colocá-lo no Ministério da Justiça e obter a sua lealdade. Manter Moro próximo de si continua sendo crucial para o presidente.

O ano de 2019 se aproxima do fim com o Brasil vivendo sua guerra fria particular, onde um equilíbrio do terror se exerce. Nem Bolsonaro tem a força para golpear as instituições, nem as instituições contam com combustível suficiente para promover a contenção definitiva de seus ímpetos.

A posição do presidente, contudo, é a mais confortável. Ter colocado um revólver sobre a mesa de nenhuma maneira o obriga a utilizá-lo. E é questionável cravar que estamos em um ponto de ruptura. O Brasil ainda é um pais onde um juiz federal de uma pequena cidade do interior bloqueia uma nomeação presidencial, como acaba de ocorrer no caso da escolha de Sergio Nascimento para o comando da Fundação Palmares.

De embate em embate, de desautorização em desautorização que recebe dos eternos vigilantes, o presidente vai construindo o cenário para a reeleição. Tem pronto o discurso e terá um partido à sua imagem e semelhança. O Aliança pelo Brasil não será a primeira a sigla a nascer no Brasil pela e para a vontade de um mandatário e nada faz pensar que será o último.

É possível brincar com a democracia, e, ao mesmo tempo desfrutar dela. No Brasil, as instituições funcionam.


César Felício: Foi dada a largada para a eleição de 2022

Lula assumiu, na prática, o comando da oposição a Bolsonaro

A eleição de 2022 começou. Na realidade, já tinha começado quando o presidente Jair Bolsonaro, no terceiro mês de seu governo, se colocou como candidato à reeleição. Mas foi no sábado, com o discurso do recém saído da cadeia, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que a eleição presidencial ganhou seu contorno.

Não está claro se o ex-presidente pretende repetir o recuo tático que Cristina Kirchner fez na Argentina, ao indicar um preposto para concorrer em seu lugar logo no começo da corrida eleitoral, agregando forças que haviam se afastado dela nos últimos anos. A outra possibilidade é Lula confiar que a pressão das circunstâncias políticas levarão a uma revisão da norma da Lei da Ficha Limpa que hoje o torna inelegível. O que é certo é que Lula já assumiu, na prática, o comando da oposição a Bolsonaro. E deste posto de controle ele não abrirá mão.

O ex-presidente bateu em Bolsonaro do início ao fim. “Este país tem 210 milhões de habitantes não podemos deixar que os milicianos acabam com ele”, disse. Reconheceu a legitimidade do mandato de Bolsonaro, afastando da plateia qualquer veleidade de se lançar às ruas pelo impeachment. Lula quer brigar nas urnas. Associou o ministro da Economia, Paulo Guedes, à crise social que abala o Chile, ao citar que os fundamentos da política econômica do atual ministro são inspirados em linhas de ação desenvolvidas na ditadura de Pinochet. Acenou à classe média, ao lembrar que a taxa de juros cai, mas a do cheque especial e do cartão de crédito, não. Não é preciso usar palavrão para se referir a Bolsonaro, porque ele já é um palavrão.

Lula não se esqueceu de fazer uma referência sutil a um potencial adversário, o apresentador e empresário Luciano Huck. Sem citar seu nome, fez uma menção ao elitismo da gestação dessa suposta candidatura. “Os mais ricos querem criar uma nova classe dirigente. Não temos nada contra essa gente, mas queremos gente que seja formada nas dificuldades que passa o povo brasileiro.”

Lula busca se credenciar, portanto, como o concentrador do antibolsonarismo. Os 580 dias serviram como campanha antecipada e o Lula Livre virou o Volta Lula, como mencionou o ex-ministro Aloizio Mercadante na sexta-feira, em um evento em Buenos Aires. Nesta polarização que evoca para si, não há mais espaço para alternativas da centro-esquerda, como Ciro Gomes. Ciro apostou tudo em ser o pós-Lula. Seu irmão, o senador Cid Gomes, criou bordão ao dizer, dias antes do segundo turno, o famoso “Lula está preso, babaca”. As perspectivas de Ciro no cenário nacional tornam-se bem modestas.

A força de Lula dispensa maiores comentários: estrutura político-partidária, recall, a nostalgia de um tempo de crescimento alto e programas sociais inclusivos. O ponto fraco é que os problemas de Lula na justiça não se resumem a Sergio Moro. Após a sentença sobre o tríplex uma série de outras revelações comprometeram o ex-presidente, sendo certo que as delações premiadas de Antonio Palocci e Leo Pinheiro são as mais fortes. A liberdade de Lula foi a senha para o Congresso avançar na discussão para mudar a Constituição e rever a segunda instância. Uma parte das lideranças políticas e da sociedade estabeleceu como meta encarcerar de novo o ex-presidente. É uma possibilidade real e torna-se difícil imaginar que governabilidade ele irá construir, seja como candidato ou como grande eleitor.

Bolsonaro em um primeiro momento se fortalece. À catalização do antibolsonarismo corresponde o reforço do antipetismo, um sentimento que é muito maior que o bolsonarismo. O presidente tem a força da caneta nas mãos, mas o fantasma das suas relações com milicianos é uma sombra, que pode prejudica-lo nas eleições.

Terceiras vias podem prosperar caso o eleitorado fique exausto da polarização esquerda/direita. Por este caminho Huck ainda pode entrar, tendo como único ativo apoio na elite empresarial e grande popularidade na mesma faixa de eleitorado de Lula. O fato é que esta é uma rota muito mais arriscada do que seria a de competir para comandar a oposição ao atual governo. As chances de Huck dependem de acontecimentos excepcionais que sangrem os dois eixos do debate atual. Ficou mais difícil o caminho do centro.


César Felício: Todos frágeis para 2022

Se economia limita Bolsonaro, oposição está fragmentada

Pesquisas qualitativas encomendadas pelo mercado financeiro constataram, no começo de janeiro, que o presidente teria um prazo de 24 meses, aproximadamente, para começar a gerar emprego e promover crescimento, sem trazer inflação de volta.
Esta era a tolerância dada pela maioria dos grupos de discussão antes de que se começasse a debitar na conta de Bolsonaro a responsabilidade pelo cenário econômico, independentemente da culpa ser dele ou não.

São dois anos que o presidente tem para apresentar resultados, já se passou um terço deste prazo, as perspectivas são modestas e a tensão entre Bolsonaro e o seu principal ministro deve começar a se manifestar.

Para Paulo Guedes, a data para tirar as panelas do fogo termina antes. Essencialmente o ministro precisa oferecer ao presidente liquidez, dinheiro na mão, para o governo manter a máquina em funcionamento e ter alguma narrativa a oferecer para os que passam a noite em filas no Anhangabaú procurando emprego, como mostrou a coluna de Maria Cristina Fernandes, publicada ontem. Este povo, hoje, não tem motivos para apoiar o presidente. Não é razoável pensar que Bolsonaro esperará a bomba estourar no seu colo dentro de um carro estacionado.

Na área econômica, Bolsonaro vive das expectativas que desperta nos escritórios da Faria Lima, mas não tem o capital para queimar. Concorrer à reeleição em meio a uma crise econômica, como tudo sugere ser o caso de Jair Bolsonaro em 2022, por si só não é sinônimo de morte política, desde que se conte com um colchão. Em 1998, Fernando Henrique Cardoso reelegeu-se com praticamente a mesma votação obtida quatro anos antes, em um contexto de aumento significativo do desemprego e com a economia em forte desaceleração.

A âncora cambial, contudo, reduziu a inflação naquele ano para o mais baixo índice registrado na segunda metade do século 20. O governo federal será capaz de criar alguma bolha semelhante? A conferir. Em 1998 isto foi o que bastou para contrabalançar os fatores negativos e os dois movimentos do cenário político: a união da oposição esquerdista com a aliança entre Lula e Brizola e a dissidência na base governista, representada pela saída de Ciro Gomes do PSDB. Não há nada semelhante à vista para ajudar Bolsonaro agora.

A oposição em 1998 perdeu, mesmo tendo cumprido o manual básico: fez alianças e aproveitou as divisões do governismo. É alvissareiro para Bolsonaro o fato dos seus maiores adversários levarem a disputa por protagonismo a um ponto que impede qualquer união, o que deve ficar claro já nas eleições do próximo ano. Melhor ainda para o presidente a dificuldade de seus opositores de promover a renovação.

Um contraste com o caso brasileiro pode ser visto na Argentina. Como um analista político do mercado observou, não é apenas o insucesso econômico de Mauricio Macri que explicará sua mais que provável derrota. Ela se dará também pelos méritos políticos de seus adversários.

A ex-presidente Cristina Kirchner, de longe, era a principal liderança da oposição, o que deixava até o começo do ano Macri em posição confortável: o nível de rejeição de Cristina quase rivalizava com o seu. Então Cristina surpreendeu a todos: ficou de vice na chapa e colocou como candidato um político que tem expressão muito menor, ainda que não seja um poste. Este político - Alberto Fernández - era um dos principais articuladores do peronismo dissidente.
Com este movimento, o peronismo se reaglutinou em torno de Fernández, reduzindo terceiras vias à insignificância.

No Brasil, a transferência da candidatura do PT de Luiz Inácio Lula da Silva para Fernando Haddad no ano passado não elevou a estatura do ex-prefeito de São Paulo no debate político de hoje para um patamar condizente com o de sua votação em 2018. O ex-prefeito nem adquiriu luz própria, nem está conseguindo agregar. Não une sequer o PT. Não está claro se o PT deseja em 2022 disputar de fato o poder ou se ficará limitado a defender a libertação de seu líder máximo. É assombroso, mas hoje Ciro Gomes - terceiro nas eleições, com menos da metade da votação de Haddad - consegue ser a figura de maior visibilidade no universo oposicionista. E são conhecidas as limitações do pedetista para liderar a oposição.

Luciano Huck conta com um discurso azeitado, um embrião de base política com os deputados eleitos pelos movimentos de renovação e articuladores em potencial competentes, cada um em sua esfera, como Paulo Hartung, Eduardo Mufarej e Arminio Fraga. Mas o apresentador e empresário está muito distante do ponto além do qual não há retorno. As caravelas estão intactas, não foram queimadas e sua candidatura portanto é apenas uma conjectura.

No campo da centro-direita alternativa à Bolsonaro, a avaliação de quem observa a cena no mercado financeiro é que o governador de São Paulo, João Doria, se firma no PSDB, mas com grandes dificuldades de sedimentar apoios. O seu afastamento de Geraldo Alckmin entre 2017 e 2018 ainda produz efeito na classe política, pouco estimulada a firmar com Doria compromissos implícitos de longo prazo. Com Doria só se conversa à luz do dia, e na política há acertos feitos que não são sequer verbalizados: os gestos bastam. Para que isso funcione, confiança é tudo.

O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, chama atenção pela audácia, mas parece ser uma figura extremamente vulnerável, do ponto de vista econômico e político, às consequências de um rompimento com Bolsonaro.

Se a economia em nada ajuda o projeto continuísta, o beneficia a debilidade das alternativas. Cada uma parece inviável à sua maneira.

Retrocesso
De todos os retrocessos promovidos pela Câmara com a aprovação das mudanças das regras eleitorais, um merece especial realce: abriu-se uma brecha para que um partido formalize a candidatura de alguém inelegível pela Lei da Ficha Limpa. O exame da inelegibilidade poderia ser feito até a data da posse. É desnecessário argumentar sobre o potencial desestabilizador da norma. Mas este é um disparate entre tantos. Ao aceitar patrocinar esta vitória do baixo clero da Câmara frente à opinião pública, Rodrigo Maia mostrou que seu plano de voo em 2022 parece ser menos ambicioso do que o que poderia se imaginar.


César Felício || 'Não sou de esquerda e nem de direita', diz Doria

Doria faz contraponto implícito a Bolsonaro

Em um elegante apartamento no Itaim Bibi, o governador de São Paulo, João Doria, fez uma profissão de fé: "Não sou de esquerda e nem de direita. Minha posição é a de centro e de respeito ao diálogo." Entre os comensais reunidos pelo advogado Fernando José da Costa, deve-se supor, não havia ninguém com a necessidade de ser convencido. Mas aquele não era um discurso aos convertidos. Havia a presença de jornalistas, várias vezes ressaltada pelo tucano em sua fala. O governador portanto sabia que se dirigia para um público maior.

Quem procurar nas declarações de Doria uma contraposição clara ao presidente Jair Bolsonaro terá dificuldade de encontrar. O governador parece querer que seus ouvintes tirem as conclusões por si. Quando realça a importância do diálogo e de não "perder tempo com bobagem", arremata a frase com um sorriso, faz uma pausa, e em seguida a ressalva, direcionada aos jornalistas. "Isto não é indireta pra ninguém", afirmou. Precisa ser mais claro?

Do mesmo modo não há referências diretas a projeto presidencial em 2022. Nem precisaria, porque o cargo de governador de São Paulo fala por si. Ressalvado o período militar, todos os governadores de São Paulo foram presidenciáveis nos últimos 64 anos.

Ao dizer que quer ocupar o centro, Doria tenta aglutinar a oposição a um inimigo declarado, que é a esquerda; e um oculto, o bolsonarismo. O antagonismo à esquerda é óbvio: Doria e seus operadores partem da premissa de que o petismo está muito longe de ter se esgotado, mesmo em São Paulo. Ser o contraponto ao petismo continua a ser um ativo importante. Já a negação da direita é o mais intrigante.

Doria poderia assumir a vestimenta da direita democrática, que opera pela redução do tamanho do Estado e por bandeiras conservadoras preservando a institucionalidade. Não é essa a opção que ele faz no momento. Não podendo mais se apresentar com a roupagem de gestor, e não de político, como fez em 2016, o patrono do movimento "Cansei", iniciativa empresarial pioneira em entoar o "Fora Lula", na década passada, faz uma aposta contra a polarização.

É como se o governador dissesse que, em algum momento, parte do contingente antipetista vai se sentir exausto com a gritaria. Aparentemente, o governador recebe informações de que há alguma notícia ruim se desenhando contra o projeto de poder bolsonarista.

A movimentação do governador não passou despercebida nas redes sociais. Aumentou muito o bombardeio contra o tucano que parte das milícias digitais do bolsonarismo.

Doria se prepara para um cenário em que talvez lhe convenha migrar para a oposição ao governo federal, como modo de suplantá-lo nas urnas em 2022, demonstrando algum aprendizado de seus erros nos anos recentes.

É visível a mudança de estilo entre o governador e o Doria prefeito de São Paulo entre 2017 e 2018. Não há mais o afã de correr o Brasil, em uma evidente campanha antecipada. Nem demissões de secretários pelas redes sociais, nem farinata. Há mais trabalho em silêncio, de longa maturação. No jantar de quarta-feira, Doria citou dois dos quais se orgulha: a reversão do fechamento das fábricas da General Motors, processo que demorou três meses; e o da remoção de lideranças do PCC para presídios fora do Estado.

A fraqueza estrutural de Doria está na baixa capacidade de agregar fora de seu habitat. Seu nome parece despertar pouco entusiasmo no DEM. Não conta com demonstrações de simpatia de nenhum cardeal do PSDB, a começar dos que já foram candidatos a presidente pela sigla, incluindo Fernando Henrique Cardoso.

O governador tenta superar esta debilidade com os desiludidos do bolsonarismo. Primeiro o empresário Paulo Marinho, no Rio de Janeiro, o que atraiu o ex-ministro Gustavo Bebianno. Agora aproxima-se do deputado Alexandre Frota. Por outro lado, está de olho grande nos parlamentares do PSB e do PDT que correm risco de expulsão por terem votado contra a reforma da Previdência. Ainda é pouco.

Argentina
É curiosa a atuação internacional do governo Bolsonaro. O presidente resolveu entrar no debate político argentino, como se fosse capaz de influenciar o resultado eleitoral daquele país. Fosse outro tempo, as ofensas que dirige ao favorito Alberto Fernández teriam peso, sem dúvida, para fortalecer ainda mais a tendência de vitória peronista.

Outra era a época, outros os protagonistas, quando em 1946 o então embaixador americano em Buenos Aires, Spruille Braden, atacou o mais forte candidato na eleição argentina que se avizinhava. O agredido capitalizou o episódio e a disjuntiva "Braden ou Perón" foi importante para o triunfo do caudilho.

Bolsonaro age como se fosse chefe de uma potência imperialista, quando não é. Um acordo patrocinado por ele em termos leoninos sobre o uso da energia de Itaipu quase derrubou o governo do Paraguai, mas na Argentina a história é outra. A direita é diminuta. Na recente eleição primária daquele país, o economista ultraliberal José Luiz Espert ficou com 2% e Alejandro Biondini, quase um neonazista, não passou de 0,2%. A vocação argentina para afundar no caos, contudo, é grande, e é contra esta tendência que a elite política daquele país se movimentou nos últimos dias.

O presidente Mauricio Macri nada tem a ver com Bolsonaro, além do fato de receber seu insólito apoio na disputa. Depois da derrota nas eleições primárias, tomou a iniciativa de ligar para Fernández e estabelecer um pacto de governabilidade. Macri quer concluir seu governo em paz. Fernández, chegar ao poder sem que desperte no mercado e na sociedade um pânico desestabilizador.

O "pacto do medo", como o chamou o jornal "La Nación", "colocou a política argentina no grau de civilização e cultura que a economia necessita para começar a normalizar-se", conforme registrou o colunista Joaquín Morales Solá. Macri gerencia uma falência econômica de gigantescas proporções, panorama que felizmente não é o caso brasileiro. Na política, desarma uma bomba. Ou pelo menos tenta.


César Felício: O croqui de um detonador

Presidente ainda não corre risco de impeachment

Discutir na América Latina o impeachment de um presidente da República a partir de algum crime de responsabilidade que tenha sido cometido é um equívoco, como a história é pródiga em mostrar, seja na Venezuela (1993), Equador (1997), Paraguai (2012), Guatemala (2016) e Brasil (1992 e 2016). É condição necessária, sem dúvida, mas não suficiente.

Se a queda de fato está madura, arruma-se qualquer pretexto. O afastamento de um chefe de Estado é e sempre foi uma decisão política. Guarda, de jurídico, apenas a forma. Trata-se de um tribunal onde já se entra condenado, um caldo que se serve quando está bem grosso. Para a derrubada de um presidente, há outras variáveis mais importantes que os seus pecados. Isoladamente, nenhuma é motivo para um impeachment. Combinadas, o tornam muito provável.

A mais fundamental é a perda de popularidade. Um presidente isolado da sociedade corre risco. Cientistas políticos como Carlos Melo (Insper) apostam, por exemplo, que o limite do perigo é cruzado quando o governante não consegue somar mais do que 20% de bom ou ótimo. Queda abaixo deste patamar gera onda na opinião pública e aumenta muito o custo da negociação política. Bolsonaro está com 32%, segundo o último Ibope.

Sem entrar no mérito de ser ou não uma estratégia deliberada, as boçalidades vis declaradas pelo presidente nas últimas semanas despertam os instintos mais primitivos de uma faixa do eleitorado, que se alimenta do ódio à razão. O fanático ou agita ou dorme, com ele não há argumento possível. Isso vale para os dois extremos do espectro ideológico e faz com que as ruas não sejam dominadas por nenhum dos polos. Em um ambiente marcado pela radicalização, o patamar abaixo do qual a impopularidade é letal diminuiu.

Um presidente também fica com a governabilidade em xeque quando a economia trava ou retrocede. São sete anos em que a economia drena as energias do governo. Não há crescimento consistente no Brasil desde 2012, mas o momento não é de implosão, ou não teríamos uma taxa Selic de 6%, com bolsa em alta.

Algum sinal de alerta foi ligado no Palácio do Planalto para providenciar um aditivo. A nova destinação criada no mês passado para o Fundo de Garantia mostra a intenção de ministrar um cuidado paliativo para manter os segmentos urbanos quietos, enquanto a retomada não vêm.

Em relação à Faria Lima e ao Leblon, ainda se vive das expectativas. Acredita-se no poder sinérgico de uma agenda de privatizações e ajuste fiscal, por meio de reforma da Previdência e reforma tributária. Não são poucos os que alardeiam que há uma fila de investidores internacionais para despejar dinheiro no Brasil, derrubar o dólar e levar a bolsa para mais de 200 mil pontos.

Minoria parlamentar do presidente é outro combustível para um impeachment presidencial. Bolsonaro é o primeiro governante do Brasil a não ter maioria formal no Congresso desde Collor. Dilma tinha, mas a perdeu ao não conseguir desarmar a costura para a eleição de Eduardo Cunha à presidência da Câmara.

Uma aliança entre os partidos do centrão, o PSDB e a oposição de esquerda poderia derrubar Bolsonaro, mas por ora não há corrente alguma a ligar estas pontas. Tucanos e esquerdistas não conseguem se entender nem internamente, o que dirá um com o outro. Resta ao centrão tentar costurar a sua agenda própria no Congresso e tentar de quando em quando estabelecer um pacto de não agressão com o Executivo. Bolsonaro atira em vários inimigos, mas não se forja uma frente contra si.

Um vice-presidente ambicioso pode exercer o protagonismo essencial para construir esta conjura. Não parece ser o caso, entretanto, de Hamilton Mourão, enquadrado por Bolsonaro durante a ofensiva contra a ala militar do Executivo, que culminou na demissão de Santos Cruz do Ministério, em junho.

Um chefe de Estado também pode cair quando rompe o equilíbrio entre os três Poderes e se torna uma ameaça à institucionalidade. É uma linha divisória que, uma vez transposta, leva à ditadura ou ao colapso, uma espécie de tudo ou nada.

Bolsonaro cruzou este limite? É seguro apenas afirmar que ele anda na fronteira. Ele exerce o poder da forma mais autoritária possível que a lei lhe assiste, como demonstra a troca ontem dos integrantes da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, mas há uma considerável distância entre sua palavra e as ações concretas.

Onde está a transferência da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém? A retirada dos radares das estradas? O fim da Ancine? Angra dos Reis transformada em Cancún? A revisão das indenizações a familiares de vítimas do regime militar? A liberdade para a compra de armas? O próprio destrambelhamento com que Bolsonaro entrou nestes temas prejudicou seu andamento, como o episódio das armas deixou evidente.

Tudo de uma maneira ou de outra termina matizado pelo Legislativo ou pelo Judiciário. Como o próprio presidente admitiu, ele tem muito mais capacidade para destruir normas de civilidade, garantias sociais, políticas públicas, espaços de convivências do que de emparedar os demais poderes a um ponto que os leve a agir contra o Executivo. Emparedar envolve construção, o que não é a especialidade presidencial. Recorde-se o que Bolsonaro disse em Washington, quando se reuniu com lideranças conservadoras dos Estados Unidos, em março deste ano: "o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa".

De cada um dos fatores que desencadeiam um impeachment, Bolsonaro colhe o seu quinhão, mas a soma não dá, ao menos ainda, a potência necessária para dar início a um processo de queda. O presidente, contudo, esboça o croqui de um detonador. Declarações como as que fez contra o pai do presidente da OAB assustam mesmo articuladores moderados do Congresso, aqueles que estão envolvidos em uma agenda econômica favorável ao mercado. Intramuros, o que comentam é que Bolsonaro já cumpriu seu papel na história, que foi o de expulsar a esquerda do poder. O populismo incomoda.


César Felício: Sinais trocados

Maia quer reforma dura; Bolsonaro mais concessões

Quem representa o governo na negociação da reforma da Previdência? A pergunta é legítima. Os acontecimentos dos últimos dois dias sugerem que o governo federal é uma coisa e o presidente Jair Bolsonaro é outra. O presidente é o coordenador mais importante do grupo de pressão que tenta arrancar concessões para a classe policial. Está no Palácio do Planalto, mas parece não se misturar com a equipe que faz o meio de campo entre o Ministério da Economia e o Congresso. Da maneira como comentou no começo da tarde de ontem o secretário especial da Previdência, Rogério Marinho, ao falar com jornalistas sobre a aprovação do texto-base da reforma da Previdência na Comissão Especial, o presidente parece estar em uma outra dimensão. "O presidente tem nos ajudado e tem o direito de ter sua opinião", afirmou, segundo registrou o Valor PRO. É uma frase que precisa ser lida mais de uma vez, uma frase simbólica. O presidente tem ajudado. Ele tem o direito de ter sua opinião, que não necessariamente coincide com a da equipe econômica. Está no direito dele.

Os privilégios aos policiais foram derrubados ontem na Comissão Especial, com a derrota do destaque apresentado pelo PSD, mas uma perda de substância da reforma ainda poderá vir, nos próximos dias. O presidente passou a Rodrigo Maia o recado de que quer concessões para a classe policial. É bom lembrar que o presidente da Câmara tem comentado a aliados, conforme registrou ontem o Valor PRO, que conta com o apoio de 340 parlamentares para a reforma se concessões não forem feitas a categorias de forma isolada. E uma concessão de forma isolada é exatamente o que pediu Bolsonaro. Em outras palavras, enquanto o presidente da Câmara trabalha pela aprovação da reforma mais dura, o presidente da República quer afrouxá-la. Uma situação inédita, que levou a uma nova altercação entre Maia e o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, segundo relatos.

Retirado oficialmente da coordenação política do governo, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, apareceu na Câmara, logo após a votação, para garantir que "o governo venceu todas", que será possível votar a reforma em plenário antes do recesso e que, a partir de segunda-feira, a negociação será retomada para se tentar uma emenda aglutinativa a favor de regras mais brandas para policiais federais e rodoviários. Ou seja, chamou para si a conversa. Irá contar com a ajuda do novo coordenador, aquele que foi chamado para tirar poder de Onyx, o ministro da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos, que já pediu para não ser chamado de general.

É confuso, e como em toda confusão no governo Bolsonaro, há método na loucura. O presidente terá saldo favorável, independentemente de a reforma ser aprovada com ou sem esta concessão na próxima semana.

Candidaturas
Entre 2013 e 2017 a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), uma ONG que faz capacitação de interessados em participar do processo eleitoral, recebeu por ano, em média, a inscrição de mil interessados. Este ano, em que se abre a inscrição para os pretendentes a concorrer nas eleição de 2020, nada menos que 4.235 preencheram ficha.

No Renova, outro movimento que também atua no impulsionamento de carreiras políticas, surgiram 31.359 interessados em concorrer no próximo ano, em 2.099 cidades em todos os Estados. No ano passado, foram 4 mil inscritos. O filtro será rigoroso e poucas centenas devem ser selecionados por estas ONGs, mas a tendência de crescimento do interesse em participar da eleição está clara.

Para a diretora-executiva do Raps, Mônica Sodré, o aumento da demanda está diretamente relacionado a um processo essencialmente benigno, que é o de maior engajamento da sociedade em causas públicas. Para o fundador do Renova, o empresário Eduardo Mufarej, é uma reação da sociedade de repúdio à atual classe política, um movimento que avança pelo desejo de renovação.

Há fundamento tanto em uma posição quanto em outra, mas o modelo institucional que está proposto para a eleição do próximo ano também estimula o aumento da concorrência.

A eleição de 2020, se as regras não forem alteradas pelo Congresso, como já se articula, será a primeira sem a possibilidade de coligações proporcionais desde 1982. As alianças majoritárias continuam permitidas, mas não haverá estímulo para elas, já que megacoligações para se eleger prefeitos não poderá ser replicada na formação de um "chapão" para a Câmara dos Vereadores.

Cada partido terá que ter sua nominata completa, se são 70 vagas para vereador em São Paulo, serão pelo menos 70 candidatos para cada uma das dezenas de siglas habilitadas a concorrer. Os candidatos que entrarem pelas mãos da Raps, Renova ou organizações da mesma natureza terão que disputar espaço com laranjas que estarão lá só para constar, celebridades de internet ou outras modalidades de caráter sinistro de recrutamento.

"Campeão de voto em proporcional vai valer ouro, diamante, todo mundo vai querer grudar nele", comentou Murilo Hidalgo, dono do Paraná Pesquisas, que monitora o panorama eleitoral em diversos Estados.

Em Curitiba, oito partidos lançaram candidatos a prefeito, 19 elegeram vereadores. Para 2020, o mais razoável é pensar no inverso. Haverá mais partidos lançando candidato a prefeito, para que o postulante na eleição majoritária carreie voto de legenda para a eleição proporcional. Haverá menos partidos elegendo vereadores. Em Cuiabá, nas eleições de 2008, 2012 e 2016, nenhum partido conseguiu formar quociente de forma isolada. "Os vereadores atuais tendem a se nuclear em uma sigla só, repartindo o voto para região para diminuir a competição. Os partidos que não tiverem candidato a prefeito forte e quiserem eleger na proporcional vão ficar muito prejudicados", comentou.

Como o fim das coligações está conjugado ao reforço da cláusula de barreira, depois da pulverização na eleição de 2020 haverá uma concentração na eleição seguinte. Em 2022 menos partidos estarão habilitados a concorrer na primeira eleição sem coligações em nível estadual. O quadro irá se enxugando naturalmente.

*César Felício é editor de Política.


César Felício: Muita lenha para queimar

Oposição não sabe o tamanho da cela, mas está encarcerada

As manifestações de ontem, a julgar pelas informações preliminares, devem mostrar à oposição ao governo Bolsonaro seus limites. Tanto o lado azul quanto o vermelho mostraram capacidade de ocupar ruas, mas claro está que não se vive um clima de Primavera Árabe, ou de Junho de 2013. Os atos estão na equação política, mas não ganharam e nem devem ganhar no futuro próximo centralidade.

No de ontem, até o início da noite, houve manifestações em 131 cidades em 26 Estados e no Distrito Federal. Boa parte no Nordeste, como as registradas na Bahia (12 cidades), Paraíba (9), Pernambuco (6) e Ceará (6), mas em São Paulo os atos foram de Birigui a Ubatuba, em 17 municípios. Foram atos relevantes, que incomodam o governo, mas não criam uma dinâmica desestabilizadora. Até certo ponto favorecem a estratégia de Bolsonaro, a quem interessa manter um clima de radicalização pré-eleitoral.

Para um governo sem base no Congresso e ideias concretas para reativar uma economia em ponto morto, contar com uma oposição no estado em que está a brasileira não deixa de ser um conforto. Alguém duvida que os maiores desafios a serem ultrapassados por Bolsonaro estão entre os seus companheiros de trincheira, e não do outro lado?

Não se sabe ainda o tamanho da cela, mas a oposição está encarcerada. Sua maior esperança é por uma espécie de autofalência bolsonarista, seja por total inépcia administrativa do presidente, ou em caso de uma tentativa desastrada de golpe, como a feita por Jânio Quadros, em 1961.

A oposição alimenta-se da narrativa do golpe e da conspiração internacional e é só torcida: aguarda-se que o preço a ser cobrado pelo Centrão para aprovar as reformas seja insuportável; que Bolsonaro continue empurrando os estudantes para as ruas com o arrocho na educação; que o Ministério Público do Rio de Janeiro comprometa ainda mais a família presidencial com antigos e atuais milicianos, e por aí vai.

Como Blanche Du Bois, a personagem da peça "Um bonde chamado desejo", depende da bondade de estranhos. Para explicar a analogia, Blanche é uma senhora que vive fechada em suas ilusões de grandeza passada e refinamento, e é destruída mental e fisicamente ao entrar em atrito com o cunhado sociopata.

É evidente o cansaço da população do PT, como fica patente em pesquisas de opinião que apontam Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Haddad como campeões de rejeição, mas bem ou mal são os petistas que estão na rua, são eles que tem um candidato pronto, em viagem pelo país e com recall para apresentar em 2022, que contam com capilaridade nacional e com governos estaduais de razoável porte nas mãos. É muito cedo para se projetar o quadro eleitoral de 2022, mas é certo que lá estará, entre os postulantes, o do PT.

O PDT, o PSB, o PCdoB, o Psol, podem divagar sobre projetos de união, mas não conseguem contornar o fato de que o PT é que tem a hegemonia deste campo e ao PT não interessa nada que signifique abrir mão desta hegemonia, mesmo que o preço para isso seja uma permanência de longo curso do bolsonarismo no poder.

Esta semana, um governador oposicionista sorriu amarelo ao ser perguntado sobre a estratégia de 2022 e, em um gracejo, concordou que era melhor começar a falar na eleição de 2026. A próxima é melhor pular. A rejeição ao PT não se dissolverá, Ciro Gomes não consegue agregar o campo oposicionista, Marina Silva é passado e esperar por Joaquim Barbosa é contar com Dom Sebastião, reaparecendo em algum dia de muita névoa.

Este governador oposicionista vê com apreensão a eleição do próximo ano. Se fosse agora, mostraria um fortalecimento do bolsonarismo nas capitais, em que pese o desgaste do governo e a força das ruas. Ele não se ilude com a queda da popularidade do presidente. "Nas pesquisas qualitativas que realizamos, as pessoas atribuem os problemas pelos quais passam hoje, como a insegurança ou o desemprego, ao PT. Não atribuem ao Bolsonaro", sentenciou. O presidente ainda tem muita lenha para queimar.

Histrionismo
O Brasil já teve ministro acusado de homicídio. Titulares do primeiro escalão que sustentaram que cadelas são seres humanos. Houve uma miríade de ministros fulminados por escândalos de toda natureza. Mas nunca houve nada parecido com Abraham Weintraub. Cumprem a ministros, em geral, um papel discreto, que não ofusque o presidente. Não é o caso, entretanto, do titular do MEC. Weintraub é um showman.

O ministro da Educação já provocara espanto ao aparecer nas redes sociais mostrando o torso nu, para evocar cicatrizes da adolescência que interferiram em seu desempenho universitário. Procurou explicar contingenciamento de verbas com chocolatinhos. E ontem, em um dia de protesto em sua área, eis que surge ao som de "singing in the rain", rodopiando um guarda-chuva, apenas para desmentir que tenha cortado recursos para a reconstrução do Museu Nacional.

O assombroso vídeo foi curtido pelo presidente Bolsonaro no Twitter, o que mostra que a excentricidade está dentro de um método. O ministro da Educação teve o endosso do governo para gastar o tempo necessário na concepção e produção do vídeo em que mescla arrogância e deboche contra "os veículos de comunicação, das pessoas que estão de mal com a vida".

Desde que assumiu o cargo, Weintraub se esforça em tratar os temas de sua pasta como caso de polícia e as críticas que recebe como perseguições odiosas. Cortes orçamentários de rotina foram caracterizados como reação a atividades impróprias cometidas em ambiente escolar, as já famosas "balbúrdias". Seu histrionismo contrasta com o baixo perfil que cultivou durante a campanha eleitoral e sugere que o ministro cumpre um papel político ao fazer o que faz. Trata-se de uma pessoa sem nenhum receio do ridículo, o que é raro. O país ainda aguarda a apresentação de uma estratégia para a educação.


César Felício: Bolsonaro, trotskista e gramsciano

Presidente representa o legado de Sylvio Frota

O presidente Jair Bolsonaro, de credenciais inequívocas na direita, de certa forma é trotskista e gramsciano. Acredita na revolução internacional permanente e aposta no estabelecimento de uma hegemonia cultural.

Bolsonaro precisa da derrota mundial da esquerda não para emergir como o líder de uma tendência, algo que jamais será, mas para subsistir. Em suas colocações e entrevistas, é frequente o raciocínio de que a era Lula não teve origem em circunstâncias muito particulares da conjuntura brasileira, mas em uma conjura de agitação e propaganda transnacional em grande parte tocada pelo Foro de São Paulo. O fim do ciclo petista no Brasil, em sua concepção, só se consolida com a repetição do fenômeno além fronteira.

Daí a importância da Venezuela em sua equação. A queda da ditadura venezuelana, se e quando se materializar, permitiria a Bolsonaro investir na radicalização no Brasil, jogando a pecha do autoritarismo na testa de seus adversários, estratégia para a qual o PT contribui de maneira estúpida, ao se solidarizar com o sangrento regime de Maduro.

Daí porque Bolsonaro se sente ameaçado por um eventual retorno de Cristina Kirchner ao poder na Argentina. E esta é a razão para a qual fez um apelo a políticos de direita no Uruguai para que derrotem a Frente Ampla naquele país. O presidente brasileiro porta-se como um cabo eleitoral de Trump, porque prefere nem pensar na hipótese de ter que lidar com alguém como Joe Biden à frente da Casa Branca. Não tanto pelas mudanças de orientação na política externa que um governo democrata faria, mas pelo impacto de uma derrota de Trump no imaginário da revolução mundial 'neocon'.

Trump não é mais uma pessoa, é uma ideia. Na visão do chanceler de Bolsonaro, o líder de uma reação da cristandade ocidental contra o globalismo. Bolsonaro precisa de Trump no poder e Maduro acuado para sustentar a sua narrativa. Assim como Trotski não acreditava na sobrevivência do socialismo em um só país, o bolsonarismo também anseia pela revolução mundial.

A vertente gramsciana do atual grupo no poder está na enorme preocupação com o suposto predomínio da esquerda no pensamento acadêmico, na intelectualidade, nos meios de comunicação. O bolsonarismo pensa a educação pública como uma ferramenta de disseminação de um pensamento político, de exercício de poder. Sem uma estratégia clara de como tomar de assalto estes aparelhos, o bolsonarismo pretende antagonizá-los, e no limite, sufocá-los financeiramente. Pela primeira vez na história brasileira, a educação pública torna-se não uma solução, mas um problema. Um obstáculo a ser transposto.

A visão de que as ameaças ao exercício do poder vêm da cultura e da conjuntura internacional foi exposta por clareza de uma espécie de um líder ancestral de alguns integrantes do governo, o general Sylvio Frota (1910-1996). Era o ministro do Exército que foi demitido por Ernesto Geisel em 1977 quando começava a articular a sua candidatura a presidente nas eleições indiretas. Frota queria aprofundar o movimento de 64, e não desmontá-lo com uma abertura, lenta, gradual e segura.

Para Frota, o marxismo buscava "infiltrar-se em quase todos os setores da vida pública brasileira, chamando de fascistas os que se opõem aos seus desígnios", conforme afirmou em uma ordem do dia de 1975, de acordo com o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, da Fundação Getulio Vargas. No seu livro de memórias, "Ideais Traídos", cujo nome é bastante sugestivo de sua visão sobre o processo de abertura, Frota argumentou que o governo Geisel era de centro-esquerda. Acreditava que havia 97 comunistas infiltrados dentro do governo federal. A política externa do governo de então, que restabeleceu relações diplomáticas com a China e aproximou-se das recém independentes nações da África, era alvo frequente de suas críticas.

A cruzada de Frota também era contra "a existência de um processo de domínio, pelo Estado, da economia nacional - inclusive de empresas privadas - de modo a condicionar o empresariado brasileiro aos ditames do governo", conforme registrou em sua carta de demissão. O ultraconservador Frota unia assim o anticomunismo à defesa do Estado mínimo.

A demissão sumária do general desarticulou a linha-dura e consolidou o fim do regime militar dentro de um processo negociado com a classe política. Frota tentou reagir, mas a cúpula do Exército não o acompanhou.

Bolsonaro era muito jovem à época desses acontecimentos, mas as figuras que sempre nominou como referências, como o ministro do GSI, Augusto Heleno, ou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015, estavam na órbita do frotismo. O primeiro era ajudante de ordens do ministro, o segundo subchefe de operações do Centro de Inteligência do Exército (Ciex).

As forças que Frota reuniu em torno de si ficaram sem perspectiva de poder pouco mais de sete anos antes do insucesso da ala pragmática do regime em fazer o sucessor de Figueiredo. Não foram elas que perderam em 1985. Como escreveu Frota na sua despedida, "existe uma evidente intenção de alienar as Forças Armadas dos processos decisórios do país, açambarcados por um grupelho, encastelado no governo".

A baixa oficialidade daquele tempo, mera espectadora da briga dos estrelados, vive atualmente uma luta com os seguidores do polemista Olavo de Carvalho para deter a hegemonia do governo do capitão, mas talvez não esteja tão distante de seus contendores nas premissas básicas.


César Felício: O mercado aposta em Maia e estuda Mourão

Aprovação de alguma reforma é dada como certa

Nada parece mover o inabalável otimismo no mercado financeiro em relação à aprovação de uma reforma da Previdência: nenhum vídeo obsceno postado pelo próprio presidente, nenhuma intriga alimentada por Olavo de Carvalho, nenhum tuíte inexplicável do vereador Carlos Bolsonaro, ou trapalhada do ministro da Educação. Acredita-se que há duas esferas no poder em Brasília: uma é a movida a estrondo e fúria, navegando no mundo da instantaneidade e do espetáculo e tem o próprio presidente como protagonista.

A outra é bifronte e eficaz: são protagonistas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), visto como o mais credenciado negociador da reforma da Previdência; e o vice-presidente Hamilton Mourão.
A banca não tem absoluta certeza, mas acredita que Mourão vocaliza e opera em nome de todo o grupo militar, visto como mais preparado e dotado de maior estratégia política do que Bolsonaro, sua família e seus aliados mais próximos, em um pacote que inclui o próprio ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.

O grupo militar seria a verdadeira espada e escudo de interesses que convergem para o mercado, frente ao qual o restante seria espuma. A contenção dos desvarios bolsonaristas em relação a Venezuela e transferência da embaixada para Israel seriam sinais eloquentes neste sentido.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, está fora da equação, e não por ser desimportante, ao contrário. Guedes não é visto ainda como um homem do mundo de Brasília, um dos beligerantes na conflagração por poder. Ele é um universo à parte, que montou uma reforma da Previdência sólida do ponto de vista fiscal, com muita gordura para negociar. Não deve, contudo, ser o condutor do processo de barganha.

A ansiedade do ministro em propor a emenda da desvinculação simultaneamente à reforma da Previdência, depois de a ter apresentado como "plano B", é vista mais como um sinal de sua inexperiência do que de sua visão tática.

Do ponto de vista do curto prazo para o mercado, Rodrigo Maia é a figura-chave. É descrito como o primeiro-ministro do governo, o operador para se garantir a aprovação de algo entre 50% e 80% da meta de Guedes em relação à reforma.
No pacote a ser tocado por Maia no Congresso ainda estão a nova política em relação ao salário mínimo, com evidente impacto fiscal, e o represamento de aumentos para o funcionalismo dos três Poderes.

Quem busca estudar Mourão no mercado está preocupado com o longo prazo. Ele é visto, no mínimo, como um possível presidenciável em 2022, ao lado de outros nomes como o de Bolsonaro, Moro, Doria e do próprio Rodrigo Maia. Em um cenário extremo, como uma alternativa ao atual presidente antes do fim do mandato. Os exemplos da década deixaram o sistema financeiro atento em relação a eventuais pontes para o futuro.

Um dos pontos que chamaram a atenção no vice é a sua transformação, como se Mourão buscasse estabelecer alguma espécie de contraste em relação ao titular do cargo. Durante a campanha eleitoral, sobretudo no período que precedeu a facada de Juiz de Fora, não foi o que se viu: Mourão fez declarações de caráter antidemocrático e que denotavam preconceito racial. Atrapalharam e muito a campanha de Bolsonaro. A questão que cabe no momento é qual o motivo para existir agora um vice que é a voz do bom senso, um comentarista permanente de todos os fatos que tenham relação direta ou remotíssima com o governo.

Supremo
Há um autoritarismo de baixo para cima, um clima de revolução cultural maoísta alimentado pelas redes sociais no Brasil, mas com o sinal trocado. Na China dos anos 60 eram colados em muros pela Guarda Vermelha, os 'dazibaos', onde a elite intelectual e administrativa do País era acusada de traição ao grande timoneiro. A instabilidade era permanente, dado o macartismo às avessas em que qualquer um acusava quem quer que fosse de qualquer coisa, sem blindagem possível.

Em baixa sempre estão a tolerância, o respeito às instituições como mecanismo de solução de controvérsias, a mediação política, a veiculação da informação com responsabilidade.

Por mais mesquinhas que sejam suas motivações, não é possível dissociar deste quadro a iniciativa do presidente do STF, Dias Toffoli de instaurar uma investigação de ofício sobre 'fake news' contra os ministros do Supremo.

À parte tudo isso, é preciso ponderar sobre a gravidade da decisão de ontem da Corte, que tornou crimes comuns passíveis de serem julgados pela Justiça Eleitoral. É claro que abriu-se uma porta para se afrouxar o combate à relação espúria que se estabeleceu entre políticos e o empresariado.

Talvez seja precipitado cravar que a decisão signifique o fim de uma era, como festejam petistas e deploram os protagonistas da Operação, mas o sentido da decisão é incontroverso.

Não há dúvida sobre a colocação de um limite crucial no poder do Ministério Público, a três dias do quinto aniversário do começo da Operação. Travou-se ontem uma disputa de poder, como mencionou Gilmar Mendes.

A indignação das redes sociais contra um STF que poda a Lava-Jato torna-se um catalisador para reações em cadeia. No âmbito do Congresso, a movimentação começou pelo Senado. Conforme registrou Cristiane Agostine e Carolina Freitas no Valor Pro, o líder do PSL na Casa, Major Olímpio, apresentou um projeto de lei para retirar da Justiça Eleitoral o julgamento de crime comum. Outro senador, Alessandro Vieira (PPS-SE), articula uma CPI "Lava Toga". Um terceiro, Lasier Martins (PSD-RS), emprestou o gabinete ontem para o advogado Modesto Carvalhosa protocolar mais um pedido de impeachment contra o ministro Gilmar Mendes.

O Judiciário terá que resistir a uma ofensiva muito mais consistente do que qualquer quartelada que envolva um cabo e um soldado.


César Felício: Bolsonaro se traduz

Miscelânea presidencial forma um conjunto

Paletó bem ajustado, nó da gravata no lugar certo, ladeado pelo ministro do GSI e pelo porta-voz, ambos generais de reserva, o presidente Jair Bolsonaro está trabalhando. Não há espaço em sua 'live' no Facebook para chinelos Ryder, pão com leite condensado e outras informalidades. O presidente está contido. No vídeo de 20 minutos, Bolsonaro promete que toda quinta-feira, às 18h30, será assim.

Ainda administrando os efeitos da divulgação que fez de um ato obsceno no Carnaval, o presidente sugere que a sua estratégia de comunicação ganhou um outro formato. A conferir se a 'live' no Facebook, concentrada em um dia da semana, irá frear a sua atuação no Twitter, ambiente onde vigora a lei da selva na internet.

A conferir também se o Facebook servirá de antídoto para danos colaterais da palavra do próprio presidente. Bolsonaro discursou para militares no Rio de Janeiro, pela manhã, e de tarde estava na rede para dizer que foi mal compreendido, "para variar". A comunicação presidencial adotou uma linha: o presidente solta algo insólito, seja uma concessão na reforma da Previdência ou um elogio a um ditador paraguaio de má fama e em seguida busca ser seu próprio tradutor.

Na aparência, a moderna versão da "Conversa ao Pé do Rádio" é um minestrone, um siri catado, onde pode entrar de tudo. Bolsonaro acena para o mercado, em uma rara intervenção a favor da votação da reforma "que está aí, se bem que o Parlamento é soberano para fazer qualquer possível alteração, só esperamos que ela não seja muito desidratada".

Para o resto, a "boa notícia" é o fim da lombada eletrônica e o aumento da validade da carteira de motorista. O presidente aconselhou até a aprovados em um concurso do Banco do Brasil a entrarem na justiça contra duas exigências do edital, o de cursos de diversidade e de prevenção ao assédio moral e sexual.

Também sugeriu aos pais de menores de 9 a 16 anos que rasguem as últimas páginas das cadernetas de vacinação distribuídas durante a era Dilma. Ele não deixa claro, mas provavelmente se referia ao conteúdo que vai da página 31 até a 44 da cartilha, que trata de assuntos como desenvolvimento da genitália na puberdade e uso de preservativos.

A miscelânea, na aparência caótica, forma um conjunto. Eis aí um presidente atento a tudo, a cada detalhe do cotidiano, que propõe como contraponto ao remédio amargo da economia a diminuição da presença do Estado na mediação de relações sociais, seja no trânsito, no ambiente de trabalho ou na educação dos filhos.

Carnaval
"Do Oiapoque ao Chuí, até o sertão distante/o progresso foi se alastrando neste país gigante/no céu azul de anil, orgulho do Brasil/nossos pássaros de aço deixam o povo feliz/ninguém segura mais este país". É provável que o então adolescente Jair Bolsonaro não tenha tomado conhecimento do samba da Mangueira no carnaval de 1971, que tinha o título "Modernos Bandeirantes" e homenageava a Força Aérea.

Parece seguro, entretanto, afirmar que o garoto Jair compartilhava de um espírito da época que tornava cabível um enredo como aquele. Para a imensa massa da população, 1971 era um tempo de conformismo na Política e expansão forte na Economia. Em um quadro de censura à imprensa e violência extrema contra os oposicionistas, não havia barreiras para o ufanismo exacerbado.

Politização no carnaval sempre houve, e nas escolas de samba são muito mais abundantes os exemplos de exaltação do discurso oficial do que o oposto, como observa o historiador Luiz Antonio Simas, um dos colaboradores do carnavalesco Leandro Vieira, responsável pelo desfile vencedor deste ano, da mesma Mangueira chapa-branca de 1971, com o enredo "história para ninar gente grande".

A Mangueira em 2019 desfilou pela avenida toda uma narrativa histórica que os defensores do projeto "Escola Sem Partido" só podem abominar. Logo no começo, um carro alegórico mostrava o monumento aos bandeirantes, em uma cena demoníaca, com um Anhanguera de chifres, sangue jorrando e caveiras para todo o lado. O símbolo da invasão, genocídio e escravização de negros e índios. No fim do desfile, outro carro, com o cartaz "ditadura assassina", mostrava o padre Anchieta, a princesa Isabel, o Duque de Caxias e o Marechal Floriano como vilões. Os dois últimos pisavam sobre cadáveres. Para finalizar, uma grande bandeira com a efígie da vereadora Marielle Franco, a última mártir da sequência apresentada pela escola.

Para Simas, mudou menos a Mangueira do que as circunstâncias. A crise econômica fez secar um expediente muito usual nas escolas de samba, o de vender o enredo para patrocinadores, seja um fabricante de iogurte (Porto da Pedra, 2012) ou o ditador da Guiné Equatorial (Beija-Flor, 2015). Imersa em disputas internas e acossada pela Justiça e pela concorrência com outros tipos de criminalidade, a contravenção perdeu o controle absoluto que tinha e abriu a brecha para um desfile mais autoral.

Simas não cita este exemplo, mas secou até o dinheiro de esquemas de corrupção entranhados no governo do Rio, que segundo delatores da Operação "Furna da Onça" teriam ajudado a financiar o desfile da Mangueira de 2014, que homenageou os festejos populares.

Neste contexto as escolas de samba buscam se manter, atentas ao vento que sopra fora. O clima na sociedade é de polarização e há fatores para desgaste do governo Bolsonaro particularmente no Rio de Janeiro, mesmo levando em conta a tranquila vitória do atual presidente na Mangueira, espelho do que aconteceu em todas as zonas eleitorais da cidade. O esquerdismo do desfile de agora pode ser sucedido por uma exaltação de valores conservadores em 2020 sem que isso seja motivo para surpresas.

Não se pode dizer o mesmo em relação ao carnaval de rua, em particular no caso do Rio de Janeiro e de Olinda. A juventude das classes médias alinhadas com a esquerda há mais de três décadas usa a folia para mandar seus recados, sobretudo quando a esquerda está na oposição. É uma tradição que surgiu no crepúsculo do regime militar, entre o fim dos anos 70 e o início dos anos 80.

"Este ano teve uma clivagem mais forte. Além da questão político-partidária, houve nos blocos a bandeira de questões de comportamento. Tudo foi 50 tons acima do normal", diz a jornalista Rita Fernandes, presidente da Associação de Blocos de Rua do Rio. Bolsonaro na presidência era um alvo óbvio.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo