celso rocha de barros

Celso Rocha de Barros: Trump perdeu, falta Bolsonaro

Contraste com democracia dos EUA voltando ao normal faz situação brasileira parecer ainda mais triste

Joe Biden é o novo presidente dos Estados Unidos. Em seu discurso da vitória, defendeu a união de todos os americanos, inclusive dos que não haviam votado nele, e prometeu que governaria para todos. Perdi o trecho seguinte porque comecei a rir lembrando que teve gente com fama de sério apostando que Bolsonaro um dia faria o mesmo.

Biden fez belas citações bíblicas e mencionou os transexuais entre os americanos que quer defender. Agradeceu especialmente aos negros americanos, que foram decisivos para sua vitória.

Só esclarecendo, não agradeceu apenas o Hélio Negão que estava ali do lado, agradeceu Kamala Harris, primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente, agradeceu seu antigo companheiro de chapa, o ex-presidente Barack Obama, e agradeceu o poderoso movimento de organizadores negros que lhe deram vitórias decisivas em cidades como Detroit e Filadélfia.

Biden também anunciou que nesta segunda-feira (9) vai indicar uma força-tarefa de cientistas para lidar com a pandemia. Duvido que chame o Osmar Terra, duvido que alguém ali seja demitido ou humilhado publicamente se decidir trabalhar, como aconteceu com Mandetta, Teich e Pazuello. Biden deve trazer os Estados Unidos de volta para o Acordo de Paris, que proíbe ministros como Ricardo Salles.

Enfim, o contraste com um país voltando ao normal fez a situação brasileira parecer ainda mais triste. As pessoas dançando nas ruas da Filadélfia não estão comemorando porque Trump foi “moderado pelo centrão”.

A única coisa na eleição americana que me lembrou o Brasil de 2020 foi a tentativa de Donald Trump, o candidato derrotado, de dar um golpe de Estado. Mas é aquilo, se Trump não fosse golpista, Bolsonaro não gostaria tanto dele.

Até o momento de entrega dessa coluna, Trump ainda não havia reconhecido sua derrota. Mentiu que a eleição foi fraudada, mentiu que teve mais votos do que Biden, enfim, “went full Jair”. Torce para que haja protestos de rua que forcem uma judicialização da eleição, e já escalou Rudolph Giuliani, o genro do Borat, para conduzir a batalha legal.

Deve dar errado. Lá não há hipótese dos militares aceitarem um golpe. O Partido Republicano é, no geral, um partido sólido que tem certo interesse na manutenção das regras do jogo. A rede conservadora Fox News não bancou a palhaçada.

Mas esse último crime de Trump contra a democracia pode ter consequências. O artigo de Patrícia Campos Mello publicado neste sábado (7) mostrou que o discurso da “eleição roubada” pode manter a base trumpista permanentemente radicalizada, com cada vez menos fé nas instituições. Os próximos dias devem ser importantes para medirmos a viabilidade desse discurso. Talvez o trumpismo sem poder pareça patético demais para sobreviver.

É possível repetir no Brasil de 2022 a fórmula vencedora dos democratas americanos? O governador Flávio Dino propôs exatamente isso, uma aproximação da esquerda e do centro para derrotar Bolsonaro. Dino tem razão, mas ainda não bolamos uma forma de fazer isso funcionar dentro do multipartidarismo brasileiro.

No Partido Democrata americano estão os equivalentes ideológicos de boa parte do PSDB brasileiro, toda a centro-esquerda e quase toda a esquerda. Sem a estrutura partidária para forçar a união, teremos que ser mais hábeis politicamente do que os americanos.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: Grande porre mundial dos anos 2010 está passando?

Ao que tudo indica, nesta terça-feira (3) Donald Trump se tornará um presidente de um mandato só. As pesquisas são favoráveis a Biden, e, se elas errarem só o que erraram em 2016, Biden ainda ganha. O site 538, do estatístico norte-americano Nate Silver, dá a Trump pouco mais de 10% de chance de vencer a eleição. Não é zero. É o risco de morte de quem faz roleta-russa com uma arma de dez tiros. Mas é pouco.

É possível que Trump não aceite a derrota e tente ganhar no tapetão. Grande parte da votação já ocorreu por correspondência, por causa da pandemia. Trump pode sair em vantagem no início da contagem, quando os votos por correspondência ainda não tiverem sido totalmente contados.

No cenário golpista, declararia vitória enquanto estivesse na frente e montaria uma ofensiva jurídica para interromper contagens estaduais por um motivo ou outro. Para isso contaria com sua recém-adquirida maioria na Suprema Corte e com os juízes federais que nomeou nos últimos anos. Temendo conflitos de rua em caso de impasse, a rede de supermercados Walmart interrompeu a venda de armas até a confusão passar.

Não é o cenário mais provável, até porque há uma chance razoável de Biden vencer por margem incontestável. Mas o fato de que uma eleição possa terminar em conflito civil generalizado mostra o tamanho do dano que Donald Trump já causou ao ambiente cívico americano. Se a roleta-russa der errado e Trump vencer nesse clima de radicalização, o dano pode ser ainda maior.

A vitória de Trump em 2016 foi um marco decisivo da onda populista reacionária que já havia começado antes, em lugares como a Hungria e a Polônia, mas que chegou ao centro do capitalismo internacional com o brexit.

As negociações do brexit vão mal. E, sem o Reino Unido, deve crescer a pressão por uma federação europeia mais centralizada, o que não é boa notícia para os radicais poloneses e húngaros.
A maré está virando? O grande porre mundial da década de dez está passando?
Mesmo se virar, nenhum dos problemas que criaram a onda populista terá sido resolvido. A desigualdade continua alta. A desindustrialização de áreas inteiras do mundo desenvolvido (e do Brasil) continuará difícil de reverter. Como as crises da pandemia deixaram claro, a desconfiança com relação aos especialistas não vai embora da noite para o dia.

As notícias falsas, a política difícil das redes sociais, tudo isso ainda continuará existindo. A tensão entre Estados-nação e capitalismo global não desapareceu, muito pelo contrário.

Por outro lado, é possível ter esperança, ao menos alguma esperança, de que certas soluções idiotas para esses problemas serão descartadas. Não, não foi o encanador polonês que tirou o emprego do mineiro britânico.

Não, Trump não tinha uma alternativa ao Obamacare que preservava tudo que o programa tinha de popular e descartava tudo que tinha de impopular. Não, Bolsonaro não era inimigo da corrupção, nem a corrupção era a causa da crise econômica brasileira.

De qualquer maneira, ao que tudo indica, amanhã a democracia americana vai para o rehab. Lá os grandes partidos sobreviveram, a volta ao normal deve ser mais fácil. Nós, que decidimos não derrubar Bolsonaro em 2020, seguimos fincando pé na cracolândia por mais dois anos, agora como párias internacionais.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: Veto à vacina mostra que Bolsonaro cede aos radicais em tudo que só ferrar os pobres

Presidente sabota a saúde pública para fazer guerra contra governadores e arrisca tornar o Brasil um pária internacional

Na semana passada, o presidente da República decidiu que o governo brasileiro não vai comprar a vacina Coronavac porque ela é fabricada na China. A vacina que o governo federal prefere, da Astrazeneca (a “vacina de Oxford”), também tem insumos chineses, mas Bolsonaro não se importa.

O que lhe pareceu importante foi atacar o governador de São Paulo, João Doria, que vai aplicar a vacina “chinesa” em São Paulo. De fato, nada demonstra melhor que as instituições brasileiras estão funcionando do que a condução de um debate científico por meio de crise federativa.

Em plena pandemia, vetar uma vacina para sabotar um adversário político é crime que deveria dar uma cadeia boa, mas, sinceramente, por que Bolsonaro teria medo disso?

O que aconteceu com ele nos primeiros 155 mil mortos? Ou dos dois primeiros ministros da Saúde que ele não deixou que fizessem seu trabalho? Não vejo por que Bolsonaro deveria respeitar limites que nunca lhe foram apresentados. Mas, além de ser crime, pode ter sido um erro.

Uma coisa é explorar a ignorância e a falta de solidariedade social dizendo que as pessoas não têm uma obrigação: a obrigação de ficar em casa durante a quarentena, a obrigação de usar máscaras, a obrigação de se informar com especialistas etc. Outra coisa é dizer que elas não têm um direito, como o direito de tomar a primeira vacina que for considerada segura e estiver disponível.

É fácil imaginar pessoas usando olavismo para justificar preguiça intelectual ou fraqueza moral. Outra coisa, bem diferente, é imaginá-las se sacrificando pelo olavismo.

Só quem seria estúpido o suficiente para fazer isso seriam, é claro, os olavistas e membros de outros grupos radicais nos extremos do bolsonarismo.

E, de fato, o veto à Coronavac agradou essa turma, que gosta de falar mal da China. Os doidões estavam chateados com Bolsonaro desde que o presidente indicou para o STF um moderado que sabe ver hora.

A propósito, cabe esclarecer que olavistas e similares não estão com raiva de Kassio Nunes por causa de acordão, combate à corrupção, centrão e nada disso.

Os radicais do bolsonarismo são pró-corrupção e, no fundo, querem uma boquinha. Não chiaram com Queiroz, com as manobras de Aras, com a demissão de Moro.

O que eles queriam era um golpista no STF que aceitasse, por exemplo, mentir que o artigo 142 da Constituição autoriza intervenção militar. Havia candidatos. Isso Bolsonaro não lhes deu porque precisava de um STF camarada no caso Queiroz. Como prêmio de consolação, deu-lhes os milhares de mortos e os meses adicionais de crise econômica que a falta de vacina deve causar.

O veto à vacina mostrou o quão vacilante é a recente moderação de Bolsonaro. Ele ainda faz questão de manter sua base extremista satisfeita, mesmo com custo de popularidade potencialmente alto.

Ele ainda aceita sabotar a saúde pública para fazer guerra contra governadores. Aceita o risco, cada vez maior, de tornar o Brasil um pária internacional. Os radicais ainda estão todos lá. A Abin investiga “maus brasileiros” que denunciam o desmatamento e protege “bons brasileiros” como Flávio Bolsonaro.

O veto à vacina mostrou que Bolsonaro continua cedendo aos radicais em tudo que só ferrar pobre.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: A antipolítica matou a renovação política?

Será bom se o número de partidos cair, mas não é irrelevante saber quais sobreviverão

Na coluna passada, argumentei que o fortalecimento do centrão pode estar se dando em um momento decisivo para a democracia brasileira: a provável redução do número de partidos causada pela proibição de coligações em eleições proporcionais.

Os partidos fisiológicos podem estar mais fortes justamente no momento em que a sobrevivência de cada legenda deve depender mais de seu tamanho atual.

Matéria de João Pedro Pitombo e Guilherme Garcia publicada na Folha de sexta-feira mostrou que o risco disso acontecer é real.

Segundo a análise de Pitombo e Garcia, as migrações de vereadores eleitos em 2016 para outros partidos em 2020 mostram que os candidatos já estão fazendo escolhas na nova estrutura de incentivos. Isto é, escolheram candidatar-se por partidos maiores, com perspectivas melhores de sobreviverem à cláusula de barreira e conquistar fatias maiores do financiamento eleitoral.

Era exatamente isso que os cientistas políticos esperavam que acontecesse. As coligações partidárias em eleições proporcionais sempre foram vistas como uma das causas do grande número de partidos existente no Brasil. Partidos pequenos podiam se aproveitar da votação dos partidos maiores para eleger deputados.

As consequências disso podem ter sido importantes: imaginem o que teriam sido os governos do PSDB e do PT se suas bancadas fossem maiores e a necessidade de cooptar aliados fisiológicos fosse menor.

A reforma da legislação aprovada pelo Congresso foi portanto, inequivocamente, uma boa ideia.

Mas ela pode ter menos efeitos positivos, ou pode demorar mais do que se esperava para gerar efeitos positivos, porque as outras ideias que venceram na política brasileira nos últimos cinco anos foram todas muito ruins.

Nos últimos anos, a onda antipolítica causou grandes perdas para os partidos mais consistentes —que aceitam passar longos períodos na oposição, sem acesso à máquina pública— como o PT e o PSDB. Eles chegam nesse início de processo de consolidação fracos.

Nos dados da matéria da Folha, vê-se que o PT se manteve estável desde 2016, mas 2016 foi sua pior eleição em muitos anos. O PSDB perdeu 11% de seus vereadores desde as últimas eleições. A única exceção entre os grandes partidos é o DEM, que cresceu 52%, um número muito expressivo.

Mas alguns dos partidos que mais receberam novos candidatos a vereador foram, segundo a reportagem, os partidos de centro-direita que sempre venderam seu apoio a qualquer governo.

O PP cresceu 30%, o PSD de Kassab também cresceu, o MDB permaneceu estável mesmo depois do desempenho ridículo de 2018. É impossível, inclusive, descartar a hipótese de que o DEM tenha crescido, em parte, porque voltou a se aproximar do perfil centrão.

No geral, isso não era o que torcíamos que acontecesse quando o número de partidos caísse.

Queríamos que PT e PSDB não precisassem mais comprar o PP, ou que PT e PSDB fossem substituídos por partidos melhores. Não queríamos que o PP substituísse o PT ou o PSDB como grande legenda.

Será bom se o número de partidos cair. Mas não é irrelevante saber quais deles sobreviverão. Se a tendência atual persistir, restarão de pé justamente os que tiveram mais disposição para se vender. A antipolítica pode ter matado a renovação que a política tradicional poderia ter trazido.

*Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: O que acontecerá se a democracia brasileira for salva por seus defeitos?

Todas as iniciativas de combate à corrupção saem perdendo, e centrão está mais forte que nunca

Há uma percepção generalizada de que Bolsonaro tornou-se mais conciliador porque não conseguiu abafar o caso Queiroz. Dois colunistas da Folha notaram isso no último sábado (10): Hélio Schwartsman escreveu que Bolsonaro foi moderado pelo medo das investigações contra ele.

Fernando Haddad foi mais direto (e sarcástico): a corrupção de Bolsonaro pode ter salvado a democracia brasileira. Mais sutil, a revista Veja dessa semana elogiou Bolsonaro pela postura mais moderada, "goste-se ou não de suas motivações".

Na verdade, houve época em que os problemas legais de Bolsonaro até aceleraram seu golpismo. Mas, de fato, foram as investigações que o levaram às negociações com Toffoli, às conversas com Gilmar e com o centrão.

Ali começou o processo que culminaria na indicação de Kassio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal. Kassio tem certas crises de identidade na hora de citar autores, mas é muito melhor do que o que se esperava de uma indicação bolsonarista.

O medo em 2018 era que Bolsonaro desse um golpe surfando o lavajatismo, aproveitando a desmoralização das instituições para confrontá-las. No fim das contas, o golpismo era 100% real, mas o moralismo era cascata. A posição atual do governo é que o que cura corrupção não é Lava Jato, é cloroquina.

Restam algumas perguntas, que já discutimos aqui na coluna: o acordão de Bolsonaro é estável? O desmantelamento da Lava Jato é uma pacificação ideologicamente neutra ou um aparelhamento do combate à corrupção, como o que se viu no caso Witzel? Bolsonaro continuará cauteloso se os protestos de rua voltarem? Se for reeleito? Se o caso Queiroz for definitivamente encerrado? E o que faremos, se, da próxima vez, o fascista for honesto?

Vamos supor que haja boas repostas para tudo isso, e que o risco autoritário tenha sido reduzido.

Mesmo neste caso, você já parou para pensar no que significa a democracia brasileira ter sido salva por seus defeitos?
Não só a Lava Jato, mas todas as outras iniciativas de combate à corrupção saem perdendo, seja pelo aparelhamento bolsonarista, seja pela ressaca de anos de turbulência que acabaram dando no Jair.

Mas isso pode ser o de menos: vai haver uma reorganização partidária nos próximos anos. E agora ela vai acontecer com o centrão mais forte do que nunca.

Em 2017, o Congresso Nacional aprovou mudanças eleitorais que devem reduzir o número de partidos. A principal delas é a proibição de coligações nas eleições proporcionais (para vereadores, deputados estaduais e federais).

Nossa esperança sempre foi que o centro fisiológico da política brasileira fosse, aos poucos, sendo espremido entre uma centro-esquerda e uma centro-direita fortes a partir de PT e PSDB. Torcíamos pelo fim do que o filósofo Marcos Nobre chamou de "peemedebismo".

Aconteceu o contrário. Às vésperas de uma mudança de regra que deve reforçar quem já é grande, os partidos de identidade mais clara e maior enraizamento social vão mal, e o peemedebismo está dando volta olímpica por ter salvado a democracia.

Mesmo no cenário otimista em que Jair Bolsonaro foi só uma curva errada no caminho de nossa democracia, mesmo se tivermos conseguido moderá-lo, tanto seu autoritarismo quanto a forma de sua moderação podem ter consequências que durem muito mais tempo do que seu mandato.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: Se Trump vencer no tapetão, pode encorajar bolsonaristas a retomar retórica golpista

Para quem está tentando moderar Bolsonaro, se não for possível que Trump vença fácil, talvez seja melhor que perca feio

Donald Trump foi internado com Covid-19. Ao que parece, ao menos nesse round, sua briga com os fatos terminou com vitória dos fatos. Trump está internado com uma doença cuja gravidade negou, e não está sendo tratado com o protocolo que seus puxa-sacos recomendaram para o grande público ao redor do mundo.

Tudo isso pode virar. Se tiver a forma leve da doença, Trump pode dizer, como Bolsonaro, que tinha razão em negar sua gravidade. Se ficar incapacitado ou morrer, seus adeptos podem radicalizar na teoria da conspiração e questionar a legitimidade da vitória de Biden, que já parecia bastante provável antes da internação.

Alguns analistas notaram a similaridade entre a internação de Trump e a facada em Bolsonaro em 2018. As primeiras pesquisas não indicam uma onda de simpatia por Trump, mas também foi assim em 2018 no Brasil. E Bolsonaro foi, sim, beneficiado por não precisar se expor na campanha, deixando que um país desesperado com a política projetasse nele o que queria ver.

Mas não é claro que as mesmas condições vão valer para Trump. O republicano está concorrendo à reeleição, de modo que não se trata mais de ninguém projetando nada sobre ele. Todo mundo já sabe o que Trump é. Além disso, em 2018 Bolsonaro já liderava as pesquisas quando sofreu o atentado. Trump está razoavelmente atrás de Biden.

É mais um elemento de incerteza em uma eleição americana que já se anunciava explosiva. Se a sucessão de Trump se converter em crise política, pode haver consequências especialmente graves para o Brasil.

Vários e bons analistas já escreveram sobre os efeitos que uma vitória de Biden teria sobre o bolsonarismo. Mesmo se Biden não jogar contra Bolsonaro, certamente não jogará a favor, e nosso isolamento diplomático deve atingir níveis inéditos.

Mas há um outro cenário possível que recebeu menos atenção: uma vitória de Trump com corrosão institucional. Se Trump for eleito dentro das regras, as coisas devem continuar como estão.

Mas se vencer no tapetão, porque não aceitou a derrota, porque pediu recontagem, porque sua indicada para a Suprema Corte ajudou a anular votos por correspondência, ou porque a milícia Proud Boys espalhou terror pelas ruas, o radicalismo bolsonarista vai se sentir encorajado pela radicalização americana.

Afinal, os Proud Boys são a versão gringa da “turma do artigo 142” que Bolsonaro tentou beneficiar com a liberalização da importação de armas.

Isso poderia, inclusive, frustrar o esforço de acomodação de Bolsonaro dentro do sistema político brasileiro. Esse acordão vem forte faz alguns meses, e teve uma grande vitória com a indicação de Kassio Nunes para o STF.

Se Amy Barrett, a juíza conservadora recentemente indicada por Trump para a Suprema Corte, já estiver no tribunal durante uma manobra para anular votos democratas, os radicais brasileiros perguntarão: Kassio Nunes teria coragem de anular os votos do PT?

De qualquer forma, para quem está tentando moderar Bolsonaro, se não for possível que Trump vença fácil, talvez seja melhor que perca feio, sem chance de virar no tapetão.

Se Trump tentar melar o jogo e isso contaminar a política brasileira, não será a primeira vez que a direita americana incentivará golpes na América Latina, mas será a primeira vez que o fará pelo exemplo.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: A história de Mandetta

Em "Um Paciente Chamado Brasil", ex-ministro da Saúde conta história que se encerra com sua saída do governo

O ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta acaba de publicar um relato de sua passagem pelo ministério durante a pandemia de 2020.

Em “Um Paciente Chamado Brasil”, conta a história que começa na reunião de Davos de janeiro deste ano, em que a pandemia começou a entrar na agenda internacional, e termina com sua demissão, voltando para casa ouvindo Jimmy Hendrix no carro.

Mandetta é cotado para ser candidato a presidente ou vice-presidente (talvez em chapa com Sergio Moro) em 2022. Por isso, algum cuidado com a versão que conta sempre é aconselhável.

Mas também é verdade que sua versão bate muito melhor com o que dizem fontes independentes, a ciência e os números da pandemia do que, por exemplo, a versão de Jair Bolsonaro, que também será candidato em 2022 e já fez coisa muito pior para garantir sua reeleição do que escrever um livro.

A trama central de “Um Paciente Chamado Brasil” já é conhecida, mas é muito importante que tenha sido registrada e assinada por um participante-chave da história: Jair Bolsonaro ignorou completamente a pandemia, não demonstrou qualquer interesse em salvar vidas e só se preocupou com o efeito da quarentena sobre suas chances de ser reeleito.

Alimentava ilusões paranoicas como a de que o embaixador chinês trabalhava para derrubar governos de direita na América Latina.

No que se refere à cloroquina, Mandetta é taxativo: Bolsonaro nunca se interessou pela sua capacidade de curar ninguém. Queria que, com a caixinha de cloroquina no bolso, os brasileiros voltassem a trabalhar, morresse quem morresse.

Via na quarentena uma conspiração dos governadores, em especial de João Doria, para derrubá-lo. E sabotou o Ministério da Saúde em diversos momentos.

Entre os outros personagens, o livro permite a construção de uma espécie de escala que, sempre na opinião de Mandetta, vai dos razoáveis como Campos Neto, os generais Braga Neto e Fernando Azevedo, aos criminalmente irresponsáveis como Osmar Terra e Eduardo Bolsonaro.

Paulo Guedes teria chegado atrasado no entendimento sobre a gravidade da pandemia, o que teria forçado, inclusive, o Congresso a assumir protagonismo na criação do auxílio emergencial.

Além da distribuição de responsabilidades, o livro tem outro interesse: é um relato do choque de um direitista tradicional (Mandetta) diante do extremismo de Bolsonaro, e de como fracassaram as manobras para moderar o presidente.

Mandetta lamenta, por exemplo, que o DEM não tenha encampado Bolsonaro na campanha de 2018.
Imagino que Mandetta o lamente por achar que isso poderia tê-lo moderado.
Já escrevi aqui que a aproximação com o DEM no começo do governo teria sido um sinal forte de moderação por Bolsonaro.

Ele nunca a quis, e, à luz do que Mandetta conta no livro, parece que o DEM teve razão em não bancar Bolsonaro em 2018: ele não parece aceitar moderação nenhuma.

Permanece, entretanto, o fato de que nem a direita tradicional nem os militares nem Guedes nem Moro se mobilizaram com o ânimo necessário para forçar Bolsonaro a agir como um adulto responsável durante a maior crise sanitária do Brasil em cem anos, ou para puni-lo por não tê-lo feito.

Mas mesmo que o tivessem feito, essa era a hora do líder. E Bolsonaro falhou como nenhum outro líder brasileiro já havia falhado.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: Fogo no Pantanal e na Amazônia mostra a verdadeira política econômica de Bolsonaro

Visão do crescimento do presidente é extensiva: para ele, o Brasil vai ser mais rico se tiver mais minas e mais pastos

Graças a Jair Bolsonaro, a pandemia de Covid-19 já matou duas vezes, e talvez mate três vezes, o número de brasileiros que morreram na Guerra do Paraguai. Além disso, diga-se o que quiser do ditador paraguaio Solano López, embora ele tenha ocupado parte do território de Mato Grosso, não lhe ocorreu incendiá-lo, o que só ocorreu como consequência do desmonte da política ambiental brasileira por Jair Bolsonaro.

A matança de brasileiros não custou votos a Bolsonaro. Pelo contrário: ajudado pelo auxílio emergencial criado pelo Congresso, o presidente da República ganhou popularidade nos últimos meses.

Agora descobriremos se queimar onça viva custa votos. O mais provável é que não. Bolsonaro deixou claro na campanha que seu governo destruiria o meio ambiente. Ninguém se importou.

Da mesma forma, ninguém quer falar de moral, de meio ambiente, de padrões elementares de decência, de preservar o mundo para nossos descendentes, certo? Se nos importássemos com isso, eu estaria escrevendo sobre outro presidente.

Vamos falar de dinheiro, então.

Pois bem, o que a destruição do Pantanal e da Amazônia prova é que, se você acreditou que Paulo Guedes faria diferença, você é um otário.

Porque isso aí, garimpo ilegal, invasão de terras indígenas, destruição de floresta, é o verdadeiro programa econômico de Jair Bolsonaro. É assim, inclusive, que ele pensava em ficar rico quando estava no Exército. É nisso que ele acredita. Sua visão do crescimento é extensiva: para ele, o Brasil vai ser mais rico se tiver mais minas e mais pastos. A visão de Bolsonaro para o Brasil é Serra Pelada sob administração do Major Curió.

Nada contra minas e pastos, mas é impressionante que não passe pela cabeça do presidente que nossa prioridade deva ser aumentar a produtividade, não só das minas e pastos, mas também das fábricas, dos restaurantes, das faculdades, dos canais de YouTube e das lojas já existentes.

Capital humano? Meu amigo, o ministro da Educação era o Weintraub, uma hipoteca subprime de capital humano. Instituições? Jair nunca encontrou uma instituição em que não tenha tentado colocar bomba, a começar pelo Exército. Privatização? A única privatização que mereceu discursos de aprovação do deputado Jair Bolsonaro foi a da polícia da zona oeste carioca.

Já há setores da elite percebendo o problema. Uma coalizão de ONGs ambientais e associações do agronegócio entregaram a Bolsonaro um documento pedindo que a política ambiental deixe de ser apenas o Salles com um fósforo. O agronegócio, afinal, precisa do acordo com a União Europeia, que não deve sair sem salvaguardas ambientais.

No fundo, mesmo se você só pensar em dinheiro, fica a dica: meça o grau de compromisso dos seus candidatos a presidente com a eficiência econômica pelo seu programa ambiental. Um programa de proteção ambiental responsável quer dizer que ele não vai ter a alternativa de crescer extensivamente, e vai ter que começar a trabalhar pela produtividade.

Mas não deveríamos pensar apenas em dinheiro, deveríamos? A expectativa era que em 2020 já fôssemos melhores. Brasileiros morrendo sem ar ou onças queimadas vivas não deviam custar votos só quando também custam dinheiro.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: Se o risco à democracia era baixo, Toffoli pode ter encorajando os golpistas

Ex-presidente do STF nunca foi à guerra pelas instituições como fez, por exemplo, Celso de Mello

A passagem de Dias Toffoli pela presidência do STF foi característica de uma época de democracia em crise. À medida que mais bastidores dos últimos anos forem revelados, os historiadores debaterão que papel o ministro teve na gestão dessa crise.

Se as coisas estavam tão degeneradas que foi necessário ao presidente do STF costurar um acordão, Toffoli desempenhou um papel importante. Afinal, acordão ainda é melhor do que golpe. Mas se o risco à democracia era baixo, Toffoli pode ter piorado as coisas encorajando os golpistas com concessões.

O que é claro é que Toffoli nunca aceitou o risco de tornar-se um mártir da democracia, nunca foi à guerra pelas instituições como fez, por exemplo, Celso de Mello. Sua estratégia foi a acomodação com a ameaça bolsonarista, com uma exceção importante, que também é controversa.

Os analistas que defendem a tese do "risco zero" para a democracia precisam começar sua explicação com o seguinte: o que o general Fernando Azevedo e Silva estava fazendo como assessor do presidente do STF durante a campanha de 2018? Quantos generais já haviam ocupado essa posição?

Que tipo de assessoria ele prestava a Toffoli? Não é relevante que, naquela eleição, Lula estivesse a uma decisão do STF de poder ser candidato? Não é relevante que, com Lula fora do páreo, o favorito fosse o candidato dos militares? Quando Toffoli mentiu que 1964 não foi um golpe, mas um "movimento", isso não tinha nenhuma relação com a provável vitória de Bolsonaro? É normal que Azevedo e Silva tenha saído do lado de Toffoli para o Ministério da Defesa de Bolsonaro? Alguém é capaz de me apresentar uma eleição transcorrida em uma democracia consolidada em que algo semelhante tenha ocorrido?

Na semana passada, Toffoli declarou que nunca havia visto Bolsonaro ameaçar a democracia. Talvez tenha visto apenas risco de "movimentos" como o de 1964.

Mas, se não viu nada, sua passagem pela presidência do STF foi um absoluto desastre: se Bolsonaro não representava risco à democracia, as decisões de Toffoli sobre o Coaf, por exemplo, que beneficiaram Flávio Bolsonaro, foram, além de juridicamente erradas, desnecessárias à defesa da democracia.

Eu acho que o risco de golpe foi real. Acho que as instituições deveriam ter enfrentado Bolsonaro de frente. Mas se eu, que sempre alertei para o risco de golpe, mesmo assim o tiver subestimado, se um confronto direto tivesse como resultado provável a vitória dos golpistas, talvez Toffoli tivesse razão.

De qualquer forma, a exceção nessa estratégia de acomodação, o inquérito das fake news, funcionou. Em um artigo para o site de notícias jurídicas Jota, o jornalista Felipe Recondo lembra que o inquérito "revelou seu poder de dissuasão e deu ao cenário político-institucional de Brasília algum grau de normalidade e racionalidade".

O inquérito também foi alvo de muitas críticas por juristas respeitáveis. Novamente: se ajudou a evitar um golpe, valeu a pena.

Mas se fizemos esse tipo de cálculo —acordão ou golpe, inquérito heterodoxo ou golpe— a democracia andou bem mal. Resta torcer para que Fux navegue águas mais tranquilas, mas esteja disposto a reagir se as tentativas de intimidação —como a visita surpresa à despedida de Toffoli— continuarem. Haja jiu-jítsu.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: Bolsonaro desligou a Lava Jato

Direita é o cara que fugiu da cadeia enquanto liderava a luta contra a corrupção

Na semana passada, o STF concluiu o processo judicial mais longevo da história brasileira. Tratava-se de disputa entre, veja bem, a princesa Isabel e o governo brasileiro para saber quem é dono do Palácio Guanabara, onde trabalha seja lá quem a milícia tiver escolhido para ser governador do Rio de Janeiro. O processo durou 125 anos.

Mas a briga da princesa já tem concorrentes para o posto de processo que demorou mais e deu em menos na história brasileira. Afinal, as investigações de corrupção chegaram à direita.

Resultado: em menos de uma semana, o governador do Rio, que nomeia o procurador-geral, que investiga a família Bolsonaro, foi trocado por outro governador, aliado de Bolsonaro. E a força-tarefa da Lava Jato de São Paulo renunciou porque a procuradora indicada pelo PGR de Bolsonaro parecia disposta a melar as investigações.

Eu me lembro, jovens, da fúria santa que caracterizava o clima político quando as investigações eram contra a esquerda. Mas chegou à direita, e, agora, cai o governador para beneficiar o presidente, desmonta-se a Lava Jato na frente de todo mundo, e nada.

Por isso, sempre que você ouvir a pergunta “o que significam esquerda e direita no Brasil de hoje?”, responda: esquerda é o cara que foi preso. Direita é o cara que fugiu da cadeia enquanto liderava a campanha contra a corrupção que prendeu o cara de esquerda. Centro é o procurador que entrou nesse negócio achando que ia mesmo poder prender todo mundo.

Quem matou as investigações de corrupção foi a extrema direita. Jair Bolsonaro, o candidato outsider de 2018 eleito na “eleição da Lava Jato”, foi quem matou a Lava Jato. Os generais que iam para o Twitter ameaçar golpe se absolvessem o Lula mataram a Lava Jato. Os bolsonaristas que não tinham “bandido de estimação” mataram a Lava Jato.

Mas e aqueles movimentos todos de rua, camisa de seleção, ética na política? Bom, o Vem pra Rua está pedindo o impeachment do Aras, o procurador-geral da República. Isso, o do Aras, não o do Bolsonaro, esse impeachment eles não querem.

Perguntem aos procuradores da Lava Jato o que aconteceu no governo Bolsonaro e vejam se eles acham que a culpa é do Aras ou do Bolsonaro.

A esta altura, você pode perguntar: mas a Lava Jato não era mesmo cheia de problemas, não estava na hora de acabar aquilo e seguir com a vida? É mais complicado que isso, mas, para facilitar, digamos que seja o caso.

Mesmo assim, perdoe-me por achar chato que acabe depois do meu lado ter perdido muito mais. É muito, muito ruim para a democracia que as instituições possam ser ligadas e desligadas conforme o interesse de um dos lados do espectro político.

A própria esquerda está satisfeita com o fim da operação. Muita gente inteligente, gente que eu respeito, acha que os resultados do ciclo antissistêmico dos anos dez foram tão desastrosos que, a essa altura, qualquer acomodação ajuda.

Talvez eles tenham razão. O que eu ainda não entendi é por que eu devo confiar que o processo em curso seja um desmonte ideologicamente equidistante, e não um aparelhamento bolsonarista. O que me parece é que a capacidade de ligar e desligar as instituições está se tornando mais, e não menos, concentrada nas mãos da turma de sempre.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: O presidente derrubou um governador?

É curioso que tanta gente no mundo da Justiça esteja tomando decisões claramente ilegais

Se o governador do Rio de Janeiro tiver caído por influência do presidente da República, a deterioração institucional brasileira deu um salto grande.

A decisão de afastar Witzel monocraticamente foi ilegal. Quem quiser saber por que, consulte o texto do professor Ricardo Mafei Rabelo Queiroz, da Faculdade de Direito da USP, no site da revista Piauí. É possível que a decisão do ministro Benedito Gonçalves, do STJ, não tenha sido uma tentativa de conseguir uma vaga no Supremo.

Mas é curioso que tanta gente no mundo da Justiça esteja tomando decisões claramente ilegais —a libertação de Queiroz, o dossiê contra os antifascistas, a perseguição a Hélio Schwartsman, o afastamento de Witzel —que coincidem perfeitamente com os interesses de Jair Bolsonaro, justamente o sujeito que vai decidir quem fica com a vaga no STF.

O afastamento de Witzel não é conveniente para Bolsonaro apenas porque o governador fluminense havia se tornado rival do presidente da República. No final deste ano, seja lá quem for o governador do Rio vai escolher o novo procurador-geral do Estado.

Como já noticiou a Folha, Bolsonaro quer influir nessa escolha para que o novo nome seja sensível aos interesses de seu esquema de corrupção familiar.

A escolha terá que ser feita dentro da lista tríplice, mas nada impede que os bolsonaristas inventem um candidato até lá e trabalhem por ele.

Se a decisão do STJ for um sintoma de aparelhamento da Justiça por Bolsonaro, pense bem no tamanho do que estamos discutindo.

Volte mentalmente até o dia da promulgação da Constituição de 1988 e tente explicar para Ulysses Guimarães que, 30 anos depois, o governador do Rio será afastado por decisão de um único ministro do STJ, com forte suspeita de que a coisa toda foi uma armação para resolver uns problemas do presidente da República com a polícia.

Depois disso, peça para o Doutor Diretas tentar adivinhar se, em 2020, o documento que ele acabou de aprovar ainda está vigente.

Longe de mim botar a mão no fogo pela honestidade de Wilson Witzel. Ele foi eleito com o apoio de Jair Bolsonaro. Ao contrário da família Flordelis, a família Bolsonaro nunca precisou do Google para achar “gente da barra pesada”. No mesmo dia do afastamento de Witzel, aliás, rodou o Pastor Everaldo, velho chapa de Bolsonaro que o batizou “simbolicamente” nas águas do rio Jordão.

Foi tudo encenação: Bolsonaro continuou católico. Everaldo também teria sido um dos responsáveis pela aproximação de Bolsonaro com o liberalismo econômico, e esse batismo tampouco parece ter sido lá muito para valer.

Mas para lidar com as acusações contra Witzel já existia o processo de impeachment, este sim, claramente previsto na Constituição e já em curso no Rio de Janeiro. Qual a necessidade de uma decisão que coloca as instituições sob suspeita?

É muito grave, mas, ao que parece, ninguém se importa. Pelo contrário, parte do mundo político vem tentando se reaproximar de Bolsonaro.

O exemplo de Witzel deveria servir-lhes de aviso: ser adotado como aliado por Bolsonaro é como ser adotado como marido pela deputada Flordelis.

Mesmo depois das repetidas tentativas de envenenamento, o establishment brasileiro parece disposto a ir com Bolsonaro para a casa de swing.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Celso Rocha de Barros: A eleição de 2020 será normal?

A Lava Jato, a antipolítica e o rescaldo de 2013, fatores que complicaram a eleição de 2018, parecem ter morrido

A próxima eleição para prefeito é especialmente difícil de prever: não tem nenhum modelo de ciência política que incorpore os efeitos de uma pandemia que matou 110 mil pessoas e impedirá a campanha de rua, ou a ressaca de uma tentativa de golpe de Estado frustrada, ou o desmonte aberto, sem resistência, do principal fator que explicou a eleição de dois anos atrás (a Lava Jato).

O presidente da República, que até outro dia tentava o autogolpe, não montou um partido para si, porque achava que não ia ter mais que se preocupar com essas coisas. O ciclo político de indignação que começou em 2013 parece ter terminado com o exercício do poder pelos que têm dinheiro e armas da maneira mais aberta, criminosa e impune possível.

E o impressionante é que a eleição de 2020 pode ser a mais “normal” desde 2013, justamente por isso. Os fatores que complicaram 2018 —a Lava Jato, a antipolítica, o rescaldo de 2013— parecem ter morrido no desabamento posterior.

Talvez por isso, pode haver um retorno à política mais pé no chão.

Muitos candidatos que lideram as pesquisas são administradores cujas gestões são, ou foram, razoavelmente aprovadas: Eduardo Paes, Alexandre Kalil, Bruno Covas. Mesmo onde a esquerda tem chances de vencer, trata-se de lugares onde ela é ou já foi poder várias vezes.

Se esses candidatos estabelecidos forem vencedores, 2020 pode ser o anti-2018, não, necessariamente, por ser anti-Bolsonaro, mas por ser anti-antissistema, do mesmo modo que o governo é anti-antifascista.

Nesse cenário, pode ser uma eleição “fria”, sem os grandes entusiasmos dos últimos anos, que, repito, parecem ter sido desperdiçados.

Mas é cedo para cravar isso. Em primeiro lugar, há a possibilidade de o auxílio emergencial reforçar Bolsonaro como cabo eleitoral. Se a eleição se nacionalizar, ela pode esquentar, e os bolsonaristas tentarão avançar sobre as posições da centro-direita com o populismo robusto de que falamos na última coluna. Se você confia que um Bolsonaro fortalecido dessa maneira não voltará a ser golpista, você é mais otimista do que eu.

A nacionalização da eleição poderia, em tese, ser boa notícia para a esquerda, que vai muito mal nas pesquisas até agora. A campanha pode ser a primeira grande chance para a esquerda denunciar Bolsonaro.

Mas a esquerda brasileira vive um momento difícil. A falta de campanha de rua é um problema para a militância. Mais do que isso, há uma disputa pela liderança do bloco da esquerda cujo resultado ainda é incerto, o que se reflete na fragmentação das candidaturas.

É perfeitamente possível que, em algumas cidades, a soma dos votos de esquerda seja significativa, mas os progressistas fiquem fora do segundo turno. Espero ter a chance de discutir as várias opções da esquerda nas próximas colunas.

No fundo, a eleição de 2020 será um bom momento para a centro-direita descobrir se valeu a aposta de não derrubar Bolsonaro. Se a eleição for normal, ela deve ser a grande vencedora da rodada. Aumentarão as chances de uma coalizão liderada por Doria, Moro ou Luciano Huck, mas, sobretudo, aumentarão as chances de estabilização institucional.

Por outro lado, se Bolsonaro sair vitorioso e ressurgir como fator de instabilidade, a turma do deixa-disso de 2020 pode se arrepender de suas escolhas.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)