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José Serra: Vendendo ilusões a preço de ouro

Lobistas dos cassinos e seus arautos não se detêm ante repetidas derrotas no Congresso

Tal uma praga, que destrói o que há de bom e belo ao seu redor, tal um vírus que volta todos os anos provocando grandes surtos, assim também são as sucessivas tentativas de explorar as piores fraquezas da condição humana, mediante a legalização dos jogos de azar. Tudo, evidentemente, revestido de imensas benfeitorias para as pessoas, as empresas, a economia nacional, enquanto não são mais que venda de ilusões (a preço de ouro). Mas a mesma conversa fiada tem-se repetido, com estranha regularidade, desde que a presidente Dilma Rousseff anunciou que iria aprovar, em 2016, um projeto de lei em tramitação no Congresso. Afinal, essa exploração das fraquezas humanas não tem ideologia.

A criação de cassinos atinge diretamente as pessoas, seu emprego, sua família e a economia local. Não seriam os mais ricos, mas os aficionados de renda média para baixo os principais clientes a tirar seu suado salário do bolso, deixando de gastar em outras coisas para perder dinheiro em roletas e caça-níqueis. Esse dinheiro, escasso e vital, é que financia o jogo e cria os empregos nos cassinos, enquanto elimina outros, vinculados a outras atividades. O bem-estar e o consumo das famílias seriam diretamente atingidos, assim como seus investimentos em saúde, educação ou moradia e lazer.

E a economia local, com seus empregos, seus serviços, sua segurança, seria comprovadamente abalada: a introdução dos cassinos em Atlantic City – superada apenas por Las Vegas em matéria de jogos de azar – reduziu em 25% os empregos nos setores não ligados à jogatina. No Estado americano de Illinois, somente no ano de 1995 os custos associados ao funcionamento dos cassinos superaram em US$ 287 milhões os seus benefícios.

A economia nacional seria também vítima da legalização do jogo, com efeitos negativos tanto nas contas externas quanto na receita. No caso do Brasil, o jogo provocaria déficits significativos, uma vez que o setor é intensivo em importação de equipamentos especializados. E o controle dos cassinos tende a ser dominado por grandes conglomerados internacionais, livres para aplicar seus ganhos em outra freguesia.

Do ponto de vista da receita, de acordo com o Projeto de Lei 530, o mais novo ataque do lobby da jogatina, a tributação dos cassinos e caça-níqueis seria de apenas 10% da renda bruta, enquanto a carga tributária da gasolina é de 48%. Faça as contas, não só o jogo é financiado em grande parte pelos aficionados de renda média para baixo, mas seria, na prática, subsidiado por todos nós mediante renúncia de receita.

Também do nosso bolso sairão outros benefícios fiscais, garantidos pelas normas vigentes e até baseados na Constituição, como no caso dos fundos de desenvolvimento regionais. Além disso, o poder público pode camuflar subsídios, via concessão de terrenos, investimentos em infraestrutura e “flexibilização” das normas em vésperas de votações importantes.

Além de contribuir pouco, quando não negativamente, para as necessidades locais, o jogo tende a inflar as despesas com segurança, uma vez que a simples concentração de grandes fluxos de dinheiro tende a estimular o crime e a articulação de redes de narcotráfico, lavagem de dinheiro e violência contra mulheres. No Estado americano de Wisconsin os crimes aumentaram 6,7% após a abertura dos cassinos. Segundo o Instituto Americano de Seguros, 40% dos crimes de colarinho-branco se originam no jogo. Quando os cassinos nos Estados Unidos foram autorizados a operar fora de Las Vegas, em 1997, as taxas de criminalidade cresceram de tal modo que passaram a aumentar a incidência de seis dentre os sete tipos de delitos violentos.

Ademais, justamente para a área de segurança, que juntamente com programas de educação, esporte e cultura se beneficia de cerca de metade dos recursos das loterias da Caixa, a competição dos bingos e caça-níqueis seria letal.

Mas o maior dano dos cassinos, e dos jogos de azar em geral, não é no bolso dos viciados, mas na alma, o dano moral que contagia toda a família e leva à desagregação familiar.

Em New Jersey, 26 mil chamados telefônicos foram registrados num serviço público, apenas em 1996, de jogadores desesperados pelas consequências das dívidas feitas por causa de jogo. Atrás das dívidas vêm a perda de produtividade, o absenteísmo, os desfalques, a inadimplência de impostos e taxas, que em 1990 provocaram prejuízos de US$ 1,5 bilhão no Estado americano de Maryland.

A antropóloga Natasha Schüll, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), comprovou que esses jogos de frequência ininterrupta, oferecidos pelos cassinos e jogos online, induzem um estado de transe psíquico a que o jogador se mantém preso por muitas horas e até dias. A família do viciado vai sofrer, impotente, a pobreza e a desonra.

Afinal, a legalização do jogo não faz nenhum bem? Tudo considerado, acho que faz bem, sim, aos lobistas e seus arautos, que não se detêm diante de suas repetidas derrotas no Congresso. Para eles, a opinião pública é composta por otários e o Congresso, por oportunistas. Mas até agora não passaram.

*Senador (PSDB-SP)


José Serra: As tentações do azar

Lobby da jogatina insiste no retorno dos cassinos e congêneres. E com baixa tributação

Não obstante seus seguidos revezes ao longo do tempo, os defensores da “legalização” do jogo têm redobrado a ofensiva para trazer essa prática de volta ao País. Só no ano passado fizeram duas tentativas, por sorte frustradas. Uma, em março, mediante o Projeto de Lei 186, que foi derrotado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. A outra, em agosto, quando o relator da Lei Geral do Turismo na Câmara de Deputados rejeitou emenda que autorizava “jogos de fortuna em bingos, jogos online e em resorts integrados”.

Mas o lobby da jogatina é insistente e contra-ataca de novo: acaba de apresentar o PLS 530, de 2019, que prevê o retorno dos cassinos e congêneres. Neste mesmo ano até o presidente da República, Jair Bolsonaro, acenou com a possibilidade dessa volta. É um jogo sem fim.

Mas esse lobby tem sido rejeitado por uma ampla coalização contrária, que inclui, entre outros setores, parlamentares representativos das diversas confissões religiosas. Por isso mesmo foi surpreendente a atitude do prefeito do Rio, o evangélico Marcelo Crivella, de apoiar um megaprojeto de cassino no Porto Maravilha. Atitude preocupante, que pode enfraquecer a ainda sólida maioria contrária ao jogo, caso convença membros da bancada ligada às diferentes igrejas a participarem dessa empreitada funesta.

Parece-me compreensível a aflição do prefeito do Rio – que, pessoalmente, é contra o jogo e outros vícios – com o tamanho dos desafios administrativos que herdou. Um deles, o projeto do Porto Maravilha, tem-se mostrado especialmente inviável, típico rebento que é da megalomania associada à vinda da Copa do Mundo e da Olimpíada. Seus arautos garantiam que os eventos trariam a redenção da economia fluminense e do País.

A tese era tão irrealista – e suas consequências, tão frustrantes – que nem é preciso nos alongarmos. Os caríssimos elefantes brancos que foram erigidos para receber os eventos trazem hoje ônus significativos para as cidades e os Estados que os hospedaram. Para exemplificar, o Estádio Mané Garrincha, além do custo absurdo de R$ 2 bilhões para sua construção, dá prejuízo anual de R$ 8 milhões.

É irrealismo supor que um cassino poderia resolver os problemas do Porto Maravilha. É a mesma ilusão que anima os jogadores compulsivos: a cada derrota, dobra-se a aposta, ampliando a ruína. Mas o lobby do azar tenta habilmente usar o drama econômico-social carioca para empurrar goela abaixo do País algum projeto que, autorizando cassinos no Rio, permita introduzir o jogo no resto do Brasil. E não só cassinos, mas caça-níqueis e bingos, que, espalhados pelas esquinas, dificultariam ainda mais a vida num país que enfrenta o desemprego de 12 milhões de pessoas. Alguém duvida que, uma vez aprovado o jogo no Rio de Janeiro, o governo cederia às pressões dos demais Estados para criar mais casas de jogo?

Diga-se de passagem que, diferentemente do que se apregoa, a sustentabilidade financeira dos cassinos depende crucialmente de haver poucos deles em cada país. E isso vale até mesmo para a maior economia do mundo, a americana.

Como ilustra o exemplo de Atlantic City – cenário de sucessivas falências de casas de jogo –, todas as tentativas de expandir o mercado para além de Las Vegas oscilaram entre a decepção e o fracasso espetacular. E não se pense que por incapacidade empresarial. Naquela cidade sucumbiram casas de jogo projetadas por Donald Trump e pelo venerável banco de investimentos Morgan & Stanley. Para ter uma ideia do desastre basta observar a queda no faturamento dos cassinos de Atlantic City de 2006 a 2017: de US$ 5 bilhões para US$ 3 bilhões.

Já mencionei em outros artigos nesta página o engano fabricado pelos ideólogos da jogatina quando afirmam que essas atividades são boas porque geram empregos e fomentam indiretamente a atividade econômica. Trata-se de um keynesianismo de quintal, que supõe que as pessoas tenham recursos financeiros ociosos entesourados embaixo do colchão e à custa deles frequentariam as salas de apostas. O que fariam, na verdade, seria deixar de consumir e/ou de investir para jogar. Não haverá ganho líquido em termos de atividade econômica e receita de impostos, ao contrário.

Além disso, a competição dos caça-níqueis e bingos seria letal para as ações governamentais com recursos das loterias da Caixa. Praticamente metade dos R$ 14 bilhões das loterias é carreada para programas de educação, segurança, esporte e cultura. No projeto do lobby do jogo a tributação seria de 10% da receita bruta. Isso num país cujo carga tributária da gasolina é de 48%. Só nos falta esta: patrocinar o vício com alíquotas favorecidas!

Mas o grande dano dos cassinos é provocado pela desagregação familiar. Os promotores da jogatina costumam afirmar que o jogo já existe de fato no Brasil, apontando para as loterias da Caixa Econômica. Mas as duas modalidades são infinitamente distintas. Não é possível comparar os efeitos psicológicos – e familiares – das quase inocentes loterias da Caixa, e seus sorteios espaçados no tempo, com os dos jogos de frequência ininterrupta – às vezes de segundos – oferecidos pelos cassinos e jogos online. A antropóloga Natasha Schüll, do MIT, concluiu que esses jogos de frequência ininterrupta produzem um estado de transe psíquico no qual a vítima é presa por horas ou até dias. Quando seca o dinheiro, segue-se imenso abalo emocional e a tentativa desesperada de “recuperar as perdas”. A família do viciado vai sofrer, impotente, a pobreza e a decadência.

É preciso resistir ao discurso melífluo dos lobistas do jogo e às tentações do azar. Lembro uma passagem de profundo conteúdo moral do Novo Testamento: Jesus, no deserto, é tentado por 40 dias. A resistência de Cristo, narrada por Mateus, Lucas e Marcos, simboliza o compromisso inquebrantável dos cristãos com a ideia de que a salvação – individual ou coletiva – não se encontra em atalhos fantasiosos.

O bem do Rio de Janeiro e do Brasil não será alcançado pela “porta larga” do vício, mas por meio da “porta estreita e do caminho apertado” do trabalho e da perseverança.

*Senador (PSDB-SP)