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Cacá Diegues: O futuro vem aí

Faz parte dessa esperança sabermos que nem todos nos farão de trouxas e que a Fiocruz se recusou a dar, na distribuição das vacinas, a prioridade pedida pelo STF

Por falar em Natal, alguma coisa está mudando em nossos corações. O ano de 2020, por tudo o que aconteceu, talvez tenha sido o pior ano de nossas vidas. Mortes e separações, perda de emprego e falta de dinheiro, os amigos que não temos mais porque sucumbiram à Covid ou porque nunca mais abraçamos por causa da porra do vírus, a solidão provocada pelo temor do contágio. Tanta coisa nos aconteceu e nenhuma delas nos fez mais felizes.

Até a política, que sempre cultivamos como fofoca, nos faltou. É difícil fofocar, rir ou xingar no meio de outros papos, quando o cara disfarça a incompetência e o narcisismo por trás de uma afirmação machista, como a da “gripezinha” ou a do “país de maricas”. Ou quando ele, em plena discussão das vacinas, às vésperas de nossa redenção, da garantia ou da esperança de nossa sobrevivência, jura que não vai se vacinar e ponto final. Prefere inaugurar, com pompa e circunstância, na presença de ministros e funcionários, uma exibição exibicionista das vestes que ele e Michelle usaram na posse, como se isso tivesse alguma importância para nós ou para a História. Quem votou nele porque era um impávido colosso, um homem simples e modesto, igual a qualquer um de nós, deve estar uma fera.

Numa hora dessa, nada disso tem mais importância. O que importa é a nossa esperança, o que a gente acredita que vai passar, vai melhorar embora não saibamos direito como. Como nossa Fernanda Montenegro diante do mar e do sol que nasce generoso do outro lado da praia.

Faz parte dessa esperança sabermos que nem todos nos farão de trouxas e que a Fiocruz se recusou a dar, na distribuição das vacinas, a prioridade pedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Conforme disse Stuart Mill (que não era de esquerda, nem de direita), em meados do século XIX: o direito de um cessa quando perturba o direito dos outros. Eles que entrem na fila, como todo brasileiro terá que fazer ao longo desses primeiros meses de 2021. Um ano para o qual devemos sorrir com afeto, pois esse é o nosso futuro e é preciso confiar nele.

Quando terminar a pandemia, perceberemos com toda clareza as mudanças em nosso comportamento, as transformações culturais provocadas por ela no ser humano de cada canto do planeta. É cedo para falar dessas mudanças culturais, podemos tentar adivinhá-las, mas ainda não sabemos nem como termina a pandemia.

No Brasil, a tragédia mais grave neste momento é a do desmatamento cultural, o empenho em destruir nas expressões culturais do país tudo aquilo que representamos de fato e que representa nosso comportamento e nossa existência, o que na verdade somos. Para nós, os brasileiros foram sempre os outros, nos acostumamos a nos referir a eles na terceira pessoa, nunca os tratando como “nós”. Ainda assim, o Brasil é a nossa obsessão, vivemos inventando teorias para tentar explicá-lo. Somos o único país do mundo luso-afro-ameríndio e devíamos estar aproveitando essa novidade tão original e rara.

A pandemia nos ensinou algumas lições que havíamos esquecido. Como, por exemplo, viver na solidão como fomos gerados e viemos ao mundo, nosso compulsório destino. Por mais que contemos com a arte e a ciência dos outros, somos nós que fazemos nossas escolhas e tomamos nossas próprias decisões. Somos nós os responsáveis pelo nosso destino, mesmo que não tomemos conhecimento dele. Mas podemos contar com a força e o consolo do outro, a solidariedade de quem nos ama, e tomara que sejam muitos os que nos amam. Se além disso estivermos atentos ao inesperado, ao acaso responsável por quase tudo que acontece, temos uma grande chance de nos sairmos bem na vida. Pois é assim que se dá fora de nós, no mundo físico, mesmo que às vezes demore a acontecer.

Em 2021, não deixaremos que nada nos leve a alegria de viver, nossa esperança nas coisas da vida e do mundo. Tentaremos ser mais justos e mais amorosos, como sempre foi o mestre pensador sacrificado na cruz. Mesmo os que não acreditam em seu caráter divino, não poderão negar que o que ele pensou e disse mudou a humanidade nesses últimos dois mil e vinte anos. E continua mudando, mesmo que muitos tentem, em nome dele e em vão, praticar erros, equívocos e maldades. Inúteis alterações perversas de tudo o que ele dizia a respeito de nós, de tudo o que ele dizia esperar de nós.

Vamos nos preparar para o futuro — ele começa no ano que vem, daqui a uma semana.


Cristina Serra: Que vergonha, excelências!

Ainda nem temos vacinas aprovadas e liberadas, e STF e STJ já estavam prontos para furar a fila da imunização

No Brasil, existem cidadãos comuns, como você, leitor, e eu. E existem castas, como o Judiciário, sustentadas com o dinheiro dos nossos impostos e adubadas com privilégios e mordomias que ofendem o simples bom senso. Ainda nem temos vacinas aprovadas e liberadas e suas excelências do STF e do STJ já estavam prontas para furar a fila da imunização. As duas mais altas cortes enviaram os pedidos à Fundação Oswaldo Cruz, que os rechaçou.

Num momento de emergência sanitária e com autoridades incompetentes no comando da saúde dos brasileiros, as maiores instâncias do Judiciário deveriam ser as primeiras a dar o bom exemplo e aguardar sua vez na escala de prioridades, a ser definida de acordo com critérios científicos e levando-se em conta a vulnerabilidade de grupos mais expostos ao vírus. Mas as cúpulas do Judiciário preferiram se orientar pelo adágio mesquinho: farinha pouca, meu pirão primeiro. O que me lembra também o salve-se quem puder da primeira classe no convés do Titanic.

O STF pediu uma reserva de 7.000 doses para ministros e servidores do tribunal e do Conselho Nacional de Justiça. O STJ disse que enviou um “protocolo comercial”, que se refere à “intenção de compra” das doses para imunizar magistrados, servidores e seus dependentes. Sim, você leu direito. O STJ alegou que pretendia comprar as vacinas que, até onde se sabe, serão distribuídas gratuitamente pelo Plano Nacional de Imunização (vai saber quando). Seria um auxílio-vacina?

Não fosse a revelação pela imprensa e a negativa contundente da Fiocruz, talvez outras categorias já estivessem a reivindicar tratamento “isonômico”. A mentalidade da aristocracia do setor público brasileiro opera uma rota de colisão com qualquer projeto de sociedade menos desigual e mais justa. Regalias de toda sorte para uma elite “diferenciada” transformam em uma quimera o ideal de cidadania já alcançado por outros países. Data vênia, excelências, que vergonha!


Hélio Schwartsman: O país das carteiradas

Uma das explicações para o fracasso do Brasil é que ele é atávica e renitentemente corporativista

Uma das explicações para o fracasso do Brasil é que ele é atávica e renitentemente corporativista. Em vez de as pessoas se pensarem como cidadãs de uma República de iguais, veem-se (e agem) como membros de corporações que se julgam detentoras de direitos especiais.

Tanto o STF como o STJ enviaram à Fiocruz ofícios em que pediam a "reserva" de alguns milhares de doses de vacinas contra a Covid-19 para aplicação em seus servidores.

Mais espertos do que o grupo de promotores paulistas que tentara uma despudorada carteirada para a categoria furar a fila da imunização, os responsáveis pelos tribunais evitaram o uso de termos como "prioridade" e "preferência". Escreveram os ofícios de um jeito que ficava parecendo que receber as vacinas era uma espécie de sacrifício que as cortes fariam em prol da coletividade.

Felizmente, a Fiocruz, num raro exemplo de espírito republicano, rejeitou ambos os pedidos, enfatizando que toda a produção de vacinas será destinada ao Ministério da Saúde e que a fundação não estava reservando doses nem para seus próprios funcionários.Como já escrevi aqui, não há um critério único para organizar filas éticas. Pode-se dar a prioridade aos mais vulneráveis ou aos mais expostos ou ainda proceder a diferentes combinações dessas duas lógicas. Só o que não faz sentido, em termos éticos, é dar preferência a grupos específicos pelo fato de eles terem mais prestígio ou mais poder de influenciar. As duas mais altas cortes do país deveriam saber disso e dar o exemplo. Lamentavelmente, preferiram a carteirada envergonhada.

A crer nas ideias de economistas como Daron Acemoglu e James Robinson, o que distingue nações que fracassam das que dão certo é o desenho de suas instituições. Quando elas servem primordialmente a elites extrativistas, o país naufraga; quando são inclusivas, o desenvolvimento chega. O corporativismo está matando o Brasil.


Bernardo Mello Franco: Suprema carteirada na fila da vacina

Luiz Fux assumiu a presidência do Supremo com uma posse contagiante. Na contramão das recomendações sanitárias, o ministro insistiu numa cerimônia presencial seguida de coquetel. A festa deixou ao menos dez autoridades infectadas com a Covid. Além do homenageado, contraíram o vírus o presidente da Câmara e o procurador-geral da República.

A presidente do Tribunal Superior do Trabalho, que entrou na lista dos contaminados, precisou ser transferida para um hospital em São Paulo. Passou 16 dias internada e teve que receber oxigênio por um cateter. Chocada com o mau exemplo, a professora Ligia Bahia definiu a FuxFest como um “covidário”. “Foi um evento totalmente irresponsável”, resumiu.

Três meses depois da posse, o presidente do Supremo está de volta ao noticiário da pandemia. Ontem ele defendeu o tribunal pela tentativa de furar a fila da vacina. O órgão pediu à Fiocruz que reservasse sete mil doses para imunizar ministros e servidores.

Em documento oficial, o Supremo sustentou que a vacinação vip seria “uma forma de contribuir com o país nesse momento tão crítico”. Questionado, Fux disse não ver nada de errado na carteirada. “Temos de nos preocupar para não pararmos as instituições fundamentais do Estado”, justificou.

O ministro informou que o tribunal fez o pedido “de forma delicada, ética”. Delicadamente, a Fiocruz respondeu que destinará suas vacinas ao Ministério da Saúde, sem atender a “qualquer demanda específica”. As doses serão distribuídas segundo os critérios do Programa Nacional de Imunizações. As regras não mencionam o uso da toga como fator de risco para a Covid.

O Supremo não é a primeira instituição a reivindicar preferência na distribuição da vacina. No início do mês, promotores paulistas pediram que a categoria fosse incluída “em uma das etapas prioritárias” da imunização. Depois foi a vez de o Superior Tribunal de Justiça tentar furar a fila da Fiocruz. A turma do “vacina pouca, meu braço primeiro” nunca admite estar em busca de privilégios. Ontem Fux disse ter uma “preocupação ética” com o assunto.