Carta de 88
Luiz Werneck Vianna: O Brasil não é isso aí
Uma mutação toma corpo no sentido de submeter a sociedade a um governo de juízes
O que nos está faltando para adotarmos, ao som de fanfarras cívicas, a pena de morte como remédio heroico para o combate contra a corrupção e os demais males que nos afligem? Já contamos com a condução sob ferros dos nossos prisioneiros, assim expostos publicamente nesse arremedo do pelourinho dos tempos da escravidão, resta dar o passo seguinte, a que parece faltar apenas a iniciativa de um dos nossos justiceiros.
Por onde paira o espírito de um Sobral Pinto, que na defesa do líder comunista Luís Carlos Prestes, encarcerado em condições cruéis pelo regime fascista do Estado Novo, de 1937, invocou em defesa do seu cliente a lei protetora dos animais, embora discordasse de tudo o que ele então professava. Sobral Pinto não pode ser reduzido a um retrato na parede, pois sua advocacia deixou o legado da intransigência na luta pelos direitos humanos, que não pode ser abandonado. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), até então em silêncio, fora personagens isolados, com o tratamento cruel dado a Sérgio Cabral, não se vai pronunciar institucionalmente a respeito da violação da dignidade humana de que ele foi vítima?
Verdade que do Judiciário já se levantaram algumas vozes de protesto, como a do ex-ministro Ayres Britto, mas, como se diz, uma andorinha não faz verão, e é a corporação que tem de falar. O Brasil não é isso que está aí. Nascemos sob o compromisso de fidelidade aos ideais da civilização, nas palavras de Euclides da Cunha, e mal ou bem somos hoje parte relevante do Ocidente político. Passar a limpo a nossa História, como pontificam os pretensos salvadores da pátria que estão aí, não pode ter como ponto de partida a recusa acrítica à obra das gerações que nos antecederam, mas a missão de interpretá-la a fim de imprimir continuidade a seus resultados felizes e expurgar o que de negativo ainda persiste, como a desigualdade social reinante entre grupos e classes sociais, obstáculo maior ao adensamento entre nós da coesão social.
Na cultura política que forjamos ao longo do tempo contamos com a herança inspiradora do humanismo de um José Bonifácio, sempre reverenciado como um dos fundadores do nosso Estado-nação, artefato político cuja unidade soube ser conservada em meio às turbulências naturais a uma sociedade ainda em construção, obra singular no cenário balcanizado sul-americano, processo bem estudado por José Murilo de Carvalho em obra clássica.
Se a nossa cultura material foi construída ao sabor das circunstâncias, sempre em resposta do agente colonizador às oportunidades abertas pelo emergente capitalismo na economia-mundo, para usar categorias caras a Immanuel Wallerstein, no plano dos valores, ao contrário, pode-se falar na existência de uma linha de continuidade desde o processo da independência até os dias de hoje, de vigência da Carta de 88. Florestan Fernandes, em páginas vigorosas do seu A Revolução Burguesa, argumentou no sentido de que a independência, animada pelo liberalismo, importou numa revolução encapuzada, que teria deixado raízes na nossa formação.
Decerto que a modalidade fraca de liberalismo que praticamos coexistiu desde o Império com um Estado que se sobrepunha à sociedade civil, considerada como refratária aos valores da civilização e, como tal, devendo ser exposta a uma longa e pertinaz ação pedagógica da parte do Estado, na forma da argumentação do visconde de Uruguai em seus textos sobre Direito Administrativo, cuja influência persistiu por gerações, como no caso de Oliveira Vianna, ideólogo que desempenhou papel central no processo de modernização desencadeado pela Revolução de 1930.
O tema-chave dessa política consistia no diagnóstico de que o Estado tinha braços curtos, que não lhe permitiriam agir de modo eficaz sobre uma população dispersa num território imenso e, em boa parte, ainda sujeita a costumes bárbaros. Se A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville, era reverenciada por boa parte dos estadistas da época, suas lições seriam consideradas intempestivas aqui, por falta de uma sociedade ainda incapaz de assimilá-las.
O remédio institucional concebido para avizinhar o Estado do hinterland foi criar uma magistratura selecionada politicamente a fim de exercer sobre ele uma ação civilizatória. Na República, já no contexto de uma sociedade que se industrializava e conhecia conflitos no mundo do trabalho e sindicatos expressivos, adotou-se, por inspiração de Oliveira Vianna, a fórmula da ordenação corporativa, então em voga no mundo do trabalho europeu, que instalava o Judiciário como forte personagem no mercado de trabalho a fim de exercer controle sobre seus conflitos. Essa modelagem persistiu ao longo do tempo, reforçada pela criação, em 1932, da Justiça Eleitoral.
Seguiu-se à montagem desses novos instrumentos institucionais a construção de uma rede corporativa que, com o tempo, vai firmar uma identidade em torno dos interesses desses profissionais, cuja ação de início obedecia aos comandos e diretivas dos seus vértices institucionais. A Carta de 88, redigida por constituintes descrentes no poder reformador do Legislativo, confiou a novos institutos judiciais papéis quase legislativos, como no mandado de injunção, entre outros, e ampliou o número de agentes com papel ativo no controle de constitucionalidade das leis. Como a experiência vai demonstrar, essas inovações irão afetar o poder soberano, rebaixando sua capacidade discricionária e de governar o País.
Sem querer, silenciosamente uma mutação toma corpo na sociedade e na política no sentido de submetê-la a um governo de juízes. As eleições que se avizinham são o momento oportuno para que a sociedade retome seu destino em suas mãos e avive os partidos e a política, cortando pela raiz esse experimento nefasto a que estamos sendo submetidos.
Luiz Werneck Vianna: O Terceiro Gigante e nós
Presença mais robusta do Judiciário na política pode levar a um temível governo de juízes
Nada de novo sob o sol, de há muito se sabia, pela experiência de outros países e pela bibliografia que se dedicou ao estudo dos seus casos, ser explosiva a combinação da ação de juízes com a da mídia, bem diagnosticada ainda em 1996 por Antoine Garapon, magistrado e pesquisador francês, no marcante Le Gardien des Promesses (Paris, Odile Jacob; há tradução). Hoje vivenciamos uma situação radicalizada dessa relação, talvez sem paralelo noutros casos nacionais, personagens involuntários de uma dramaturgia de autoria indefinida e que mantém como insondáveis os rumos do enredo que se vai tecendo ao sabor das circunstâncias.
Aqui e ali se deixam entrever algumas motivações que surgem como efeitos colaterais das ações desses dois atores que dominam a cena, quer as personalíssimas, como a de aventureiros com olhos fitos na próxima sucessão presidencial, quer as que se presumem de largo alcance, como o da convocação de uma Assembleia Constituinte a fim de remodelar a vida institucional diante do que seria um alegado anacronismo da Carta de 88. Dessa forma, com mão de gato, há quem procure extrair vantagens em meio às ruínas do que nos sobra da vida republicana. No caso, vale a pergunta: juízes e procuradores – especialmente estes – podem se voltar contra uma Constituição que lhes concedeu papel de centralidade na política e na vida social?
Os magistrados estão presentes em lugar estratégico na cena pública desde o Império, quando, sob a inspiração do visconde do Uruguai, ministro da Justiça e respeitado especialista em Direito Administrativo, com base num diagnóstico sobre a natureza fragmentada e insolidária da nossa sociedade se formulou a política de levar aos sertões as luzes que informariam a política do Estado, processo estudado por Ivo Coser no seu trabalho sobre a obra daquele estadista (Visconde do Uruguai, Belo Horizonte, UFMG, 2008).
O Estado teria braços curtos e seria por meio da ação de juízes nomeados à sua discrição para as Províncias que deveria cumprir a missão pedagógica de incorporar à obra civilizatória o atraso incivil reinante na sociedade. José Murilo de Carvalho, em A Construção da Ordem (Rio de Janeiro, Campus, 1980), demonstrou com lastro empírico como a magistratura se comportou como um dos principais construtores do jovem Estado-nação, ator decisivo, para o bem e para o mal, na obra da unidade nacional.
Marcas de origem, ensinou Tocqueville, nunca se esquecem. E assim, embora a República tenha investido a corporação militar do papel de protagonismo antes desempenhado pelos juízes, a corporação desses profissionais, particularmente a partir da Revolução de 1930, foi deslocada para o exercício de papéis centrais no processo da modernização econômica e social do País. Com efeito, foi confiada a um ramo novo do Poder Judiciário, a Justiça do Trabalho, a tarefa estratégica de harmonizar os conflitos próprios à ordem urbano-industrial, então em franca expansão. Não se pode contar a História moderna do País sem ele. Estão aí a monumentalidade de suas sedes e a poderosa rede com que recobre o mundo do trabalho.
A Carta de 88, se importou em descontinuidades significativas quanto às tradições herdadas da nossa modernização autoritária, não só preservou, em suas linhas gerais, a jurisdição do Judiciário Trabalhista sobre o mundo do trabalho, como ampliou em larga medida a capacidade de influência das instituições judiciais sobre a vida política e social. No caso, não podem ficar sem citação o controle constitucional das leis e a criação do Ministério Público como agência autônoma do Estado e investida do papel de defesa dos direitos dos cidadãos. Ao longo do tempo, as categorias profissionais originárias desse campo – juízes, procuradores e defensores públicos – erigiram uma forte vida associativa, exercendo influência até mesmo na socialização dos seus quadros.
A judicialização da política e de aspectos relevantes da vida social, como os das relações afetivas, agigantou a presença do Poder Judiciário na cena republicana, ao passo que a natureza benfazeja de muitas de suas decisões legitimou junto à opinião pública o crescente ativismo judicial. Ao lado disso, um Poder Legislativo cada vez mais atado ao Executivo pelo sistema do presidencialismo de coalizão que se praticava em meio a uma profusão de legendas partidárias, boa parte delas sem vínculos com a vida social, perdia substância e se deixou enredar na malha burocrática do aparelho estatal e em suas práticas, inclusive nas viciosas. Reduzidos aos papéis de despachantes e de administradores de nichos de interesses, nossos parlamentares, salvo exceções, perderam capacidade de vocalizar os sentimentos e expectativas de uma sociedade em mudanças.
A operação Lava Jato, no fundo uma também benfazeja intervenção judicial sobre o sistema político, com forte sustentação na mídia e em setores da opinião pública, tem pela frente, nessas condições, um terreno macio que garante sua continuidade e seu aprofundamento. Mas ela e o Poder Judiciário em geral, por definição, não têm o condão de produzir uma alternativa ao que ora removem – seus quadros dirigentes são estrangeiros na política e se exprimem em idioma próprio.
Nesse denso nevoeiro em que estamos imersos, ao menos já se pode divisar na linha do horizonte uma ainda mais robusta presença do chamado Terceiro Poder na vida republicana, com muitos dos seus quadros, ativos e inativos, migrando para a cena política aberta, que, se não encontrar obstáculos no que nos resta em nossas organizações políticas, pode levar-nos a um temível governo de juízes.
Que a Lava Jato faça o que lhe cumpre. O que cabe a nós, da sociedade civil, é soerguer a política e suas instituições a serviço de uma sociedade animosa como a nossa.
*Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-Rio
Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-terceiro-gigante-e-nos,70001766354