caminhoneiros

O fascismo conta com raízes históricas em nosso país, ora presente em partidos e movimentos sociais como nos anos 1930 | Foto: Leo Correa/El País

Luiz Werneck Vianna: Remover as raízes do fascismo

Cidadania23*

A reconquista da democracia, processo aberto com a vitória da ampla frente política em torno da candidatura Lula-Alckmin, afirma-se a cada dia em que pese a sedição de setores da categoria dos caminhoneiros que ocuparam as estradas em rebelião ao resultado das urnas, vociferando em favor de uma intervenção militar. A essa altura, já se faz patente o caráter metodicamente concertado desse movimento sedicioso, que as hostes bolsonaristas tinham como sua bala de prata a fim de promover o tumulto e o caos com que justificariam o golpe nas instituições que urdiam.

Por falta de apoio político e sustentação militar, a conspiração resultou em mais uma tentativa frustrada no histórico golpista de Bolsonaro, obrigado, mais uma vez, a desfazer a sedição que inspirou, solicitando aos caminhoneiros de sua grei o abandono das estradas e o retorno às suas rotinas, vários deles ao alcance dos rigores da lei. A derrota dessa descabelada incursão antidemocrática tem o condão de alertar para os riscos que a nossa democracia terá pela frente em sua imposição – as sementes perversas do autoritarismo adubadas em quatro anos pela pregação fascitizante encontraram terreno para frutificarem, como se viu no processo eleitoral e agora nessa rebelião.

O horizonte que se revela para o governo Lula-Alkmin, diante dessa cultura antidemocrática que germinou entre nós, reclama por ações ainda mais inventivas e audaciosas do que as mobilizadas na vitoriosa disputa eleitoral. Nesse objetivo, o raio de ação da frente política a dar sustentação ao governo deve sondar, sem qualquer limitação, todas as possibilidades de expandir seu âmbito no sentido de incorporar todo aquele que recuse o fascismo como ideologia política. Nesse sentido, o agrupamento político conhecido como o Centrão e demais forças representativas do conservadorismo brasileiro, inclusive as que na disputa eleitoral se alinharam à candidatura Bolsonaro, devem ser objeto de interpelações em pautas específicas por parte do governo democrático.

O fascismo conta com raízes históricas em nosso país, ora presente em partidos e movimentos sociais como nos anos 1930 com o integralismo que atraiu amplos setores das camadas médias, intelectuais e militares, ora como ideologia encapuzada do Estado, tal como na constituição de 1937 que baniu os partidos políticos e jurou de morte os ideais liberais subscrevendo os argumentos de Karl Schmitt, ideólogo do nazismo de Hitler, inspiração do então ministro da Justiça Francisco Campos, autor daquele famigerado texto.

Essa constituição liberticida foi revogada com a deposição de Vargas, porém muitas das suas disposições ganharam sobrevida na Carta de 1946, em particular sua legislação sindical que não só crimilizava as greves como punha sob tutela do Estado a vida associativa dos trabalhadores, em franca importação da Carta del Lavoro do fascismo italiano. A constituição democrática de 1988, embora tenha expurgado disposições autoritárias dessa legislação, manteve vínculos que ainda preservam os sindicatos na órbita do Estado, comprometendo sua plena autonomia.

Sobretudo, as raízes mais fundas do nosso autoritarismo derivam do processo de modernização que aqui teve curso a partir de 1930 operada, desde Vargas, no sentido de compatibilizar as velhas elites agrárias com as emergentes originárias da industrialização. Exemplar gritante disso o fato de se manter os trabalhadores do mundo agrário à margem do sistema de proteção criado pela legislação trabalhista. Tal como na Itália e na Alemanha, que passaram por regimes políticos fascistas depois de processos de modernização conservadora em meados do século XIX, os diferentes surtos brasileiros de modernização, como nos anos 30 e nos anos 60, importaram no fortalecimento dos nexos entre as elites empresariais e as do empresariado industrial, de que é fruto o moderno agronegócio. A modernização impediu nossa passagem ao moderno.

No caso brasileiro, tal processo de conservação do poder das elites agrárias se manifestou igualmente no processo do abolicionismo, em que pese a pregação de suas principais lideranças, como André Rebouças e Joaquim Nabuco, em favor de uma distribuição de terras aos emancipados da escravidão. A abolição passou ao largo da questão fundiária com o que se frustrou o primeiro movimento de formação de uma opinião pública efetivamente nacional.

Remover raízes tão fundas leva tempo e exige coragem, sabedoria e prudência, virtudes presentes nos articuladores, Lula à frente, que souberam nos levar à vitória sobre as hostes fascistas na sucessão presidencial. O mesmo caminho deve guiar o nascente governo democrático, pautando cada passo no sentido de devolver ao país os rumos de que fomos desviados em busca do reencontro com os ideais civilizatórios de que um governo criminal tentou nos afastar. (Democracia Política e novo Reformismo – 05/11/2022)

Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio

Texto publicado originalmente no portal Cidadania23.


Caminhoneiros revoltados | Foto: reprodução/Twitter

Após vitória de Lula, caminhoneiros fecham vias e pedem intervenção militar

Aline Brito *, Correio Braziliense

Após a derrota de Jair Bolsonaro (PL) no segundo turno das eleições, neste domingo (30/10), caminhoneiros apoiadores do presidente fecharam trechos de estradas no Mato Grosso. Outras lideranças da categoria se organizam para bloquear BRs em Minas Gerais, Bahia, Goiás e no Sul do país.

Os apoiadores do presidente derrotado nas urnas alegam não aceitar a vitória do candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), eleito com 50,90% dos votos válidos, e pedem por uma intervenção militar. “72 horas para o exército tomar conta [...] Não tem político nenhum que vai chegar perto de nós e só saímos da rua quando o Exército intervir. É o nosso futuro que está em jogo”, afirmou um dos integrantes do movimento em vídeo publicado na internet.

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Alguns caminhoneiros estão usando os próprios caminhões para bloquear as vias, outros estão queimando pneus. Os protestos são acompanhados do hino nacional, como trilha sonora, e manifestantes vestidos com a camisa do Brasil e a bandeira do país amarrada ao corpo. Eles também reivindicam o artigo 142 da Constituição Federal, que estabelece que as Forças Armadas "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". 

Alguns caminhoneiros estão usando os próprios caminhões para bloquear as vias, outros estão queimando pneus. Os protestos são acompanhados do hino nacional, como trilha sonora, e manifestantes vestidos com a camisa do Brasil e a bandeira do país amarrada ao corpo. Eles também reivindicam o artigo 142 da Constituição Federal, que estabelece que as Forças Armadas "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". 

https://twitter.com/areamilitarof/status/1586912149732982785?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1586912149732982785%7Ctwgr%5E9336576e56318ce63b7bb9076294ff5c43fd32eb%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.correiobraziliense.com.br%2Fpolitica%2F2022%2F10%2F5048241-apos-vitoria-de-lula-caminhoneiros-fecham-vias-e-pedem-intervencao-militar.html

De acordo com os caminhoneiros, eles “só voltarão para casa quando o exército tomar o Brasil”. Alguns integrantes da categoria estão usando as redes sociais para convocar eleitores de Bolsonaro para os protestos e, segundo alguns manifestantes no Twitter, representantes do agronegócio também estão aderindo à paralisação. “Ou lutamos agora ou perderemos o Brasil para o resto da vida”, disse um bolsonarista em vídeo.

Veja a repercussão nas redes:

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https://twitter.com/BielCarapecov22/status/1586880706453676032?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1586880706453676032%7Ctwgr%5E9336576e56318ce63b7bb9076294ff5c43fd32eb%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.correiobraziliense.com.br%2Fpolitica%2F2022%2F10%2F5048241-apos-vitoria-de-lula-caminhoneiros-fecham-vias-e-pedem-intervencao-militar.html
https://twitter.com/ENIAQUINO/status/1586889719253721088?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1586889719253721088%7Ctwgr%5E9336576e56318ce63b7bb9076294ff5c43fd32eb%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.correiobraziliense.com.br%2Fpolitica%2F2022%2F10%2F5048241-apos-vitoria-de-lula-caminhoneiros-fecham-vias-e-pedem-intervencao-militar.html
https://twitter.com/Fernand91405161/status/1586877236782800896?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1586877236782800896%7Ctwgr%5E9336576e56318ce63b7bb9076294ff5c43fd32eb%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.correiobraziliense.com.br%2Fpolitica%2F2022%2F10%2F5048241-apos-vitoria-de-lula-caminhoneiros-fecham-vias-e-pedem-intervencao-militar.html

*Texto publicado originalmente no Correio Braziliense


Vinicius Torres Freire: Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Em um ano, o óleo de soja ficou 96% mais caro. O óleo diesel, 2% mais barato, segundo o IPCA de janeiro. Nas contas da Agência Nacional do Petróleo, o diesel encareceu 2% de fevereiro de 2020 para cá.

Talvez um ano apenas não conte bem a história da carestia do combustível. Considere-se então o que aconteceu desde outubro de 2016, quando a Petrobras passou a reajustar seus preços com mais frequência, com base na cotação internacional. O óleo de soja ficou 123% mais caro. O óleo diesel, 23%. O arroz, 67%. O quilo de alcatra, 41%.

O problema não seria apenas o preço alto do combustível, se diz por aí, mas sua variação excessiva. No entanto, os preços do diesel ou da gasolina são menos voláteis do que os de arroz, feijão, alcatra ou óleo de soja, pelo menos desde 2016.

Jair Bolsonaro vai intervir nos preços da comida, como ameaça fazer com a Petrobras? Mais difícil. Não existe uma Vacabrás ou uma Arroz Pátria Amada S.A. Por falar nisso, assim como ferro e petróleo, grãos e carnes têm preços definidos no mercado mundial.

Não há Vacabrás nem tampouco grande grupo organizado de protesto daqueles que não podem comprar arroz. O povo definha quieto, ainda mais em tempo de esquerda semimorta. Mas existem movimentos caminhoneiros e empresariais fortes o bastante para quase levar o Brasil ao colapso rodoviário. Alguns são falanges de Bolsonaro, animador do caminhonaço de 2018.

Obrigar a Petrobras a cobrar abaixo do preço de mercado não apenas diminuiria seu faturamento, os dividendos que paga ao governo, elevaria seu custo de financiamento e limitaria seu crescimento. Se a crise ficar barata, a Petrobras vai perder dezenas de bilhões de reais (centena?).

Por ora mais relevante, a mera percepção de que o governo possa vir a meter a pata em empresas tende a elevar custos de financiamento (juros mais altos, inclusive para o governo) e limitar investimentos na economia em geral.

Bolsonaro partiu para a demagogia econômica explícita. Abriu mais um buraco no Orçamento ao isentar gás e diesel de impostos, embora ainda gaste menos do que Michel Temer no pagamento desse suborno-resgate. Cometerá crime fiscal caso não corte outro gasto ou não aumente algum imposto para compensar.

A história de que o governo “responsável” procurava compensações para a nova despesa com o auxílio emergencial se torna assim mais ridícula. O auxílio está à beira de passar no Congresso com compensações apenas para inglês ver, mais uma promessa como o trilhão das privatizações de Nostradamus de Paulo Guedes (acontecerão em algum momento dos séculos por vir). Por falar nisso, quem vai comprar refinaria da Petrobras quando o governo mete a mão nos preços?

Sim, esta análise tem a perspectiva limitada da gerência elementar de uma economia de mercado e seus requisitos mínimos de funcionamento. É o máximo que se pode esperar sob o governo militar bolsonariano.

Como um projeto de tirano aloprando em um bunker ou porão, Bolsonaro não dá a mínima para o risco de arruinar o país: ele é capaz de tudo, e incapaz também. Corre agora risco maior de implodir seu próprio governo e prestígio, popularidade que poderia manter à tona vacinando em massa e obedecendo ao menos à mediocridade habitual de sua equipe econômica. Mas, se um quarto de milhão de cadáveres e outras ruínas não o derrubaram, por que não dobrar a aposta na monstruosidade ignorante e tocar o golpe por outras vias?

Donos do dinheiro grosso vão reagir ou continuam achando que Bolsonaro ainda está no preço?


O Globo: Sem reforma, alta de gastos aumenta risco de paralisia de serviços públicos

Concessões dadas a caminhoneiros após a greve agravam problema

Por Martha Beck e Bárbara Nascimento, de O Globo

BRASÍLIA - As medidas adotadas para acabar com a greve dos caminhoneiros vão obrigar o governo a apertar ainda mais o cinto em 2018 e dar mais um passo em direção a restrições que, no limite, poderiam se configurar numa paralisação. Esse tipo de situação (shutdown) provoca a suspensão de serviços à população e do pagamento de despesas com a manutenção da máquina pública, como limpeza, luz e aluguel. Integrantes da equipe econômica e economistas ouvidos pelo GLOBO afirmam que o shutdown não é um cenário provável para 2018, mas que há uma ameaça concreta para 2019.

A pressão das despesas obrigatórias (especialmente com salários e benefícios previdenciários) e do teto de gastos sobre o Orçamento deixarão as despesas discricionárias (aquelas que o governo pode cortar, como investimentos) no menor patamar em quase uma década. E isso porque há folga em relação a 2017. Para 2019, no entanto, restará ao governo recorrer a medidas que dependem do Congresso para ter um respiro nas contas.

Segundo dados do Tesouro Nacional, até abril, a estimativa era que os gastos discricionários ficariam em R$ 129 bilhões em 2018, menor taxa desde 2009. No entanto, depois das concessões feitas aos caminhoneiros para acabar com a greve da categoria, a equipe econômica teve que ajustar o valor, que caiu para R$ 122,5 bilhões. Economistas e técnicos do próprio governo reconhecem que quando as despesas discricionárias se aproximam de R$ 80 bilhões já é possível configurar um shutdown.

 

 

AJUSTE NAS DESPESAS OBRIGATÓRIAS

Ao longo de 2017, o governo teve que fazer um aperto de mais de R$ 40 bilhões no Orçamento para assegurar a meta fiscal (que depois foi ampliada pelo Congresso). Isso provocou dificuldades: houve suspensão da emissão de passaportes, lentidão nos atendimentos de postos do INSS, falhas na fiscalização sanitária e atrasos em pagamentos de serviços. Naquele ano, as despesas discricionárias ficaram em R$ 124 bilhões.

O primeiro gasto a sofrer os efeitos da compressão do teto é o investimento público. Dados que fazem parte do Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV mostram que o investimento do governo central (Tesouro, Banco Central e Previdência Social), por exemplo, caiu de R$ 40,6 bilhões em 2014 para R$ 24,8 bilhões em 2017 — uma redução de 63,7%. Para especialistas, isso tende a piorar e colocar em risco a própria regra do teto de gastos (as despesas só podem crescer de acordo com a inflação), se não houver uma reforma das despesas obrigatórias, especialmente a da Previdência.

— Mesmo dentro da margem fiscal, tem um pedaço do gasto que é incomprimível. Perto de R$ 80 bilhões é o montante que não daria para cortar sem parar o funcionamento da máquina pública. Claro que dá para economizar mais, rever contratos, mas o grosso do ajuste terá que vir das despesas obrigatórias — disse o diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto.

Para o ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador do Ibre/FGV Manoel Pires, o quadro fiscal de 2018 ainda é favorável em relação a 2017, apesar de penalizar muito os investimentos públicos e deixar pouca margem de manobra para o governo. Mas o cenário mais crítico, segundo ele, está em 2019, quando o limite de despesas será mais apertado e há um risco efetivo de ser descumprido. As despesas discricionárias para o ano que vem estão estimadas em R$ 98,4 bilhões — R$ 18,4 bilhões acima do limite do shutdown.

— A projeção das despesas para 2019 é mais preocupante. O limite é baixo por causa da regra do teto e da meta fiscal, e as contas foram feitas de maneira conservadora. Não há previsão, por exemplo, de reajustes para os servidores públicos, sendo que as carreiras sempre fazem pressão — destaca Pires.

Com esse cenário em vista, a equipe econômica já se prepara para tentar ampliar seus limites no ano que vem. Segundo técnicos do governo, a estratégia para não correr o risco de paralisar a máquina em 2019 inclui o projeto que reonera a folha de pagamento das empresas (que pode dar uma folga fiscal de R$ 9 bilhões) e o adiamento dos reajustes dos servidores para 2020 (o que teria um impacto positivo de R$ 5 bilhões sobre as contas públicas). Se forem incluídos no adiamento os aumentos previstos para os militares, o alívio com salários aumentaria para R$ 11 bilhões.

Ou seja, no total, haveria uma margem de R$ 20 bilhões no Orçamento. Os técnicos reconhecem, contudo, que esse é um quadro difícil: com pressões de vários setores, é improvável que o espaço aberto na despesa com a reoneração da folha não seja ao menos parcialmente comprometido. No caso do adiamento dos reajustes, uma tentativa semelhante feita pelo governo no ano passado foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) e caducou no Congresso sem avançar.

REVISÃO DO TETO DE GASTOS

Esta semana, ao julgar as contas do governo de 2017, o Tribunal de Contas da União (TCU) fez um alerta sobre o aumento do risco de paralisação da máquina pública e da necessidade da realização de reformas que permitam um controle maior sobre despesas obrigatórias. No acórdão da decisão, os ministros da Corte de Contas afirmam:

“Cabe alertar que o cumprimento do teto poderá ser comprometido nos próximos exercícios, caso as despesas com benefícios previdenciários continuem a aumentar no ritmo observado nos últimos anos. Mesmo considerando a hipótese otimista em que as despesas com pessoal e as demais despesas obrigatórias não cresçam em valores reais, em pouco tempo os recursos serão insuficientes para custear as despesas discricionárias, que incluem: programas de saúde e de educação, investimentos, manutenção dos serviços públicos, entre outros itens. Muito antes disso, a execução das atividades da administração pública federal ficará inviabilizada”.

Segundo Manoel Pires, o próximo governo provavelmente terá que rever a regra do teto de gastos —que determina que as despesas podem crescer apenas o equivalente à inflação do ano anterior — se não houver uma reforma da Previdência e uma revisão de gastos obrigatórios rapidamente. Ele afirma que é contra uma mexida na regra do teto sem contrapartida:

— É equivocado mexer no teto e nada oferecer em troca. É preciso uma combinação de mudança com reforma da Previdência rápida.

Segundo Pires, algumas sugestões de revisão do teto têm partido de candidatos à Presidência, mas elas não resolvem o problema fiscal de maneira estrutural. Ele citou como exemplo a ideia de excluir da conta as despesas com investimentos.

— Nesse formato, mesmo preservando os investimentos, as obrigatórias continuariam a comer o espaço da discricionária, provocando um rompimento do teto do mesmo jeito mais à frente — explica Pires.

O pesquisador do Ibre fez parte da equipe do ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa, que também chegou a encaminhar ao Congresso uma proposta de teto para as despesas. A medida, no entanto, trazia outro formato. Previa um plano plurianual, com a programação fiscal dos quatro anos seguintes, estabelecendo o limite das despesas discricionárias proporcionalmente ao PIB para os anos seguintes. Essa, segundo Pires, seria uma forma mais equilibrada de limitar o crescimento dos gastos públicos.

Pela regra do teto, as despesas só podem crescer com base na inflação do ano anterior. E como a equipe econômica conseguiu aprovar a norma antes da reforma da Previdência, há um risco de que ela fique inviabilizada já em 2019. Sem uma reforma, as despesas com benefícios devem passar de R$ 592,4 bilhões em 2018 para R$ 758,5 bilhões em 2021.


Eliane Brum: Caminhoneiro, o novo velho protagonista do Brasil

Identidade, gênero e luta de classes no protesto que parou o país e pode apontar para uma versão brasileira do eleitor de Donald Trump nas eleições

O Brasil que parou o Brasil por 11 dias reivindica um lugar que perdeu e um tempo que já não existe. Neste sentido, não poderia estar mais distante dos protagonistas dos protestos de 2013. Se uma parcela significativa estava ali como autônomos, avulsos, os caminhoneiros são unidos por uma identidade muito particular, cujo papel não deve ser reduzido. As rodas dos caminhões já giram em falso há muito. Aqueles que interromperam o abastecimento do país são também homens encurralados num mundo que já não compreendem. As máquinas estacionadas nas rodovias são a potência que restou, mas essa potência já não pertence a esse século.

O homem que trancou as rodovias tem idade média de 44 anos, está acima do peso, é sedentário, tem baixa escolaridade, trabalha mais de 11 horas por dia, tem remuneração mensal média de menos de quatro mil reais e acredita que sua renda está em queda. Quase metade dos caminhoneiros estava endividada. A maioria acreditava que a diminuição da demanda era causada pela crise econômica e, mesmo antes da mudança da política de preços da Petrobras, 46% já apontava o preço do combustível como um dos grandes problemas. Este é o perfil revelado por uma pesquisa realizada pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) em 2016. É improvável que algo substantivo tenha mudado em dois anos. É provável, porém, que a queda do número de fretes e da renda, assim como as dificuldades, tenham se ampliado com a instabilidade do país. E certamente o aumento do diesel pesou.

A relação entre a paralisação dos caminhoneiros e o apelo por intervenção militar revela conexões simbólicas profundas

É importante compreender quem é esse novo velho protagonista que parou o país em maio de 2018, assim como perceber o quanto há de protagonismo real nesse personagem. Durante boa parte da segunda metade do século 20, com mais ênfase na ditadura civil-militar (1964-1985), o caminhoneiro tornou-se um personagem importante da propaganda nacionalista de um Brasil em busca do progresso e do futuro. Ao longo das últimas décadas, esse mesmo personagem testemunhou essa imagem se dissolver e, junto com ela, perdeu não só renda, mas também espaço simbólico.

A propaganda da ditadura era marcada por grandes caminhões desbravando as novas estradas abertas no país, algumas delas míticas como a Transamazônica. Basta folhear as revistas da época para alcançar o que era ser um caminhoneiro no imaginário do país dos anos setenta, a serviço de um governo opressor que manipulava tanto nacionalismo como ufanismo. A relação entre a paralisação pela redução do valor do diesel e o apelo por intervenção militar, a qual uma parte dos caminhoneiros aderiu, revela conexões simbólicas mais profundas, fundamentais para compreender o que foi esse momento.

A imagem que se consolidou também como autoimagem era a do caminhoneiro como um desbravador do Brasil. Afinal, era preciso atribuir valor de heroísmo à profissão, para convencer pais de família a enfrentar por semanas estradas terríveis e cheias de perigos na boleia de um caminhão. Não um desbravador qualquer, mas um que avançava conduzindo grandes máquinas e empurrava o país sobre rodas enormes. Ser caminhoneiro era também ser potente. Potente no sentido masculino e arcaico do termo. Essa marca de testosterona, essa marca de gênero do movimento precisa ser levada em conta nas análises.

O caminhoneiro esteve, e ainda está, ligado a três valores: ao transporte da riqueza do país, ao espírito de aventura e ao empreendedorismo, representado pela meta de comprar seu próprio caminhão. Cada família de classe média baixa tinha pelo menos um parente caminhoneiro, especialmente nas cidades do interior e nos subúrbios das grandes cidades. Apenas como exemplo: Maria, a irmã mais querida de Luiz Inácio Lula da Silva, era esposa e mãe de caminhoneiros bastante orgulhosos da profissão, moradores dos bairros menos nobres de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista.

No Rio Grande do Sul, um dos polos de caminhoneiros do Brasil, parte deles é descendente de imigrantes europeus. Se transportar as mercadorias da terra não era tão valorizado quanto possuir a terra, o bem mais cobiçado que seus antepassados vieram buscar no Novo Mundo, ser caminhoneiro era, e ainda é, considerado uma profissão digna, “de homem”, e muitas vezes passava de pai para filho, com clãs de caminhoneiros preparando o churrasco de domingo enquanto as mulheres se dividiam entre a maionese de batata e o pudim de leite da sobremesa.

Num estado que mitificou a figura do gaúcho como o errante dos caminhos, de coração valente e alma livre, o caminhoneiro era o mais próximo de um cavaleiro moderno das estradas. Muitos deles eram filhos de pequenos agricultores que perderam a terra durante o processo de mecanização da agricultura ou que não tinham terra suficiente quando os filhos cresciam e constituíam sua própria família. Em vez das raízes plantadas no chão, esses herdeiros da vontade de vencer na vida e de ter um lugar no país carregavam o produto da terra para outros cantos do mundo. Como os antigos tropeiros que os caminhões foram tornando mais e mais obsoletos.

São muitas as místicas criadas em torno do caminhoneiro para, o mais rapidamente possível, atribuir tradição à profissão num país que escolheu a estrada como principal meio de transporte de bens e de pessoas. Pelo Brasil afora há canções e histórias de caminhoneiros. E muitos devem lembrar da série Carga Pesada, da TV Globo. Ao contar as aventuras de uma dupla de caminhoneiros pelo país, Pedro e Bino, interpretados por Antônio Fagundes e Stênio Garcia, a série fez muito sucesso entre 1979 e 1981. Depois, entre 2003 e 2007, foi reeditada. Era a realização na dramaturgia do brasileiro pobre, mas trabalhador, empreendedor e sonhador, lutando contra um Brasil muitas vezes corrompido e corruptor.

Entre o autônomo e o autômato, a luta de classes é espertamente borrada

O caminhoneiro como “guerreiro das estradas” é um personagem do Brasil. Mas de um Brasil que já não é. E este é o ponto. Nos últimos vários anos, tornou-se cada vez mais difícil manter essa autoimagem. A força dessa simbologia, cevada por tantas décadas, já não era capaz de dar sentido a uma vida que se precarizava de forma acelerada. De empreendedor do asfalto o caminhoneiro passou a ser o trabalhador autônomo, que pouco ou nada tem de “autônomo”, como bem demonstrado em artigo de Vitor Araújo Filgueiras e José Dari Krein.

A palavra, convertida em mais um termo falsificador no Brasil, ganhou um sentido ainda mais perverso após a reforma trabalhista de 2017, que tornou a carne dos trabalhadores mais barata e liberou os desmandos sobre seu corpo. De autônomo a autômato, a luta de classes vai sendo encoberta, tendo como ápice essa paralisação apoiada – ou em parte articulada – por patrões.

Como os trabalhadores de muitas categorias profissionais, o caminhoneiro também foi se descobrindo sem direitos, explorado por uma jornada exaustiva, pressionado a entregar mercadorias em tempo curto demais, estressado pelo tráfego intenso e pelas estradas péssimas, ameaçado por assaltos cada vez mais violentos, com cada vez menos poder para negociar o valor dos fretes, muitas vezes trabalhando para um só transportador, mas sem direitos de empregado porque “autônomo”.

E, para completar, testemunhando a crescente ruína do seu corpo pelo excesso de horas sentado na boleia do caminhão e pela comida gordurosa da beira da estrada. Muito trabalho, pouco dinheiro, nenhum glamour. Também não é um dado qualquer que uma das principais queixas dos caminhoneiros, no campo da saúde, é a espinha que se “quebra” ou é “quebrada”, expressada pelas dores e problemas na coluna vertebral.

Também no lado de fora a propaganda ruía. O caminhoneiro é cada vez mais visto como um irresponsável que provoca acidentes, tanto quanto como um drogado que toma rebites para poder dirigir um número maior de horas e cumprir o horário dos fretes. O combate à prostituição juvenil nas estradas o generalizou também como um explorador sexual que usa as viagens para fazer sexo com meninas. Ao chegar ao fim de uma jornada extenuante, muitas vezes ainda é tratado com preconceito e descaso e recebe menos do que o prometido, sem nenhum poder de barganha em tempos de crise, porque há um outro que aceitará as piores condições para poder garantir algum sustento para a família. Longe de casa por semanas, esse mesmo caminhoneiro nem sempre consegue manter o lugar de chefe de família ao voltar, no contexto de crescente protagonismo das mulheres, hoje mais escolarizadas que os homens.

Em busca da potência perdida, o caminhoneiro confrontou um governo sem potência alguma

É também este o homem que se insurgiu parando o país. E encontrou sua potência perdida ao se confrontar com um governo sem potência alguma, dedicado a gastar suas escassas energias para manter-se no Planalto enquanto concede o que tem e o que não tem a todos que o chantageiam. Michel Temer (MDB) e seu ministério, parte dele suspeita ou já denunciada por corrupção, entregaram tudo e também a cabeça do presidente da Petrobras, que se não renunciasse cairia de qualquer modo. Para piorar, Temer chamou de novo as Forças Armadas para botar ordem na casa que sabe governar sem legitimidade. Não apenas uma parcela da população se infantiliza, como também o presidente.

Parte dos caminhoneiros sequer percebeu que fazia o jogo dos patrões que apoiaram a paralisação. Parte deles mostrou-se incapaz de enxergar que mais uma vez os donos das transportadoras botaram o corpo dos mais frágeis na linha de frente. Enquanto eram estimulados a pintar o corpo para a guerra, os caminhoneiros mais uma vez lutaram pelos interesses de seus opressores, os mesmos que deixaram para os trabalhadores precarizados a conta para pagar também dos dias sem trabalho em nome do protesto. Essa nuance do movimento não é tudo, mas parte importante da complexidade do quadro.

Quem perdeu, mais uma vez, de todos os lados, foi a maioria da população. Mas, mesmo assim, a maioria da população, como a pesquisa do Datafolha mostrou, apoiou a paralisação dos caminhoneiros. Mesmo sendo afetada pelo desabastecimento nos supermercados, nos hospitais, nos postos de gasolina, mesmo sem ônibus para chegar ao trabalho ou às escolas, a maioria dos brasileiros apoiou a paralisação dos caminhoneiros.

Em parte, é possível que a maioria da população acredite que já paga a conta, todas as contas, de qualquer modo. Em parte, é catártico diante da contenção cotidiana numa vida ruim e numa vida que não para de piorar. A vontade reprimida e tão humana de romper com todas as amarras e ter seu dia de foda-se. Ou apoiar o dia de foda-se do outro com quem se sente identificado. Não há nada mais perigoso do que aquele que não tem nada a perder. O Brasil está vivendo um momento em que cada vez mais gente tem cada vez menos a perder. E cada vez menos motivos para conter seu ódio e sua fúria.

Que Brasil os caminhoneiros mobilizaram? Me parece haver vários, incluindo uma parte da esquerda que acreditou ser possível embarcar no movimento, adicionando a ele sentidos que não tinha, como a categoria sindicalizada dos petroleiros. Ou a esquerda que acreditava ser uma traição não apoiar qualquer paralisação. E também uma parte da extrema-direita, esta mais bem sucedida, que buscou instrumentalizar a raiva dos caminhoneiros. Depois recuou, mas certamente foi beneficiada. As forças que agiram nessa paralisação ainda precisam ser expostas com mais clareza.

Me interessa particularmente esse Brasil espontâneo, sem sindicato nem clube, identificado com os caminhoneiros porque também se sente ferrado de todas as maneiras. Esse Brasil que se descobre sem perspectiva de melhorar a renda. Ou, um sentimento mais desestabilizador, sem perspectiva de deter a sua queda. Um Brasil que se sente sem lugar. E que compartilha da enorme nostalgia do que não foi, mas acreditava que pudesse ter sido. Ou que merecia ter sido. Uma nostalgia do passado que nunca houve, este que existiu apenas como possibilidade não realizada. Mas que chegou mais perto de se realizar na primeira década deste século, nos anos de Lula, hoje na cadeia e possivelmente impedido de disputar a próxima eleição.

Pelo conteúdo das manifestações, Lula não é um “herói injustiçado” para a maioria dos caminhoneiros, mas mais um “político corrupto”, o substantivo e o adjetivo hoje quase um sinônimo para uma parcela dos brasileiros. A paralisação dos caminhoneiros prova, de forma contundente, que a democracia já não responde aos anseios de melhora de vida. Mais do que um clamor por intervenção militar, o movimento revelou a profundidade da crise da democracia que se alarga no mundo, mas ganha tons singulares no Brasil.

Não tenho pesquisa para apoiar minha hipótese. Espero que alguém a esteja fazendo. Mas minha percepção através de conversas é de que os caminhoneiros mobilizaram uma grande parcela de brasileiros que se sente impotente – e se sente impotente em mais de um sentido. Como os caminhoneiros, são trabalhadores de corpos precarizados e arruinados, pessoas exauridas, exaustas e com medo.

“Pai, faça alguma coisa antes que eu tenha que mijar sentado”

Chamo atenção, mais uma vez, para as questões de sexo e de gênero. Os caminhoneiros são 99,8% homens, e as imagens dessa paralisação exacerbam testosterona. São raras as referências a homossexuais, transexuais e transgêneros nessa categoria de trabalhadores. As redes sociais e os grupos de WhatsApp mostraram que a maior parte dos protagonistas ativos eram homens supostamente ansiosos para voltar para suas famílias de modelo tradicional, das quais estariam separados pela paralisação. “Sentiram saudades de casa e da família, que rezava e pedia para que voltassem logo e bem”, escreveu em 3 de junho o presidente da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), Diumar Bueno, em artigo publicado na Folha de S.Paulo.

Acredito existir algo para se compreender nessa masculinidade ameaçada pelo crescimento do protagonismo das mulheres e das pessoas LGBTs. Ameaçado, por um lado, pela perda da renda e pela precarização do trabalho, e, por outro, pela mudança dos costumes, esse homem “comum” sente-se encurralado num país que piora a cada dia. É quase previsível que uma parte desse sentimento seja canalizada para um pedido de ordem ao Exército, a instituição que representa a testosterona em estado bruto. Tipo: “Pai, faça alguma coisa antes que eu tenha que mijar sentado”.

É menos um anseio pela volta da ditadura – e mais um desejo de viver num mundo cujos códigos possa reconhecer, num momento em que se sente empobrecido, desprestigiado, sem lugar e sem perspectivas, e com as rodas atoladas em areia movediça. Essa parcela de brasileiros, que vai muito além dos caminhoneiros, mas que se sentiu representada por eles, pode criar uma versão brasileira, e por isso particular, do eleitor de Donald Trump nas eleições de 2018. Uma parcela de brasileiros que secretamente se sente impotente, de várias maneiras.

A corrupção é o guarda-chuva que permite a quem o ostenta nem precisar explicar, muito menos precisar entender o que o move de fato

A corrupção, a bandeira mais uma vez desfraldada por apoiadores da paralisação e por parte dos caminhoneiros ao longo dos dias, é um guarda-chuva que protege aquele que gosta de se apresentar como “cidadão de bem” de seus objetivos mais mesquinhos e egoístas. É fácil ser contra a corrupção. Nunca se ouviu alguém dizer que é a favor da corrupção. A corrupção é o guarda-chuva que permite a quem o ostenta não precisar explicar, muito menos precisar entender o que o move de fato, o que sempre é muito confortável.

Ao constatarmos que a maioria dos brasileiros se corrompe um pouco por dia, no que se refere às pequenas infrações, como tirar vantagem de alguma coisa, roubar no peso ou no troco, é possível desconfiar que não é a corrupção que move tanto ódio, mas um profundo descontentamento com a corrosão do cotidiano e o sentimento de impotência. Quando alguém diz que é contra a corrupção, talvez esteja gritando contra o fato de sua vida ser tão difícil e tão aquém de seus melhores esforços, no caso dos mais pobres. Ou, no caso de quem lamenta os privilégios perdidos, contra a crença de que sua vida não está à altura do que considera merecer por posição de classe.

A corrupção, no caso dessa paralisação, foi definitiva apenas no fato de o governo Temer comprometer ainda mais o investimento em saúde e educação, decisão que atinge os mais pobres de forma explícita. E fez isso justamente por temer perder o governo e ser despachado para a cadeia por... corrupção. Não é um dado lógico, uma escolha inescapável, a de cortar justamente em áreas como saúde e educação, ciência e tecnologia; cortar recursos no campo do saneamento básico, da reforma agrária e da regularização fundiária na Amazônia; na esfera do incentivo à agricultura familiar e do desenvolvimento da agricultura orgânica e de baixo carbono; no âmbito da demarcação de terras indígenas, do desenvolvimento sustentável, da oferta de água, da fiscalização ambiental e da prevenção de desastres; nas áreas das políticas públicas sobre drogas e do combate à violência contra a mulher; no setor do trabalho, do emprego e da saúde do trabalhador. Entre outros.

A escolha do que cortar e de como manejar o preço do diesel não é lógica, mas ideológica

A escolha do que cortar e de como manejar o preço do diesel não é lógica, mas ideológica, e está a serviço de um projeto de ocupação e perpetuação de poder. Os caminhoneiros são acusados de terem chantageado o governo, em especial pela parte que toca aos donos de transportadoras, suspeitos de terem promovido um locaute – greve de patrões, portanto ilegal. Mas o governo Temer, cada vez mais fraco e desmoralizado é, ao mesmo tempo, alinhado e chantageado de forma permanente por grupos com maior poder de pressão, como os ruralistas e os donos de planos de saúde.

Em 2013, Lula, Dilma Rousseff e o PT descobriram que perderam as ruas. Em 2018, as direitas que articularam o impeachment de Dilma Rousseff descobriram o que foi dito ao PT anos antes: quem acredita que controla as ruas é um idiota. Suspeito que muita gente que apoiou o impeachment em 2016, incluindo parte da imprensa, hoje esteja bastante arrependida com os rumos que o país tomou. Mas ainda sem grandeza ética para assumir seus erros publicamente. Não é só o PT que precisa fazer autocrítica, obviamente.

A irresponsabilidade de tirar do poder uma presidente ruim, mas eleita, sem base legal para isso, alargou a convicção de que o voto vale pouco no Brasil e que os resultados das eleições, caso sejam insatisfatórios para grupos de poder, podem ser alterados. Os ecos dessa violência contra a democracia se farão sentir por décadas e foram determinantes para essa paralisação que, à certa altura, acreditou poder derrubar o governo.

Se o sentimento de revolta contra a corrosão da vida moveu 2013 e move 2018, talvez seja só isso o que existe em comum. A luta original do Movimento Passe Livre (MPL), detonador das manifestações de junho de 2013, era pela ocupação do espaço público pelas pessoas. O desejo era de retomar a cidade para quem nela vive. Em 2013, caminhando sobre as próprias pernas, uma multidão descobriu uma cidade impossível de alcançar pela janela dos carros e ônibus.

A luta dos caminhoneiros de maio de 2018 é por um Brasil que já não pode ser, embora ainda será por muito tempo. O transporte ferroviário e fluvial é pífio, apesar das dimensões continentais do país e do fato de o Brasil ter o privilégio de alguns dos maiores rios do mundo correrem no seu território. As rodas dos caminhões que hoje giram em falso dizem muito sobre as escolhas do passado e do presente.

A poluição de São Paulo foi reduzida à metade durante a paralisação

A luta de 2013 era para liberar o fluxo, a de 2018 para interromper o fluxo. Não há maior símbolo dessa diferença do que a imagem agressiva dos caminhões num planeta em que é preciso reduzir as emissões de CO2. Isso se nossa espécie quiser continuar vivendo num mundo ruim, mas ainda possível. Uma das constatações mais importantes na paralisação dos caminhoneiros, ainda que pouco mencionada, foi a redução da contaminação de São Paulo: no sétimo dia do movimento, a poluição foi reduzida pela metade. Segundo matéria da Agência Fapesp, a qualidade do ar na capital paulista tornou-se “boa” em todas as estações de medição e para todos os poluentes analisados, algo muito difícil de ser registrado.

A luta de 2013 era a das capitais, a de 2018 é a dos Brasis do interior e dos subúrbios das grandes cidades. A luta de 2013 era pelo futuro, a de 2018 é pelo futuro do passado. Escutar a todos é obrigatório. E votar em outubro se torna cada dia mais importante para a defesa da democracia num país em que ela foi corrompida. Sem a democracia, nem as ruas teriam falado em 2013, nem apoiadores – ou manipuladores – da paralisação dos caminhoneiros poderiam gritar para que o tio da farda bote ordem na casa. Essa democracia imperfeita, falha e seguidamente injusta ainda é o melhor que temos.

* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum


O Globo: MPF investiga grevistas por tentativa de ‘mudar regime’

Crimes da Lei de Segurança Nacional têm punição de até 15 anos de prisão

Por Vinicius Sassine, de O Globo

O Ministério Público Federal (MPF) instaurou procedimentos para investigar se empresários e outros agentes relacionados à greve dos caminhoneiros cometeram dois crimes previstos na Lei de Segurança Nacional: o de tentar mudar o regime político vigente e o Estado Democrático de Direito com emprego de violência e grave ameaça; e o de incitar a subversão da ordem política e a animosidade nas Forças Armadas. Esse tipo de crime pode ser punido com até 15 anos de prisão. Ao todo, o MPF investigará ao menos sete comportamentos distintos que podem configurar esse tipo de crime, envolvendo algumas das principais lideranças do movimento. A disposição de parte deles de estimular o pedido de intervenção militar no país contribuiu para a abertura da investigação.

A Câmara Criminal, que atua no âmbito da Procuradoria Geral da República (PGR), enviou especificamente às unidades do MPF em quatro estados — São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Goiás — a determinação para a abertura dos procedimentos, listando casos em que empresários e lideranças do movimento grevista insuflaram ideias como a de um golpe militar. São casos em que essas pessoas incentivaram grevistas a “colocarem fogo em caminhões”, defenderam a intervenção militar e colocaram empresas à disposição dos manifestantes, entre outras ações.

Entre as lideranças a serem investigadas está Wallace Landim, o “Chorão”, que diz representar motoristas autônomos do Centro-Oeste. Ele se destacou no movimento como autor de vídeos nas redes sociais que pregam a derrubada do governo do presidente Michel Temer, ao lado do advogado André Janones, também citado pelo MPF. O caso dos dois deve ser investigado pelo MPF em Goiás. Eles sustentam que o movimento é legítimo e negam pretensões eleitorais, apesar de serem filiados, respectivamente, ao Podemos-SP e ao PSC-MG.

ANÁLISE EM 30 DIAS
O MPF de Santa Catarina investigará outro caso, envolvendo dois empresários. Um é suspeito de “apoiar os grevistas e autorizar que coloquem fogo nos caminhões das empresas se for preciso”, como consta da determinação para a abertura da investigação. O outro “autorizou o uso do estacionamento de uma das suas lojas como ponto de apoio”. Ele também escreveu mensagens em redes sociais defendendo intervenção militar.

A determinação encaminhada ao MPF do Rio Grande do Sul pede investigação sobre o apoio de uma rede de lojas a caminhoneiros grevistas. Em São Paulo, os alvos de apuração devem ser um sargento da reserva, descrito como “defensor contumaz da intervenção militar”, e um suplente de vereador à frente de uma empresa de transportes e de uma associação. Eles teriam patrocinado um bloqueio no acesso a uma distribuidora da Petrobras. No Espírito Santo, o MPF também solicitou que a Polícia Federal abra um inquérito relacionado à Lei de Segurança Nacional.

A determinação da Câmara Criminal é instaurar um procedimento chamado notícia de fato. É o início de uma apuração, que pode levar à abertura de um inquérito ou a um arquivamento, num prazo de 30 dias. Os despachos são assinados pela subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, coordenadora da Câmara Criminal.

Além desses casos, a PF abriu 48 inquéritos para investigar os mais diversos crimes cometidos durante a greve, em 25 unidades da federação e no Distrito Federal — não há inquérito apenas no Amapá. O levantamento dos inquéritos, obtido pelo GLOBO, revela que Santa Catarina concentra o maior número de procedimentos: sete. Depois aparecem São Paulo, com seis inquéritos, Mato Grosso do Sul e Paraná, com cinco cada.

CÁRMEN DEFENDE DEMOCRACIA
Entre os outros casos em apuração no país há denúncias das mais diversas, de ameaças a motoristas à incitação à greve, passando pelas suspeitas de locaute — quando empresários aderem e incentivam uma greve de trabalhadores em busca dos próprios interesses. Há histórias simples, como a de um gerente de um posto de gasolina que deu comida a grevistas, em Goiás. Neste caso, a Justiça já negou pedido de busca e apreensão na casa do gerente e dos donos do posto, como queria a PF. No Rio Grande do Sul, está um dos casos mais avançados e documentados, inclusive com vídeo, de suposta prática de locaute.

Ontem, em Brasília, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, afirmou, sem mencionar diretamente os pedidos de manifestantes por intervenção militar, que “a democracia não está em questão” e que não existe alternativa a ela no Brasil.

— Regimes sem direito são (parte do) passado de que não se pode esquecer, nem de que se queira lembrar — disse a ministra, na abertura da sessão da Corte. — A construção permanente do Brasil é nossa, e ela é permanente, democrática e comprometida com a ética. Não há escolha de caminho. A democracia é o único caminho legítimo.

(Colaboraram Carolina Brígido e André de Souza)


Paulo Fábio Dantas Neto: Pela política de volta aos seus postos. Espantar fantasmas, evitar esquinas

Entre 2013 e 2018, alusões a 1964 têm sido abundantes como retórica do embate político e midiático. Sérios transtornos sociais, prejuízos econômicos, complicação do problema fiscal e desdobramentos políticos do locaute das empresas transportadoras de carga que encorpou o movimento dos caminhoneiros deram, nos últimos dias, ainda mais audiência a quem difunde esse tipo de analogia.

Na mesma direção vai a percepção geral da fraqueza política do governo para deter a sabotagem perpetrada contra o país. O mesmo governo que vem saneando e recuperando a Petrobras caminha agora em direção ao passado recente, quando a instrumentalização política da empresa, associada a uma política de desoneração de empresários, afundou o tesouro nacional e ajudou a desarmar estado, economia e sociedade no enfrentamento de uma recessão que vinha então a galope, uma tempestade ocultada pela maquiagem marqueteira da campanha governista de 2014.

Analisado isoladamente, o caso da atual gestão da Petrobras é dos mais bem-sucedidos. Pode-se discordar da orientação adotada mas ali há (ou houve) política pública. Ali não houve (ou não havia) o vaivém do governo na busca do equilíbrio das contas públicas, visível em outros setores. Porém, o governo paga alto preço por ter permitido um tal grau de insulamento à Petrobras que a desconectou da grande política. Colocar fim na política de varejo e na instrumentalização partidária no atacado, marcas do período anterior, é um mérito, mas era preciso fazer isso com régua e compasso, atento à necessidade de ir ganhando mais aliados no curso da política adotada.

Num país onde o novo e o antigo sempre estão a se misturar, ir pelo incremental é sempre bom conselho. A gramática política do Brasil, como mostrou Edson Nunes, é sincrética e foi ignorada ao se fazer um tratamento de choque radical. Perdendo o compasso, o governo passou só a régua e — vê-se agora — produziu amplo leque de adversários, além dos inevitáveis. Implacáveis na defesa de seus interesses corporativos, transportadoras e caminhoneiros legaram um rombo financeiro ao país e abriram aos pés do governo uma cratera política, com aplauso ou silêncio de políticos acovardados e eleitoralmente ansiosos.

A realidade é que os defensores do status quo anterior ganharam de volta um discurso, ainda que mistificador. A imprudência encontra um limite espantoso quando gente de esquerda sai a reboque do locaute empresarial e de sabotagens populistas e autoritárias, ajudando a mergulhar o país no caos. Mas o que querem? Deixar faltar gasolina para que o preço baixe? Ou pensam em usá-la para atiçar o fogo no qual eleições podem ser incineradas? Fazem o jogo da direita na ilusão de que rirão por último. Essa fantasia e a aventura que dela decorre levam, à primeira vista, a nos lembrar de 1964.

Apesar das aparências é o caso de distinguir, não de confundir as coisas. Proponho que recusemos o raciocínio anacrônico que tenta exumar, como assombração, um fato relevante ocorrido no passado, como se fosse parte de uma tradição, daquelas tradições através das quais, conforme Marx, gerações mortas oprimem os cérebros dos vivos. Conferindo a conspirações e golpes o status de uma tradição nacional, essa narrativa agride o método de Marx, pois oculta, ideologicamente, um traço forte da tradição política brasileira: a aceitação, pela elite política, da sugestão de Tocqueville, de tratar a mudança mental de uma sociedade como se fosse desígnio da Providência, ao qual não cabe resistir, mas que é preciso fazer deslizar, o mais suavemente possível, para que não se torne um liberticídio.

A adoção dessa sugestão por uma elite politicamente ativa está na raiz da propensão ao acordo e à negociação que marca, mais que os momentos de ruptura, a nossa história política e a faz contínua, enquanto a sociedade se transforma. Os riscos que nossa democracia atual enfrenta — e eles não são desprezíveis — estão menos nessa nossa tradição e mais em desconsiderá-la, como fez o governo na condução política da mudança na Petrobras. Agora tenta retomá-la, para tentar diminuir o estrago.

Os riscos não compõem um flashback. Invisíveis pelo retrovisor, são próprios da complexidade e da intensidade inaudita de mudanças políticas, sociais, culturais e tecnológicas possibilitadas, inclusive, pela avenida institucional que se abriu, há 30 anos, com a promulgação da atual Constituição. O quadro é preocupante mas não porque as instituições políticas tenham trincado ou sejam más. O problema, está, em parte, na fortuna, ou seja, na objetiva e farta oferta de novos fatos sociais realmente difíceis de compreender e de incorporar ao cotidiano institucional. Mas está, também, em boa medida, na escassez de virtù, a virtude política que se tornou rara onde precisa ser comum.

Com as exceções de praxe — que devem ser valorizadas —, as instituições políticas e outras, que as devem controlar, estão sendo pilotadas sem imaginação e sem suficiente responsabilidade política. Refiro-me não só ao patrimonialismo tradicional e ao oportunismo raso, presentes na elite política propriamente dita. Ela é alvo de contundentes operações policiais e judiciais e recebe reprovação da sociedade pelo que faz, pelo que não faz e também pelo que lhe imputam demagogos de vários matizes, que batem ponto na própria política, em corporações estatais e empresariais e na imprensa. Refiro-me, também, ao corporativismo e messianismo difusos em elites que se pretendem moralizadoras, bem como no discurso e na práxis de sindicatos e outros entes da sociedade civil, entregues a um varejo medíocre.

Amantes de esquinas de variados tipos, com seus fundamentalismos e/ou pragmatismos, contribuem para travar a fluência do trânsito na avenida. A busca de atalhos e cirurgias, de tão insistente, pode acabar mesmo nos levando a novas esquinas. E uma vez diante delas, improvisos de má qualidade ou scripts inaptos à via democrática e pluralista aberta em 1988 podem nos enredar em becos. O locaute do setor de transportes apontou para um deles.

Movimento na estrada na contramão da avenida

A crise política prolongada estimulou empresários a seguirem, nesse maio de 2018, script análogo ao usado pelos irmãos Batista, no maio do ano passado, para chantagear o estado e a nação. Mas quem são os Janots do maio de 2018? Haverá hoje um Congresso disposto a frustrar suas intenções? Partidos e lideranças que ainda possam adiar táticas eleitorais para salvar uma pinguela estratégica? Presidente e governo em condição de operar a política real com habilidade e eficácia, sem ceder no essencial do seu programa de recuperação econômica? Ou de tratar com firmeza os sabotadores, sem contar apenas com as corporações armadas? Interpeladas com frequentes missões excepcionais, sob holofotes, essas corporações manter-se-ão inflexivelmente restritas a rotinas da vida profissional?

A inquietante resposta comum a quase todas as perguntas parece ser um genérico não. Mas a primeira das perguntas requer, para ter resposta, um entendimento prévio mínimo do que se passou no caso específico desse movimento de caminhoneiros e de empresas de transporte de carga.

Apesar de as declarações firmes e verazes do ministro Jungmann merecerem menção, bem como o sentido institucional da linha de ação que sugeriu, é recorrente e também veraz a avaliação de que a situação política do governo e do presidente não levou a posição clara e ação em tempo hábil para sanar a sabotagem. Na outra ponta da realidade, o ministro Marun levava ao presidente novas reinvindicações de caminhoneiros. Como as dos empresários, primeiros da fila, elas foram tratadas — e tinham de sê-lo — como se houvesse greve convencional, envolvendo trabalhadores e sindicatos, e não o que de fato havia: paralisação sustentada por movimento de empresários com objetivo econômico antissocial, sem armas, mas com metodologia paramilitar e potencial político explosivo.

Fique claro que não se trata de criticar o governo por ter negociado. É da sua índole e isso é bom. Trata-se é de ter realismo para reconhecer que o governo não estava em posição forte para negociar. E isso é ruim. Está sendo comemorado por quem de fato pensa e por quem só declara que pensa (a intenção aqui importa menos que o efeito do pensamento equivocado quando orienta a ação) defender o interesse público, ao enfraquecer mais o governo nessa hora. O equívoco está em não considerar que prejuízos coletivos serão proporcionais à força de quem estava do outro lado da mesa.

A falsidade das analogias com 64 não nos dispensa de tentar responder à pergunta sobre quem são os Batistas e Janots do maio de 2018. Buscar uma resposta a essa altura só tem sentido político se for para reverter o êxito da presumida ação ilegal. Tarefa que o ministro Jungmann assumiu ser dos órgãos de segurança institucional, mas que não teve até aqui serventia. Comprovado o locaute (e já há, ao que se diz, 48 processos), há possibilidade política de recuo em pontos já firmados do acordo, lesivos às contas públicas? Se não há, seria imprudente recusar a simultânea pauta encaminhada por Marun. Claro que as conclusões da investigação serão úteis, mas o tratamento político que se dará a elas já foge ao poder de decisão do governo Temer. O êxito do movimento está consumado, tenha sido ou não ilegal o seu método e mesmo que se confirme o caráter antissocial da sua motivação.

Mas, detectada a conspiração, resta ainda saber por que terá dado certo. Como já se disse bem sobre 64, o simples fato de uma conspiração existir não explica seu eventual sucesso. A questão em aberto conduz ao tema da fragilidade política do governo Temer, para entendê-la, do ponto de vista político. Tema que não é assunto maduro para cientistas políticos, menos ainda para historiadores. Mas uma elite política não pode adiá-lo, sob pena de praticar haraquiri antes de um golpe lhe ser imposto. Depois do fato consumado, a ela restará apenas confessar o ato de se ter autoconvertido em fantasma.

Por que a pinguela balança?

O tema central aqui, repito, é o que explica a fragilidade do governo Temer. Para se ter resposta útil e tempestiva sobre isso, é preciso pensar em quem tem responsabilidade política e institucional pela condução do país, além do próprio governo, cuja conduta já analisei.

Para começar, a fragilidade não é produto exclusivo do processo político que gerou esse governo. Essa é uma simplificadora e obviamente interessada explicação para um problema complexo. Se em política houvesse correspondência tão direta entre alhos e bugalhos, o colégio eleitoral inventado pela ditadura não teria sido, como foi, ponto de partida para a institucionalização prática de uma democracia de amplitude inédita no Brasil, processo de conflito e negociação que incluiu também praças e avenidas lotadas, como estiveram igualmente em 2013 e em 2015/2016.

Seguramente não é simples assim. A fragilidade inaugural do governo Temer seria (e estava sendo) superada pela entrega de uma das mercadorias prometidas, a reconstrução da economia. A outra meta, a pacificação do país, teve logo seu cumprimento travado por atores interessados, por razões diversas, em impedir que o governo acumulasse dividendos políticos com o êxito da primeira. A ilusão de que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa começou a se desfazer quando o governo começou a atirar em direções contraditórias para compensar os efeitos da gradativa deserção de aliados, cada vez mais focados no imediatismo eleitoral. Foi perdendo seu próprio foco e com ele a força relativa que ainda retirava da clareza de sua plataforma reformista. A realidade da conexão entre economia e política mostrou-se, explicitamente, dramaticamente, na conexão entre estradas bloqueadas e cidades desabastecidas. A política, aos poucos interditada durante a crise, sumiu da prateleira porque a elite política, sem combustível, sumiu dos postos que ocupa no mundo público.

Pontos fora dessa curva infeliz há talvez em todos os partidos que não são apenas siglas de aluguel. Necessitam de articulação transversal para vencerem a barreira da invisibilidade. Há um manifesto em circulação, assinado por gente de peso e respeito, tentando emitir um toque de reunir para democratas e reformistas. Até aqui, parca resposta, dando a suspeitar que a política chamada por Marco Aurélio Nogueira de “dos políticos” tenha sofrido edema de glote e agonize sedada na UTI.

Essa sensação de vácuo político conduz boas cabeças a se voltarem, como solução, para a política “dos cidadãos”. Há aí dois problemas: ela não é bem votada no eleitorado profundo e, principalmente, ela não governa, nem aqui nem em qualquer lugar do mundo. A democracia é (ainda) o governo dos partidos, portanto, dos políticos. E será assim enquanto não inventarem nada melhor, ou até que algo melhor entre, de fato, na política e não se limite a fazer a sua crítica. Macron pode estar sinalizando isso? Talvez (se a política externa deixar), mas até na França é preciso esperar um pouco para saber. E o Brasil em crise pede soluções para ontem.

Isso não significa desprezar a política do cidadãos. Ao contrário. Uma sociedade civil politicamente ativa é muito importante para democratizar a democracia. Mas governo é outra conversa, como mostraram nossas estradas bloqueadas e cidades desabastecidas. Terá sido por falta da política dos cidadãos ou pela omissão da política dos políticos, que segue sendo imprescindível?

Mais uma vez a história pode ensinar, em vez de confundir. É recorrente também lembrar de Ulysses Guimarães. Quero fazer isso salientando um determinando ângulo do seu legado. Através de sua liderança, a política dos políticos desobstruiu e pavimentou estradas, abasteceu e energizou o tráfego. O Ulysses que mais faz falta hoje não é o da resistência democrática e sim o artista da governabilidade. Sarney, o afortunado, e Temer, o sem fortuna, que o digam. Como se sabe, Ulysses foi cristianizado pelo seu próprio partido, nas eleições de 1989. Porém, profissional — como são os bons políticos —, ainda segurava o leme em 1992, quando foi preciso, por meio de um impeachment, consertar um erro das urnas, reconhecido pelos eleitores. Morreu duas semanas depois, em paz com sua missão. Simbolicamente não pode ser sepultado nem cremado. Impossível não lançarmos, nessa hora difícil, um olhar perdido sobre a Serra da Mantiqueira, em busca de luz. Ou do toque de reunir.

* Paulo Fábio Dantas é cientista político e professor da UFBA

 


Roberto Freire: Em defesa da ordem democrática

O governo negociou e atendeu às reivindicações dos grevistas dos transportes.

Não houve a contrapartida necessária, por parte dos manifestantes, com a volta dos caminhões às rodovias e estradas e a retomada do abastecimento.

Desnudou-se o caráter do movimento grevista.

Na primeira nota do movimento, reivindicava-se, como primeiro item, o voto impresso nas eleições de 2018.

Tal reivindicação nada tem a ver com a natureza das questões envolvidas nos transportes, mas sim, com a plataforma de determinado candidato de ultradireita, em nada interessado nas reivindicações específicas dos caminhoneiros e mesmo de empresas do setor.

Ontem, governo e grevistas chegaram a um acordo, cujo mérito não é escopo deste artigo discutir agora.

Já durante a negociação, determinada liderança ausentou-se, alegando desconfiança no governo.

Exigia garantias de que o Congresso aprovaria a eliminação de determinado imposto. Ou seja, queria o Congresso, Senado e Câmara ajoelhados diante do que se proclamou representar.

Restou demonstrado que há interesses turvos, que não querem negociar, apenas almejam desestabilizar a democracia.

Não cabe tergiversar com quem coloca em risco à democracia e nossas liberdades.

Só democrata desavisado imagina que do desabastecimento generalizado, que uma greve como essa provoca, as instituições do Estado de Direito se sustentam e se fortalecem.

Nunca é demais lembrar da tragédia chilena com a deposição de Allende e instauração da ditadura de Pinochet. Tudo começou com uma greve de caminhoneiros.

O governo federal acaba de tomar as medidas acertadas para restabelecer ordem e defender a população, sempre a maior vítima de qualquer desabastecimento. E mais com a determinação de respeitar o acordo estabelecido com o comando do movimento grevista.

Não cabe vacilação.

Os democratas devem dar todo apoio às medidas anunciadas pelo governo federal que, dentro da legislação do Estado de Direito Democrático, possam garantir o pleno exercício das liberdades e dos direitos da cidadania brasileira.