camilo santana

Maria Cristina Fernandes: A guarda pretoriana do comediante

Se estava difícil de entender, o coronel Aginaldo desenhou com o estímulo à insubordinação policial

Como estivesse difícil entender, o coronel Aginaldo de Oliveira resolveu desenhar. Ao celebrar a coragem dos policiais militares na assembleia que deliberou pelo fim do motim policial no Ceará, o coronel, que é diretor da Força Nacional de Segurança, mostrou que o presidente Jair Bolsonaro hoje dispõe de meios para arregimentar uma guarda pretoriana. Não é um feito solitário. Tem a decisiva ajuda do ministro da Justiça, Sergio Moro, cuja autoridade se mostrou incapaz de repreender amotinados.

A guerra de facções do crime organizado no Ceará, Estado que se tornou corredor de exportação do narcotráfico andino, foi a primeira crise enfrentada pelo presidente da República. Na semana da sua posse, Bolsonaro optou pelo envio da Força Nacional de Segurança para o Estado que havia acabado de reeleger um governador do PT.

Um ano depois, nova crise eclodiria sob a forma de motim policial. Como a força especial composta por policiais militares já não desse conta de reprimir seus próprios colegas, o presidente foi pressionado a decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), conduzida por militares do Exército. Entre uma e outra crise, deterioraram-se as bases da hierarquia e da disciplina das tropas locais e a capacidade de operação da força nacional. O governador é o mesmo, Camilo Santana, reeleito pelo PT. Quem mudou foi o presidente, ocupado, desde a posse, em incutir, nas bases policiais, o vírus da insubordinação que marcou sua carreira militar.

É uma barafunda bolsonarista por excelência. Desde sua criação, em 2000, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, chapéu, no MJ, para a Força Nacional de Segurança, foi ocupada por policiais e especialistas. No governo Michel Temer, assumiu o primeiro general, Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro do governo Bolsonaro e um dos poucos militares da reserva a expor publicamente sua crítica à insubordinação policial.

Com a posse de Bolsonaro, o cargo seria ocupado por um segundo general. Secretário de segurança do governo Tasso Jereissati nos anos 1990, o general Guilherme Theophilo viria a ser o candidato tucano ao governo do Estado em 2018. Seu programa de segurança foi elaborado pelo coronel Aginaldo Ribeiro. Derrotado pela reeleição de Camilo Santana, Theophilo assumiria a secretaria nacional de segurança e, em retribuição aos serviços prestados na campanha, colocaria o coronel para dirigir a força nacional.

O casamento, amplamente coberto pelas redes sociais, com a deputada Carla Zambelli, entusiasta de primeira hora dos protestos de 15 de março, já havia tirado Aginaldo Ribeiro da obscuridade. Mas foi o discurso na assembleia dos amotinados cearenses que o tornou um ícone da era bolsonarista.

Nota do ministério de Sergio Moro limitou-se a informar que o coronel fez um discurso interno para os policiais. Foi outro “discurso interno”, de 30 de março de 1964, no salão do Automóvel Clube do Brasil no Rio de Janeiro que precipitou o golpe contra João Goulart. Ao contrário do coronel, Jango se dirigiu aos sargentos presentes com um apelo pelos valores militares da hierarquia e da disciplina, mas sua presença na posse da Associação dos Sargentos foi capaz de dobrar o último general que resistia ao golpe, Castelo Branco.

O coronel não é presidente da República mas é por ele mantido no cargo a despeito de estimular a sublevação de policiais num Estado em que o governador resiste à anistia de PMs com apoio do general Freire Gomes, comandante militar do Nordeste.

Chefe de uma força de segurança formada por homens recrutados na elite das polícias militares de todo país, Aginaldo não deixou dúvidas de que é capaz de colocá-la a soldo de interesses da conjuntura. Os policiais militares obedecem a tantos poderes que não surpreende se deixarem de se curvar a algum deles. Em “Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos” (Boitempo, 2019), Luiz Eduardo Soares, secretário de segurança nacional no governo Luiz Inácio Lula da Silva, lista as cadeias de comando cruzadas.

A Constituição trata as PMs como forças auxiliares e reserva do Exército, que também aprova o nome indicado pelo governador para seu comando. Ou seja, se o presidente da República é o comandante-em-chefe das Forças Armadas, o governador não o é de suas polícias. Sua orientação está a cargo das secretarias estaduais de segurança, mas o controle é repartido entre o governador e o Exército ou, em última instância, seu comandante, Bolsonaro.

A consternação dos meios militares com a insubordinação consentida dos policiais é lastreada nessa baderna legal. Ao fraquejar na imposição de sua autoridade, o ministro Sergio Moro já perdeu o prestígio de que desfrutava no generalato. Não é entrando no presídio da Papuda, hoje sob GLO, num tanque de guerra, que o ministro o recuperará.

Nenhuma autoridade preocupa mais os generais hoje, no entanto, do que o presidente da República. A inquietação foi ampliada com a convocação para a manifestação do dia 15. O último artigo de Fernando Henrique Cardoso em “O Estado de S.Paulo” sugere que o ex-presidente foi porta-voz dessa preocupação: “Não é para ‘dar um golpe’ que os militares aceitam participar do atual governo. Sentem sinceramente que cumprem uma missão... O risco para a democracia e para as próprias Forças Armadas é que se borre a fronteira entre os quartéis e a polícia”.

Essa fronteira estará tanto mais em risco quanto maior for a dificuldade de a economia brasileira reagir. O comediante da porta do Alvorada não representa o desdém do presidente apenas pela pauta do crescimento. Se não for capaz de fazer o país crescer, como sugere o PIB de 2019, o presidente pode se valer da imprudência de sua guarda pretoriana para fazer graça com a Constituição.

Daí porque o ministro Paulo Guedes, que já havia perdido apoio no Congresso, no empresariado e nas finanças, está sem lastro no generalato palaciano. Seu preferido é o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, coringa de técnico com formação militar e trânsito legislativo. É uma tentativa de garantir que o governo Bolsonaro possa acabar como começou, pelo voto. Ou não.


Elio Gaspari: Um governador irresponsável

Na segunda-feira, o governador do Ceará, Camilo Santana, anunciou que afastou dos serviços de rua os 12 policiais envolvidos no massacre de Milagres, onde morreram 14 pessoas. Informou também que criou um grupo especial de investigação para apurar o que aconteceu durante a madrugada de sexta-feira na pequena cidade do Vale do Cariri: “Este momento nos coloca um dever ainda maior de proteger vidas e fortalecer a paz.”

Blá-blá-blá. Três dias antes, a polícia estava em Milagres à espera de uma quadrilha de assaltantes de bancos e matou seis reféns, cinco de uma mesma família, dois dos quais adolescentes. Horas depois da chacina, do alto de sua autoridade, o governador louvou a operação e ensinou: “Temos que ser responsáveis e aguardar o trabalho de investigação”.

Irresponsável era ele, por falar de ouvir dizer, adiantando uma indulgência plenária aos policiais: “O fato é que eles estavam preparados para assaltar dois bancos e não conseguiram assaltar nenhum.” Até aí, foi uma manifestação primitiva de onipotência, pois “se temos que ser responsáveis”, aquilo que ele chamou de “o fato” era sabidamente algo mais que uma tentativa de assalto impedida pela polícia. O governador foi além e lançou dúvidas sobre a estatística produzida em Milagres. Nela morreu parte da família sequestrada pelos bandidos, mas Camilo Santana argumentou: “É estranho um refém de madrugada em um banco”.

Estranho é um governador endossar a velha versão segundo a qual todo morto em ação policial é suspeito de alguma coisa.

Três dias depois, Santana corrigiu-se com a mesma ligeireza: “De forma infeliz disse aquilo, mas peço desculpas à família. Quem me conhece sabe do meu respeito às pessoas e da minha defesa à vida”. Ele não foi infeliz, foi irresponsável, com o propósito de lustrar a operação policial. Suas desculpas não deveriam ser apresentadas só à família dos chacinados, mas também a toda a população. O truque do “quem me conhece” foi pueril, pois quem o ouviu teve oportunidade de perceber que defende a vida alheia em termos genéricos. Quando se tratou de um caso específico, envolvendo a ação da polícia, podendo ficar calado, repetiu o que lhe contaram.

Quando fez sua primeira declaração, Camilo Santana sabia que a quadrilha havia sido emboscada. As polícias de vários estados investigavam seus movimentos há semanas e esperavam os bandidos em Milagres. O que aconteceu na madrugada daquela sexta-feira foi uma típica ação de policiais ineptos que atiram primeiro e vão conferir depois.

O governador do Ceará foi um ponto dentro da curva. Todo morto em ação policial acaba virando “suspeito”. No Rio de Janeiro, guarda-chuva e furadeira já foram objetos suspeitos nas mãos de pessoas mortas por policiais. Camilo Santana foi reeleito no primeiro turno, com votação expressiva. Como seus similares, cavalga um discurso de promessas, acompanhado de uma solidariedade automática para a polícia. Seja o que for que se faça, algo deveria ser feito e o feito, feito está. Parece que não estudaram história. Lampião era um bandido, quem o transformou em herói foi a polícia, desfilando sua cabeça de Piranhas a Maceió e expondo-a num museu.

O empresário João Batista Magalhães saíra de Serra Talhada (PE) para uma reunião natalina e foi sequestrado pelos bandidos numa estrada próxima a Milagres. Ele morreu com o filho, e outros três familiares. Afinal, “é estranho um refém de madrugada em um banco”.