camara dos deputados

Vera Magalhães: Acordo entre STF e Câmara é difícil

Nos momentos que antecediam a reunião da Mesa da Câmara para decidir sobre a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) pela Polícia Federal, atendendo determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, deputados e ministros da Corte conversavam nos bastidores sobre a possibilidade de um acordo de procedimentos que evitasse desgaste para os dois Poderes.

Por esse desenho, a Mesa da Câmara faria um aceno ao STF na reunião prevista para começar agora, às 13h, reconhecendo a gravidade dos ataques que o deputado desferiu contra o STF e repudiando os vídeos com ameaças a integrantes da Corte e ao funcionamento do Judiciário. Ao mesmo tempo, encaminharia imediatamente ao Conselho de Ética da Câmara os vídeos com a recomendação de análise, a partir da semana que vem, da possibilidade de abertura de investigação por quebra de decoro parlamentar.

Essas iniciativas viriam juntamente com a manifestação da Mesa contra a prisão em flagrante por crime inafiançável, que, segundo conversei com deputados, é unanimemente condenada por eles, uma vez que, pela justificativa do ministro, segundo eles, qualquer um pode vir a ser preso por vídeos gravados anos atrás, uma vez que o flagrante não se encerra no tempo, no entendimento exarado por Alexandre de Moraes.

A expectativa de deputados é a de que, com esse gesto em reconhecimento ao caráter inaceitável da postura de Daniel Silveira, seria mais fácil obter o relaxamento da prisão do deputado não ainda nesta tarde, quando se espera que o STF referende por unanimidade a decisão de Moraes, mas na audiência de custódia.

Essa audiência será comandada pelo próprio ministro relator do inquérito das fake news e ameaças contra a Corte e seus integrantes, e só deve ser marcada para a manhã de quinta-feira.

Mas não deverá ser tão simples assim obter um acordo entre Câmara e STF. Ninguém bota nenhuma fé na possibilidade de uma investigação contra Daniel Silveira avançar no Conselho de Ética, órgão que está sem se reunir desde o início da pandemia, mas que, mesmo antes, era inerte em relação a sucessivas manifestações antidemocráticas de deputados como Eduardo Bolsonaro, por exemplo.

Além disso, é considerada insuficiente essa iniciativa por parte da Mesa da Câmara, e ministros do Supremo sobre os quais conversei a respeito da possibilidade de uma composição acreditam que, se a Corte ceder agora, haverá uma escalada de ataques à democracia e às instituições.

Por fim, os ministros parecem querer pagar para ver como a Câmara vai se comportar, justamente pelo fato de que há vários outros parlamentares investigados no mesmo inquérito, e nada indica que eles estejam moderando suas ações. Ministros me disseram duvidar que, numa votação aberta, e com voto nominal, a maioria da Câmara vá votar pela suspensão da prisão de Daniel Silveira.

Pode ser que a Corte esteja incorrendo em erro de avaliação, já que é conhecido o espírito de corpo dos parlamentares e há vários deles, inclusive em postos de comando na Casa, com processos em andamento no STF.

Um histórico recente de votações da Câmara e do Senado sobre prisão de parlamentares dá a medida: em 2016, no auge da Lava Jato, o Senado votou, aberto, a favor da manutenção da prisão do senador Delcídio Amaral, por 53 a 13. 

Já no ano seguinte passou a vigorar o espírito de corpo. Por 44 a 26, também em votação aberta, o mesmo Senado rejeitou o recolhimento noturno à prisão de Aécio Neves.

O mesmo precedente valeu para que a Câmara rejeitasse o afastamento do mandato do deputado Wilson Santiago (PTB-PB) no ano passado. Foram 233 votos a 170, e nada menos que 101 abstenções.


Míriam Leitão: STF mira defensor radical do governo

A força dos eventos em torno da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) vai muito além do personagem. O Supremo consagrou duas teses. Primeiro, que a imunidade parlamentar não cobre ataques e ameaças à democracia. Segundo, que a internet alarga o conceito de prisão em flagrante porque nela se pratica crime continuado. O que era no começo do dia uma decisão do ministro Alexandre de Moraes virou de todo o STF após a aprovação por unanimidade. A cúpula da Câmara tentava encontrar formas de amenizar a punição.

Daniel Silveira é reincidente. É investigado no inquérito das fake news e das manifestações antidemocráticas. É um defensor da violência como arma política. Em um dos seus vídeos mais conhecidos, ele ameaça de morte manifestantes antifascistas. Mais importante, ele é um bolsonarista raiz, da ala radical. Ao atacar o Supremo ele estava tentando escalar a crise iniciada pela declaração do general Villas Bôas de que o Alto Comando do Exército participou da redação da postagem que fez em 2018 ameaçando o STF. Três dos integrantes do Alto Comando da época são ministros de Bolsonaro, e o então ministro da Defesa é diretor-geral de Itaipu. Era nessa crise que Daniel Silveira tentava surfar.

Ex-policial militar, defensor da disseminação das armas, propagandista da ditadura e do AI-5, o deputado é fruto também do perigoso fenômeno da politização das polícias militares, uma das bases do atual presidente. O ex-ministro da Segurança Raul Jungmann explica melhor.

— A hiperpolitização das polícias militares acontece pela permissão de que eles saiam, se candidatem e, se perderem a eleição, possam voltar e retomar o serviço ativo. Ganhando ou perdendo pode-se voltar. A possibilidade de ir e vir da política para a PM tem sido um estímulo a que indivíduos liderem rebeliões e motins para depois se candidatarem. A greve é proibida, mas eles entram em greve e depois são anistiados — diz Raul.

E pior, não há um período de desincompatibilização. Ele pode sair da corporação direto para a campanha. E se não for eleito, volta direto. Nada a perder, portanto. Um estudo feito pela newsletter Fonte Segura , do Fórum Brasileiro da Segurança Pública e da Analítica Comunicação, mostra que isso não acontece em outros países. Bolsonaro estimulou ao máximo essa politização e continua cultivando as PMs como uma de suas bases. Em 2018, foram eleitos 77 militares ou policiais militares, 43 deles pelo PSL, partido ao qual o presidente era filiado.

Silveira, ao discutir no IML, para não usar máscara, disse que é um policial. Não é mais. Ficou apenas cinco anos, nove meses e dezessete dias. Não pode voltar, portanto, porque não completou 10 anos. No vídeo em que ameaçou manifestantes, ele também falou como se ainda fosse policial e lembrou que eles andavam armados e “em algum momento um de vocês vai achar o de vocês e tomar um no meio da testa e no meio do peito”. No vídeo que o levou à prisão o deputado fez ameaças físicas aos ministros do STF.

A decisão do STF, independentemente da reação da Câmara, esclarece princípios que o governo de Jair Bolsonaro tentou confundir. A liberdade de expressão não serve para encobrir crimes contra a democracia. Nem mesmo de um parlamentar. Bolsonaro quando era deputado fez apologia da ditadura e da tortura, falou em matar adversários políticos e nunca foi punido. Vejam o preço que o país paga pela leniência das instituições.

O presidente Jair Bolsonaro nos decretos de liberação de armas eleva o perigo extremo que a democracia brasileira corre no seu governo. Jungmann acha que a liberação de armas e a redução do controle do Estado sobre elas levarão a um aumento do crime e a um fortalecimento do crime organizado.

É claro que Bolsonaro está também tentando formar milícias políticas. Em várias ocasiões mostrou que seu objetivo é político. Ele afirmou na famosa reunião ministerial que queria “escancarar” o acesso às armas, alegando que assim resistiriam a ditadores. Disse que pessoas armadas poderiam enfrentar governadores e prefeitos. Por fim afirmou que aqui aconteceria pior do que houve nos Estados Unidos, no ataque ao Capitólio.

Esta crise extrapola em muito a figura medíocre e repulsiva do deputado que a provocou. Se a Câmara proteger o truculento Daniel Silveira, o país afunda mais um pouco no abismo institucional em que entrou desde a eleição de Bolsonaro, um inimigo declarado da democracia.


Adriana Fernandes: Nova PEC deve prever 'waiver' para volta do auxílio emergencial

Nova rodada do benefício é queda de braço entre gastar e gastar com contrapartidas de corte de despesas

Para a concessão de uma nova rodada de auxílio emergencial, com valor das parcelas limitado a R$ 250,00 e custo total de até R$ 30 bilhões, a equipe econômica calcula que a medida de contrapartida já foi dada com o congelamento dos salários dos servidores até o fim deste ano para União, Estados e municípios.

A nova versão da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de orçamento de guerra, que está sendo negociada pelo ministro da EconomiaPaulo Guedes, e lideranças do Congresso, deve prever uma espécie de “waiver” (dispensa) extraordinário para concessão do auxílio durante o vácuo jurídico deixado pelo fim do estado de calamidade em 31 de dezembro do ano passado.

Para acionar o “botão” de um protocolo de guerra e combater o recrudescimento da pandemia, o que exigiria gastos maiores de R$ 30 bilhões, a proposta também vai prever mecanismos que garantam contrapartidas mais duras de ajuste fiscal, como o congelamento de salários dos servidores por mais dois anos. São medidas para serem acionadas no futuro, junto com o arcabouço de um novo marco fiscal para uma cláusula de calamidade pública.

O congelamento de salários começou a valer no final do ano passado depois de uma longa tramitação do projeto que liberou um alívio financeiro total de cerca de R$ 125 bilhões aos governadores e prefeitos durante a pandemia. Como contrapartida, foi incluída na lei a proibição a reajustes e aumento de gastos com pessoal até 31 de dezembro de 2021. A economia com medida na época foi estimada em cerca de R$ 130 bilhões pelos técnicos do Tesouro Nacional.

A ideia que ganha força nas negociações é a de que um aumento de R$ 30 bilhões no endividamento público para pagar mais quatro parcelas do auxílio pode ser absorvido, tendo como contrapartida o congelamento de salários autorizado pelo Congresso. O sacrifício já teria sido feito para abrir caminho a esses gastos extras no período atual, que tem sido chamado pela área econômica de “cauda” da pandemia – uma extensão final dos efeitos mais nocivos da covid-19 na economia, segundo esse entendimento da equipe de Paulo Guedes.

Mas gastos acima do patamar de R$ 30 bilhões necessitariam da aprovação de mais medidas e do funcionamento do Conselho Fiscal da República, colegiado a ser criado com integrantes dos três poderes e do Tribunal de Contas da União (TCU). Caberá ao Conselho acionar a cláusula de calamidade.

O texto da emenda constitucional não vai fixar valores, mas a régua dos R$ 30 bilhões tem sido tratada internamente como um limite para uma liberação mais ágil do auxílio, a partir de medidas de ajuste já adotadas e sem ter de esperar pela formação desse colegiado, num processo que poderia levar mais tempo. Novas medidas, por sua vez, dependeriam de novas contrapartidas fiscais. Sem isso, o texto seria o equivalente a uma reedição pura e simples da PEC do orçamento de guerra – o que a equipe econômica descarta por considerar um “cheque em branco” nocivo às finanças públicas, com consequências graves.

Na semana passada, os presidentes do SenadoRodrigo Pacheco (DEM-MG), e da CâmaraArthur Lira (PP-AL), entraram num consenso de que será preciso aprovar uma nova PEC para pagar a nova rodada de auxílio, com as despesas fora do teto de gastos (regra prevista na Constituição que impede o crescimento das despesas acima da inflação). A edição de apenas um crédito extraordinário, que também ficaria livre do limite, sem a aprovação de uma PEC, foi descartada.

O ministro da Economia cobra das lideranças medidas de contrapartidas fiscais para o futuro, com a criação de um novo regime fiscal que conteria medidas permanentes de ajuste que estavam previstas na PEC do pacto federativo enviada ao Congresso no final de 2019. 

Entre essas medidas permanentes, a equipe econômica acredita ser possível incluir a criação da figura do "estado de emergência fiscal". União, Estado ou município que declarar estado de emergência fiscal, com base em critérios definidos na proposta, poderá acionar medidas de contenção de gastos automaticamente por dois anos. O objetivo é que nesse período eles recuperem a saúde financeira.

Nesse caso, trata-se de uma medida que vai além da pandemia e que foi pensada durante o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, após um grupo de governadores e prefeitos pedir a aprovação no Congresso de travas para conter despesas obrigatórias nos seus Estados, que já se encontravam em difícil situação financeira.

Na proposta original da PEC do pacto federativo, o critério para Estados e municípios acionarem mecanismos como redução de jornada e salários de servidores e suspensão de concursos era que as despesas correntes excedessem 95% da receita corrente.

A nova PEC de guerra pode prever uma cláusula vinculante para que as mesmas práticas cobradas pelo TCU sejam adotadas pelos Tribunais de Contas estaduais e municipais, evitando as maquiagens em gastos que abriram caminho para o desequilíbrio nas contas. A desvinculação de fundos públicos é outra medida em análise para ser incluída na primeira PEC.

Nas negociações, a equipe econômica está pisando em ovos porque teme que se repita o que aconteceu no ano passado, quando as medidas de ajuste antecipadas pela imprensa acabaram sendo rifadas pelo presidente Jair Bolsonaro e por lideranças do Congresso antes mesmo de serem enviadas.

Basta o ministro citar o mantra de que é preciso acionar o “DDD”, para desindexar, desvincular e desobrigar o Orçamento, que sai cada um para um lado, fingindo que não é consigo. Uma queda de braço entre gastar e gastar com contrapartidas de corte de despesas.


Ribamar Oliveira: A preocupação já é com o próximo ano

A nova “cláusula de calamidade” será usada em 2022

O governo ainda não explicitou a sua proposta para o “novo marco fiscal”, que negocia com os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). As fontes consultadas pelo Valor informaram, no entanto, que a preocupação das autoridades é aprovar um marco legal que permita ajustar as contas públicas do próximo ano, principalmente na eventualidade de que a pandemia da covid-19 se prolongue por mais alguns meses.

Algumas notícias desencontradas dificultam a compreensão do que está acontecendo. Em primeiro lugar, a prorrogação do auxílio emergencial, com benefício mensal em valor substancialmente inferior ao concedido no ano passado, não depende de novos cortes de despesas ou de medidas fiscais adicionais. Simplesmente porque elas já foram adotadas para este ano e constam da proposta orçamentária para 2021, que ainda está em análise pelo Congresso Nacional.

A lei complementar 173/2020 proibiu, até 31 de dezembro de 2021, que a União, Estados e municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia concedam aumento, reajuste ou qualquer vantagem salarial aos membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos. A LC abriu exceção para aqueles aumentos que já tinham sido aprovados pelo Congresso anteriormente, como foi o caso do reajuste para os militares.

O presidente da República, os governadores e os prefeitos ficaram proibidos também de criar emprego, cargo ou função que implique aumento de despesa, realizar concurso, admitir ou contratar pessoal a qualquer título, criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus ou abonos, criar despesa obrigatória de caráter continuado e de adotar medida que implique reajuste de despesa acima da variação da inflação.

Todas as proibições estão previstas no artigo 8º da LC 173, que passou a ser conhecido na área técnica como “cláusula de calamidade pública”. Ela foi uma compensação às imensas despesas da União para preservar os brasileiros e a economia dos efeitos nefastos da pandemia. Quando elaborou a proposta orçamentária para 2021, em agosto do ano passado, o governo adotou as medidas definidas no artigo 8º da LC 173. A “cláusula de calamidade pública” está, portanto, sendo cumprida.

O problema é que, embora a pandemia tenha arrefecido no segundo semestre de 2020, se intensificou no início deste ano, apresentando agora uma segunda onda, tão letal quanto a primeira. Discutiu-se muito a prorrogação do decreto de calamidade pública editado pelo presidente Jair Bolsonaro, mas a equipe econômica avaliou que a medida não seria necessária. O número de óbitos não parava de diminuir e a economia estava recuperando em “V”.

Com base nessa avaliação, o governo concluiu que não seria necessário prorrogar o auxílio emergencial. E, por isso, não há previsão, na proposta orçamentária para 2021, de despesa com o benefício. Assim, a meta de déficit primário para este ano, proposta pelo governo em dezembro do ano passado, foi definida sem essa despesa.

Agora, diante da segunda onda da covid-19, o governo decidiu prorrogar o auxílio, que custará algo próximo de R$ 30 bilhões. Com essa despesa, não será possível cumprir a meta fiscal estabelecida. O governo precisa, portanto, de um dispositivo legal que o desobrigue de cumprir a meta. No ano passado, a LC 173 deu essa permissão. Agora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que precisa de uma “PEC de Guerra” com a mesma permissão.

Necessita também, segundo informou, de uma “cláusula de calamidade pública”, que defina as medidas a serem adotadas para conter as despesas, nos moldes do artigo 8º da LC 173, compensando a elevação do endividamento público provocada pelo pagamento do novo auxílio emergencial. Guedes precisa da “cláusula” para elaborar a proposta orçamentária de 2022. Isto significa que, se ela for aprovada, os membros de Poder e os servidores não terão aumento salarial também no próximo ano.

Há uma novidade na proposta de Guedes. Ele quer que a “cláusula de calamidade” seja permanente e mais ampla. Ou seja, que ela possa ser acionada em qualquer calamidade que assole o país, um Estado ou município brasileiro. E que não tenha prazo determinado, como ocorreu com a LC 173, cuja cláusula só vale até 31 de dezembro deste ano.

Não está claro qual será a amplitude do conceito de “calamidade”. A situação de insolvência das contas públicas também está incluída no conceito? Se estiver, qual será o limite de deterioração das contas que será considerado como “calamidade”? Não ficou claro também quais serão as medidas de ajuste. A única indicação obtida pelo Valoré que a relação de medidas será maior do que a lista da LC 173.

A prorrogação do auxílio cria outra dificuldade para o governo. Como não havia previsão de pagamento do benefício neste ano, a equipe econômica não incluiu a despesa no montante de títulos que o Tesouro Nacional será obrigado a emitir neste ano para pagar despesas primárias.

A Constituição determina que o endividamento público não pode aumentar acima das despesas de capital (investimentos e amortizações). O princípio é conhecido como “regra de ouro” das finanças públicas. Para emitir títulos para pagar despesas correntes, o governo necessita de autorização do Legislativo. O pedido de crédito suplementar precisa ser aprovado por maioria absoluta de deputados e de senadores.

A proposta orçamentária deste ano prevê que o governo deverá emitir R$ 453,7 bilhões em títulos para cumprir “a regra de ouro”. Com o novo auxílio, o valor vai aumentar. A despesa com o benefício não está submetida ao teto de gastos da União. Ele será pago com crédito extraordinário, que fica fora do teto.

Por fim, é importante observar que tentar criar uma “cláusula de calamidade pública” abrangente e permanente por meio de PEC é um risco considerável, pois ela precisa ser aprovada por três quintos de senadores e deputados, em dois turnos. Talvez fosse melhor criar a “cláusula” por projeto de lei complementar.


Vinicius Torres Freire: Bolsonarismo e bolsonarices custam caro para economia e pobres

Brucutus causam crises políticas que emperram decisões de governo e Congresso

O bolsonarismo custa caro até para Jair Bolsonaro, embora este governo não seja lá muito capaz de fazer certos cálculos pragmáticos a respeito de sua sobrevivência.

O sururu sórdido causado por esse deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) é um exemplo menor, em termos práticos. Afora imprevistos, essa crise não deve paralisar o Congresso por mais que um par de dias. É pouco, mas o tempo já era escasso para aprovar a emenda constitucional que deve abrigar o novo auxílio emergencial e o Orçamento —é preciso fazê-lo até março. Outras bolsonarices ou suas sequelas podem causar mais tumultos políticos e parlamentares que afetariam até as perspectivas abaixo de medíocres da economia para este 2021.

Dezembro e também janeiro foram meses abaixo das expectativas já limitadas de atividade econômica. A julgar pelo valor das vendas por meio de cartões, janeiro foi parecido com dezembro, mês em que, pela estatística do IBGE, as vendas no varejo caíram 6,1% em relação a novembro de 2020. A confiança do consumidor e das empresas continuou baixando no início do ano. É um efeito óbvio de piora da epidemia e do fim do auxílio emergencial e do benefício de complementação de salários reduzidos pelas empresas.

Em junho, pico desses benefícios, os pagamentos foram de R$ 51,8 bilhões (uma vez e meia a despesa anual do Bolsa Família). Em setembro, baixaram a R$ 27,5 bilhões. Em dezembro, para R$ 19,5 bilhões. Em janeiro, para quase nada, restos. Sem demanda a economia volta a murchar. A segunda perna do “V” da recuperação de Paulo Guedes vira uma língua caída para fora.

A fim de criar um novo auxílio emergencial em seus termos, o governo tem de convencer o Congresso a aprovar uma emenda constitucional de “Orçamento de calamidade” associada a corte de gastos, dado de barato pelo comentarismo político e econômico. Como se diz faz meses nestas colunas, isso dá rolo.

Exemplo. Com muito aperto e ajuda de leis, a despesa com a folha de servidores federais caiu de R$ 333,8 bilhões em 2019 para R$ 331,8 bilhões em 2020 (valores ajustados pela inflação). “Ajuste” de R$ 2 bilhões. Pelas novas contas do governo, o novo auxílio deve custar R$ 42 bilhões em 2021 (quatro parcelas de R$ 250 para 42 milhões de pessoas) —no Congresso, a conta tende a ficar maior.

É fácil perceber que não bastará arrumar conflito apenas com o funcionalismo. De onde vão sair outras “compensações”?

Se o rolo for grande, a emenda do novo auxílio pode demorar ou até passar sem as “compensações”, com o que haverá algum custo financeiro (dólar e/ou juros mais salgados).

Quanto mais rolo político, mais difícil aprovar qualquer coisa além do básico do básico (auxílio e Orçamento).

No entanto, como se não bastasse a baderna da sua milícia de brucutus, Bolsonaro decreta coisas como o dilúvio de armas e munições, por exemplo. Em si mesmo uma selvageria, o decreto pode causar mais confusão no Congresso.

Mesmo que a economia não tenha por ora perspectiva decente no médio prazo, Bolsonaro poderia manter o vento a seu favor se lidasse de modo menos idiota com os problemas de agora (vacina, Orçamento, a ideia de que não haverá explosão fiscal no curto prazo). Por ora, está quieto e assim frustra suas milícias por não dar apoio ao deputado brucutu, o “Daniel de Quê?”, segundo Luiz Fux, do Supremo. Mas o bolsonarismo está sempre à beira de dar um tiro no pé, no mesmo com que pisa no pescoço dos brasileiros.


Bruno Boghossian: Extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto

Extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto

Quando ainda frequentava manifestações que defendiam o fechamento do Congresso e do STF, Jair Bolsonaro trabalhou para proteger os golpistas de seu grupo político. Em abril do ano passado, ele indicou que era preciso mudar o comando da Polícia Federal para frear uma investigação contra deputados que atacavam outros Poderes.

A tentativa de blindagem foi registrada numa mensagem enviada pelo presidente ao então ministro Sergio Moro. Bolsonaro reagiu a uma notícia sobre o inquérito contra seus aliados e escreveu: "Mais um motivo para a troca". Agora preso, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) era um dos integrantes daquele time.

O presidente forçou a troca na PF e produziu uma crise com a demissão de Moro. O governo não conseguiu segurar as investigações, mas o episódio mostrou que Silveira e os demais integrantes daquela tropa de choque não eram um apêndice insignificante do grupo que chegou ao poder depois de 2018.

extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto porque faz parte de um projeto. Em busca de concentração de poder, Bolsonaro investe na corrosão da confiança nas instituições, trabalha para armar apoiadores contra seus adversários políticos e questiona a legitimidade de processos eleitorais, para ficar em exemplos recentes.

Ainda que Bolsonaro tenha fabricado uma trégua com o STF e contratado amigos no Congresso, a máquina golpista continua girando. O presidente pode disfarçar, recusar convites para protestos ou mandar para o exílio um ministro que deixa escapar seus desejos autoritários, mas o vídeo gravado por Silveira ainda reflete a doutrina bolsonarista.

A prisão do deputado é uma ferramenta precária para uma punição necessária. Com boas chances de ser derrubada pela Câmara, a decisão deve ampliar tensões e abastecer os instintos radicais que dão vida ao extremismo político. Para sobreviver, instituições que foram omissas por décadas terão que acordar e reforçar a vigilância."


Maria Hermínia Tavares: Acolhida assegurada

O jornal registrou com destaque a grande manifestação coletiva da comunidade acadêmica contra o regime militar

"Com 6 mil inscritos, SBPC abre sua reunião", foi a chamada de primeira página da edição de 6 de julho de 1977 desta Folha, anunciando a 29ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. O destaque se explica por não ser aquele mais um evento como os que a organização promovia para discutir, com reduzido grupo de iniciados, trabalhos geralmente ininteligíveis para os leigos.

Proibido de se realizar na Universidade Federal do Ceará, o encontro foi transferido para a PUC de São Paulo, onde se tornaria a primeira grande manifestação coletiva de repúdio da comunidade acadêmica ao regime militar, dando assim a partida ao seu engajamento aberto na luta pela democracia.

Durante uma semana, nenhum tema relevante para o país foi esquecido: do acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha, alvo de críticas da Sociedade Brasileira de Física, à desigualdade de renda produzida pela política de arrocho salarial da ditadura; do papel do Estado na economia ao modelo político autoritário; das mudanças demográficas ao surgimento de novos movimentos e demandas sociais. Ao longo desse período, os principais debates foram registrados por este jornal. Podem ser lidos no seu arquivo digital.

Foi um momento importante da década de transição do autoritarismo para a democracia. A ele se seguiram outros como os protestos estudantis, as greves operárias no ABC paulista, pronunciamentos empresariais, as eleições de 1982 e a campanha das Diretas Já. Mas o episódio da SBPC, importante em si mesmo, marcou também a abertura de espaço neste diário para o debate de ideias e para os intelectuais que as vocalizaram. Até então, eram território quase exclusivo da imprensa chamada nanica —em semanários como O Pasquim, Opinião ou Movimento. Abrigados pelos grandes veículos, ganharam outra ressonância. Produziram ideias e valores que iriam desembocar na visão generosa de país plasmada na Constituição Cidadã de 1988 e nas políticas sociais das décadas seguintes.

O restabelecimento do regime de liberdades, depois de 20 anos, foi uma obra tocada a muitas mãos e em diferentes palcos, erguidos na sociedade e na esfera da política. Assim também a defesa do sistema democrático hoje ameaçado pela extrema direita virulenta, cujo mentor, de arminha apontada para o direito à informação sem mordaça, vocifera que "o certo" seria "tirar de circulação" os principais órgãos da imprensa. Eis por que o debate informado e acessível a um público amplo é uma dimensão desse interminável empreendimento coletivo, com acolhida assegurada em um jornal centenário.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. 


Roberto Macedo: Sistema político passou ao incentivado presidencialismo de cooptação

Parlamentares ficam soltíssimos para defender interesses pessoais e grupais

Há o presidencialismo de coalização, descrito como uma combinação do presidencialismo com o apoio de uma coalizão multipartidária no Legislativo. Segundo o cientista político Sérgio Abranches, que criou esse conceito, “... é um requisito imprescindível da governabilidade no modelo brasileiro. Nem todos os regimes presidenciais multipartidários dependem tanto de uma coalizão majoritária. No Brasil, as coalizões não são eventuais, são imperativas. Nenhum presidente governou sem o apoio e o respeito de uma coalizão. É um traço permanente de nossas versões do presidencialismo de coalizão”.

E há o presidencialismo de cooptação. Nele o presidente busca o apoio de parlamentares por meio do toma lá verbas e cargos e o dá cá apoio parlamentar. Outra diferença relativamente ao de coalização é que essa troca se dá com parlamentares específicos, ou um grupos deles, e pode ser feita mesmo contrariando a orientação das lideranças e dos programas partidários.

A recente eleição para a presidência da Câmara e a do Senado foi bem mais na linha da cooptação do que da coalizão. Meu artigo anterior neste espaço destacou a reportagem deste jornal Por eleição, Planalto libera R$ 3 bi a parlamentares, publicada em 29 de janeiro. Nela, o que chamou a atenção foi a grande dimensão desse valor, a coincidência dos entendimentos com o período pré-eleitoral nas duas Casas e o amplo alcance de negociações individuais. O ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, que tentou articular uma candidatura em oposição à apoiada pelo Executivo, até reclamou quanto à cooptação praticada.

O senador Tasso Jereissati, em entrevista ao jornal O Globo digital no domingo passado, afirmou: “... esse período agora é diferente, (...) todos os partidos, todos, foram triturados (...) pelo processo eleitoral de Senado e Câmara. (...) Sempre teve isso, mas os partidos também tinham um grande peso. Agora os partidos foram ignorados como se não existissem. (...) o processo (...) nas duas Casas do Congresso foi na base da captação de votos individual”.

A cooptação individualizada envolveu grupos de tamanho relevante no contexto das organizações partidárias, mas também houve dentro delas grupos contrários à cooptação, com o que vieram rachas partidários marcados por posições opostas na eleição. O mais evidente foi no DEM, de Rodrigo Maia, onde alcançou o grupo dele em contraposição ao do ex-prefeito de Salvador Antônio Carlos Magalhães Neto. Os dois até trocaram impropérios em declarações à imprensa.

Outro racha muito citado foi no PSDB. Aí a liderança do governador João Doria alcançava deputados que votaram em Baleia Rossi, o candidato articulado por Rodrigo Maia. Mas houve também quem optasse por Arthur Lira, o candidato de Bolsonaro. O deputado tucano Aécio Neves, uma liderança em evidente declínio nacional, ainda assim foi apontado por Doria como um dos mobilizadores desse apoio, novamente com troca de insultos entre as partes.

Esses dois partidos terão enorme trabalho para recuperar sua identidade programática, e arregimentar seus membros em torno dela, se quiserem ter uma influência de peso nas eleições de 2022. Tudo isso tem como pano de fundo um sistema partidário e eleitoral que cria incentivos para os parlamentares buscarem as cooptações. Não havendo o voto distrital, eles não são cobrados pelos eleitores ao longo de seus mandatos, nem tomam por si a iniciativa de relatar o que fazem, ficando assim soltíssimos para defender interesses pessoais e de grupos que os pressionam. Esse comportamento é também aético, pois se desvia do que, como representantes do povo, e não de si mesmos ou desses grupos, deveria marcar as atitudes parlamentares, a defesa do bem comum.

Temas como a retomada do crescimento econômico, o enorme tamanho e a disfuncionalidade do Estado brasileiro, as carências educacionais, sanitárias, ambientais e tecnológicas, a imagem do Brasil no plano internacional, onde está bem atrás dos países que mais avançam, nada disso parece despertar seu interesse e o empenho em ações corretivas. Salvo exceções cada vez mais excepcionais, o que os move mesmo é o interesse em renovar seus mandatos, para o que focam nas distribuições de benesses, sem ponderar seus custos, e no apoio político inquestionado a quem tem o poder de financiar seus projetos eleitorais.

No contexto desse poder, tem papel importante a enorme quantidade de cargos governamentais a oferecer e a liberação de verbas de interesse exclusivo dos parlamentares e de seus apoiadores, as quais constituem financiamento público indireto de campanhas eleitorais, em prejuízo de candidatos não incumbentes.

Mas a Constituição não diz que todos são iguais perante a lei? Ora, no Brasil é costume dizer que leis são como vacinas: umas pegam, outras não. Assim, o momento atual, o das vacinas previamente testadas, deveria servir para o País buscar vacinas legais eficazes contra nossos muitos males político-institucionais.

*Economista (UFMG, USP E HARVARD), professor sênior da USP. É consultor econômico e de ensino superior


Ricardo Noblat: Acordão para salvar o mandato de Silveira será testado hoje

Silêncio de Bolsonaro não significa indiferença

A princípio, Jair Bolsonaro pouco estaria se lixando para o destino do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), preso por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal depois de atentar contra o Estado de Direito. Faz parte do DNA do presidente largar no campo de batalha aliados que se tornam incômodos. Para os filhos, suspeitos de crimes, a regra não vale. Por eles, mata e é capaz de morrer.

Mas Silveira, a essa altura, por tudo que já disse e fez, espelha melhor do que ninguém a extrema direita que apoia Bolsonaro desde que ele se elegeu vereador pelo Rio e passou quase 30 anos como deputado federal. Bolsonaro teme perder parte desse apoio se nada fizer em favor de Silveira, e, pior: se sua turma mais radical, por medo, deixar de se opor com estridência ao Supremo.

Bolsonaro nada disse ainda sobre a prisão de Silveira, mas por interpostas pessoas, agiu em sua defesa. Aprovou a iniciativa de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, de acionar o desativado Conselho de Ética da Casa para aplicar algum tipo de punição a ele que não seja a cassação do seu mandato. Quem sabe assim o Supremo não se daria por satisfeito e relaxaria a prisão?

Aprovou também a iniciativa da Procuradoria-Geral da República de denunciar Silveira por quatro crimes: praticar agressões verbais e graves ameaças contra ministros do Supremo em direito próprio; incitar o emprego de violência e grave ameaça para tentar impedir o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário; e incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo.

O diabo, porém, mora nos detalhes: a Procuradoria não pediu a prisão preventiva de Silveira apesar das pesadas acusações que lhe fez. Pediu que ele seja monitorado por meio de uma tornozeleira, que se recolha em seu domicílio à noite e que seja proibido de frequentar as dependências do Supremo. Que tal? É uma isca para que haja um acordo entre o tribunal e a Câmara.

Quando o ex-ministro Sérgio Moro acusou Bolsonaro de intervenção na Polícia Federal, a Procuradoria requereu ao Supremo a abertura de inquérito contra o presidente. O ministro Celso de Mello autorizou. As investigações se arrastam há meses. É pule de 10 que a Procuradoria concluirá pela inocência de Bolsonaro e arquivará o inquérito. Assunto encerrado.

Está marcada para esta tarde a audiência de custódia do deputado. Nela, o ministro-relator, Alexandre de Moraes, pode decidir se a detenção será mantida, se ele será libertado ou se a prisão será revertida em medida cautelar do tipo: uso de tornozeleira eletrônica, afastamento do mandato, proibição de se relacionar com outros investigados no mesmo inquérito.

Uma vez que os 11 ministros do Supremo concordaram com a prisão de Silveira, por que relaxá-la 24 horas depois? O que ontem pareceu tão grave a ponto de se mandar a Polícia Federal atrás de um parlamentar, hoje simplesmente deixaria de ser? Justiça é para aplicar a lei, não para participar de tenebrosas transações. O que está em questão é o Estado de Direito. Foi ou não violado?

Que fique com a Câmara, inoculada pelo germe do corporativismo, o ônus de livrar a cara de Silveira se assim preferir. A coleção de vídeos gravados por ele, e mensagens postadas nas redes sociais servirão como provas de que neste país se pode desrespeitar a Constituição e ferir o decoro e, no entanto, escapar sem sofrer maiores danos. Por falar em decoro…

Seja bem-vindo de volta ao Congresso o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) que entrou de licença por 121 dias depois que a Polícia Federal o flagrou com mais de 30 mil reais escondidos dentro da cueca. Seu caso não foi analisado até hoje pelo Conselho de Ética da Casa. O Senado passou os últimos quatro meses com 80 integrantes. Vida que segue, como se nada tivesse acontecido.


Merval Pereira: A que ponto chegamos

Nossa mais recente crise institucional, não a derradeira, é consequência da leniência com que as instituições vêm tratando os frequentes abusos autoritários do presidente Bolsonaro e de seus radicais seguidores. Chegamos a essa situação, e não é a primeira desse tipo, porque o Congresso aceitou que deputados bolsonaristas e milícias digitais promovessem, como continuam a fazer depois da prisão do deputado federal (ainda?) Daniel Silveira, ataques às instituições, e que as Forças Armadas aderissem acriticamente ao governo Bolsonaro e aceitassem, algumas vezes com o endosso tácito até mesmo do ministro da Defesa, diversas tentativas de transpor as linhas da legalidade, contra a democracia.

O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo encarregado das negociações com os parlamentares, quase nunca fundadas em bases republicanas, declarou que não se envergonha dessas negociações. Deveria, pois assumiu, na sua faceta civil, a parte apodrecida das relações políticas, a mesma tática que o leva, e a outros generais, a repudiar o lulopetismo e, anteriormente, o próprio Centrão. Lembram-se do general Heleno cantando na campanha eleitoral “se gritar pega ladrão, não sobra um no Centrão?”.

A revelação do general Villas Bôas de que a nota de pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) na véspera do julgamento de um habeas corpus a favor do ex-presidente Lula foi feita não em caráter pessoal, mas pelo Alto-Comando do Exército, é muito mais grave do que já parecia há três anos. Não importa se você gosta do Lula ou não, se acha que ele merecia o habeas corpus ou não. É um absurdo que o Alto-Comando do Exército respalde uma declaração daquelas às vésperas de um julgamento do STF.

É por isso que gente como esse deputado bolsonarista se acha em condições de fazer o que fez, de afrontar o Supremo. É inexplicável, também, a ironia atual do general em relação à nota que o ministro Edson Fachin soltou, de repúdio à revelação. Fachin não falou há três anos porque falou pelo STF o decano Celso de Mello, rebatendo vigorosamente a tentativa de pressão ilegal.

Esta crise que estamos vivendo, política e institucional, vem da aceitação de um governo autoritário, antidemocrático, que usa as Forças Armadas para se respaldar nessas ações e usa milícias digitais, que podem se transformar em milícias reais com os decretos de liberação de armas. Bolsonaro está armando a população claramente com o intuito de ter uma militância armada para se impor, como aconteceu com Trump nos Estados Unidos.

Trump tinha milícias armadas que desfilavam pelas ruas. Nos EUA é mais comum o porte de arma, então os militantes andavam altamente armados nas ruas e invadiram o Capitólio por incitação do ex-presidente Trump, que agora será processado civilmente por essa atitude, já que, politicamente, o Partido Republicano não permitiu que fosse impedido de continuar atuando na política.

Estamos chegando ao ponto em que as autoridades terão que tomar uma decisão, porque a democracia está permanentemente sob ataque neste governo Bolsonaro. O mais importante hoje é saber como a Câmara se comportará. No caso de Delcídio do Amaral, o Senado aprovou imediatamente a decisão do STF. Neste caso, há muita resistência, inclusive na base bolsonarista radical que está atuando e continua atacando o Supremo e a democracia, continua atacando os representantes das instituições que consideram agir como agentes da esquerda internacional, numa das várias teorias conspiratórias que espalham.

O importante é saber se a nova base do governo Bolsonaro vai se impor, a ponto de não aceitar a prisão do deputado (ainda?), um sujeito desqualificado, já investigado em dois outros inquéritos no STF, por atitudes antidemocráticas e por espalhar fake news. Saber se o corporativismo que protege uma deputada acusada de homicídio e outro, um senador, apanhado em flagrante com dinheiro escondido nas suas partes íntimas, chega ao ponto de acobertar ataques antidemocráticos de um autoritário que, ironicamente, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional da ditadura militar que tanto venera.


Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro ganha circo e Lira perde o pão

Daniel Silveira ajuda o presidente da República com pauta diversionista que tira o foco da pandemia

Se o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) pretendia encabeçar uma manobra diversionista com o vídeo em que afrontou o Supremo Tribunal Federal, foi bem-sucedido. E não apenas por ter dividido as atenções da plateia em relação às responsabilidades do presidente da República numa quarta-feira de cinzas que amanheceu sem vacinas em várias cidades do país. Também tirou o foco de outro personagem-chave da conjuntura, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Ao contrário de Bolsonaro, porém, o diversionismo atuou em prejuízo das pautas que alimentam Lira.

O presidente da Câmara tem como prioridade zero de sua gestão a consolidação do desmonte lavajatista com a desidratação das instituições de controle. Basta ver o grupo de trabalho por ele instalado na semana passada que tem por objetivo promover mudanças na legislação eleitoral. Quinze entidades de combate à corrupção lideradas pela “Transparência Partidária” se insurgiram em carta contra o procedimento por entenderem que a discussão seria mais condizente com os ritos de uma comissão especial, como prevê o regimento, do que com um grupo de trabalho.

Nas entrelinhas da carta está o temor de que a gestão de um presidente da Casa que é réu no Supremo e exerce seu mandato com base numa liminar, tenha como resultado um afrouxamento da Lei da Ficha Limpa, da improbidade administrativa e nas prerrogativas da Justiça Eleitoral. Paradoxalmente, Daniel Silveira só não se encaixa na mesma condição de Lira porque, como mostrou Sérgio Ramalho, do “The Intercept”, o deputado acumulou licenças na Polícia Militar para não responder a processo cujo resultado o tornaria inelegível.

O plenário da Câmara que se debruçará sobre a decisão unânime do Supremo de confirmar a prisão de Daniel Silveira ainda é caudatário da folgada eleição de Lira por 302 votos. O presidente da Casa é o maior eleitor desta decisão sobre o deputado do PSL, mas a enfrenta emparedado. Se acatar a decisão do Supremo, afrontará suas convicções e de seus aliados que temem abrir a porteira para a prisão em flagrante de parlamentares. Se for na direção contrária, afrontará a Corte em que é réu e com a qual pretende construir pontes para o desmonte do que resta de lajavatismo.

Por isso, ganhará tempo. A Constituição submete a decisão do Supremo ao plenário da Câmara, mas o regimento da Casa prevê um longo trâmite por instâncias que nem instaladas estão, como a Comissão de Constituição e Justiça. Se estivesse em funcionamento sob a presidência da correligionária de Daniel Silveira, Bia Kicis (PSL-DF), Lira teria menos margem de manobra. Como não há CCJ, o processo é remetido à Mesa Diretora da Casa e, só então, ao plenário da Câmara. O regimento prevê deliberação secreta, mas o Supremo já firmou jurisprudência pelo voto aberto.

Aliados de Lira lembravam ontem a previsão regimental de apresentação de Silveira à Câmara para que o deputado permaneça sob sua custódia até a deliberação do plenário por um prazo de até dez sessões. Ao longo desse período, luminares do Centrão esperam que a pressão sobre a Casa possa vir a se diluir com o andamento do processo resultante da denúncia da Procuradoria-Geral da República que sugere até prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica a Silveira.

A denúncia, que pode ser acolhida pelo Supremo sem prévia autorização da Câmara, daria, na expectativa de alguns parlamentares, uma satisfação à opinião pública, aliviando as pressões sobre a Casa. O presidente da Câmara pode, ainda, ganhar tempo se comprometendo com a análise do processo pelo Conselho de Ética e depois, tendo em vista as emergências cotidianas, deixar o tema cair no esquecimento. O deputado Eduardo Bolsonaro, por exemplo, é alvo de dois processos de um conselho que mal funcionou nesta legislatura. A deputada Flordelis de Souza (PSD-RJ) também transita longe dos holofotes e do conselho.

Ao repassar a denúncia para o vice-procurador-geral, Humberto Jacques, Aras livrou-se do embate direto com o bolsonarismo a cinco meses da vacância da cadeira do ministro Marco Aurélio Mello. Ficou claro, porém, na denúncia, que a PGR já tinha motivos para denunciar o deputado desde os primeiros vídeos de 2020. Só o fez agora porque já não havia como contorná-la. Foi Rodrigo Janot quem pediu a prisão do então senador Delcídio do Amaral, em 2015. Ao Supremo não restou alternativa senão decretá-la. Já a letargia de Aras é tamanha que Moraes acabou acomodando a prisão num inquérito polêmico do qual o Supremo é vítima, investigador e julgador.

Com o inquérito, a Corte mantém a corda esticada com Bolsonaro. A sanfona de prazos facultada pela tramitação dos inquéritos no Supremo facilita o jogo de morde e assopra. Seu andamento pode obedecer ainda à conveniência das prioridades comuns a Lira na desidratação do controle da corrupção.

De todos os personagens deste enredo, aquele a quem o imbróglio Daniel Silveira deixou em posição mais confortável foi o piloto de jet-ski do feriado de carnaval. O presidente Jair Bolsonaro engatou um diversionismo com os decretos de liberação de armas e a promoção do spray nasal israelense contra o coronavírus, mas Silveira superou a todos. A novela sobre seu destino dividirá as atenções com o desastre governamental na pandemia.

O protagonismo de Silveira ainda ofereceu ao general Eduardo Villas Bôas o melhor parceiro para o enredo com o qual, desde sua posse no comando do Exército, reabriu o porão. Antes do carnaval, o ex-comandante colocou na pista o livro-entrevista no qual volta a defender o tuíte ameaçador ao Supremo no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A escola evoluiu na avenida vazia com a nota do ministro Edson Fachin, a ironia de Villas Bôas sobre a demora da reação e o tuíte duro do ministro Gilmar Mendes contra o deboche do general. Antes que as cinzas da quarta-feira chegassem, Silveira demonstrou que no porão destravado por Villas Bôas, não há apenas reformados fantasiados de generais, mas cidadãos cada vez mais armados de ódio à democracia. O mesmo que elegeu Bolsonaro e o mantém no poder.


César Felício: O 2022 de cada um

No cenário da sucessão presidencial, Luciano Huck busca seu nicho e ACM Neto prioriza a Bahia

São significativas as condicionantes para que o apresentador Luciano Huck entre na disputa de 2022. Huck já acumulou forças no sentido de ter equipe, conhecimento de questões de Estado, estudou o mapa das armadilhas que uma campanha presidencial em si encerra. Sabe que vai apanhar, sabe que precisa aprender a bater.

A decisão de concorrer, contudo, está travada porque coube a Huck a bênção de enfrentar o raro dilema de ter possibilidades interessantes de crescimento abertas nas duas vertentes de sua vida: tanto no mundo do entretenimento quanto no da política. O que quer que aconteça, precisa ocorrer este ano.

Uma das condicionantes para entrar na guerra sucessória é o cenário político. Huck não quer entrar na disputa para dividir o que se convenciona chamar de centro. Se o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), mantiver a disposição de se candidatar e consolidar seu nome na nominata dos candidatos, será calculado o risco de se fragmentar o campo que rechaça simultaneamente o bolsonarismo e o petismo. É bem verdade que o apresentador de TV chega a 11% em algumas pesquisas de intenção de voto e Doria não passa de 4% ou 5%, mas, como disse um velho político baiano em conversa com esta coluna, “pesquisa a dois anos de eleição é como apresentar teste de covid-19 do mês passado para viajar”.

No panorama atual, ainda que Doria seja visto como uma pessoa que acerta na ação, mas erra na forma de apresentá-la, como ficou evidente na questão da vacinação, o diagnóstico é que o governador paulista tem muitos trunfos na mão. Só não será candidato se não quiser. E se a razão para ele não querer ser candidato for a perspectiva de uma reeleição inexorável de Bolsonaro, a Huck também não interessa muito concorrer nessa perspectiva. O empresário é pragmático. Analisa uma candidatura competitiva, não um apostolado.

O que mantém acesa a possibilidade de uma candidatura Huck é o vácuo de representatividade que se abriu no país depois do vendaval da Lava-Jato. A queda das empreiteiras e das campeãs nacionais mudou a relação entre o empresariado e a política. Os políticos de hoje, em geral, clausuraram-se na exploração do Estado para sobreviver. Há os que sofisticam esquemas de rachadinhas, há os que drenam fundos eleitorais, há os que se cacifam com as emendas parlamentares, com o Orçamento loteado.

No meio empresarial, a implosão da interlocução privilegiada entre empresas e meio político gerou uma dispersão. Há um núcleo de dirigentes da velha estrutura empresarial, as confederações e federações, vocacionadas desde sempre para o lobby, que talvez não tenha no mundo real a importância que aparenta ter. O que se chamava no passado de “classes conservadoras”.

Há um meio mais novo, muito ligado ao comércio e à área de serviços, cavador de oportunidades, ativo nas redes sociais para defender o atual governo. Tanto o primeiro grupo como o segundo são pilares do bolsonarismo.

Há um terceiro grupo, que sempre antagonizou com o primeiro, nucleado em centros de estudos, uns vinculados à indústria, outros, que predominam, dos setores de serviço e financeiro, que não estão, nunca estiveram e não estarão com Bolsonaro. É grande a preocupação nesta vertente com a falta de compromisso governamental com educação e meio ambiente. Persiste o temor com as veleidades autoritárias do presidente.

E por fim existe um quarto grupo, ligado a novas tecnologias, inovação, startups, unicórnios, muito ocupado para pensar em política, Huck poderá, quem sabe, representar o terceiro e o quarto grupo.

ACM Neto

2022 não é apenas ano de eleição presidencial. Há o 2022 de cada um, e não é possível entender os movimentos recentes do ex-prefeito de Salvador Antonio Carlos Magalhães Neto sem pensar no quadro baiano e nas idiossincrasias de “Neto”, como é usualmente chamado no Estado.

Segundo um dos mais próximos operadores políticos do avô do ex-prefeito, o velho ACM, Neto sabe que a eleição baiana é muito dependente do quadro nacional. O alinhamento do PP ao bolsonarismo, cada vez mais nítido, afeta o cenário baiano. É um complicador não só para a manutenção da aliança local entre PT e PP, como para a desincompatibilização do governador petista Rui Costa.

O PT exerce na Bahia uma hegemonia de 16 anos com vitórias sempre no primeiro turno. Para 2002 o candidato está posto, é o senador Jaques Wagner. Mas os petistas se ancoram no Estado em estruturas alheias: a do PP do vice-governador João Leão e a do PSD do senador Otto Alencar. A dependência da Bahia do quadro nacional joga contra o PT.

O PSD está com ambições altas em 2022. O presidente da sigla, Gilberto Kassab, estimulou Otto Alencar, cacique baiano do partido, a se posicionar como uma opção para compor chapa presidencial. No que depender da influência de Alencar, distante do bolsonarismo. “Em 2022 provavelmente não estarei na aliança em que estiver o presidente Bolsonaro. Espero que o PSD não faça isso”, afirmou. O peso baiano no PSD não é pouco: um senador, seis deputados federais, nove estaduais e 110 prefeitos.

Se o PSD pode se afastar do PT, o PP certamente o fará, e é desse partido que Neto precisa se aproximar para sua própria viabilização.

Uma vitória de Baleia Rossi na Câmara, representando a antecipação de uma aliança PSDB/MDB/DEM para 2022 não traria dividendos para Neto, porque não abriria oportunidades de se obter vantagens com as contradições da aliança petista no Estado.

Bolsonaro é impopular em Salvador. O ex-prefeito da capital precisa manter próximo de si o bolsonarismo, já que sem o PP ele não tem capilaridade para a campanha, mas não tão próximo a ponto de se comprometer com um político com rejeição tão alta em seu reduto político.

A eventual ida do deputado federal João Roma (Republicanos-BA) para a pasta da Cidadania seria providencial. Embora de outra sigla, Roma é ligadíssimo a Neto. O ex-prefeito teria o bônus de ter um aliado no Planalto sem o ônus de amarrar-se. De quebra fortalece sua união com o partido da Universal.

Até aí é cálculo. A idiossincrasia entra no hábito de Neto surpreender aliados. Ele não gosta de ir para o sacrifício. Em 2018, chocou seus apoiadores quando desistiu na última hora de disputar o governo estadual. Seu abandono a Rodrigo Maia, na semana passada, despertou a lembrança do episódio de dois anos atrás em muitos de seus interlocutores na Bahia.