boulos

Celso Rocha de Barros: São Paulo deixou Bolsonaro sem teto

Reorganização da esquerda pode ser sintoma da volta da política brasileira ao normal

Com a passagem de Guilherme Boulos (PSOL-SP) para o segundo turno da eleição em São Paulo, Jair Bolsonaro tornou-se um sem-teto na política paulistana. Bruno Covas (PSDB-SP), que terminou em primeiro e disputará a prefeitura com Boulos, também é adversário do governo federal. O candidato de Bolsonaro, Celso Russomanno, tornou-se um sem-piso depois de receber o apoio presidencial.

O líder sem-teto realizou um feito notável. Sem o apoio do PT –cujo candidato, Jilmar Tatto, teve 8% dos votos válidos na boca de urna Boulos conseguiu atrair a maior parte dos eleitores que deram a Prefeitura de São Paulo à esquerda em três oportunidades. A campanha de Boulos foi eficiente em linguagem e proposta, e a escolha de Luiza Erundina como vice não poderia ter sido melhor: acrescentou experiência administrativa à candidatura e fez o aceno certo ao eleitorado petista.

Boulos foi o mais surpreendente dos "meteoros vermelhos", expressão criada por Vinícius Torres Freire para descrever os candidatos fortes de esquerda em uma eleição dominada pela centro-direita. O outro, que se saiu melhor do que Boulos, inclusive, mas tinha apoio do PT, foi Manuela D’Ávila (PC do B-RS), candidata a vice-presidente na chapa de Fernando Haddad em 2018. Manuela deve ir ao segundo turno em Porto Alegre com impressionantes 40% dos votos válidos.

Os meteoros vermelhos parecem dignos de nota porque 2018 foi uma grande vitória da extrema-direita. Mas a reorganização da esquerda, que ainda está em sua fase inicial, pode ser só mais um sintoma da volta da política brasileira ao normal depois do surto de 2018. Esquerda no segundo turno em Porto Alegre, Recife, Belém, São Paulo, nada disso é novidades histórica.

No geral, a eleição foi o oposto da anterior, em que o Brasil elegeu o extremista Jair Bolsonaro. Desta vez, os outsiders ficaram mesmo outside. Boulos e Manuela, João Campos e Marilia Arraes, ACM Neto e Bruno Covas, Alexandre Kalil e Eduardo Paes, representam a renovação em seus respectivos campos democráticos. Não são outsiders como o paulista Mamãe Falei ou os cariocas Mamãe Nadei e Mamãe Sofri Impeachment. Só o candidato Mamãe Fui no Motim na Polícia segue com chances em Fortaleza.

No geral, o eleitorado votou com a memória da competência passada, o que deve se confirmar quando Eduardo Paes derrotar Crivella no segundo turno do Rio de Janeiro. Mesmo onde os “meteoros vermelhos” foram bem, há memórias de boas administrações progressistas.

De qualquer forma, ficou claro que o eleitorado de esquerda ainda está aí, esperando que as lideranças e partidos se reorganizem para oferecer-lhe candidaturas competitivas. Não é nada estranho em um sistema multipartidário, nem um pouco estranho no pós-Lava Jato. Como o exemplo da eleição carioca mostrou, é um processo difícil e cheio de arestas. Mas é muito improvável que a reorganização pós-Lava Jato da esquerda termine tão mal como a da direita, que nos deu Bolsonaro em 2018.

A eleição para vereadores talvez mostre padrões mais claros de renovação, em especial pelos novos vereadores e vereadoras negras. Se mais gente com cara de Marielle e menos gente com cara de seus assassinos sair forte esse ano, 2018 terá mesmo ficado para trás.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Pedro Fernando Nery: O que é boa política?

Nas eleições, não há espaço para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas

Os EUA decidem hoje o seu próximo presidente. Hillary Clinton, a perdedora 4 anos atrás, reflete no livro What Happened sobre as campanhas eleitorais da nossa era. Estudos mostram que o noticiário daquela eleição concentrou uma parcela insignificante da cobertura às propostas formuladas por especialistas do seu time. Acusações, questões de personalidade e propostas mirabolantes de Trump ocuparam quase toda a cobertura. Hillary dá a entender que se arrepende: a boa política pública pode não ser a boa política.

Depois de encarar promessas populistas à direita (de Trump) e à esquerda (do correligionário Sanders nas primárias), ela parece se render à máxima de que good policy is not good politics: não há espaço nas eleições para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas. Ela chegou a cogitar apresentar um programa de renda básica universal, mas desistiu por não conseguir fechar a conta do custeio. Na autobiografia, lamenta: deveria ter lançado a proposta como aspiração, e solucionar os detalhes depois.

Na coluna anterior, tratamos das promessas de Guilherme Boulos para a prefeitura. Mas as promessas hiperbólicas não são exclusivas da esquerda. No momento em que busca sua reeleição, Trump concluiu parcela ínfima do prometido muro (e não fez o México pagar por ele).

Na quinta-feira passada, o ministro da Economia declarou: “Há uma narrativa de que eu prometo e não entrego”. É uma referência pertinente de promessas à direita: em 2018, Paulo Guedes prometeu zerar o déficit primário ainda no primeiro ano de governo (o valor no vermelho foi de R$ 95 bilhões) e privatizações acima de R$ 1 trilhão (o secretário da área já se demitiu).

Na corrida à prefeitura de São Paulo, as promessas de Boulos não são menos factíveis que as de concorrentes. Adversários prometem cortes de impostos que esbarram em proibições parecidas, por exemplo, quanto à Lei de Responsabilidade Fiscal. Juras de privatização esbarram nas dificuldades enfrentadas por Guedes.

Leitores comentaram a coluna de Boulos concordando com inconsistências do programa, mas explicando ver no candidato uma chance maior de concretização de uma determinada plataforma. Efetivamente, o “vou fazer” dos candidatos é na prática um “quero fazer” – e para muitos eleitores querer já é um diferencial em relação a outros postulantes. Seja a promessa de renda básica e passe livre ou corte de impostos e privatizações.

Especificamente em Boulos, há mesmo um compromisso claro com redução da desigualdade – Jeff Nascimento, da Oxfam, destaca de forma ilustrativa que entre os principais candidatos não há programa que chegue perto em menções a “desigualdade” ou “social”. Como mostram os dados do Atlas do Desenvolvimento Humano, a capital paulista tem as 5 regiões de maior desenvolvimento humano do País, quase “gabaritando” esta versão do IDH. Uma prosperidade que divide espaço com privações, um abismo que tende a aumentar com a devastadora crise atual.

Uma gestão Boulos poderia, sim, promover transformações, ainda que não na magnitude que alguns esperam – especialmente sem brigar pelo aumento da tributação dos mais ricos e a reforma da previdência, como argumentei. De fato, a campanha aponta que os valores envolvidos no programa são bem mais modestos do que alegam os adversários, reproduzidos na coluna.

Realidade
À medida que o plano de governo do PSOL se torna mais realista, também será menos sedutor para os eleitores. Uma renda básica para 3 milhões, em continuação ao Auxílio Emergencial, e passe livre para todos sem emprego formal poderia superar os R$ 25 bilhões anuais. Nos últimos dias, a campanha colocou parte da plataforma de forma mais clara: um programa mais factível, e naturalmente menos abrangente.

O número de 3 milhões de “atendidos” com a renda básica não rivaliza com os 3,4 milhões que receberam o Auxílio Emergencial na cidade: na verdade, seriam 3 milhões de atendidos apenas indiretamente, e 1 milhão de benefícios de fato. Uma redução de pelo menos 70% no número de pagamentos em relação ao Auxílio Emergencial, ou 7 milhões a menos de “atendidos” seguindo o método proposto.

O passe livre para desempregados segue pouco claro: os mesmos 3,4 milhões do auxílio emergencial não têm emprego formal, uma conta com potencial de vários bilhões. Havendo uma lógica limitação, há entre os eleitores, inevitavelmente, muitos desempregados que não vão receber o passe livre, assim como há favorecidos pelo Auxílio que ficarão de fora da renda básica. O hiato entre aspiração e realidade será ainda maior sem aumentos significativos na arrecadação do IPTU, ISS e contribuição previdenciária, o que nenhum candidato admite.

Propor boa política pública não é a boa política eleitoral. É uma escolha sensível para todas as campanhas, principalmente uma vibrante como a de Boulos.

  • Doutor em Economia

El País: "É hora do MTST ocupar a política. Estamos em uma encruzilhada histórica, não é possível se omitir", diz Boulos

O pré-candidato à Presidência pelo PSOL diz que pretende construir uma nova forma de fazer política, que enfrente o mercado e os bancos, com a participação popular

Por Talita Bedinelli, do El País

A trajetória de Guilherme Boulos (São Paulo, 1982) poderia ser confundida com a de qualquer outro jovem de esquerda crescido na classe média paulistana. Filho de médicos, ele entrou no curso de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e especializou-se em psicologia. No ano passado, concluiu um mestrado em psiquiatria. Mas, diferentemente da maioria dos jovens militantes de esquerda que circulam pelos corredores da fefeleche uspiana, ele não ingressou no movimento estudantil. Preferiu as bases do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que ocupa terrenos vazios nas metrópoles como forma de pressionar o poder público a disponibilizar moradia para quem não tem casa própria.

Seguindo os passos de Luiz Inácio Lula da Silva, e com a benção do ex-sindicalista, de quem é amigo, pretende agora levar sua participação para além do movimento social. Filiou-se ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) para disputar a Presidência em outubro. E, assim como o petista antes de ganhar a quarta eleição presidencial que disputava, vai enfrentar o desafio de ser o que tem o discurso mais radical da competição. Sua estratégia será a de apostar no cansaço das pessoas com a velha política e apresentar "uma nova forma de fazer política", lastreada na participação popular. Assim, garante, será possível enfrentar o mercado e os interesses do Congresso Nacional.

Pergunta. Como foi a decisão de se candidatar?
Resposta. Não foi uma decisão apenas individual. Eu atuo no MTST há 16 anos, na Frente Povo Sem Medo, e, cada vez mais, com o agravamento da situação política do país, a política transbordou para as ruas. Para os movimentos sociais se tornou impossível falar apenas da sua pauta específica. Isso nos levou para um debate político mais amplo, que foi criando condições para uma aliança. Foi nos levando a uma aproximação com o PSOL, um partido que manteve uma coerência muito importante. A aliança que nós construímos, entre partido e movimento social, é algo, eu diria, inédito na política brasileira, ao menos no último período.

Você não fazia parte da militância do PSOL?
Minha relação com o PSOL vem de alguns anos, mas de se encontrar nas lutas. Foi uma aproximação que foi sendo construída com o tempo, mas a filiação ocorreu há poucos meses.

Setores do partido inicialmente ficaram insatisfeitos com a sua pré-candidatura. Diziam que não houve diálogo para escolher seu nome e temiam sua proximidade pessoal com o Lula, quando o PSOL vem justamente da crítica ao PT, às alianças e aos problemas éticos do partido. Como vê isso?
O PSOL se construiu a partir de críticas ao PT e nós, o MTST, também temos críticas ao PT em nossa trajetória. O MTST nunca fez parte do Governo. Sempre manteve mobilizações nos governos petistas. Aliás, muita gente que estava no Governo com o PT na hora de distribuir os cargos não estava no Sindicato dos Metalúrgicos às vésperas de o Lula ser preso. Nós fomos aqueles que não estávamos no momento de distribuir o poder, mas estávamos solidários no sindicato. Isso diz muito sobre o tipo de esquerda que a gente representa e quer construir. Em relação às questões internas do PSOL, é natural e desejável que todo partido tenha pluralidade. Ao mesmo tempo, o PSOL por suas instâncias tomou uma definição. No dia 10 de março, por mais de 70%, o partido decidiu pela nossa candidatura. E a partir deste momento o PSOL está unido e esta é uma página virada.

O MTST é um movimento que sempre se afirmou apartidário. Vocês não temeram que essa proximidade com um partido político pudesse desagradar a base?
Nós fizemos um debate amplo e cuidadoso dentro do MTST. Com os 14 Estados em que o MTST está presente, com as coordenações, com a base do movimento. E a definição pela nossa candidatura foi consensual. Foi uma decisão do movimento de compor uma aliança. E o movimento entra por inteiro por entender que estão colocados desafios políticos. Estamos em uma encruzilhada da história brasileira e não é possível se omitir. O MTST entendeu que era o momento de ocupar a política também. De ocupar outros espaços para apresentar outro projeto de sociedade e de país. Isso não prejudica em nada a autonomia do movimento.

O MTST foi o primeiro a chegar com a militância na porta do sindicato e você esteve perto de Lula todo o tempo na véspera da prisão dele. Por que houve essa decisão de ir pra lá?
Entendemos que o país vive hoje a crise democrática mais grave desde a ditadura militar. É um momento muito preocupante. Uma escalada de violência política que se expressou sobretudo com o assassinato covarde e bárbaro da Marielle Franco, no Rio de Janeiro, que foi uma execução política. Essa crise democrática se expressa ainda com o avanço da militarização da sociedade na política, com a intervenção militar no Rio de Janeiro, com as declarações do comandante Villas Bôas às vésperas do julgamento do STF, e a politização do judiciário. Quando setores do Judiciário não fazem seu papel de forma isenta, para julgar com base em provas, respeitando presunção de inocência e se contaminam por um jogo político partidário, isso é muito grave. E foi isso que aconteceu no julgamento do Lula. Ele foi preso em uma prisão política. Estar em São Bernardo do Campo significava estar do lado certo da história, estar em defesa da democracia brasileira. Defender a liberdade do Lula não é uma defesa que caiba apenas ao PT, é de todos aqueles que são de esquerda e defendem a democracia no Brasil.

Você foi sondado pelo Lula para se filiar ao PT?
Tenho uma relação de muito respeito com o Lula, de admiração. Construímos uma relação política a partir do MTST. Mas eu tenho as minhas posições e sempre expressei para ele de forma transparente e clara. Inclusive as diferenças que tenho em relação ao PT.

Como quais?
Não ter enfrentado temas essenciais como uma reforma política, a democratização das comunicações, uma reforma tributária, combate a privilégios do andar de cima. Nunca deixei de colocar isso publicamente, nem em conversas com o próprio Lula. As posições que tenho e que expresso há algum tempo não são encampadas pela maioria do PT. Isso se expressa, por exemplo, na questão das alianças. Depois de um golpe como o que ocorreu, fazer alianças com o PMDB, como se está fazendo em vários Estados, o que para nós desde o princípio era uma política errada, agora para nós é algo completamente inadmissível. O Lula sempre soube dessas diferenças e sempre respeitou isso.

Existe algum espaço para uma candidatura única da esquerda nesta eleição?
Hoje nós temos uma crise democrática muito profunda e é importante que haja uma unidade democrática. A esquerda precisa ter a maturidade de estar junta nas questões fundamentais. Mas isso não pode significar jogar para baixo do tapete diferenças de pontos de vista, de projetos e de futuro que existem e são legítimas. O pensamento único não deve fazer parte da trajetória de quem quer transformar a sociedade. O que está colocado neste momento é a construção de uma unidade democrática e temos investido em relação a isso.

Não pode ser um erro estratégico dividir os votos?
Acho curioso quando se fala da pulverização dos votos da esquerda e não se fala da dos votos da direita. A direita tem mais de dez candidaturas hoje no Brasil.

Verdade, mas tem Jair Bolsonaro, que é um nome forte e pode chegar ao segundo turno.
Há uma quantidade enorme de candidaturas no espectro da direita. Algumas são Temer puro sangue, outras Temer disfarçado, mas todas defendem a política deste Governo que tem 4% de aprovação na sociedade. Não me parece razoável supor que o brasileiro vai colocar no segundo turno duas candidaturas que expressem a política do Governo mais rejeitado da história recente do país. Ao mesmo tempo, reitero: acho que a esquerda tem que discutir construções de unidade e programas. Isso não pode ser fruto de imposições. De aliança por tempo de televisão, de uma velha lógica de fazer aliança. Tem que ser fruto de um debate programático.

E quais seriam essas diferenças que impedem uma união neste momento?
Queremos pensar um projeto para a próxima geração. Um dos erros da esquerda foi de apenas se organizar ou construir programas e alianças pensando a eleição seguinte. Isso nos deixa vulneráveis em relação às mudanças do cenário político. Tem que ter uma democratização profunda da política brasileira, que aproxime o poder das pessoas. Isso significa colocar o povo no jogo, significa plebiscitos, referendos, conselhos. Formas de participação em que as pessoas não se limitem a apertar um botão a cada quatro anos. O Brasil se tornou ingovernável. Acreditamos que não dá para governar do ponto de vista das transformações sem jogar o PMDB pela primeira vez na Nova República na oposição. Este é um ponto que envolve trazer o povo para efetivamente apitar no poder.

E como fazer isso, em um Congresso onde o PMDB tem uma das maiores bancadas, onde há um centrão que tem poder de voto? Como se Governa sem ter a maioria dentro do Congresso?
Eleição não é cheque em branco. Não quer dizer que o político eleito pode fazer o que lhe der na telha. Seja o presidente da República sejam os representantes do Congresso Nacional. O povo tem que ser ouvido e consultado permanentemente. Isso faz bem à democracia. Antes que se diga que isso é ilusório, já existe em vários países do mundo. A Suíça é a que mais faz plebiscito no mundo. A Constituição do Brasil prevê isso há 30 anos e só houve dois plebiscitos. Qual é o medo que se tem do povo participar do jogo cotidiano da política? A sociedade tem que estar mais mobilizada, mais atenta ao que está acontecendo. O Congresso não vai abrir mão de seus próprios privilégios. Não quero diminuir a legitimidade do Congresso, nem da Presidência ou de qualquer outro cargo eletivo. Esta representação precisa funcionar. Agora, não podem decidir tudo. Não é cheque em branco. O povo tem que ser escutado e ter o poder de decisão.

Mas não é possível se regular tudo por plebiscito e referendo. O cotidiano não é mais complicado do que isso, especialmente em um Congresso cada vez mais conservador?
Eu acredito que há espaço para o crescimento do campo progressista neste processo eleitoral. O PSOL está apresentando uma chapa ampla de deputados e senadores no Brasil inteiro. Este Congresso está absolutamente desacreditado. E a renovação que nós esperamos é uma renovação que não seja apenas nominal, mas na forma de fazer política. Depois, vamos colocar as coisas claras na mesa: governar, ter maioria parlamentar, nos termos do Congresso atual significa participar de um balcão de negócios nada republicano. Significa comprar partidos em troca de cargos, ministérios, pedaços em estatais que muitas vezes se transformam em negócios escusos. Este é o modelo de governabilidade. Se alguém disser que vai mudar o Brasil com esse Congresso, negociando novamente, desconfiem. Pra nós, só vale a pena entrar no processo eleitoral se for para fazer algo profundamente diferente disso. Nós entendemos que essa forma é a participação popular. Plebiscitos e referendos são uma maneira, mas também com conselhos de políticas setoriais deliberativos. Um conselho de educação com a participação de professores, estudantes, técnicos da área, que tenha poder deliberativo sobre política de educação também orçamentária.

Mas como presidente como seria a sua relação com o Congresso, que ainda assim vai ter que decidir muitas coisas?
Temos que separar o joio do trigo. Existem parlamentares efetivamente representativos. Existem parlamentares extraordinários no Brasil que têm um trabalho comprometido com a maioria do povo brasileiro, de reconhecida honestidade, e existem máfias que atuam por meio de parlamentares no Congresso nacional. Nós não vamos nos submeter a máfia alguma, não vamos aceitar negociação do tipo a bancada ruralista não vai dar voto se fizer um decreto de demarcação de terras indígenas. Não vamos nos submeter a esse tipo de chantagem.

Se você, então, como presidente, faz uma demarcação de terra indígena e o Congresso trava a pauta, o que você vai fazer?
A sociedade precisa ser mobilizada. Agora, para um governo como o nosso ser eleito, isso já é a expressão de uma mobilização da sociedade. Para propostas como a que a gente defende ganhem corpo e tenham condições de ganhar uma eleição no Brasil significa que já houve uma ativação no processo de mobilização da sociedade. Isso começa já. O próprio processo de campanha já tem que começar assim. A nossa campanha vai ser uma campanha de mobilização, um debate de projeto para o país.

E você acha que é possível construir isso até outubro?
A sociedade está num processo de incertezas, de encruzilhada, o cenário é muito aberto. Tudo é possível. Veja que hoje quem ganha as eleições quando se tira o Lula são os indecisos, os nulos e os brancos. Muito a frente do Bolsonaro, que é colocado como o primeiro nas pesquisas. O nível de indefinição na sociedade, de insatisfação e cansaço com esse sistema político é enorme. Se as pessoas identificarem numa proposta a expressão da nossa indignação com o sistema político, se elas verem naquilo algo que não compactua com aquela velha forma de fazer política e está disposta a fazer de um outro jeito, isso pode, sim, gerar engajamento.

Seu discurso lembra muito o do PT e do Lula no início. E Lula perdeu a eleição presidencial três vezes. Em 1998, quando ele disputava com o Fernando Henrique, se dizia que se ele ganhasse os movimentos de moradia invadiriam as casas das pessoas e a classe média entrou em pânico. Você vem de um movimento que ocupa imóveis, que entrou recentemente no tríplex do Guarujá. Não teme que o discurso mais radical e sua atuação política assustem uma camada da população?
Nós não vamos fazer campanha guiada por marqueteiro. Isso vai assustar tal setor, tirar voto aqui ou acolá... Francamente, só vale a pena entrar em um processo como esse se for para sair com mais dignidade do que se entrou. Eu não vou abrir mão das bandeiras que eu acredito. O PSOL e essa aliança de movimentos populares não vão abrir mão das suas bandeiras. Aliás, muitas pesquisas mostram que isso não é um passivo eleitoral. Se nós olharmos o cenário eleitoral, vemos que onde a esquerda tem tido sucesso é onde não tem tido medo de dizer o que quer e onde quer chegar. Porque as pessoas estão descrentes desta política da maquiagem, onde os candidatos colocam uma máscara até as eleições e depois tiram e governam para os grandes interesses econômicos. As pessoas percebem quando é um discurso fabricado sobre medida. Também queria acrescentar que essa campanha vai ser uma oportunidade de quebrar preconceitos. O problema da moradia no Brasil é um escândalo. Nós temos seis milhões e duzentas mil famílias sem casa e mais de sete milhões de imóveis ociosos. Tem mais casa sem gente do que gente sem casa. Nós vamos mostrar para o país que quem ocupa não ocupa porque quer levar uma vantagem, porque é vagabundo e não quer trabalhar, como um certo preconceito difundido no senso comum tenta fazer crer. Uma mãe que leva seus filhos para uma ocupação, pisando no barro, para baixo de lona, não faz isso porque acha bonito. Faz isso porque todo final do mês tem que enfrentar a dura opção entre pagar aluguel e botar comida na mesa. Essa é a realidade de milhões de famílias nas periferias. É preciso desmistificar as ocupações. Na nossa campanha eu não vou em nenhum momento renegar aquilo que eu represento e o que eu fiz nos últimos 16 anos.

Então não pensa em fazer um aceno de não sou radical? Um aceno ao mercado como fez a campanha de Lula para que ele vencesse pela primeira vez?
Para governar para as maiorias no Brasil é preciso enfrentar o 1%. Não tem outra saída. Na situação em que estamos hoje não tem espaço para se avançar um milímetro em conquistas sociais, em avanços de direitos, em políticas públicas, sem enfrentar os privilégios do 1%. É preciso regular o sistema bancário.

A própria Dilma afirmou acreditar que sua derrocada começou pela falta de apoio do mercado. Como vai ser a sua relação com os bancos?
Se for para um presidente eleito governar para o mercado, cancela as eleições de uma vez. Deixa o mercado indicar. Reúne os quatro maiores bancos do país e define quem é o presidente do Brasil.

Mas você vai ter que conversar com os bancos...
Nós podemos conversar com quem for. A questão é: nós não vamos abrir mão de uma política de que banco vai ter que pagar imposto, de reduzir taxa de juros, esse spread bancário criminoso e violento, que é o maior do mundo. Esses privilégios têm que ser enfrentados. Não acho que a Dilma caiu porque fez o enfrentamento aos bancos. Acho que, em parte, ela tenha caído também porque não buscou ter um lastro popular. Para fazer política de enfrentamento com quem sempre mandou no Brasil é preciso estar lastreado. Eu não estou aqui defendendo inconsequências ou dando soluções mágicas, que eu vou chegar lá e vou fazer tudo o que os outros não fizeram. Isso é balela. Mas a forma de fazer os enfrentamentos que são necessários hoje no país é lastrear a política nas maiorias sociais. Em mobilização permanente da sociedade. Temos que levar o debate sobre tributação dos bancos. Este debate não pode ser feito entre o Banco Central, o representante dos banqueiros e o Ministério da Fazenda.

E qual seria a linha de sua política econômica?
Nossa política é primeiro a do enfrentamento das desigualdades. Uma política para enfrentar o abismo social brasileiro. Dado recente da Oxfam mostrou que seis bilionários têm mais riqueza do que cem milhões de pessoas no país. Isso precisa ser enfrentado. Precisamos de um novo modelo de desenvolvimento. O Brasil viveu nos últimos 30 anos uma reprimarização. Hoje a nossa pauta produtiva e de exportação está mais voltada para agroindústria, mineração, ligada a matérias-primas do que era 30 anos atrás. Nós hoje precisamos de um modelo de desenvolvimento econômico que não seja predatório, que seja totalmente conectado com questões ambientais, que respeite o direito das populações tradicionais. Um modelo que reveja a matriz energética e de transportes no país, que aumente as fontes de energias renováveis. Queremos construir um novo modelo de desenvolvimento, que invista em infraestrutura social. Não apenas para o capital, para a produção.

E como fazer isso?
Isso passa por uma retomada de investimento público no Brasil. Não se sai do abismo econômico que nós estamos sem investimento público. A ideia de ajuste fiscal que foi aplicada já em 2015, no Governo Dilma com Joaquim Levy, e depois aprofundada de maneira brutal depois do golpe parlamentar, fracassou por completo. Ela pressupõe que reduzir investimento público vai melhorar a situação fiscal. O que nós vimos foi o contrário. Reduzir investimento público fez com que a economia desaquecesse ainda mais, reduzisse a arrecadação e deteriorasse ainda mais a condição fiscal. Esse investimento em estrutura social e políticas públicas é o que pode permitir geração de emprego.

E como aumentar os investimentos em um Estado quebrado e com uma dívida pública altíssima que só cresce?
A dívida pública do Brasil não é altíssima, é abaixo de todos os padrões internacionais. Está em 74% do PIB. A dívida dos Estados Unidos está acima de 100% do PIB, da maioria dos países europeus é isso. Proporcionalmente aos padrões internacionais, é baixa. Nenhum país do mundo, tratando-se dos países de capitalismo avançado, se desenvolveu sem investimento público e sem endividamento. O problema da alta da dívida brasileira são duas questões: taxas de juros absolutamente fora dos padrões internacionais e a falta de crescimento econômico. A proporção dívida/PIB aumenta quando a taxa de juros para crescimento da dívida é maior do que a taxa de crescimento [do país]. Uma política de crescimento econômico reduz a dívida. Tivemos processo de redução da dívida recente, durante o Governo Lula, aliás com taxas de juros altíssimas naquele período, por conta do crescimento econômico.

E de onde vem o dinheiro?
Precisamos fazer uma reforma tributária profunda. A estimativa dos economistas que trabalham conosco é de que se poderia se arrecadar 120 bilhões ao ano só tributando lucros e dividendos, com uma escala progressiva, o que corresponde a 2% do PIB. Imposto sobre grandes fortunas, que é uma tributação sobre imposto que está parado, poderia render até 0,5% do PIB. Aumentar a alíquota de imposto sobre herança também aumentaria a arrecadação. É possível se fazer hoje com que se reduza o pagamento de impostos pelos mais pobres e pela classe média, aumentando, por exemplo, a faixa de isenção do imposto de renda e fazendo com que comecem a pagar impostos para financiar o Estado brasileiro aqueles que estão no topo da pirâmide, o 1%, e você ter condições de sustentar políticas públicas a partir daí. Fazer com que rico comece a pagar imposto é uma questão de justiça tributária.

Como vê a política de desoneração de impostos adotada pelos governos petistas?
Nós não defendemos esta política de desonerações. Aliás, achamos que isso foi um dos grandes erros da política econômica adotada pela Dilma no seu primeiro mandato. Nós achamos que a economia deve se construir de outra maneira, com um papel pró-ativo do Estado, com um papel fundamental de investimento público e uma política econômica voltada para a distribuição de renda e o desenvolvimento de outras formas produtivas que estejam sintonizadas com os interesses sociais e não das grandes corporações econômicas.

Vocês são críticos da reforma da Previdência. Mas a previdência representará um problema para o país. Como vocês pretendem lidar com essa questão?
A previdência tem que ser vista como uma política de segurança social, de assegurar renda para o povo mais pobre. A reforma proposta pelo Temer é absolutamente criminosa, propõe que as pessoas se aposentem no caixão e não mexe nos privilégios essenciais. Nós queremos mexer, sim, na previdência. Mas nos privilégios de altas cúpulas do poder que ganham acima do teto constitucional. Nós queremos mexer nos privilégios dos militares que têm uma previdência especial altamente injustificável, muito mais onerosa proporcionalmente que a dos civis. Nenhum desses pontos entrou na reforma do Temer. Queremos, sim, cobrar a dívida das grandes empresas com a previdência.

Você como psicanalista, como avalia o discurso do Bolsonaro em relação à violência?
Nós vivemos em um período de muita insegurança da sociedade. Uma crise econômica, política, ética, uma falta de perspectiva de futuro. Esse sentimento geral de insegurança, incerteza, gera medo nas pessoas sobre o amanhã. A psicanálise nos mostra que frequentemente o medo se converte em agressividade, em intolerância. Quando somos guiados pelo medo, somos presas fáceis de um discurso agressivo. Nós mesmos reproduzimos esse discurso como uma formação reativa de nosso medo, uma forma de escondê-lo, de abafá-lo. É aí que o Bolsonaro entra. Ele entra como alguém que mexe nos piores sentimentos das pessoas, que canaliza pela via do medo, do ódio, a fragilidade que as pessoas estão em um momento como esse. Ele é uma síntese do que a sociedade brasileira tem de pior, dos sentimentos mais negativos das pessoas em um momento de crise. Mas esse não é o único caminho e é isso que queremos mostrar na nossa candidatura. A insegurança própria desses momentos não flui apenas pelo caminho do medo. Ela flui também pelo caminho da esperança. Ela pode desaguar na construção de um novo projeto de futuro, que esteja baseado não em ódio, mas em valores, em solidariedade, em estar junto com as pessoas. O papel de uma alternativa política no Brasil hoje tem que ser a política da esperança, de construir senso de comunidade. É isso que vai nos dar uma alternativa de futuro.


Sérgio Fausto: A velha 'nova esquerda'

Cresce no País apoio a políticas e candidatos antidemocráticos. Esse filme não tem final feliz

Guilherme Boulos teve sua candidatura à Presidência recentemente lançada pelo PSOL. Quem o apoia diz que ele representa a “nova esquerda”. Só se o critério for etário. Boulos de fato ainda não chegou aos 40 anos e tem adeptos na juventude. Mas seu pensamento é velho. Basta dar uma olhada no que diz e escreve. A quem se dispuser recomendo a entrevista publicada no livro A Crise das Esquerdas (Civilização Brasileira, 2017).

Ali ele faz o elogio das experiências bolivarianas Na sua visão, teriam promovido grandes avanços para as massas populares, em contraste com o reformismo aguado dos governos petistas no Brasil. A explicação para a imensa crise que se abate há anos sobre as mesmas massas populares na Venezuela estaria na perda da liderança política de Hugo Chávez e na consequente falta de condição política para o país avançar na trilha das expropriações de propriedades privadas e controle total da economia pelo Estado, aberta sob o comando do falecido líder. Só uma “ruptura revolucionária” permitiria à Venezuela superar a dependência do petróleo e construir o socialismo do século 21.

Nem lhe passa pela cabeça que a tragédia do país vizinho possa ter alguma relação com a destruição produtiva acarretada justamente pelas medidas que ele elogia. Na Venezuela grande parte da população passa fome porque os governos chavistas dizimaram a agricultura do país e mataram a galinha dos ovos de ouro, a PDVSA, estatal do petróleo, que hoje produz bem menos do que ao início do ciclo “revolucionário”. Não há oferta doméstica de alimentos nem dólares para importá-los em quantidade suficiente. Sobre a repressão crescente aos opositores do regime? Nem uma palavra de Boulos. Quanto à Bolívia, nada a declarar sobre a submissão das instituições do Estado à vontade de Evo Morales. A propósito, o presidente boliviano um mês atrás obteve da dócil Suprema Corte o direito que lhe havia sido negado no ano passado por um referendo popular em que a maioria disse não à pretensão de Morales de concorrer a um quarto mandato. Mais um líder bolivariano obcecado por eternizar-se no poder.

Ao analisar a situação do Brasil, Boulos repete surrada ladainha sobre as causas da grave crise fiscal que o País enfrenta. A solução consistiria em aumentar a carga tributária e fazer a auditoria da dívida pública sob a suposição de que parte dela se formou por conluio entre o governo e o mercado financeiro e não deveria, portanto, ser paga. Acertar-se-iam assim (perdão pela mesóclise) dois coelhos com uma só cajadada: o problema do desequilíbrio fiscal e da má distribuição da riqueza no Brasil. É um velho engano, que nenhuma liderança política ou economista de esquerda ou de direita, se minimamente preparado, subscreveria.

A carga tributária total no Brasil já é alta (precisa ser mais bem distribuída, para que os ricos paguem mais tributos, mas aumentá-la teria efeitos negativos sobre o potencial de crescimento do País, que deve ser elevado, e não diminuído). Já a dívida pública, cujo tamanho como proporção do PIB está em níveis perigosamente altos, não tem origem espúria. Ela expressa a acumulação de déficits, exercício fiscal após exercício fiscal. Essa tendência deriva em larga medida do aumento recorrente das despesas públicas, em particular da Previdência Social, nos últimos mais de 20 anos. Sim, os gastos públicos devem ser dirigidos prioritariamente às necessidades básicas da maioria da população, mas é embolorada ilusão desconsiderar os limites ao seu crescimento ou supor que dar o calote na dívida pública resolva o problema fiscal. Serviria apenas para desorganizar a economia e reativar a inflação, em prejuízo dos mais pobres.

Boulos é líder de um movimento social expressivo que luta por uma causa justa: o acesso à moradia digna para todos os brasileiros. Os fins, porém, não legitimam quaisquer meios para alcançá-los. Ele justifica as invasões com base na função social da propriedade, conceito presente na Constituição brasileira. A questão é quem define se esta ou aquela propriedade está a cumprir sua função social ou não.

Apoiado na Constituição, o líder do MTST poderia usar sua capacidade de mobilização para demandar ao Ministério Público, ao Judiciário, a parlamentares e governantes ações e programas de reforma urbana que atacassem os mecanismos de produção e reprodução da desigualdade social nas cidades. Ele, porém, optou por outro caminho, e não é ocasional que o tenha feito. A arregimentação de pessoas pobres em torno do objetivo de invadir para conquistar o direito à moradia é instrumental à sua estratégia de “construção de um poder popular” que, por acumulação de forças com outros movimentos, levará, acredita, à ruptura revolucionária em algum momento futuro. Pela mesma razão, Boulos sustenta a importância de ações de bloqueio de vias públicas. Ao inebriado revolucionário pouco se lhe dá a consequência dessas ações para a vida das pessoas comuns.

Na perspectiva da acumulação de forças rumo à ruptura revolucionária, a violência é uma necessidade histórica que se impõe cedo ou tarde. Essa ideia tem mais de um século e está no cerne do marxismo-leninismo. Na América Latina, ela se expressou ao longo dos últimos anos na formação de milícias bolivarianas armadas pelo governo chavista. Hoje seus grupos mais truculentos, os chamados “coletivos”, se dedicam a intimidar, espancar e, não raro, matar os opositores do regime, em nome da “revolução”.

O Brasil não é e não será a Venezuela. O perigo aqui é outro. Ante o fantasma da desordem social, que grupos de direita sabem explorar, com a ajuda involuntária de discursos irresponsáveis de parte da esquerda, cresce na sociedade o apoio a políticas e candidatos antidemocráticos. Quem já leu ou viveu o suficiente conhece o fim desse filme. E ele não é feliz. Importa evitar que se repita.

* Sérgio Fausto é Superintendente da Fundação FHC

 


Demétrio Magnoli: A esquerda diante da democracia

Boulos subordina PSOL à narrativa que nasceu como tática do PT para conservar hegemonia lulista sobre esquerda na sequência da derrota representada pelo impeachment

‘Este nosso encontro talvez fosse improvável”, sugeriu Guilherme Boulos no lançamento de sua pré-candidtura presidencial, diante de Caetano Veloso e um cortejo de celebridades. Improvável por quê? “O que nos uniu foi o avanço do conservadorismo, que nos forçou a buscar alianças novas”, explicou o candidato pelo PSOL. De acordo com a narrativa que vai sendo alinhavada pela esquerda, o Brasil já não vive numa democracia. O “golpe do impeachment” abriu uma fase de “autoritarismo” que equivale a “voltar 50 anos atrás” (portanto a 1968, segundo Boulos) e se destina a “retirar direitos” trabalhistas e previdenciários. Não é um bom caminho para enfrentar os desafios do ciclo pós-Lula.

Boulos subordina o PSOL a uma narrativa que nasceu como tática do PT para conservar a hegemonia lulista sobre a esquerda na sequência da desmoralizante derrota representada pelo impeachment. Do ponto de vista petista, a denúncia do “golpe de 2016” não passa de um expediente oportunista — e a prova disso é que o PT já anunciou a retomada da política de coligações eleitorais com os “golpistas” do MDB e do “centrão”. Mas aquilo que serve ao lulismo não serve à esquerda pós-lulista.

Taticamente, a denúncia do “autoritarismo” implica a “unidade das esquerdas” — isto é, uma frente formal (como quer Tarso Genro) ou informal (como prefere Boulos), no modelo da aliança de resistência à ditadura militar. Na prática, monta-se uma camisa de força eleitoral: após o primeiro turno, os partidos e movimentos de esquerda devem se juntar às candidaturas remanescentes do “campo da esquerda”, que tendem a ser aquelas patrocinadas pelo PT.

No caso da disputa presidencial, a esquerda fica virtualmente comprometida com o candidato ungido por Lula (seja ele Jaques Wagner, Fernando Haddad, Ciro Gomes ou outro). “Jamais vou pedir para você não ser candidato”, garantiu Lula em mensagem exibida no lançamento da campanha de Boulos, explicitando o sentido da parceria. Por essa via, o lulismo sobrevive ao ocaso político de Lula, ancorando as forças de esquerda ao redor de um cais em ruínas.

Estrategicamente, a negação da realidade é a pior das bússolas políticas. No Brasil, estão ausentes todos os traços clássicos dos regimes autoritários. As liberdades públicas não foram tocadas. A separação de poderes ficou comprovada pelo próprio impeachment e, no governo Temer, pelo fracasso do projeto de reforma previdenciária, dois lances de confronto do Congresso com o Executivo. A independência do Judiciário é atestada pelos inquéritos e denúncias contra Temer. O voto de Gilmar Mendes decidiu o habeas corpus a favor de José Dirceu. Lula está solto; Eduardo Cunha, preso. Apesar do que se propaga falsamente a partir do PT e do PSOL, os militares não são (nem poderiam ser) usados para reprimir manifestações políticas.

O Boulos que fala em retorno a 1968 — assim como as celebridades (devo dizer “intelectuais”?) que o cercam — reflete a dificuldade da esquerda pós-lulista de encarar os dilemas reais de nossa democracia bastante imperfeita. A narrativa farsesca, que soa como música aos ouvidos de convertidos, tem o efeito de isolar seus arautos numa redoma folclórica. Lula qualificou Boulos como “pessoa de muito futuro na política”. O dúbio elogio equivale a excluí-lo do presente.

A fonte de inspiração de Boulos e de boa parte do PSOL é o espanhol Podemos, fundado em 2014 sob o influxo das manifestações antiausteridade. Atraído pelo castrismo e pelo chavismo, o partido esquerdista classificou a monarquia parlamentar espanhola (o “regime de 1978”) como uma versão amenizada do franquismo. Nutrindo-se da recessão e dos escândalos de corrupção, o Podemos decolou como um míssil, chegando perto de ultrapassar o Partido Socialista para figurar como segundo partido do país. Contudo, entrou em declínio após as eleições gerais de dezembro de 2015, vitimado por seu próprio discurso de negação da democracia.

O ato desastrado inicial foi a recusa de um pacto de governo com os socialistas, o que propiciou a recondução dos conservadores ao poder. O ato seguinte foi uma aliança tácita com os nacionalistas catalães, que o conduziu a repetir o epíteto de “bloco monárquico” usado pelos separatistas contra todos os partidos constitucionalistas. A reação do eleitorado, expressa nas pesquisas de opinião, já empurrou o Podemos à condição de quarto partido do país. Farsas têm consequências — eis a lição espanhola.

Hipnotizada pelo passado, a esquerda póslulista ainda cultua a Cuba dos Castro, jura fidelidade ao regime agonizante de Nicolás Maduro, recusa-se a admitir o fiasco da política econômica dilmista, traça paralelos delirantes entre o governo Temer e o regime militar e, sobretudo, vira as costas ao diálogo democrático. Três décadas atrás, o PT rejeitou assinar a Constituição de 1988, a mesma que lhe permitiu governar o Brasil por 13 anos. Hoje, imitando o Podemos, seus presumíveis sucessores crismam todos os demais atores políticos como um “bloco autoritário”.

2018 não é 1968. Alguém precisa dizer isso a Boulos.

* Demétrio Magnoli é sociólogo