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O Globo: ‘Não temos um Mandela neste país. É preciso lucidez’, diz Boris Fausto

Historiador aponta que o principal desafio é superar a polarização, que vê como inevitável

Naira Trindade, O Globo

BRASÍLIA - O historiador Boris Fausto não está otimista com o cenário político brasileiro que se apresenta após a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com Lula num clima de revanche e um governo que se apoia na instabilidade política , Fausto acredita que a polarização vai aumentar e ficará mais difícil superá-la. Em entrevista ao GLOBO, O historiador aponta que a saída precisa ser pactuada entre diferentes atores num programa que ataque as desigualdades brasileiras.

Com Lula solto, a polarização na política aumenta?
A polarização vai acontecer e será inevitável. O que se deve fazer, do ponto de vista da ação, é construir alguns centros com intenções e conteúdo marcadamente social em um país com tantas desigualdades. Se vão ter clarividência para fazer isso, quem é que sabe? Mas acho que isso é inevitável e imprescindível.

E como construir isso?
É difícil num clima que se criou. De um lado, o Bolsonaro falando que tem um canalha que foi solto, de outro lado o PT partindo para revanche. Nós não temos Mandela neste país. O Mandela é uma exceção. As tendências de polarização são muito fortes e navegar é preciso. É preciso um pouco de lucidez. Até quando vamos continuar nisso? A oposição estava completamente desorganizada e agora tem condições de se mobilizar. O líder reapareceu. Só que o Lula não tem condições, mesmo saindo da cadeia e tendo a militância que tem, de encarnar uma perspectiva democrática, social, que olhe para frente e diga: bom vamos garantir liberdade, e atacar seriamente as questões iníquas que existem neste país, desigualdade social e de gênero, combater o racismo.

Por que o senhor diz que Lula não tem condições?
Primeiro, ele tem ficha suja, não tem condições legais para se candidatar. Ah, mas o julgamento dele pode ser anulado porque o Supremo vai reconhecer uma suspeição do Moro. Tudo pode acontecer atualmente, mas acho esse cenário excluído. Ele não tem condições de ser candidato, mas ele pode ter um papel atuante nas eleições. Então, é uma situação muito delicada. Uma coisa é certa, né, o Lula é uma figura, entenda, não estou defendendo a figura dele, longe disso, mas não é o homem que possa encarnar uma solução democrática.

A conjuntura política muda com Lula fora da prisão?
Muda no sentido dos riscos. O fato de que o Lula se lance a uma campanha de acusações e faça romaria política no momento em que é preciso aglutinar forças com mais calma, no horizonte democrático, só vai acelerar a possibilidade de uma faísca que resuma no fechamento do regime democrático. Por outro lado, é uma liderança indiscutível. E como o governo vive da instabilidade, gerando também a instabilidade, é uma situação extremamente difícil. Acho que a maioria da população, nessa hora, pode mostrar que talvez esteja cansada de polarização e comece a trilhar um outro caminho, mas vamos ter um pouco de ceticismo nisso porque não dá para ter muitas ilusões.

Temos algumas figuras cogitadas no cenário presidencial para 2022, como o governador João Doria e o apresentador Luciano Huck. Eles podem ser encarados como uma terceira via?
Os dois só podem jogar uma cartada. A cartada da moderação. O Huck tem dois trunfos positivos, que é seu sucesso de televisão, de quem conhece o Brasil, rodou pelo Brasil e não pode deixar de ter um lado social. O outro é que tem gente boa acompanhando a candidatura dele. E o Doria só tem um caminho, que é mais retórica do que fato, porque ele andou de mãos dadas com Bolsonaro quando foi preciso. Dos dois, quem sabe o Luciano Huck possa carregar essa bandeira (de terceira via) mas tem tanta coisa para se formar.

A polarização se arrastará até as eleições de 2022?
Temos praticamente uma ultradireita no poder, isso é visível e extremamente grave. E tem algumas pessoas de extrema esquerda dizendo que estamos numa ditadura. Não estamos numa ditadura. Temos arranhões sérios na ordem democrática, mas longe de estarmos numa ditadura. Ao mesmo tempo é preciso evitar que isso aconteça. Precisamos construir um núcleo que se afaste de todas as utopias absurdas da extrema direita que estão envenenando a vida política do país.

E quais agendas podem sustentar Bolsonaro, o discurso da anticorrupção e a aprovação de reformas?
Essa é a mesma carta na manga de sempre. Ele está jogando com essa carta. Ele não tem outras. Ele continua acentuando esse jogo, com as agendas anticorrupção, com as reformas para se sustentar. Vai dizer que a Lava-Jato perdeu, que a corrupção ganhou, e isso tem eco na população. E ele pode até reforçar um pouco uma situação de desprestígio claro.


O Estado de S. Paulo: ‘Não se sabe como o PSL vai se comportar’, diz historiador

Para Boris Fausto, partido do presidente Jair Bolsonaro é uma ‘salada de muitos elementos, sem unidade’

Paulo Beraldo, de O Estado de S.Paulo

Para o historiador e cientista político Boris Fausto, o Brasil nunca esteve tão dividido como hoje e a existência de diferentes visões deve se refletir no Congresso que tomou posse nesta sexta-feira, 1.º. “Houve divisões na sociedade no passado, mas nesse grau e nessa consistência, nunca tivemos.”

Fausto diz ver no próprio PSL – partido do presidente Jair Bolsonaro –, que elegeu a segunda maior bancada da Câmara (52 deputados), uma “salada composta de muitos elementos”. “Tem muita gente nova e não sabemos se vão se comportar maciçamente votando sempre a favor do governo”, afirma.

Qual a avaliação do sr. sobre o perfil deste novo Congresso?
É preciso acompanhar o que vai fazer essa grande bancada do PSL (na Câmara, com 52 deputados). Tem muita gente nova e não sabemos se vão se comportar maciçamente votando sempre a favor do governo, ou se uma parte terá independência em casos que contrariem sua opinião. Os sinais indicam que é uma salada composta de muitos elementos, sem unanimidade. Quando o grupo foi para a China, por exemplo, produziu indignação nos setores mais ideológicos do bolsonarismo. Vejo que esses votos, aparentemente, não são garantidos. Além disso, é preciso entender as nuances dessa direita que chegou ao poder. É um mundo muito mal conhecido porque era aparentemente secundário e, de repente, apareceu na ordem do dia. Figuras até então inexpressivas ou não consideradas surgem e passam a pesar no jogo político e nas ideias.

Como a divisão da sociedade pode se refletir no Congresso?
É saudável haver disputas, conflitos e opiniões divergentes na sociedade desde que tenham um mínimo denominador comum e que pelo entendimento cheguem a algum consenso. Quando não há isso, não tem diálogo. Houve divisões na sociedade brasileira no passado, mas nesse grau e nessa consistência, nunca tivemos. Por exemplo, o getulismo e antigetulismo. Foi uma luta política constante, mas duvido que alguém deixasse de jantar na casa de um parente porque esse parente fosse udenista ou getulista. Hoje, o clima de divisão profunda na sociedade deve se refletir no Congresso. Mas existe no Congresso um “espírito de corpo” entre os membros. Muitos entram com o furor de mudar tudo que é possível, mas depois entram na engrenagem, mesmo com opiniões diferentes, daquela corporação. É natural.

O discurso do governo estimula essa divisão?
Essa corrente de direita a que o Bolsonaro está associado encontrou um inimigo no chamado comunismo internacional, com determinações internas. Hoje, se criou essa fantasia e não se criou por propósitos inocentes. É a ideia de juntar uma porção de correntes e pessoas nesse “perigoso inimigo” construído que é a esquerda, o marxismo, a influência cultural gramsciana, com esse propósito de criar “nós e eles”. O “nós”, que iremos retificar tudo isso, e colocar nas mentes doutrinas que não são ideológicas, pensamentos que são abertos, quando precisamente esse é um pensamento muito ideológico. Mas existe uma raiz disso na esquerda também. O PT criou uma divisão entre nós e eles. Se você pensa diferente, se não acredita no projeto do partido, deve ser excluído. É bom não esquecer os males que essa gente produziu em nome de uma chamada esquerda.

Como acredita que deve agir a oposição no governo Bolsonaro?
A oposição tem de ser de combate responsável e de reconstrução. Não é oposição por oposição, a favor de que nada dê certo, mas de vigilância. A oposição vai ser forçada a evitar o deslize para a corrupção interna da democracia, mais do que apoiar um ou outro ato do governo. Com relação a projetos que façam sentido do ponto de vista nacional, como a Previdência e uma reforma tributária, na dependência de como forem, não vejo porque fazer uma oposição cerrada a qualquer preço, contrariando um interesse nacional. Numa situação em que os partidos, e a esquerda sobretudo, foram fortemente atingidos, a tendência à aglutinação e aproximação das pessoas é muito forte.

Qual seria a participação do PT em um eventual bloco de esquerda no Congresso?
O PT deveria ir por uma linha mais flexível se quiser ter papel relevante na união das esquerdas. O problema é que uma união dessas com o PT sem fazer uma avaliação crítica não teria muita autoridade como força de esquerda. Ao mesmo tempo, é improvável que (o partido) venha a fazer a reavaliação dos muitos erros que cometeu. Então, seria uma frente com um problema interno, uma dificuldade nesse PT monolítico, que não quer se alterar, que tem uma bancada grande (56 deputados) e se considera hegemônico.