bolsoanro

José Serra: A miséria do presidencialismo

O regime presidencial, o voto proporcional e a relação entre Poderes favorecem aventureiros

O destino dos EUA, a República mais antiga, mais estável, mais rica e mais poderosa dos tempos modernos, está em alto risco e, apesar de seus sintomas de decadência terem surgido na década de 1960, ninguém é capaz, hoje, de prever seu futuro. O destino de uma das maiores democracias do mundo, que alterna períodos de relativa estabilidade com outros de autoritarismo, períodos de alto crescimento econômico com outros de retrocesso, é incerto até mesmo quanto ao ano que começa. Refiro-me ao Brasil, onde não se pode hoje prever em que direção irá o atual retrocesso econômico e sanitário, nem se, e como, enfrentaremos os desafios do aumento do desemprego e da pobreza.

Os dois países não estão isolados nessa condição de enfrentar desafios que parecem maiores do que os recursos de que dispõem para superá-los, entre os quais as ameaças à liberdade e à igualdade. Diferentemente das décadas de 1970 e 1980, em que a chamada onda democrática liberou do autoritarismo dezenas de países, as ameaças à democracia voltaram a se espalhar por todo o mundo – incluídas as Américas do Sul, Central e, agora, a América do Norte.

O fenômeno tem sido tratado como neopopulismo, ou neonacionalismo, e frequentemente associado ao surgimento de lideranças com perfil centralizador e autoritário, que defendem um regime em que o poder seja exercido contra os inimigos da nação em relação direta entre o líder e “o povo”. Alguns autores consideram que o requisito essencial para a definição do líder populista é que o principal obstáculo à sua conjunção carnal com o povo são as instituições, quaisquer que sejam. Daí a sua necessidade de esvaziar, contornar, enfraquecer ou demolir as instituições vigentes.

Nos últimos anos se multiplicaram, na literatura acadêmica, nos think tanks e na mídia, estudos e opiniões centrados na explicação do perfil dos líderes neopopulistas. Poucos são os que levam em conta que o perfil populista é um estilo de liderança muito frequente em todos os países e em todos os níveis de governo, e a questão fundamental é saber como se tornou possível que um aventureiro, muitas vezes desconhecido ou sem experiência executiva, alcance o mais alto poder em uma nação.

Dessa perspectiva, que considero a mais adequada para entender as incertezas hoje enfrentadas pelo Brasil e pelos EUA, trata-se de compreender as condições políticas que tornaram possível uma sociedade moderna e complexa entregar livremente o poder a um líder populista. Os muitos anos de vida pública que dediquei a estudar o sistema político brasileiro me permitem apontar o regime presidencialista, o sistema de voto proporcional e a relação entre os Poderes constituídos como o conjunto de fatores que tornam a Nação vulnerável ao aventureirismo em sua principal encarnação, o populismo.

O presidencialismo é um regime de governo que, por definição, produz uma divisão entre Poderes distintos de igual legitimidade, mas não garante que as maiorias que elegem esses Poderes sejam idênticas, ou sequer compatíveis. A convivência produtiva entre o presidente e o Parlamento depende sempre de um conjunto complexo de fatores, sobre os quais o presidente tem pouco ou nenhum controle – as relações entre partidos, as agendas dos parlamentares, as insatisfações, as necessidades e os ideais do eleitorado. Com isso a probabilidade de cumprir suas promessas, ou mesmo de simplesmente controlar a gestão pública, tende a ser baixa, abrindo as portas para candidatos que prometem tudo a custo de nada. Os quais, se eleitos, farão o mesmo percurso, agregando mais insatisfação ao ânimo popular, e reiniciando percurso semelhante.

Daí decorre uma tendência que vem sendo observada em toda parte: a corrosão da legitimidade das democracias representativas, uma vez que o representante é visto como um usurpador, que não ouve, não cumpre seus compromissos com os representados e nem sequer os respeita.

No regime parlamentar, que defendo, o presidente representa o Estado, mas quem exerce o governo é, por definição, o líder de um partido majoritário ou capaz de formar uma coalizão majoritária. O mandato do governo depende da maioria parlamentar, e ambos dependem de cooperar para cumprir as expectativas do eleitorado.

O sistema de voto proporcional no Brasil exacerba a perda de legitimidade da democracia representativa e os obstáculos à capacidade presidencial de governar. Exercido com lista aberta em megadistritos, ele produz, por construção, uma relação opaca entre representante e representado, o que reforça os sentimentos de frustração e impotência do eleitor, sentimentos também encontrados nos EUA.

Desde o fim do mandato de Bill Clinton, em 2000, apenas Barack Obama foi vitorioso nas urnas, graças a um colégio eleitoral concebido para limitar o voto popular direto. O sentimento de frustração e impotência do eleitor serviu de catalisador do ódio mobilizado por um aventureiro para demolir as instituições e perpetuar-se no poder. Não conseguiu, mas seu legado de desmoralização da legalidade vigente e da convivência pacífica entre cidadãos terá consequências imprevisíveis.

*Senador (PSDB-SP)


Paulo Delgado: Incógnitas e lutas caducas

O Brasil parece renunciar ao amor por seu povo. Não há melhores a imitar

Aos trancos e barrancos, em violentas erupções eles governam. Se o país está quebrado, é hora de comprá-lo. Barão de Rothschild vaticina: a riqueza troca de dono quando há sangue nas ruas. Os mercados lucram com a miséria humana, explica o New York Times, porque as bolsas estão bombando na pandemia.

Como o presidente libera sentimentos que ninguém quer ver e em geral destrói todos os que cometeram o erro de nele acreditar, há alguma coisa no ar que não fecha. Declarar a insolvência do Brasil sabendo da manipulação da descrença que a isso se segue permite supor que alguém já lhe deve mais do que ele jamais poderia dever.

Brasil e EUA vivem a moléstia do vitorioso mal-agradecido que debilita a glória de presidir o país pela mortificação pessoal de ocupar cargo acima de seu nível. Porque esse negócio de dizer que não pode fazer nada quer dizer que não pode fazer tudo em regime legal. Alusão ao mundo subterrâneo, motor da palhaçada ultrajante no Capitólio querendo produzir torpor na democracia.

A democracia não tem a velocidade maldosa do impune. Não detém sua esterilidade petulante, nem suaviza a dureza da pedra ou incute valores morais em atitudes destrutivas. Basta uma declaração para resumir a aversão ao diálogo, como campeão de lutas caducas.

Dois países, um mole, outro desarranjado, assistem ao êxtase de líder errado, num concurso de paixão sem razão e capacidade de frear. Impeachment é por crime de responsabilidade. De irresponsabilidade é interdição, desqualificação por circunstância. Como a sorte lançou votos em seu caminho, drenar o pântano é aposentar quem não entende as dificuldades da vida normal e fazer regredir a preferência pelo conservadorismo político desinformado e pelo liberalismo tosco.

O poder não se comove. Quando diz decência pode significar indecência. A confusão se amplia. O excesso de estimulação que recebe o governante produz um vazio extremo no governado que confunde poderoso como alguém de ego forte. Negativo. Forte é a circunstância do ambiente facilitador em que vive. A má autoridade não injuria ou zomba de ninguém. A agressão vem do lugar que ocupa.

Há uma inversão na ordem. Dois países gigantes perdem a fé na sua força por não saberem lidar com problemas pessoais de presidentes e o ambiente de fúria e inveja que propagam. Muitas autoridades trazem de casa seus costumes e ampliam a confusão entre o público e o privado.

O Brasil vive uma desnecessidade de poder. Como se os anéis justapostos do arbítrio, da criminalidade e do delito produzissem uma atividade motora que vai do indivíduo à autoridade, do crime ao tribunal, sem distinção ou limite. Quem julga o juiz em nossa pátria? Quem detém do governante o delito? Quem protege a paz do cidadão? As instituições começam a não desempenhar papel relevante na vida pública, com mãos soltas para executar o que for.

Erra também o Banco Central se deixa sua independência ser entendida como garçonnière de bolsa e suas fantasias. Alienação baseada em comodismo acadêmico supersticioso: considerar o mercado amante volúvel, sem emprego e produtividade. E supor economicamente irracional pensar também em metas de confiança, pleno emprego, crescimento econômico e estabilidade da moeda. Sozinha e paparicada, a moeda especulativa, dogma do iliberal brasileiro, é uma desmaterialização produtiva, que permite que valorização no mercado de ações seja desvinculada da economia real. A economia financeira do risco e som de canhão acha que a paz dá prejuízo.

Assim começa janeiro. A terceira pré-estreia desse filme de quatro anos. E a bagunça geral vai produzindo um País sem testemunha que não sabe que a sucessão no Congresso é a principal decisão econômica de 2021. Ou continuaremos a assistir a bolsa rica e bolso pobre; especulação subir, produção sumir; o empresário investir, o imposto comer; o jovem crescer, o emprego desaparecer. Agravado pelo erro de querer desvincular empresa e escola nas políticas para jovens vulneráveis. Trabalho sem estudo é gasolina na evasão escolar, ponte inútil para o futuro.

O Brasil parece renunciar ao amor pelo seu povo. Não há melhores a imitar. Desde 1926, de Araraquara Mário de Andrade alertava: “Se três brasileiros estão juntos estão falando porcaria... Pode ser que os outros sejam mais nobres. Mais calmos certamente que não. Mas não tenho medo de ser mais trágico... O presente é uma neblina vasta. Hesitar é sinal de fraqueza, eu sei. Mas comigo não se trata de hesitação. Trata-se de uma verdadeira impossibilidade, a pior de todas, a de nem saber o nome das incógnitas”. Enfim, estão aí o ano novo e o mesmo presidente sem horizonte.

Não é a primeira vez que o Brasil vive o amor devorante do narcisista que parece deixar-se amar para levar do outro os esforços em proveito de si mesmo. Diante do deboche e da audácia releiam Macunaíma. Para pular cedo da canoa, dar uma chegada até a foz do Rio Negro, buscar a consciência ali deixada e ajudar a tirar do buraco o ano novo.

*Sociólogo. 


Merval Pereira: Ainda dá tempo

O presidente Jair Bolsonaro tem um projeto de poder muito perigoso. Ele, que cultiva desde o início de sua carreira os grupos militares, e sempre foi representante corporativo deles, como tenho debatido aqui nos últimos dias, tem marcado presença em várias formaturas, não apenas das três Armas - Exército, Marinha e da Aeronáutica -, mas também das polícias Militar, Federal, e Rodoviária Federal.

Dois projetos de lei que estão na Câmara, de autoria de deputados bolsonaristas, revelados pelo jornal Estado de S. Paulo, restringem o poder dos governadores sobre braços armados do estado, com mudanças na estrutura das polícias Civil e Militar, certamente saíram dessa tentativa de Bolsonaro de cooptar as Forças Armadas e as forças policiais auxiliares, que fazem parte do sistema de defesa nacional, mas não têm nenhum tipo de autonomia funcional, que sempre quiseram. Ainda dá tempo de pará-lo. 

Transformar a PM numa polícia independente, que não seja uma força auxiliar, acaba criando uma quarta força armada, o que é temerário. Já há uma preocupação muito grande com essa bolsonarização dos quartéis e da Polícia Militar, com mais de quatro mil militares em diversos escalões no governo, da ativa e da reserva, inclusive no ministério, numa tentativa de influenciar ideologicamente as forças auxiliares e as baixas patentes das Forças Armadas.

O primeiro levante de uma PM na Nova República aconteceu em 1997 em Minas, e o ex-deputado Marcus Pestana, que era secretário do governo, lembra que o Estado Maior perdeu totalmente o controle da tropa. “Como se falava na época, os coronéis começaram a obedecer ao cabo (Cabo Júlio foi o líder simbólico na época)”. Conquistaram espaços parlamentares corporativos, e nunca mais os princípios da hierarquia e disciplina foram os mesmos.

Os projetos de seus aliados criam ainda uma nova estrutura na organização das Polícias Militares, com cargos de oficiais superiores. Teríamos, pois não creio que os projetos sejam aprovados, generais de quatro, três e duas estrelas nas Polícias Militares. Vários governadores estaduais, que perderiam na prática o comando das polícias militares e civis, estão se movimentando, e o de São Paulo, João Doria reagiu: “Não há nenhuma razão que justifique, exceto a militarização desejada pelo presidente Jair Bolsonaro para intimidar governadores através de força policial militar”.

Os projetos preveem mudanças na estrutura das polícias, estabelecendo mandatos de dois anos para os comandantes-gerais da PM, dos Bombeiros e delegados-gerais de Polícia Civil, escolhidos por uma lista tríplice. O ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, confirmou que seu ministério está acompanhando a tramitação dos projetos, e tem se reunido com representantes das categorias envolvidas e deputados federais.

As propostas de bolsonaristas são a concretização de um projeto de poder militar que sustente os avanços de Bolsonaro sobre as limitações que as instituições democráticas lhe impõem. O presidente da República usa seus poderes para, de um lado, dar protagonismo aos militares em seu governo, ao mesmo tempo que cuida de seus proventos e dos projetos que mais lhes são caros, como o submarino nuclear. Os projetos de defesa nacional são importantes, mas não poderiam ser prioridades neste momento de pandemia e crise social aguda. Ao mesmo tempo que se queixa de que o país “está quebrado” e que não pode fazer nada, Bolsonaro permite o contingenciamento de verbas sociais e para o combate da COVID-19, e proíbe o bloqueio das verbas militares.

Censura descabida
 A anunciada decisão do ministério da Justiça de processar Rui Castro, e por tabela Ricardo Noblat, que transcreveu parte da crônica do primeiro, por um suposto incentivo ao suicído dos presidentes Trump e Bolsonaro, seria cômico se não fosse trágico.

Muito antes deles, Jair Bolsonaro, em campanha, convocou seus apoiadores no Acre a “fuzilar esses petralhas”, segurando um tripé simulando uma metralhadora. Ainda como deputado, Bolsonaro sugeriu que os militares na ditadura deveriam ter assassinado 30 mil brasileiros, a começar pelo ex-presidente Fernando Henrique.

 Mas, na época, havia governos democráticos no país.


El País: Ameaças de neonazistas a vereadoras negras e trans expõem avanço do extremismo

Ataques contra vereadoras de várias cidades ocorreram em dezembro e polícia ainda busca autores. Vítimas relatam rotina de medo especialistas alertam para escalada das ameaças no país, enquanto os EUA refletem sobre banalização dos discursos de ódio nas redes

Isadora Rupp, El País

Injúrias raciais, infelizmente, não são uma novidade para a professora Ana Carolina Dartora, 37 anos. Primeiro vereadora negra eleita nos 327 anos da Câmara Municipal de Curitiba, e a terceira mais votada na capital paranaense nas eleições 2020, sua campanha foi permeada por ataques, sobretudo nas redes sociais. Até então, Carol Dartora ―como é conhecida a vereadora filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT)― considerava as mensagens inofensivas. Mas no início de dezembro ―logo após uma entrevista do prefeito Rafael Greca (DEM) na qual o mandatário disse discordar da existência de racismo estrutural na cidade― ela recebeu por e-mail uma mensagem a ameaçando de morte, inclusive com menção ao seu endereço residencial.

No texto, o remetente chama a vereadora de “aberração”, “cabelo ninho de mafagafos”, e diz estar desempregado e com a esposa com câncer. “Eu juro que vou comprar uma pistola 9mm no Morro do Engenho e uma passagem só de ida para Curitiba e vou te matar.” A mensagem dizia ainda que não adiantava ela procurar a polícia, ou andar com seguranças. Embora Carol tenha ouvido de algumas pessoas que as ameaças eram apenas “coisas da Internet”, especialistas ouvidos pelo EL PAÍS ponderam que não se deve subestimar os discursos de ódio ―a exemplo de toda a discussão que permeiam os Estados Unidos desde a quarta-feira, 6 de janeiro, quando extremistas apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio em protesto contra a derrota do presidente, provocando cinco mortes.

O e-mail, com texto igual, também foi enviado para Ana Lúcia Martins (PT), também a primeira mulher negra eleita para vereadora em Joinville (SC). As vereadoras trans Duda Salabert (PDT), de Belo Horizonte, e Benny Briolly (PSOL), de Niterói (RJ), também foram ameaçadas pelo mesmo remetente. Até aqui, as investigações policiais dão conta de que o ataque orquestrado partiu de uma célula neonazista que atua sobretudo nas profundezas da internet, a chamada deep web. O provedor do qual a mensagem foi enviada tem registro na Suécia, o que dificulta o rastreamento por parte das polícias civis e, no caso do Paraná, do Núcleo de Combate aos Cibercrimes.

“Fiquei olhando para a mensagem perplexa, sem conseguir processar muito. O espanto de outras pessoas do partido me deu o alerta”, contou Carol ao EL PAÍS. “A violência não é só objetiva. A violência política acompanha a minha trajetória e a das outras vereadoras ameaçadas, com barreiras que vão se criando para que a gente não tenha êxito. Nenhuma mulher deveria enfrentar tanta coisa para exercer um direito básico da democracia”, frisa.

Desde então, o medo faz parte do cotidiano da vereadora de Curitiba. “Tô tentando ser mais discreta. Estou pensando até em mudar o meu cabelo. Isso é muito minimizado, desprezado. As pessoas pensam que é bullying, coisa de Internet. É muito nítida a questão de gênero, do sexismo aliado ao racismo.” Mas foi na Internet, por exemplo, que foi planejado, durante semanas, os ataques ao Capitólio dos EUA por grupos de extrema-direita que não aceitam a derrota de Trump para o democrata Joe Biden.

Ódio racial

Filiada ao PT desde os anos 1980, Ana Lúcia Martins, 54, foi a primeira mulher eleita pelo partido em Joinville (SC) e, assim como Carol Dartora, a primeira negra na Câmara Municipal. A professora, educadora física e alfabetizadora iniciou a sua formação e participação política ainda na adolescência, em grupos de jovens da Igreja do Cristo Ressuscitado, no bairro Floresta, onde nasceu e cresceu. Decidiu disputar o pleito após um longo amadurecimento junto aos movimentos negros e de mulheres.

Após sua vitória nas eleições 2020, as primeiras intimidações já surgiram pelo Twitter, quando ela ainda comemorava a vitória. “Uma conta fake veio e comentou: ‘agora a gente precisa matar ela para o suplente, que é um homem branco, assumir’. Então não era uma questão de ódio ao partido, ou somente machismo. O ódio era racial mesmo”, pontua. Dias depois recebeu o mesmo e-mail que a vereadora curitibana, do mesmo remetente. “Diante dessa denúncia a gente pensou que não podia mais descuidar” conta Ana Lúcia, que agora anda escoltada por seguranças pagos por membros do partido. Segundo ela, essas pessoas fizeram uma vaquinha para arcar com os custos.

Foi oferecido à vereadora integrar o Programa Federal de Assistência a Testemunhas. “Para nós isso não serve, porque aí não poderia exercer meu mandato, e queremos essa garantia” salienta Ana Lúcia. A Polícia Militar catarinense ofereceu rondas e viatura em eventos públicos, desde que a vereadora solicite com antecedência, via ofício.

Pressão internacional

Advogado do Diretório Municipal do PT em Curitiba e também professor da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Opuska disse acreditar que medidas mais assertivas em relação à proteção de Carol, Ana Lúcia e outras vereadoras ocorrerão por pressão de entidades internacionais. Ele, que acompanha o caso, fez um relatório a respeito para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Opuska procurou a Secretaria de Segurança Pública do Paraná (Sesp) para solicitar segurança à vereadora do Estado. “O secretário [Romulo Marinho Soares] não atendeu a Carol. Você não pode deixar que a responsabilidade saia da mão do agente [Estado]. Temos que ter o cuidado de não banalizar. Não é difícil acontecer o que aconteceu com a Marielle [Franco]em uma cidade como Curitiba, cujo racismo estrutural aparece no discurso do próprio prefeito.”

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirma que “após haver solicitação de audiência para que o secretário atendesse a vereadora eleita, ele designou um delegado especializado, integrante da Segurança Pública, para recebê-la (tendo em vista que ele estava com outras agendas prévias e externas). Sendo assim, a vereadora teve o devido atendimento”, argumenta a pasta. Ainda de acordo com a entidade, o caso requer uma “investigação complexa”.

Necessidade de reação

Na análise da professora do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), Megg Rayara Gomes de Oliveira, existe um consentimento por parte do Poder Público para que esses grupos neonazistas se movam com certa liberdade. Primeira travesti negra a obter o título de doutora pela universidade onde hoje leciona, Meggy fala que as denúncias de mulheres negras acabam sendo desacreditadas. “Para ter validade precisa passar pela tutela de pessoas brancas. As pessoas respeitam o cargo que ocupam nosso título. Quem é respeitada não é a mulher preta mas a vereadora eleita.”

Ela também critica a atuação dos partidos sobre a coação sofrida pelas vereadoras. “Elas são de três partidos de esquerda, que não estão dando importância para a gravidade dessas ameaças. Fica evidente que o PSOL não deu atenção para tudo o que acontecia com a Marielle. Parece que os partidos não estão muito preocupados em proteger esses corpos.”

Precursora no Brasil em pesquisas sobre grupos neonazistas que se movimentam na internet, a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias fala que o neozanismo no Brasil é uma “miríade”. “Existem muitos grupos, cada um deles com uma ou várias células que às vezes partilham da mesma base”, explica.

Em sua tese de doutorado pela Unicamp, ela reúne mais de 15 anos de pesquisas junto a sites, fóruns, blogs e comunidades para descrever como pensam esses extremistas. “Há grupos antigays, de supremacia branca, hitleristas, os que tendem para um discurso nacionalista. No ferver dos ovos, o que está ali é o ódio. Que busca desmanchar a humanidade de uma pessoa, impedir que ela tenha a sua personalidade reconhecida”, explica.

De acordo a antropóloga Adriana, a situação no Brasil hoje é grave e houve um crescimento desses grupos após a eleição que elegeu Jair Bolsonaro presidente em 2018, com um discurso bastante violento. “Para se ter uma ideia, uma professora de ensino fundamental me disse que estava dando uma aula sobre o livro da Anne Frank [autora infantil judia assassinada na Segunda Guerra] e a videoconferência foi invadida. A situação está ficando grave no Brasil, e as pessoas não estão se dando conta. É preciso que a sociedade civil reaja de forma veemente. Não pode acontecer a essas vereadoras o que aconteceu com Marielle. Elas precisam ser protegidas pelo Estado. Como sociedade civil que pensa no processo civilizatório, temos que reagir.”


Catarina Rochamonte: Trump - A insanidade populista

O inimigo interno, que se beneficia da sociedade livre e plural, está à espreita

Capitólio foi invadido por americanos tomados de furor fanático, o que mostra o estrago causado pelos inimigos internos das democracias, subjugadas em seus próprios territórios por extremismos ideológicos que se tocam e se correspondem na presunção de verdade e na intolerância que vê na sua visão de mundo a única digna de ser defendida, esquecendo-se que a virtude das democracias liberais é o triunfo do pluralismo de ideias e da busca do consenso por argumentação; não por violência ou intimidação.

A aventura autoritária insuflada por Trump não se deveu ao fato de ser ele um político de direita. À direita ou à esquerda, os governantes, quando imbuídos de algum zelo democrático, permitem a alternância de poder sem sabotá-la com narrativas fantasiosas que incitam ódio e revolta. A atitude de Trump deveu-se, antes, a uma loucura ambidestra: o desvario do poder. Tomado por essa loucura, o líder populista constrói narrativas conspiratórias e, sustentado pela massa, vai com ela até onde der.

Após conclamar seus apoiadores para o protesto e incitá-los a avançar sobre o Capitólio —instrumento e símbolo da democracia americana—, o presidente os abandonou e atacou covardemente, declarando que não representavam o país. Essa é uma lição que deveria ficar para todos os tipos de fanáticos: seus chefes idolatrados não hesitam em sacrificá-los.

Os EUA vencerão a insanidade populista, pois a história tem demonstrado o vigor de suas instituições. Aquele inimigo interno, porém, que se beneficia da sociedade livre e plural enquanto constrói narrativas para derrotá-la, está à espreita. O futuro do mundo livre dependerá cada vez mais de um entendimento na diversidade —E Pluribus Unum—, de uma política de dissolução de conflitos capaz de congregar as forças mais diversas no intuito de construir uma sociedade mais justa.

O que se entende por isso não é consensual, mas é algo que possui pontos comuns entre os dotados de boa-fé e boa vontade.


Elio Gaspari: Os últimos dias de Trump

O mundo está diante de um espetáculo constrangedor: o presidente dos Estados Unidos pirou

Em julho de 2016, o bilionário Michael Bloomberg, disse durante a convenção do partido Democrata: “Eu reconheço um vigarista quando o vejo”. Referia-se a Donald Trump. Passaram-se quatro anos, e a questão da vigarice do doutor foi para a mesa da procuradora-geral do estado de Nova York. Em Washington, a questão tornou-se outra: a eventual aplicação do dispositivo constitucional que permite empossar o vice caso o titular esteja incapacitado. Quando essa emenda foi aprovada, pensava-se num cenário no qual o presidente está sob intensos cuidados médicos. No espetáculo da série “Os últimos dias de Trump”, a invocação do dispositivo nada tem a ver com uma anestesia geral, por exemplo. Trata-se de incapacidade por maluquice.

Trump é visto como um narcisista psicótico por muita gente que não gosta dele. Em julho passado, sua sobrinha Mary (psicóloga) publicou um livro com o subtítulo “O homem mais perigoso do mundo”. Parecia futrica familiar.

Desde novembro, Trump sustenta que venceu a eleição “de lavada”. Na terça-feira, os candidatos republicanos perderam a eleição na Geórgia. No dia seguinte, seus guardiões fizeram o que fizeram. (“We love you”, disse Trump.) Os senadores e deputados americanos foram obrigados a deixar o prédio. Numa decisão histórica, voltaram aos plenários horas depois. Na quinta-feira, confirmaram o resultado eleitoral. A senadora republicana que perdeu a cadeira tirou sua assinatura do pedido de recontagem dos votos da eleição presidencial na Geórgia. Duas integrantes do primeiro escalão de seu governo foram-se embora, e seu fiel ex-procurador-geral acusa-o de ter traído o cargo.

O mundo está diante de um espetáculo constrangedor: o presidente dos Estados Unidos pirou. Isso só acontecia em filmes ruins. Desde o dia em que tomou posse, garantindo que ela foi assistida por uma multidão jamais vista, estava no tabuleiro a carta de que se tratava de um mentiroso. Quatro anos depois, com o seu negativismo eleitoral e a mobilização de seus seguidores para a invasão do Capitólio, Trump encarna o personagem do teatrólogo Plínio Marcos em “Dois perdidos numa noite suja”: “Sou o Paco Maluco, o perigoso”.

A série “Os últimos dias de Trump” não terminou. Se ele queria ir jogar golfe na Escócia no dia da posse de Joe Biden, deve buscar outro pouso. A primeira-ministra Nicola Sturgeon disse que lá o doutor não entra, pois o país está em lockdown.

Faltam dez dias para o fim da série, e Trump ainda surpreenderá a plateia. A Associação Americana de Psiquiatria continua funcionando, com sede a poucos minutos da Casa Branca. Isso, porque malucos existem.

A poesia de Grant no caos de Trump

Durante as horas em que a anarquia trumpista tomou conta do Capitólio, deu-se um momento de poesia histórica. Sem dar a menor bola, centenas de manifestantes passavam por baixo do monumento ao general Ulysses Grant, comandante das tropas vitoriosas da União durante a Guerra da Secessão (1861-1865).

A estátua equestre é um retrato excepcional da figura de Grant. Enquanto o gênero coloca os homenageados em posições combativas, como o Duque de Caxias de Victor Brecheret, o Grant do escultor Henry Shrady está encolhido, parece um tropeiro com frio. Assim era ele. Teve uma carreira militar medíocre, tentou a vida fora do Exército e faliu. Bebia mal. Ele comandava tropas do Norte quando chegou com o filho a um hotel de Washington e o recepcionista disse-lhe que só tinha quartos no sótão. Tudo bem até a hora em que ele assinou a ficha: “Ulysses S. Grant”.

Na cena da rendição dos rebeldes numa casa de Appomattox havia dois comandantes. Um chegou num bonito cavalo, com faixa na cintura e espada com punho de ouro cinzelado. O outro, com o uniforme amarfanhado (há quatro dias não o trocava) e as botas enlameadas. O bonitão era Robert Lee, que estava se rendendo e pedindo comida para seus soldados.

Desde jovem, quando participou da invasão do México, Grant impressionava pela sua capacidade de manter o sangue frio nos piores momentos de uma batalha e diante do massacre de suas tropas. (Isso numa pessoa que tinha horror a carne mal passada, pelo que viu no curtume de seu pai.)

Quanto maior a confusão, maior era a calma de Grant. Sua figura no meio da anarquia dos guardiões de Trump a foi mais uma homenagem ao general que botou os escravocratas do Sul de joelhos.

Grant foi eleito presidente e governou de 1869 a 1877. Um desastre. O general meteu-se com o papelório, e no fim da vida estava quebrado. Pagou suas contas escrevendo um livro de memórias. Ele e a mulher estão sepultados num mausoléu em Nova York, na altura da rua 122. O balcão de perfumes da Bloomingdale’s recebe mais fregueses num mês do que sua tumba do casal em um século.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota, encantado com o legado da Olimpíada de 2016 e com o desenvolvimento imobiliário gerado pelo Porto Maravilha. O cretino adorou a ideia do prefeito Eduardo Paes de convocar um plebiscito para decidir o que fazer com a falecida ciclovia Tim Maia.

Eremildo propõe que no plebiscito sejam feitas mais duas perguntas:

Quem foi o responsável pelo desastre que matou duas pessoas e torrou R$ 45 milhões?

A prefeitura não tem mais o que fazer?

Baleia Rossi

O pelotão palaciano acordou para a possibilidade de o deputado Baleia Rossi ganhar a presidência da Câmara dos Deputados.

Mayrink, um artista

Gustavo Mayrink colocou um tesouro na rede. É o site “Geraldo Mayrink”, com dezenas de textos de seu pai, falecido em 2009, depois de mais de 40 anos de atividade jornalística.

Ele falava calado e escrevia como poucos.

As quatro primeiras frases de seu perfil do jogador Garrincha entraram para a história da maestria jornalística:

“Suas pernas formavam um arco. A esquerda, em que a deformação era mais notável, tinha seis centímetros mais que a outra. Já era um milagre que andasse. Inadmissível que jogasse futebol.”

Num tempo de más notícias, os textos de Geraldo Mayrink permitem um reencontro com a alegria de seus leitores.

Notas incorretas

No vídeo que mostra os guardiões de Trump no salão que fica debaixo da cúpula do Capitólio, eles se comportaram como respeitosos visitantes de um museu.

O vídeo que mostra o tiro dado por um policial na manifestante que estava do outro lado de uma porta, matando-a, foi coisa de seguidor do ex-governador Wilson Witzel.

(Em tempo: se os trumpistas de Washington fossem negros, os mortos da quarta-feira teriam passado da dezena.)

Macaco fora do galho

No dia em que o Brasil bateu a marca dos 200 mil mortos pela Covid, Bolsonaro avisou que se o Brasil não usar o sistema de voto impresso, terá os mesmos problemas que aqueles criados por Trump nos Estados Unidos.

Tudo bem. Seria o caso de ele combinar que na próxima epidemia o presidente do Tribunal Superior Eleitoral acumulará o cargo com o de ministro da Saúde. Certamente, ele não falará em cloroquina, “gripezinha” nem “conversinha” de segunda onda.


Míriam Leitão: Incutir a dúvida, colher a certeza

Quando o presidente da República diz que houve fraude nas eleições de 2018, ele está acusando a Justiça Eleitoral de cumplicidade ou negligência com o crime. Ou a Justiça fez parte da fraude ou não foi capaz de garantir a lisura do processo eleitoral. Diante disso, o que fazer? A Procuradoria- Geral da República (PGR) teria que notificar o presidente para a apresentação das provas, dado que ele está publicamente dando a notícia de um crime. O PGR nada faz que incomode o presidente.

Tudo se passa no Brasil como se a democracia não pudesse se defender de um ataque que está sendo preparado lenta e consistentemente. Em parte, me explicou uma autoridade do Judiciário, “porque tudo é muito inusitado”. Em parte, porque o PGR foi neutralizado. O presidente Jair Bolsonaro não está agindo por impulso. Está repetindo há dois anos fatos sem comprovação. Ele está incutindo a dúvida para colher a certeza. E nada se faz, além das notas de repúdio, porque é inusitado que um presidente da República conspire contra a democracia. Só que está acontecendo. Aqui e nos Estados Unidos.

Bolsonaro age de caso pensado e de forma coerente. Ele tem um plano e dois anos pela frente para executá-lo usufruindo da imunidade que o cargo lhe dá. O objetivo dele no final todos conhecem. A democracia brasileira não tem sabido usar os instrumentos para se defender. Esta semana ele deu um passo adiante ao fazer uma ameaça. A de que ocorreria aqui algo mais grave do que o que houve nos Estados Unidos caso o voto não seja impresso.

O presidente brasileiro justificou o que houve nos Estados Unidos. Bolsonaro disse que foi causado por fraude, e ela surgiu porque “potencializaram a tal da pandemia”. Com isso ele está alimentando duas mentiras. A de que a pandemia foi “criada” com um propósito. E a de que houve fraude nos Estados Unidos. Isso justificaria o ataque ao capitólio, pelo que se depreende dessa fala. De forma terminativa, garantiu: “ninguém pode negar isso aí.” Todos os tribunais americanos recusaram as alegações de Trump de que houve fraude, todos os estados, mesmo os governados pelos republicanos, certificaram a eleição. Ou seja, todo mundo pode negar isso aí que o presidente brasileiro está afirmando.

A democracia americana tem 200 anos e foi alvo de um ataque. Trump estimulou durante semanas a invasão do capitólio. E mesmo sendo um lame duck, um governante em fim de mandato e com poderes declinantes, as instituições dos fundadores da Pátria americana não foram capazes de evitar o assalto. Foi preparada a conspiração à luz do dia e pelas redes sociais. O presidente usou o aparato da presidência para falar aos seus seguidores no dia mesmo do atentado. E toda a reação é a posteriori.

Nós temos uma democracia jovem que já passou por duros testes. O general Etchegoyen, que foi ministro do governo Temer, disse numa entrevista a Andréa Jubé do “Valor” que o Brasil despreza a força da nossa democracia. “A cada tosse, achamos que ela não vai aguentar.”

Mas como não ter dúvidas se o próprio general é capaz de fazer a seguinte afirmação: “Qual a atitude efetiva de Bolsonaro de desapreço à Constituição Federal, comparável a de alguns ministros do STF que não se constrangeram em agredir a gramática para dar sustentação à esdrúxula tese de apoio à reeleição, na mesma legislatura, dos presidentes das duas Casas do Congresso?”

No STF, venceu o respeito à proibição da reeleição na Câmara e no Senado. Alguns ministros queriam ignorar o sentido da palavra “vedado”. Mas o general usa esses votos, que acabaram derrotados, para abonar o que Bolsonaro já fez. Ele não acha que seja atitude efetiva de desapreço pela Constituição o presidente participar de passeatas pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Mesmo quando Bolsonaro foi para um desses eventos no helicóptero da Aeronáutica, tendo o ministro da Defesa a bordo, e disse que as Forças Armadas estavam com eles. O difícil, general, é encontrar demonstrações de apreço de Bolsonaro pela Constituição. Desapreço, há muitas. Etchegoyen é um general de pijama, hoje na iniciativa privada. Mas defende que Bolsonaro nunca mostrou desapreço pela democracia.

Diante dessa falta de sensibilidade para as afrontas à lei por parte de líderes políticos e militares, o presidente continua semeando dúvidas sobre o sistema eleitoral para colher o caos quando for a hora.


Cristina Serra: O instinto assassino de Bolsonaro

Ao confessar seu fracasso, ele deveria renunciar. Mas não tem hombridade para tal

Bolsonaro tem duas preocupações na vida: salvar a pele dos filhos suspeitos de cometer crimes e preparar as bases para um golpe na eleição de 2022. Como admitiu em cínica declaração, pelo país ele nada consegue fazer. Aí está uma verdade. Não consegue porque não é capaz. Seu governo será sempre associado a um recorde trágico: 200 mil brasileiros mortos, em menos de dez meses, pelo vírus que ele ajudou a espalhar com seus arrotos de ignorância.

Péssimo militar e parlamentar medíocre, Bolsonaro levou seu despreparo para o Planalto e se cercou de incompetentes como ele. O pascácio da Saúde desconhece a lei da oferta e da procura e não consegue marcar a data da campanha de vacinação. O da Economia não sabe o que pôr no lugar do auxílio emergencial. O vírus mata, a fome também.

A incapacidade do presidente está longe de ser nosso único tormento. Para quem já respondeu a processo por terrorismo, as cenas de selvageria no Capitólio, em Washington, devem ter provocado êxtase. Certamente excitado com o que viu, Bolsonaro vai radicalizar sua campanha de sabotagem à democracia, à urna e ao voto enquanto tonifica seus esquadrões da morte, pelotões de jagunços e hordas de milicianos por dentro do aparelho de Estado, com liberação de armas, promoções, verbas, cargos e salários.

Só numa sociedade muito adoecida o presidente pode atentar à luz do dia contra a democracia e ficar tudo na mesma. O Brasil está morrendo de falência múltipla de instituições. Ao confessar seu fracasso, Bolsonaro deveria renunciar. Mas não tem hombridade para tal.

Restaria o impeachment. Mas ele sabe que os pedidos continuarão juntando mofo enquanto puder contar com a cumplicidade de gente graúda que enriquece ainda mais com a crise e que prefere deixar tudo como está. Assim, Bolsonaro pode seguir sem ser incomodado, contando com mais dois anos para exercitar seu instinto assassino. Não resta dúvida de que nisso está sendo muito bem-sucedido.


Merval Pereira: Autogolpe

A melhor resposta da democracia americana ao autogolpe que o (ainda?) presidente Donald Trump tentou ao incentivar seus militantes a impedir a formalização pelo Congresso da eleição de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos seria utilizar a 25ª emenda para não deixa-lo continuar no cargo por incapacitação física, ou impedi-lo, com o apoio da Câmara, que tem maioria Democrata, e do Senado, com maioria Republicana.

“Autogolpe” é como o professor de governabilidade da Universidade Harvard, Steven Levitsky, co-autor do livro “Como as Democracias Morrem”, classifica a invasão do Congresso em entrevista à BBC em espanhol. Consequência de "quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia" por parte do Partido Republicano e de Trump. Também foi um assunto polêmico desde que, na campanha presidencial, o candidato a vice, General Hamilton Mourão, admitiu o ”autogolpe” como uma possibilidade no cenário político brasileiro.

Para ele, "a grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares", e "um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso".

Essa análise de Levitsky vai ao encontro de diversos estudos acadêmicos sobre a militarização do governo Bolsonaro, ou a “bolsonarizacao” dos quartéis, que estamos discutindo nos últimos dias. Até ontem, podíamos especular sobre a possibilidade de termos aqui os acontecimentos decorrentes da negação de Trump em aceitar a derrota na eleição presidencial. Mas Bolsonaro deixou claro, ao apoiar Trump nas acusações de fraude nas eleições americanas, que pode haver, sim, uma rebelião como a que o presidente americano organizou.

Ao dizer que podemos ter coisa pior, se não houver cédula física nas próximas eleições, ameaça e pressiona a Justiça Eleitoral. Especulamos sobre o assunto quando ele, no início do governo, tentou várias vezes desmoralizar o Congresso, o STF, a imprensa independente, e seus militantes mais radicais atacaram com fogos de artifício o STF. Também quando fez comício contra as instituições em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, numa clara provocação.

A especulação ganha foros de verdade quando ele diz claramente que vai haver problema “mais sério” entre nós. O presidente não convive com a democracia, autoritário, querendo sempre mais poder. Por isso, as instituições da democracia deveriam impedir que essa tendência autoritária se revertesse em influência nas Forças Armadas.

A “transição militar”, que deve ocorrer com a transição política para a democracia segundo Narcís Serra, acadêmico catalão e respeitado ministro da Defesa da Espanha entre 1982 e 1991, é lembrada em um estudo do cientista político Octavio Amorim Neto, da FGV do Rio, e Igor Acácio, doutorando em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, sobre o papel político dos militares sob Bolsonaro, publicado na edição em português do Journal of Democracy, editado pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso.

As transições militares têm três etapas: evitar golpes de Estado; remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia; o estabelecimento da supremacia civil.

Para os dois estudiosos, até há pouco o Brasil se encontrava na segunda, e ensaiava ingressar na última etapa. “O primeiro retrocesso decorrente do padrão de relacionamento engendrado por Bolsonaro com as Forças Armadas é óbvio: enquanto permanecer alta a presença dos militares no governo, a ideia de estabelecer a supremacia civil está suspensa”, diz o estudo.  

Para os autores, “estamos correndo o risco de voltar à primeira etapa da transição militar, pois, no primeiro semestre de 2020, a agenda política brasileira foi marcada por um intenso debate em torno da possibilidade de um golpe militar ou de uma extremamente controversa intervenção das Forças Armadas, ao abrigo do Artigo 142 da Carta Magna, nos conflitos entre o Executivo e o Supremo Tribunal Federal. O terceiro retrocesso : as tendências recentes do sistema internacional, com crescentes tensões dentro e fora do entorno estratégico brasileiro, podem encontrar o país sem consenso social e político para canalizar recursos para os projetos das Forças Armadas. (Amanhã, sugestões para superar os retrocessos).


Bruno Boghossian: Golpismo de Trump mostra que instituições fortes nem sempre conseguem salvar a democracia

Autoridades americanas vão bloquear rebelião, mas brasileiros podem não ter a mesma sorte em 2022

A principal autoridade eleitoral de um estado-chave da corrida presidencial americana se opôs à pressão de Donald Trump para adulterar a votação. Dez ex-secretários de Defesa assinaram uma carta em que rejeitavam o envolvimento de militares em qualquer tentativa de ruptura estimulada pelo presidente.

A maioria dos congressistas americanos se recusou a participar da manobra golpista para reverter a derrota de Trump nas urnas. O vice-presidente Mike Pence rebateu os apelos para descumprir a Constituição e avisou que não impediria a certificação do resultado eleitoral.

Com tantas demonstrações de vigor, os adeptos do mantra “as instituições estão funcionando” devem ter acordado tranquilos nesta quarta-feira (6). Trump, no entanto, mostrou que não é tão difícil corroer as estruturas democráticas que deveriam servir de obstáculo para as aventuras de líderes autoritários.

Com poucas palavras, o presidente americano despachou grupos extremistas para invadir o Congresso e impedir a confirmação da vitória de Joe Biden. O republicano repetiu a lorota de que a eleição havia sido roubada e pediu aos radicais que marchassem até o Capitólio.

Como se viu nas cenas que se desenrolaram durante a tarde, as tais instituições nem sempre são capazes de impedir a destruição da democracia. Os golpistas, afinal, agem exatamente em oposição a elas. Governantes populistas trabalham sistematicamente para deslegitimá-las e abrir caminho para que os limites impostos sejam ignorados.

Já é tarde para conter os danos que o levante de Trump provocará na democracia americana, com grupos radicais fortalecidos e estragos no processo eleitoral. Ainda assim, as instituições serão acionadas e conseguirão bloquear a rebelião.

Os brasileiros podem não ter a mesma sorte. Jair Bolsonaro prepara terreno para repetir o plano de seu ídolo americano em 2022. A diferença é que, por aqui, as instituições são mais vulneráveis. Não será possível esperar para pisar no freio.


Adriana Fernandes: Consultoria da Câmara propõe flexibilizar regra do teto de gastos públicos

Proposta passaria a considerar apenas o rombo da Previdência no cálculo do limite do teto, em vez de todo o gasto com pagamento de benefícios; com isso, nível de despesas obrigatórias seria mantido

BRASÍLIA - A Consultoria de Orçamento e Fiscalização da Câmara publicou nota técnica com uma proposta de mudança no teto de gastos da União, a regra que limita o crescimento da despesa à inflação e que está no centro do debate econômico no Brasil depois da pandemia da covid-19

A proposta passa a considerar apenas o rombo da Previdência no cálculo do limite do teto em vez de toda a despesa com o pagamento de benefícios, similar ao modelo fiscal alemão, que considera nos limites orçamentários apenas recursos retirados da sociedade para sua cobertura.

As projeções apresentadas pelos três autores da proposta apontam um novo espaço para as demais despesas do governo, que hoje estão cada vez mais comprimidas, especialmente pelo avanço dos gastos obrigatórios de Previdência e folha de pessoal. O espaço fiscal dessas despesas seria, em 2022, superior a R$ 40 bilhões em relação à regra atual, passando de R$ 407,5 bilhões (4,60% do Produto Interno Bruto em vez de R$ 447 bilhões (5,05% do PIB). 

Por trás da proposta, está a avaliação de que o teto é uma regra fiscal fundamental para as contas públicas, mas precisa de ajustes para se tornar viável nos próximos anos. “Não está correto que uma despesa, que sabidamente cresce mais do que a inflação, seja colocada dentro do teto definitivamente”, diz Ricardo Volpe um dos autores da proposta ao lado dos consultores legislativos Túlio Cambraia e Eugênio Greggianin.

Ajuste

Segundo Volpe, não se trata de uma margem para gastar mais, mas uma saída para manter o nível de despesas não obrigatórias atual (como investimentos), que já é muito baixo e a cada ano fica menor. O consultor explica que é um mecanismo de ajuste para impedir que a compressão das despesas não obrigatórias chegue a um nível insustentável para o funcionamento da máquina administrativa (como manutenção de rodovias, bolsas de estudo e confecção de passaporte). Para ele, a proposta é simples, pontual e com boa comunicação tem todas as condições de ser recebida positivamente pelos agentes de mercado.

Os números apontam que, mantida a regra atual, as demais despesas chegariam em 2026 em 2,80% do PIB, patamar irreal para o funcionamento da máquina pública. Em 2016, quando a emenda do teto foi aprovada essas despesas estavam em 7,03% do PIB.

A expectativa é que a nota possa ser discutida ao longo de 2021. A proposta já vinha sendo estudada antes mesmo da pandemia. Muitos parlamentares têm defendido a mudança no teto, mas a equipe econômica vem se posicionando enfática em manter a regra sem mudanças.

Os autores destacam que, apesar da importância do teto, não significa que ele não tenha deficiências na forma que foi implementado no Brasil e que não possa ser aperfeiçoado com as devidas cautelas, o que aumentará sua credibilidade.

Para os consultores, a reforma da Previdência, aprovada no fim de 2019 com o propósito principal de reduzir o déficit previdenciário, pode apresentar ganhos que devem ser aproveitados pelo poder público. A possibilidade de elevar as despesas em virtude da redução do ritmo de crescimento do déficit dos regimes de Previdência permitirá ao governo maior liberdade de atuação para alavancar a economia.

Na época da tramitação da emenda do teto, em 2016, já se sabia que a regra se tornaria de difícil cumprimento. O atraso na aprovação da reforma da Previdência, que se esperava para aquele ano, só piorou o problema. Uma proposta chegou a ser discutida de garantir após os primeiros anos de vigência da regra uma correção do limite do teto com metade do crescimento do PIB. Ou seja, se o PIB crescesse 1%, o teto seria corrigido em 0,5%. Mas o então ministro da Fazenda Henrique Meirelles não aceitou com o temor de que o instrumento de correção se transformasse na regra geral durante a votação.

Volpe destaca que as despesas com o pagamento dos benefícios da Previdência, o maior gasto do governo, já passaram pela reforma. Para ele, o governo, com o modelo proposto, poderá atuar melhor na eficiência da arrecadação previdenciária para diminuir o déficit. O consultor avalia que as despesas com a Previdência vão sempre ter crescimento real porque a população vai envelhecer e mais gente se aposentará.

NOTÍCIAS RELACIONADAS


O Estado de S. Paulo: Baleia lança candidatura à presidência da Câmara e prega independência em relação ao Planalto

Deputado tem o apoio do atual presidente da Casa, Rodrigo Maia, e de outros 11 partidos

Anne Warth e Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA  – No lançamento oficial de sua campanha à presidência da Câmara, nesta quarta-feira, 6, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) imprimiu um tom de independência em relação ao Palácio do Planalto e escolheu a defesa da vacina contra o coronavírus, aliada à busca de alternativas para o fim do auxílio emergencial, como suas principais bandeiras. A pauta representa a tentativa do candidato do MDB de se aproximar cada vez mais de partidos da oposição, que decidiram compor seu bloco de apoio.

Baleia chegou a dizer que o Congresso poderá até mesmo se reunir em caráter extraordinário, no recesso parlamentar, caso seja preciso votar alguma medida para que a vacina se torne uma realidade. “Por sugestão de vários líderes de nosso bloco, conversei com Rodrigo Maia para que, se necessário for, possa de maneira inédita fazer uma convocação da Câmara com Senado, para, se precisar, votar alguma medida urgente ainda em janeiro. Estamos a postos e o presidente já deu ok”, disse Rossi, em referência a Maia, presidente da Câmara.

A eleição que vai renovar o comando da Câmara e do Senado ocorrerá em 1.° de fevereiro. O principal adversário de Baleia é o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), líder do Centrão. Lira tem o apoio do presidente Jair Bolsonaro e de dez partidos, que reúnem 203 deputados. Baleia, por sua vez conta com o aval de 11 siglas, que vão de espectros políticos de centro e de esquerda e somam 278 parlamentares. Para ganhar a eleição, o candidato precisa ter votos de 257 dos 513 deputados.

A campanha de Baleia apresentou um vídeo para destacar tudo o que a Câmara fez sob o comando de Maia. “Todo mundo sabe o que foi 2020. Você já parou para pensar o que seria do Brasil na pandemia se a Câmara não fosse livre e independente?”, perguntou um narrador, citando votações importantes na Casa, como a aprovação do auxílio emergencial e a ajuda financeira para Estados e Municípios. Muitas das propostas ali mencionadas ou não tiveram respaldo do Palácio do Planalto ou foram modificadas pela Câmara.

Presidente do MDB, Baleia disse que os partidos do bloco pensam de maneira diferente em algumas pautas, como a participação do Estado na economia, mas estão juntos na defesa da democracia e da Câmara independente. “Vivemos um momento histórico, sim, e vale esse registro porque desde a redemocratização do nosso País não tínhamos a união de partidos que pensam diferente formando uma frente ampla”, argumentou. “Existe um motivo para isso: nós somos o que a sociedade espera. A sociedade quer mais união e compaixão, respeito, igualdade, a sociedade espera a luta por democracia”, afirmou.

Em seu pronunciamento, Baleia também pregou a necessidade de a Câmara debater uma solução para o fim do auxílio emergencial. Foi uma forma de se contrapor ao governo Bolsonaro, que afirmou não ter recursos para mais nada porque o Brasil está “quebrado”. O benefício foi pago a 67,8 milhões de pessoas para a população mais vulnerável, como forma de ajudar no enfrentamento dos efeitos econômicos da pandemia do novo coronavírus. Custou R$ 322 bilhões, mas terminou em 31 de dezembro.

“Parecia que íamos virar o ano e a pandemia ia acabar. Essa não é a realidade. Hoje temos milhões de brasileiros que vão deixar de receber o auxílio emergencial e voltar a ter grandes dificuldades do mais básico, que é ter alimento na sua mesa”, argumentou Baleia. “Entendo que temos de buscar uma solução: ou aumentando o Bolsa Família ou buscando novamente um auxílio emergencial para os mais vulneráveis”.

Sempre ressalvando que a Câmara não pode ser “submissa”, o deputado lembrou a aprovação do Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb) e deu uma estocada indireta em Lira ao dizer que partidos do Centrão obstruíram a votação. “Estamos juntos para fazer as reformas que Brasil precisa”, observou o candidato do MDB, autor da proposta de reforma tributária enviada à Câmara no ano passado. “É importante voltar a olhar a pauta com responsabilidade fiscal, votando reformas”.

Na semana passada, Baleia conquistou o apoio de partidos da oposição, como PT, PDT, PSB, PCdoB e Rede, provocando forte revés à candidatura de Lira e ao Palácio do Planalto. A bancada do PSOL ainda está dividida sobre lançar candidatura própria ou aderir à campanha do candidato do MDB. Até agora, o Solidariedade dá respaldo a Lira, mas ameaça mudar de lado.

Notícias relacionadas