boechat

Dorrit Harazim: A grandeza da mãe de Boechat

À dor pessoal, Mercedes Carrascal incorporou o inconformismo diante da brutalidade social. Estava exaurida e não deve ter ouvido os aplausos incontidos que recebeu

De pouco adianta reproduzir na íntegra, palavra por palavra, o depoimento de Mercedes Carrascal no velório do filho. Para captar a dimensão humana dessa senhora de 87 anos que acaba de perder o segundo de seus sete filhos, seria necessário vê-la por inteiro, ouvir as infinitas nuances de sua voz dolorida e firme. Felizmente, os 8min11s do depoimento estão imortalizados na internet. Ainda assim, este espaço pede licença para deixar registrada também em versão impressa a lucidez dessa argentina que emana humanidade em momento tão brutal de sua vida.

Ficará faltando muito do tanto que nos ensina a mãe do jornalista Ricardo Boechat, morto há uma semana em desastre de helicóptero em São Paulo. Mas é uma forma de homenagear ambos.

Pergunta da mídia: Quem era o Boechat para a senhora?

Dona Mercedes: “Um dos meus bebês... Foi um patinho feio, nasceu feinho, mas já com dois meses era um bebê muito bonitinho: bocão grande, olhinhos muito vivos, carinha muito cor de rosa, carequinha...

Era um menino despachado, um menino do qual os velhos gostavam muito porque ele gostava de falar com as pessoas de idade, de perguntar coisas, e nós velhos gostamos de contar — vocês estão vendo como eu estou aqui contando...

Eu tive sete filhos... tinha. Ficaram seis vivos... agora só ficaram cinco... Tenho orgulho de todos, cada um num sentido... Quando me diziam ‘Ah, você é mãe do Boechat?’, eu perguntava ‘de qual deles?’, porque todos são meus filhos e para mim todos têm o seu peso no meu coração. Eu sou uma leoa como mãe. Se tiver de defender qualquer um deles contra alguma injustiça, podem acreditar que vou às últimas, às últimas mesmo.”

Eles são grandes porque a senhora é gigante ...? (Dona Mercedes estampa cansaço com a pergunta-clichê e corta o tema)

( Pergunta sobre o que Boechat pensaria da dimensão nacional do velório em curso )

“Acho que ficaria assombrado com a quantidade de gente que demonstrou carinho por ele, pois não fazia as coisas aguardando recompensa. Fiquei de boca aberta com os depoimentos de pessoas de todas as classes sociais sobre o meu filho...

O que eu digo é que o caixão não era um caixão do Ricardo. Adorei a coisa do táxi em cima, porque isso era o Ricardo. Deixou de ser um caixão de luxo. (Referia-se ao bigorrilho luminoso colocado sobre o féretro fechado, homenagem da classe a seu radialista mais querido ) Agradeço à Band pelo caixão, pois vivemos num país, numa sociedade, em que o aparente é importantíssimo, mas aquela coisa de táxi foi maravilhosa. Eu falei, gente! Agora sim é o caixão do Ricardo.

Então é isso. Eu tenho muito orgulho do homem que foi meu filho — ser âncora ou não ser âncora é um aditivo, um adereço. Homem honesto, correto, sincero, que falava com faxineiro ou mendigo com o mesmo carinho que falaria com qualquer pessoa, um homem que, pelo que vi e algumas coisas que eu soube, fazia um tipo verdadeiro de caridade, sem demonstração. Ele tinha um coração de ouro com os animais, com os seres humanos... Às vezes dizemos ‘ai, coitado’, mas ninguém se coloca no ‘se fosse eu’... Eu acho que Ricardo se colocava neste ‘se fosse eu’, secondolía com o pai que tinha um filho moribundo... se condolía com os idosos que estavam maltratados... se condolía con as injustiças que são cometidas dia a dia ...

Ainda hoje esteve aqui um casal que perdeu a filha naquela boate Kiss. É uma vergonha, uma vergonha que nossa Justiça não seja Justiça, que não se dê valor a la vida humana... que não se puna..., que tudo seja um jogo. O ser humano não pode ser um peão de um tabuleiro de xadrez... Um ser humano no se pode reponer. .. então este respeito a la vida , este respeitoal ser humano, este respeito a que todos somos iguais, aqui não há raça superior a nenhuma...

Não vamos acabar com os problemas sociais se não mudarmos as cabeças e se não exigirmos, exigirmos desses todos que estão lá em cima, desses todos que querem mandar e que querem nos impor coisas, o respeito que o povo tem que ter e que merece ter, porque todos nascemos nesta terra, e se não nascemos, a adotamos e temos direito a este respeito. Eles têm obrigação de nos dar respeito, não caridade pública... respeito, hospitais que atendam com decência, colégios públicos que ensinem crianças a aprender realmente para poder crescer... trânsito ordenado, não só porque o meu carro é melhor que o teu eu vou passar na frente... Então, eu acho que temos muito a aprender, muito... e vocês me desculpem, eu já estou na reta final, vão passar dos siglos até que isto melhore...”

Mercedes Carrascal subira o tom. À dor pessoal incorporou o inconformismo diante da brutalidade social. Estava exaurida e não deve ter ouvido os aplausos incontidos que recebeu. Partiu dali para o luto privado mais abissal de uma vida.


Ricardo Noblat: A falta que fará Boechat

Jornalismo honesto e contundente
O jornalismo contundente, capaz de expor os fatos com rigor e transparência, e de refletir sobre eles sem ódio e sem medo, é invenção antiga, mas que não data necessariamente do seu começo.

Aqui, digamos, é algo recente, do final dos anos 50 do século passado para cá. Antes disso, o jornalismo era antes de tudo partidário, tomava partido de grupos e lhes prestava fiel vassalagem.

Entre o golpe militar de 64, e o momento quatro anos depois em que a ditadura tirou a máscara, houve ensaios isolados, pontuais, do jornalismo que Ricardo Boechat fez tão bem até ontem.

Com uma grande diferença: esse tipo de jornalismo só tinha lugar no papel, em jornais e pequenas revistas. Creio que não exagero se disser que foi Boechat que deu voz e imagem ao jornalismo crítico.

No rádio e na televisão, foi ele que rompeu os limites do jornalismo bem comportado que até há pouco ainda tentava se apresentar como equidistante e imparcial como se isso fosse possível.

Uma coisa são os fatos, que devem ser expostos como se passaram, dando-se espaço aos seus protagonistas para que ofereçam suas versões por mais contraditórias que elas sejam.

Outra bem diferente é a interpretação, a análise que se faz dos fatos. A interpretação decorre de um ponto de vista do seu autor a propósito dos fatos levados ao exame do distinto público.

Aí não há como ser imparcial, uma quimera tão cultivada em nosso meio e fora dele, e tão distante da realidade. Cobre-se do jornalista, isto sim, que seja honesto ao ir além da simples oferta de fatos.

Boechat foi um jornalista honesto. Era capaz de chafurdar na lama, rolar pelas sarjetas e desfilar pelos salões mais nobres à cata de notícias – de preferência em primeira mão.

Mas ao servi-las, não se negava a dizer o que pensava a seu respeito. Mais no rádio do que na televisão, mas também nessa, com frequência ia adiante, permitindo que sua indignação explodisse.

Como não se indignar diante do muito que testemunhamos ou ficamos sabendo? Balela essa história que só nos cabe dar notícias! Balela, não, um truque velho usado para nos tornar complacentes.

Bóris Casoy chocou os jornalistas de terno e gravata quando começou a usar a expressão “vergonha” para sublinhar o seu espanto diante de certos fatos. Foi um pioneiro.

Boechat elevou o jornalismo contundente à sua máxima potência. Jamais lhe faltou coragem para tal. Sua recompensa foi a adesão de milhões de pessoas que o viam e o escutavam diariamente.

Partiu logo quando o jornalismo brasileiro mais precisava de sua ousadia e do seu talento. Fica o seu exemplo.

Sobre o jornalismo

Para que serve
A democracia depende de cidadãos bem informados. O jornalismo depende da confiança pública.

Antes de ser um negócio, o jornalismo deve ser visto como um serviço público.

O jornalismo existe para servir ao conjunto de valores mais ou menos consensuais que regem o aperfeiçoamento da sociedade. Valores como a liberdade, a igualdade social e o respeito aos direitos fundamentais do ser humano.

Mais do que informações e conhecimentos, o jornalismo deve transmitir entendimento. Porque é do entendimento que deriva o poder. E em uma democracia, o poder é dos cidadãos.

O dever número um dos jornalistas é com a verdade – mesmo que a verdade não seja algo claramente identificável, como de fato não é. Mas haverá que se persegui-la mesmo assim.

O dever número dois dos jornalistas é com o jornalismo independente. Porque se independente não for, para nada servirá.

O dever número três é com os cidadãos. Não se deve jamais ter vergonha de tomar partido deles.

O quarto dever dos jornalistas é com sua própria consciência.


Ascânio Seleme: Boechat tratava igualmente o presidente da República e o guarda de trânsito, e deixará ouvintes órfãos

Era impossível ouvir Boechat sem rir de uma ou de muitas de suas tiradas, depende do quanto tempo você ficasse ouvindo o seu programa

Além de um grande jornalista, um excelente comentarista e um extraordinário apresentador, sobretudo de rádio, Ricardo Boechat era um cara muito bem-humorado. Seu programa matinal na rádio BandNews FM era onde ele melhor extravasava seu enorme senso de humor. Ele conseguia fazer graça mesmo de coisas seriíssimas, como os sucessivos escândalos do mensalão e da Petrobras.

Era impossível ouvir Boechat sem rir de uma ou de muitas de suas tiradas —depende do quanto tempo você ficasse ouvindo o seu programa que era transmitido diariamente ao vivo. Boechat entrava ao ar cedo, em rede, e, depois das 10h, era mais solto, extrovertido e bem-humorado, quando ficava no ar apenas para os ouvintes do Rio de Janeiro.

Mas esse humor que o distinguia dava rapidamente lugar ao escracho, quando Boechat narrava as torpezas do cotidiano. Seu humor de altíssima qualidade rapidamente cedia espaço à ira de trovão que o jornalista soltava sempre que ele julgava que a situação merecia.

Boechat então não tinha papas na língua. Atacava impiedosamente quem quer que fosse, do presidente da República ao guarda de trânsito, que fazia uma “blitz canalha para levantar um trocado” engarrafando vias da cidade. Usava a linguagem que o leitor usaria no seu dia a dia, e isso acrescentava tonalidades de verdade e honestidade ao comentário de Boechat. “Pau neles”, costumava dizer, antes de desfiar rosários de ataques ao malfeitores públicos e privados que apareciam no noticiário comentado diariamente por ele.

Com a bagagem que tinha, recolhida em tantos anos no colunismo do jornal impresso brasileiro, Ricardo Boechat era daquele tipo de gente que sabe de tudo. Ele conseguia tratar de qualquer assunto com a mesma desenvoltura, aquela que a rádio exigia. Podia ser temas como orçamento do submarino nuclear construído pela Marinha ou custo de um saco de pipoca vendido na porta de um cinema. De todos os eles, Boechat tirava uma sacada própria, uma observação inusitada, uma derivação exclusiva para os seus ouvintes, leitores, telespectadores.

Dizer que ele era um jornalista e tanto é pouco. Boechat era uma figura e tanto. Seus companheiros na rádio vão sofrer muito para superar a sua ausência. Seus ouvintes certamente terão o sentimento da orfandade a partir de hoje.


Bernardo Mello Franco: Voz crítica de Boechat irritava os poderosos

A voz crítica de Ricardo Boechat costumava irritar os poderosos que se julgam acima do bem e do mal. Há pouco tempo, um ministro do Supremo tentou silenciá-lo

Na semana passada, Ricardo Boechat reclamou que a tragédia de Brumadinho estava começando a sumir do noticiário. O jornalista se referia a um fenômeno que conhecia bem. Como os fatos não param de acontecer, a manchete de hoje pode ser reduzida a uma notinha no jornal de amanhã. Quando grandes catástrofes se sucedem, como neste início de 2019, o ciclo fica ainda mais rápido — e mais cruel.

Boechat explicou a dinâmica aos ouvintes. “Isso acontece, é assim no mundo inteiro”, disse. Em seguida, insistiu que o caso não pode cair no esquecimento. “Quanto mais rápida for a perda de interesse, mais lentas serão as consequências”, justificou.

Ontem o âncora voltou a martelar o assunto. Criticou a cumplicidade de políticos com as mineradoras e cobrou medidas para evitar novas tragédias. Também elogiou a reportagem do GLOBO sobre outros casos que chocaram o país e terminaram sem castigo. “A impunidade é o que rege, o que comanda a orquestra das tragédias nacionais”, resumiu.

Foi seu último comentário matinal no rádio. No início da tarde, o jornalista virou notícia, para a tristeza de colegas e ouvintes.

Aos 66 anos, Boechat era um jornalista completo. Depois de uma longa carreira de sucesso no meio impresso, conseguiu se tornar ainda mais popular no rádio e na TV. Tive uma pequena amostra do seu carisma quando fui trabalhar na BandNews. Fontes e amigos só queriam saber uma coisa: “Já falou com o Boechat?”.

Sua voz crítica irritava os poderosos que se julgam acima do bem e do mal. Pior para eles. Há algum tempo, um ministro do Supremo tentou silenciá-lo. Inconformado por ser alvo constante (e merecido) dos seus comentários, resolveu apelar ao dono da emissora. Sem meias palavras, pediu a demissão da maior estrela da casa. Não foi atendido.

Boechat lembrou o episódio num e-mail recente, sem perder o humor. “Quando morrermos, dirão que éramos pessoas de bem porque figuras como ele pediam nossas cabeças”, brincou, referindo-se ao ministro.

Sua independência fará muita falta