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Alberto Aggio: O nó tático de Bolsonaro

Nos dias que correm, não há razão alguma para otimismo. Como um técnico de futebol que faz uma aposta em meio a um jogo que se mostrava complicado, Bolsonaro deu um nó tático nas oposições. Seus últimos lances são de vitorioso, antes do término da contenda. Sua “guerra de posições” começa a dar resultados práticos e, por isso, ele pode voltar a vociferar como dantes, “sem medo de ser feliz”, com a galera em coro vociferando: “mito, mito, mito”.

Fato é que Bolsonaro invadiu o espaço parlamentar e conquistou apoio para sua blindagem e sua família. Conquistou posições onde antes não punha os pés: na cúpula do poder Legislativo. Quem fez isso para ele? O general Luiz Eduardo Ramos, que comanda a Secretaria Geral de Governo, e os líderes do Centrão. Tá tudo dominado. A vitória na presidência das duas Casas, como já se disse, é a antessala da eleição de 2022 e vai implicar em imensos desafios para as forças democráticas.

Este movimento conseguiu quebrar a espinha dorsal de quem se opunha a Bolsonaro no Parlamento: Rodrigo Maia. O DEM rachou e Maia viu sua liderança esfumaçar, combatido pela direita e pela esquerda. O movimento articulado por Maia alguns meses atrás, que buscava articular o MDB e o PSDB, não conseguiu sustentação entre os partidos e os parlamentares, mostrando como são frágeis suas convicções democráticas bem como suas perspectivas de futuro, superando o bolsonarismo. No mais, o de sempre: PSDB indefinido, PT oportunista, Psol confuso e o resto como barata tonta. E os partidos do Centrão negociando freneticamente tudo com os representantes do Planalto. Desta maneira, a sociedade não tem uma liderança em quem mirar e o Parlamento será capturado integralmente por Bolsonaro. 

Como corolário do pior dos mundos, as forças democráticas mostram-se inteiramente desarticuladas, não confiam umas nas outras, e só pensam na manutenção dos seus currais eleitorais por Estado em futuro breve, e quando muito, vislumbram candidaturas presidenciais para imantar suas permanências na vida político-partidária.Por outro lado, a lógica das fake news, ao contrário do que muita gente imagina, não arrefeceu. 

Comandada pela confusão midiática que Bolsonaro mantêm viva contra a vacina e a vacinação, conseguiu-se emparedar a principal liderança de oposição que demonstrou capacidade de enfrenta-lo na questão da pandemia e da vacina, duas questões centrais da hora presente na sociedade brasileira: o governador de São Paulo, João Doria Jr. Depois de breves vitórias, Doria foi e está sendo bombardeado dia após dia, pela direita e pela esquerda, pelas fake news e até pela mídia tradicional.

A lógica da velha política se sobrepôs a tudo, sem que a sociedade pudesse reconhecer isso. Esse foi o nó tático de Bolsonaro: ele confiou na ação desarticuladora da frágil cultura política democrática entre nós. Na sociedade, instalou-se uma luta de todos contra todos, demonstrada na questão da vacina; no Parlamento, retomou-se o toma-lá-dá-cá, com a liberação de verbas e cargos. É a política como negócio pessoal que volta à tona uma vez que se entende que a sociedade é assim e que não reagirá diante desse descalabro.

Hoje, Bolsonaro xinga e ofende a imprensa, desdenha dos políticos (porque a sociedade

não quer mesmo saber deles), descuida das pessoas e pede a elas que vivam radicalmente seus interesses individuais, dispensando qualquer proteção do Estado. Mas este está garantido para os seus negócios privados que lhe garantirão a manutenção no poder. A democracia existe por inércia, vai sendo conspurcada, dilacerada, dilapidada em seus valores. O Brasil vai perdendo o pouco que tinha de noção coletiva e de República, de bem-comum.

O impeachment voltou a fazer parte das vocalizações da conjuntura, mas todos sabem, com maior ou menor consciência, que ele não é mais do que uma bandeira agitativa sem possibilidade real de imposição; faz parte de um discurso da indignação (justa, mas impotente). Por isso, não há motivo algum para otimismo, embora também não haja razão para se cair no desespero; a política demanda realismo e acima de tudo reconhecimento do terreno e das circunstâncias. Muito provavelmente, viveremos derrota atrás de derrota até conseguirmos encontrar um novo rumo. E isso pode demorar anos.

*Alberto Aggio, Historiador, professor titular da Unesp


Alberto Aggio: 2022 não é mais uma miragem

Antes ou depois das eleições e independente dos seus resultados, política se deve fazer com diálogo, se estamos pensando a política num contexto democrático. Porém, precisamente nesse contexto, a política é também competição e disputa, concertação e confronto, escolha e eleição. Uma vez rotinizada, essa dinâmica passa a legitimar os atores, as alianças e os campos de força que se estruturam num embate permanente.

Jair Bolsonaro foi eleito em contexto democrático – embora já tenha dado todas as mostras de que seja um personagem antidemocrático. Com ele emergiram na cena política seus apoiadores mais fieis que estruturam o que se vem chamando de ultra ou extrema-direita. Tão antidemocráticos quanto ele. Há correntes políticas, especialmente à esquerda, que atuam no contexto democrático, mas sonham em suprimi-lo uma vez alcançado o poder – embora isso jamais possa ser dito publicamente, tendo que permanecer à sombra.

As forças que querem manter ou dizem querer manter a democracia no País sugerem uma “frente” de atores diversos para enfrentar Bolsonaro em 2022. Há algum tempo se fala em “frente democrática” ou “frente ampla”; mas há aqueles que falam que somente lhes interessa uma “frente de esquerda” (que eles supõem ser “democrática”) para realizar tal objetivo.

Filósofo Marcos Nobre é professor da Unicamp

As eleições municipais que o País vivenciou nos últimos dias acabaram por revelar um quadro de grande dispersão de forças, cobrindo todo o espectro político, conforme o filósofo Marcos Nobre apontou em entrevista recente[1]. Vale notar que algumas forças políticas diminuíram seu poderio, outras emergiram como forças “renovadoras” (embora em estado bastante rudimentar, eleitoral e politicamente) e outras ainda ressurgiram de um patamar que alguns consideravam pré-falimentar, o que é um dado pouco observado nas análises dos resultados.

Alguns aspectos chamam a atenção na “leitura” que Marcos Nobre faz dos resultados eleitorais. Para ele não há (e talvez nunca haverá) um centro político no Brasil. Só existe extrema-direita, direita e esquerda. É visivelmente um raciocínio binário – reduzindo tudo ao embate direita versus esquerda. Há quem goste desse tipo de concepção porque é algo simples e esquemático. Enquanto boa parte dos analistas julgaram que Bolsonaro foi o grande derrotado, para Nobre, Bolsonaro saiu fortalecido em função do desempenho positivo dos partidos do Centrão, o que, em parte, corresponde à verdade. Se esta análise estiver correta, há um problema subsequente que precisa ser ponderado.

A noção de frente supõe um adversário autoritário que estabeleceu ou tende a estabelecer um regime dessa natureza. A noção de frente, neste caso, é essencialmente defensiva diante de um regime que suprimiu ou visa suprimir os espaços democráticos. A consciência dos atores em relação a essa determinação deve ser cristalina e a perspectiva é de ceder e conciliar visando derrotar um inimigo maior e mais poderoso. Se a força de Bolsonaro está no Centrão, dilui-se efetivamente a ideia de que um regime autoritário ou iliberal está prestes a ser instalado no País. As razões de ser do Centrão não estão no estabelecimento de um regime fechado. Ao contrário, o Centrão é causa e produto do que o próprio Nobre definiu, em seu tempo, como “peemidebização” da política brasileira.

No PT de Lula, no Psol de Freixo e em diversas organizações de esquerda debate-se o tema da “frente”.

A despeito do “renascimento do diálogo” (o que supõe até mesmo um diálogo de surdos), o cenário, por enquanto, está mais para a afirmação de campos políticos a serem articulados como candidaturas competitivas que, eventualmente, podem agregar em torno de si as tais “frentes”. Pode-se pensar hipoteticamente que é provável que se componha uma frente de esquerda, uma frente à direita que apoiará Bolsonaro, e uma frente ao centro (mais à esquerda ou à direita) que irá se contrapor às duas mencionadas; sem falarmos na aparição de candidaturas minoritárias que não estarão interessadas nesse tipo de estratégia. O resultado mais saliente das recentes eleições municipais é a vitalidade da dimensão competitiva dos atores, expressa na dispersão de forças observada. É de se supor que apenas a esquerda vai conduzir sua estratégia vocalizando a antiga linha de frente democrática ou popular porque isso faz parte do seu repertório identitário.

No fundo, a noção de frente é, até mesmo do ponto de vista da linguagem, algo que está em descompasso com o cenário competitivo que assumiu a democracia brasileira. E, se é correto, que a dispersão aumentou, levando-se em conta o apetite que certas lideranças sempre revelaram, o cenário é mais ainda de disputa do que de “concertação”.

Ao contrário da “leitura” de Nobre, Bolsonaro se enfraqueceu e o Centrão – sua salvação pragmática – passa a ter mais poder. Para Bolsonaro, não há mais espaço para a retomada da “guerra de movimento” do Ano 1. O fascismo ou a perspectiva de imposição de um regime iliberal ficaram para trás. Por outro lado, Bolsonaro é inepto para conduzir uma “guerra de posições”. O Ano 2 é a expressão disso, vide por exemplo o desastre que é a “gestão” de combate à pandemia (se é que se pode chamar o que existe de “gestão”) e os resultados eleitorais também desastrosos para o bolsonarismo. Nessas circunstâncias, pode-se perguntar: haverá sentido em se propor uma “frente democrática” para enfrentar o fascismo, com sua marca defensiva, sabida e reconhecida?

Para o País importa efetivamente produzir uma alternativa que ultrapasse a situação presente e projete uma saída convincente para o futuro tendo como base um programa modernizador, democrático e cosmopolita, que valorize a interdependência e a globalização para retomar o lugar do Brasil no mundo. Superação, enfim, do bolsonarismo e da crise nacional. A justa demanda de Luiz Werneck Vianna de que precisamos retomar o “fio da meada” deve encontrar seu roteiro a partir de uma abordagem política em plano global. É a isso fundamentalmente que os atores democráticos devem se dedicar, olhando para o futuro e não para o passado, invariavelmente filtrado a partir de demarcações ideológicas.

(Publicado no site da ADUR-RJ: http://www.adur-rj.org.br/portal/2022-nao-e-mais-uma-miragem/)


[1] A entrevista de Marcos Nobre pode ser acessada no link https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,marcos-nobre-eleicao-deixou-todos-mais-ou-menos-do-mesmo-tamanho,70003523553. Marco Aurélio Nogueira escreveu um comentário crítico à entrevista de Nobre que seria importante visitar: https://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/apos-as-eleicoes-dialogo-e-negociacao-terao-de-prevalecer/ . Uma leitura contraposta a de Marcos Nobre sobre as eleições municipais e uma avaliação das perspectivas abertas ao centro político está na entrevista de José Álvaro Moisés concedida à revista Época: https://epoca.globo.com/brasil/oito-perguntas-sobre-centro-do-espectro-politico-para-professor-jose-alvaro-moises-1-24757304 .


Alberto Aggio: EUA no centro do mundo … uma vez mais

É indiscutível a importância dos EUA para o mundo. O século XX foi caracterizado, com razão, como o “século americano”. Depois do fim do comunismo, no início da década de noventa, isso ficou ainda mais claro. Depois de percorridas duas décadas do século XXI, nem mesmo o protagonismo assumido pela China conseguiu deslocar a importância dos EUA no mundo, se considerarmos as dimensões tecnológicas, econômicas, culturais, etc.. Ainda que se possa falar de um relativo arrefecimento do poder dos EUA, não resta dúvida a respeito do papel hegemônico que os EUA ainda jogam na cena mundial.

Mesmo não sendo eleitores, nós brasileiros, assim como boa parte da população mundial, não temos como não expressar grande interesse sobre o embate que se trava nas eleições presidenciais norte-americanas. Depois dos quatro anos de Trump, há uma grande expectativa sobre o resultado destas eleições. Há muitas razões para ser assim, a começar pelo fato de que já se espera que o resultado não seja conhecido de imediato em razão tanto da polarização confrontacional que Trump instituiu ao processo eleitoral, com acusações de fraude e ameaça de não respeitar os resultados, que fica difícil antever quando se dará a conhecer o vencedor da eleição.

De toda maneira, é inegável que os EUA ocupam o centro do sistema mundial atualmente existente. Direta ou indiretamente, as escolhas políticas feitas nos EUA invariavelmente repercutem de maneira global. E isso vale para problemas que os EUA acabaram gerando – como se observou na grave crise global de 2008-9, cujas repercussões ainda sentimos – quanto para decisões de governança que, sem a presença norte-americana, perdem em credibilidade e até mesmo em eficácia.

Por outro lado, os EUA exercem um papel pedagógico sobre o mundo que não tem padrão de comparação com outros países. Assim, o que ocorrer lá repercute positiva ou negativamente numa dimensão global. A vitória de Trump em 2016 foi sinal verde para o avanço de lideres e governantes iliberais em diversos países, com o destaque infeliz de Bolsonaro não só para os brasileiros. É de se esperar, como apontam as pesquisas, que uma derrota de Trump nessas eleições corresponda a um efeito inverso, abrindo espaço para se restituir ou restaurar uma nova situação no cenário internacional de caráter mais colaborativo e de afirmação do multilateralismo.

Isto porque, com Trump se pôde observar com mais clareza a fragilidade da ordem internacional. Nos últimos 4 anos houve um visível déficit de governança mundial, aprofundando uma lacuna entre a globalização e as instituições responsáveis por dirigi-la e governa-la. E isto gerou contradições e tensões bastante perigosas, voltando-se a favar em uma “nova guerra fria”. Como diz Mario del Pero, cientista político da CienciPo, de Paris, com Trump abriu-se um “fosso entre globalização e a globalidade”. Estas eleições são importantíssimas uma vez que a superação dessa situação demanda um empenho ativo dos EUA no interior da ordem mundial.

Trump contaminou o cenário internacional com uma orientação reacionária inteiramente extemporânea. Enfraqueceu o lugar hegemônico dos EUA aos olhos do mundo, mas não a vitalidade da sociedade norte-americana em defesa de valores democráticos, humanistas e igualitários. Quis restituir os termos do antigo imperialismo a partir da lógica de “única potência”, coisa que já não é mais possível no mundo de hoje. O resultado é que, depois de 4 anos, lhe faltam tanto aliados sólidos e importantes, quanto um horizonte de futuro que possa ser compartilhado pelos demais países, especialmente pelos aliados tradicionais dos EUA como foram os países europeus desde o pós-guerra.

Ao futuro de sociedades democráticas de perfil ocidental, em sentido gramciano, interessa vivamente uma recomposição da aliança entre EUA e União Europeia (UE), não o seu enfraquecimento como objetivou Trump. O conflito econômico mundial não foi abolido com o fim da URSS, ele apenas ganhou novos contornos que precisam ser governados a partir de critérios de interdependência, multilateralismo e democracia. Os problemas da EU, tais como um novo padrão de crescimento econômico, a imigração descontrolada, a luta contra o jiradismo mulçumano, o desemprego, etc., têm demonstrado uma resiliência muito grande e tudo o que a UE não precisa é da confrontação de tipo unilateral que Trump instituiu nos últimos anos. Por tudo isso que estas eleições se apresentam ao mundo todo como históricas. Serão dias e noites que europeus, latino-americanos e boa parte da população mundial estarão atentos ao que vai se passar nos EUA. O clima é de que se possa ultrapassar os descaminhos dos últimos anos.

*Alberto Aggio, historiador, professor titular da Unesp


Alberto Aggio: Brasileiros de esquerda no Chile de Allende

Irarrazabal chama-se a rua por onde caminhávamos em setembro. É um nome inesquecível porque jamais conseguimos pronunciá-lo corretamente em espanhol e porque foi ali, pela primeira vez, que vimos passar um caminhão cheio de cadáveres. Era uma tarde de setembro de 1973, em Santiago do Chile, perto da Praça Ñuñoa, a apenas alguns minutos do toque de recolher”.

É com essas palavras que Fernando Gabeira inicia a narrativa do seu famoso O que é isso, companheiro?, publicado em 1979, depois da anistia e de seu retorno ao Brasil. O livro alcançou um êxito tão fulminante quanto duradouro, especialmente em função da polêmica que criou ao questionar os valores e crenças daqueles que se lançaram à luta armada no Brasil. Gabeira era um deles e como muitos outros brasileiros que haviam saído do país por vincularem-se à esquerda – armada ou não –, ele estava no Chile no dia do golpe militar de 11 de setembro de 1973.

Naquele final de tarde Gabeira conheceria, mais uma vez, o sabor amargo da derrota. A sensação era pesada e a decisão difícil. Um tanto disfarçadamente, alguns companheiros caminhavam junto com ele pelas ruas de Santiago rumo à Embaixada da Argentina com o intuito de conseguir asilo político. Certamente não passava pela cabeça daqueles jovens a letra de “Para não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, na qual se cantava, com outro espírito, os versos: “caminhando e cantando e seguindo a canção … a certeza na frente, a história na mão”. Ao contrário do voluntarismo daquela canção que animara os corações e mentes no final da década de 1960, ali só havia uma certeza: para salvar a própria vida, caminhava-se para um “exílio dentro do exílio”. A história lhes escapava das mãos e, como registrou Gabeira, o reconhecimento era inevitável: “as ditaduras militares estavam fechando o cerco no continente”.

Entretanto, aquela era uma explicação compreensivelmente unilateral a respeito do que se passava na América Latina e bastante superficial em relação ao que estava ocorrendo no Chile. Era, enfim, a visão daqueles que haviam investido sua juventude na luta armada e que viam a sua situação pessoal se complicar ameaçadoramente a partir da eclosão do golpe militar contra o governo de Salvador Allende. Isto porque àquela altura já não havia mais – se é que alguma vez houve – um movimento guerrilheiro de perfil latino-americano que estava sendo acuado pelas forças da reação, como Gabeira, de alguma forma, supunha em seu registro. As mudanças que se produziam naquela hora teriam, como se confirmará depois, um caráter muito mais profundo do que apenas o de reação a movimentos armados ou governos eleitos pela esquerda. As ditaduras que se impuseram por meio de golpes militares, especialmente a chilena, refundariam seus países e as repercussões disso eram ainda insondáveis para os homens contemporâneos àqueles fatos, especialmente aos que militavam na esquerda latino-americana.

Salvador Allende discursa em manifestação pública em Santiago

Salvador Allende havia assumido o poder no Chile depois de vencer a eleição presidencial de 1970 sendo candidato da Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda que abrigava os partidos Comunista, Socialista, Radical, Social-Democrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU). Ao longo de três anos, Allende exerceu a presidência da República e foi deposto por um golpe militar na manhã daquela terça-feira, dia 11 de setembro de 1973. Seu governo ficou conhecido como a “experiência chilena” porque se propunha realizar uma tarefa inédita: construir o socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. Essa perspectiva política havia sido denominada por Allende como a “via chilena ao socialismo”, uma consigna que visava expressar o caminho que deveria levar à realização do objetivo maior de seu governo. Analiticamente, a “via chilena” era o projeto que deveria embasar a atuação do governo e da esquerda enquanto a “experiência chilena” constitui-se no processo que marcou todas as realizações, contradições e vicissitudes do governo conduzido por Allende e pela Unidade Popular.

Contrastando com a situação chilena do início da década de 1970, o Brasil vivia, naquela conjuntura, um aprofundamento do autoritarismo e da repressão política que caracterizavam o regime ditatorial implantado no país em 1964. No final de 1968, o Ato Institucional n. 5 (AI5) impôs severas restrições à vida política do país com o fechamento do Congresso, a implantação da censura prévia aos principais veículos de comunicação e a cassação do mandato de diversos parlamentares. Contudo, o Brasil não viveu, no início da década de 1970, apenas os “anos de chumbo” da ditadura militar. Esse também foi o período do chamado “milagre brasileiro” no qual a economia cresceu aceleradamente, com base numa combinação de arrocho salarial e entrada maciça de capitais internacionais, proporcionando uma vigorosa legitimidade ao regime militar. Com ela vieram o ufanismo do “Brasil Grande Potência” bem como o agressivo slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, uma dramática resposta aos críticos do regime. A situação política do país para aqueles que se situavam ideologicamente à esquerda, vindos do trabalhismo, do comunitarismo cristão, do comunismo, do socialismo ou do trotskismo, e que vislumbravam atuar em oposição ao regime militar quer do ponto de vista político-partidário quer do ponto de vista acadêmico e intelectual era visivelmente restrita e em alguns casos absolutamente impeditiva.

Prisioneiros políticos brasileiros libertados depois de sequestro de embaixador no anos 1970

Não à toa muitos brasileiros tiveram que rumar para o exterior ou lá permanecerem, voluntária ou involuntariamente. Alguns o fizeram como último recurso para salvar a própria vida, outros simplesmente para conseguir dar seqüência à sua carreira profissional, especialmente aqueles vinculados ao meio acadêmico.  Dentre estes últimos, muitos haviam se mudado para o Chile, depois de 1964, e lá permaneceram como pesquisadores da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina) quando o regime militar deu mostras de recrudescimento da sua ação repressiva após a promulgação do AI5. Outros, contudo, como o já mencionado Fernando Gabeira, chegaram ao Chile depois de trocados pela liberdade de algum embaixador estrangeiro seqüestrado pela esquerda armada no Brasil. Naquele momento, o Chile tornou-se um dos destinos preferenciais dos exilados brasileiros tanto em função da sua longa trajetória de democracia quanto da vitória da esquerda em 1970. Para todos esses brasileiros, como Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Plínio de Arruda Sampaio e José Serra, dentre outros, uma frase do hino nacional chileno, em que se canta que o Chile deverá ser sempre “el asilo contra la opresión”, soava bastante literal, além de garantir efetivamente um amparo seguro para eles e, em alguns caos, para suas famílias.

Darcy Ribeiro, um dos principais representantes da intelligentsia trabalhista brasileira, talvez tenha sido a liderança política vinda do Brasil que alcançou mais proximidade com o então presidente Salvador Allende. Darcy Ribeiro foi seu assessor especial e, nessa função, redigiu partes do famoso discurso presidencial de 05 de maio de 1971 no qual Allende define a via chilena como uma segunda forma de construção da sociedade socialista, procurando distinguir o caminho chileno das experiências soviética e cubana. Nesse discurso – que se tornou a principal referência a respeito da via chilena ao socialismo –, Allende menciona explicitamente trechos extraídos dos clássicos do marxismo, especialmente de F. Engels, em que se admite um caminho pacífico para o socialismo. A fala de Allende procurava enfatizar que o caminho chileno seria realizado “dentro dos marcos do sufrágio, em democracia, pluralismo e liberdade”, indicando que o principal desafio do Chile sob o governo da esquerda seria “institucionalizar a via política para o socialismo”.

Darcy Ribeiro, antropólogo e politico da esquerda trabalhista

Anos mais tarde, em suas Confissões (Cia. das Letras, 1997), Darcy Ribeiro relata que, juntamente com outro assessor, o valenciano Joan Garcés, defendera perante o presidente que o primeiro objetivo de seu governo deveria ser a criação de uma legalidade democrática de transição ao socialismo e não a ênfase na política de nacionalizações e estatizações. Assim, para ele, além das grandes transformações estruturais desenhadas no programa da UP – e que deveriam ser realizadas com muito equilíbrio –, o grande desafio da opção assumida no Chile residia no percurso que se deveria trilhar para se conquistar a institucionalização da via política para o socialismo.

Entretanto, os partidos da esquerda chilena se colocaram contra essa idéia, estabelecendo uma outra linha de ação. Nos três anos que se seguiram, a ação transformadora do governo da UP ficou concentrada no Poder Executivo, sob comando do presidente Allende. Acreditando que a legalidade chilena suportaria as transformações que o governo da UP colocaria em curso, adotou-se uma posição intransigente nas ações governamentais, visando incrementar a industrialização do país mediante processos de nacionalização e estatização, intensificar a integração social por meio de políticas públicas de corte popular e aprofundar a democratização com o aumento dos espaços de participação. A temática político-institucional, presente na reflexão de Darcy Ribeiro no inicio do governo, permaneceu em segundo plano e, mais tarde, meses antes do golpe, quando Allende lhe perguntou se a alternativa que propusera teria sido mais viável e eficaz, Darcy não teve como dar ao presidente uma resposta definitiva, preferindo um argumento mais consensual para o momento no sentido de reconhecer que a dimensão econômica já havia chegado ao seu limite e que o governo necessitava de outras soluções para enfrentar a severa crise que já vivenciava. Apesar das divergências de condução política, Darcy Ribeiro compartilhou com Allende a visão de que era preciso compatibilizar as transformações econômicas com o andamento político do processo e manter um comportamento hábil e cauteloso no sentido de “acumular forças” para passos mais decisivos que estariam por vir.

Marco Aurélio Garcia e Elizabeth Lobo no Chile em 1971

Contudo, desde o inicio, muitos viam com ceticismo a chamada via chilena ao socialismo. Influenciados pela Revolução Cubana e capitaneados pelo Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR), parcelas do MAPU e pelo Partido Socialista – o partido de Allende –, estes setores entendiam que esquerda e governo deveriam seguir a estratégia de “pólo revolucionário”, contestando de maneira antagônica o “poder burguês”, agindo no sentido de aprofundar as contradições e conflitos até se produzir uma situação pré-revolucionária. Para isso, era preciso “avanzar sin transar”, ou seja, aprofundar as transformações sociais e econômicas sem negociação alguma com outros segmentos do espectro político chileno. O MIR não apoiara a eleição de Allende e, durante todo o período, permaneceu como a força oposicionista mais ativa no campo da esquerda. Seu líder mais expressivo, Miguel Enriquez (que anos mais tarde seria brutalmente assassinado pela ditadura) qualificava de “mentirosa” a formulação da via chilena como um segundo caminho para se chegar ao socialismo. De uma forma geral, todos esses setores de esquerda eram contundentes críticos do projeto da via chilena ao socialismo – e a maior acusação era de que ela se mantinha equivocadamente no interior da institucionalidade do Estado burguês – e visceralmente contrários ao encaminhamento político adotado pelo governo Allende. Há que se mencionar também o fato de que, nessa avaliação, esses setores da esquerda chilena se viam acompanhados por intelectuais que expressavam o pensamento da então chamada gauche revolutionnaire que brilhou na Europa entre os anos 60 e 70. Estes intelectuais (dentre eles a italiana Rossana Rossanda do grupo Il Manifesto, jornal critico e dissidente do velho Partido Comunista Italiano, o PCI) vaticinavam em seus textos de avaliação da chamada experiência chilena que, mais cedo ou mais tarde, como em todos os reformismos, Allende seria forçado a mudar de estratégia, aderindo, por fim, ao caminho revolucionário – definido, para eles, por meio da ruptura armada com o Estado burguês.

Theotônio dos Santos, Vania Brambirra e Hebert de Souza (Betinho) no retorno do exilio

Essa divisão marcaria profundamente a avaliação dos brasileiros que lá estiveram, refletindo a divisão que existia no seio da esquerda latino-americana a respeito do que se passava no Chile. Para boa parte da intelectualidade e da militância política da esquerda brasileira que se exilou no Chile, ao contrário do que defendia Allende, a experiência chilena teria que operar uma inflexão radical: passar do reformismo à revolução e do nacional-desenvolvimentismo ao poder democrático-popular. Um dos mais expressivos representantes dessa posição política foi Theotônio dos Santos, que era inclusive filiado ao Partido Socialista Chileno e dirigia, em 1973, o Centro de Estudos Socioeconômicos da Universidade do Chile (CESO). Nesse mesmo alinhamento poderíamos mencionar também os irmãos Eder e Emir Sader, Rui Mauro Marini, bem como Marco Aurélio Garcia, todos mais ou menos aderentes ou simpáticos às posições do MIR. Para se ter uma dimensão da contundência dos argumentos dessa corrente política, Theotônio dos Santos, no balanço final de um simpósio internacional realizado em Santiago, em outubro de 1971, procurou indicar o que ele entendia que deveria ser o papel chave do governo da UP: “criar condições para a tomada do poder (…) através da constituição do poder alternativo e não da conquista gradual do poder do Estado existente”. Depois do golpe, ao reavaliar todo o período, o que se deveria “julgar”, de acordo com Eder Sader, não eram os homens ou suas condutas no âmbito da esquerda e sim o próprio projeto da via chilena ao socialismo. O veredicto seria implacável: tratou-se de um equívoco trágico e fatal, ainda de acordo com Sader.

Para Darcy Ribeiro, esses setores praticavam um “radicalismo verbal exacerbado” e pretendiam – dogmaticamente – “cubanizar o processo chileno”. Para Darcy Ribeiro, essa “esquerda desvairada” ajudou a direita a dar o golpe definitivo em Allende. Essa avaliação, ainda que insuficiente enquanto uma explicação integral daquele processo histórico, nunca pode ser contestada cabalmente. Por outro lado, em sentido contrário ao que propugnavam no período e ao que escreveram posteriormente, aqueles que, como por exemplo, Theotônio dos Santos, à época criticavam Allende, entendem hoje – numa espécie de tour analítico surpreendente – que o governo da UP deve ser reivindicado “como vanguarda dos ideais revolucionários no nosso continente” e a sua experiência deve ser compreendida como um “projeto possível”.

Fernando Henrique Cardoso na defesa de doutorado em 1961

Entretanto, para além da polarização acima apresentada, é possível identificar também entre os brasileiros uma posição intermediária, que chegou a ser formulada no correr do período Allende. Num texto publicado por Fernando Henrique Cardoso na extinta revista Argumento – escrito antes, mas vindo a público depois do golpe de Estado –, chamava-se atenção para algumas importantes dificuldades do processo político chileno no sentido de superar a situação de dependência existente no país por meio da estratégia e das práticas adotadas pela UP e pelo governo Allende. Para Fernando Henrique Cardoso, os conflitos políticos e sociais que envolviam o governo Allende ameaçavam chegar a um patamar incontrolável e lançavam uma nuvem de pessimismo sobre a situação política. Segundo o sociólogo brasileiro, em função dos graves acontecimentos que marcavam o governo Allende, o cenário que se apresentava não era dos mais auspiciosos para a democracia chilena. Contudo, essa percepção de Cardoso – em tudo distanciada do protagonismo polarizador que marcavam as posições dos dirigentes da esquerda brasileira no Chile – não se transformaria em uma orientação política relevante, permanecendo no seu universo estritamente acadêmico e reflexivo. Deve-se lembrar que Fernando Henrique Cardoso – no Chile, um funcionário da CEPAL – havia publicado, com o chileno Enzo Faletto, em 1967, o livro Dependencia y desarrollo en América Latina que se tornaria um clássico dos estudos sobre a dependência. A superação da dependência do Chile em relação à presença dominadora dos EUA em sua economia era uma das questões centrais do programa da UP e do governo de Allende.

De toda maneira, o que se pode observar é que expressas de forma contrapostas, as falas dos principais protagonistas invadem integralmente o campo de análise, mantendo o passado envolto em uma bruma que não se dissipa. Ao testemunharem sobre o Chile de Allende, é ainda a perspectiva da derrota da esquerda diante da direita que, de maneira exclusiva, conduz o repensar histórico. Evita-se pensar a experiência chilena como o fracasso de um governo conduzido pela esquerda. Nas avaliações publicadas pelos principais protagonistas que participaram daquele processo – e dentre eles alguns dos brasileiros que acima mencionamos – não se toma como relevante o fato de que o governo atuou como nucleador de uma política que seguia a via institucional e as bases sociais da esquerda como um outro pólo que buscou permanentemente resolver a chamada questão do poder para implantar o mais rapidamente possível o socialismo. Essa dissociação foi geradora de uma tensão permanente no campo da esquerda e invadiu o coração do governo da UP. A partir dessa perspectiva de análise é possível perceber que efetivamente Allende foi se tornando, com o passar do tempo, uma liderança disfuncional uma vez que não advogava pela ruptura institucional e, por outro lado, não revelava capacidade para dirigir e controlar por inteiro o processo político que, por fim, redundou numa polarização catastrófica.

Uma das tendências radicalizadas do período se expressou na consigna “criar poder popular”

De uma forma geral, pode-se dizer que a experiência chilena fracassou por razões que pareciam despreocupar os principais atores da esquerda chilena e que eram anteriores a qualquer possível erro de condução política do processo e que também não tinham que ver diretamente com o desafio inédito de construir o socialismo por meio da democracia. Hoje está claro que jogou um papel fundamental o fato de Allende ter sido um Presidente da República com apoio político minoritário do ponto de vista da representação, uma vez que ele havia sido eleito com apenas 36% dos votos e sua posse havia sido aprovada, em segunda instância, pelo Congresso chileno. Efetivamente, somente o “clima revolucionarista” do final dos anos sessenta e a poderosa influência da Revolução Cubana na esquerda latino-americana explicam a temeridade de se buscar avançar na construção do socialismo pela democracia com um percentual tão exíguo de apoio eleitoral. Hoje sabemos também que há, no Chile de Allende, uma extraordinária importância o fato de que as forças políticas à época se dividiam em três correntes político-ideológicas – os liberais e nacionalistas, a democracia-cristã e o eixo socialista-comunista –, com projetos de sociedade distintos e até antagônicos entre si, dificultando a convivência e o equilíbrio do sistema político ao extremarem suas posições. É importante chamar a tenção para o fato de que o Chile nesse momento não tinha um centro político com funções negociadoras. Ao contrario, a DC buscava também implementar o seu projeto de sociedade. Em outras palavras, a DC era um centro excêntrico e isso, senão impossibilitava, dificultava ao extremo qualquer negociação mais substantiva ou duradoura entre esquerda e centro político. Em terceiro lugar, se poderia mencionar um tema programático: as reformas implementadas por Allende, aprofundando a reforma agrária, estatizando bancos e empresas (especialmente aquelas vinculadas à área mineradora), eram excessivamente maximalistas e o caminho adotado para realizá-las, por meio do executivo, acabaram efetivamente abrindo espaço para a ingovernabilidade. A exacerbação da idéia de que socialismo era estatização no plano econômico gerou uma política de tipo “soma zero”, que agregada aos outros fatores acima mencionados, geraram uma crispação sem remissão entre as forças políticas do país. Por fim, há que se agregar o fator externo: o apoio dos EUA à oposição – democrática e não-democrática – e, em seguida, ao golpe de Estado, não deixa dúvidas a respeito da transcendência do que se passava no Chile no início da década de 1970. Impedir uma nova Cuba era essencial para os EUA e, de fato, se configurou como um processo impossível de ser levado a bom termo num país que havia experimentado décadas de vida democrática antes de 1973.

Dividida e aquém dos acontecimentos e dos ditames que a historia lhe colocava, a esquerda buscava, sob Allende, realizar uma revolução feita por mecanismos legais do Estado chileno, mas pretendia implantar um socialismo que não era outra coisa senão algo equivalente ao que se passava na União Soviética, na China ou em Cuba. Realizar uma coisa e outra se mostrou inviável naquelas condições, indicando que, em nenhum sentido, estava amadurecido o significado da via democrática ao socialismo que a esquerda chilena, a partir do governo, vocalizava e dizia querer implementar.

Por essa razão, o governo Allende não deve ser entendido como uma experiência prática da impossibilidade histórica de uma via democrática ao socialismo, como pensou a esquerda brasileira e latino-americana por vários anos, depois daquele 11 de setembro de 1973. Naquele governo apenas se anunciou essa possibilidade. Allende e a UP concebiam o socialismo a partir de uma cultura política convencional que predominava na esquerda latino-americana. Enquanto que o desafio que emergiu no Chile era novíssimo e obrigava a que se concebesse tanto o socialismo de outra maneira quanto um tipo novo de estratégia para se chegar a ele. Ator e circunstâncias se contraditaram e a história, por meio de outros personagens, se impôs implacavelmente.


Alberto Aggio: Na grande crise que vivemos é preciso resistir e derrotar Bolsonaro

Este vídeo faz parte de uma excelente iniciativa da Unesp que se propõe discutir as implicações da epidemia do Covid-19 para o país e o mundo. A ênfase da intervenção está centrada no diagnóstico da “grande crise” que vivemos (sanitária, econômica e política) e na dinâmica perversa que se instalou gerando milhares de mortos e centenas de infectados. O problema não envolve apenas a dimensão sanitária, a despeito da sua forte especificidade.

O problema tornou-se fundamentalmente político pelo comportamento aberrante do presidente Jair Bolsonaro, desdenhando as orientações médicas, manifestando comportamentos impróprios e exemplarmente negativos e, por fim, desorientando a população na medida em que confronta abertamente as orientações e medidas dos governadores e prefeitos que seguem as indicações da OMS (Organização Mundial da Saúde).

Em meio à “grande crise”, Bolsonaro se tornou um agente provocador e negativo para o país. O Brasil precisa resistir a Bolsonaro em seu movimento sinistro contra os brasileiros. Em defesa da vida, contra a morte!

https://youtu.be/lchTBxbCqps

Alberto Aggio: Um Gramsci para o século XXI

O livro de Marcus Vinicius Oliveira, versão revisada de sua tese de doutorado, tem uma qualidade notável que se observa de imediato. Ao se fixar na leitura do texto original dos Quaderni del Carcere, escritos por Antonio Gramsci nas prisões do fascismo, o autor esclarece de saída que eles se transformam em “obra” por meio das várias edições a que foi submetido desde o final da Segunda Grande Guerra. Levar isso em conta já é um grande mérito porque compreende claramente sua principal fonte de pesquisa e exploração reflexiva além de estabelecer um critério de interpretação historiográfica hoje considerado absolutamente necessário para o entendimento do pensamento de Gramsci.

Como se sabe, Gramsci nunca publicou um livro em vida e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, primeiramente publicados a partir de temas que se entrecruzavam nos Quaderni, para só depois, na década de 1970, ganharem uma “edição crítica” que buscou acompanhar a cronologia da escritura gramsciana. Hoje, os Quaderni, junto a outros textos e cartas de Gramsci, estão sendo organizados na denominada “edição nacional”, que já conta com alguns volumes publicados na Itália. Para Marcus Vinicius, os editores, os estudiosos e os comentadores de Gramsci formam o conjunto de “intelectuais mediadores” que deram vida à difusão do pensamento de Gramsci e são tratados com a distância e a importância historiográfica que têm cada um deles.

Por essa razão, a pesquisa que subsidia a tese e o livro não teria como deixar de levar em conta as atuais correntes interpretativas do pensamento de Gramsci, relevando tanto a leitura filológica do pensador sardo, que enfatiza a compreensão dos seus conceitos no ato da escritura, quanto o viés de “historicismo integral” que procurou analisar simultaneamente pensamento e vida como a interpretação mais profícua de Gramsci, fazendo jus ao líder político do comunismo italiano, primeiro, para em seguida aloca-lo no corpo dos pensadores democráticos do século XX.

Situando o debate nesses termos, Marcus Vinícius assume a perspectiva de um diálogo entre filologia e historicismo integral. Também não esconde sua permanente intenção de convocar Gramsci para a grande discussão dos dilemas políticos da nossa contemporaneidade, centrada nas temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois vetores essenciais para a compreensão e o enfrentamento dos conflitos e dos desafios de um mundo globalizado.

Feita essa opção, o autor não prescindiu, em momento algum, de enfatizar o caráter aberto do texto gramsciano, reconhecidamente uma das razões da grandeza do seu pensamento. Um outro aspecto importante é que não há no livro a perspectiva, como se fez no passado, de procurar extrair do pensamento de Gramsci orientações imediatas para a ação política ou então concepções de mundo integrais sobre a moral e a cultura, a sociedade e a história, o que invariavelmente produz operações reducionistas. É preciso enfatizar, assim, que o autor comunga a ideia da impossibilidade de se pensar em um gramscismo como sistema ou esquema que deveria ser seguido por seus supostos adeptos. O pensamento de Gramsci efetivamente não se presta a isso. Criteriosamente, ao contrário, pode-se notar que está presente em cada passagem do livro a advertência para o fato de que a grandeza do pensamento de Gramsci encontra-se muito distante de qualquer esquema ideológico predeterminado. O que possibilitou ao autor uma orientação metodológica no sentido de compreender e tratar o próprio caráter fragmentário e inacabado do texto gramsciano como um signo da abertura, em sentido produtivo.

Entretanto, é preciso chamar atenção para algumas tentações às quais o nosso autor procura não se deixar seduzir. No livro, não há sinais daquele Gramsci interpretado como homem exclusivamente vinculado à cultura, fora da política, ou como um personagem “aprisionado” na cultura heróica do movimento comunista. Mesmo porque, em relação a esta última imagem cristalizada de Gramsci, hoje já se sabe das dissensões entre Gramsci e a Internacional Comunista (IC), dentre elas a discrepância frente à proposição de luta por uma Constituinte contra o fascismo. A IC buscava fomentar a revolução proletária na Itália como processo simultâneo e sucessivo à derrubada do fascismo enquanto Gramsci projetava uma estratégia de luta democrática para derrotar o fascismo a partir da conquista de uma Constituinte que reunificasse a Nação. É relevante esse aspecto uma vez que explica o isolamento de Gramsci não apenas motivado por sua prisão pelo fascismo, mas por uma “condenação” da IC, desde 1929, em relação à sua proposta de uma Constituinte para a Itália.

Visto sob esse aspecto essencial, há um pressuposto que deve ser assumido de forma límpida: mesmo sendo Gramsci um intelectual-político vinculado ao comunismo histórico, seu pensamento deve ser tratado a partir de uma posição de autonomia em relação ao movimento comunista de sua época e especialmente daquele que se seguiu a ela. Por muito tempo se pensou numa relação estreita e reiterativa entre Gramsci e o comunismo, apesar de reconhecida sua especificidade no interior daquele movimento. Nesta perspectiva, Gramsci deveria ser lido como um pensamento caudatário do desenvolvimento do marxismo revolucionário mundial, reservando a ele um lugar especial em torno da reflexão a respeito da estratégia revolucionária nos países centrais do desenvolvimento capitalista. Relevado como “teórico da revolução” nos países avançados, isto é, como um teórico do “Estado ampliado” ou da “revolução processual”, esse Gramsci perderia os elementos de inquietação intelectual que marcam um texto escrito não somente numa situação-limite como também obcecado em buscar o entendimento de como enfrentar as novíssimas configurações do novo mundo que se descortinava no seu tempo.

É esta perspectiva analítica que dá viço ao livro de Marcus Vinicius, acompanhando o percurso realizado por alguns estudiosos de Gramsci que procuraram buscar efetivamente sua originalidade, especialmente quando enfatiza que nos Quaderni havia o reconhecimento de que o século XX havia presenciado uma emergência de massas jamais vista em qualquer época da história. Gramsci seria assim um pensador que havia assimilado produtivamente essa grande mudança, tornando-a presente, de forma permanente em toda sua reflexão. Nesse quadro, a revolução bolchevique havia sido, antes de tudo, uma revelação da até então desconhecida possibilidade de ação das massas, mas depois desse momento a questão da revolução se havia complicado em termos reais. Na linguagem gramsciana, as ações dos dominantes também sofreriam uma inflexão em relação às massas, revelando que os métodos exclusivamente repressivos não eram mais seguros, sendo necessário acolher, responder e controlar suas demandas e reivindicações. É desse reconhecimento que nasce em Gramsci o conceito de “revolução passiva” que, por sua vez, iria estimulá-lo a pensar na necessidade de um novo tipo de direção política e intelectual, que assumisse a política como elaboração positiva e de reconstrução consensual da ação e da estratégia dos setores subalternos.

O conceito de “revolução passiva” em Gramsci seria a abertura para uma nova concepção de política que se apresentasse de forma produtiva e com capacidade de intervenção nesse novo cenário. Propositalmente polêmico, o conceito de “revolução passiva” não era assumido por Gramsci como um programa político, mas se configurava como a referência analítica e o instrumento de conhecimento mais importante de toda sua obra. Por meio dele se poderia compreender não apenas o movimento da transição para a ordem burguesa, mas também sua universalização, ultrapassando a interpretação de que esses processos teriam, como dimensão empírica, apenas o paradigma clássico da revolução francesa. É, nesse sentido, que Gramsci irá anotar que o americanismo – pela hegemonia da fábrica – se apresentava como a modalidade de revolução passiva típica do capitalismo maduro, uma expressão de racionalidade integral com enorme capacidade de universalização. Na Europa, a política realizaria, de muitas maneiras, a intermediação entre as classes do mundo produtivo. Nos países retardatários – não apenas europeus –, avançava-se em direção ao moderno por meio de uma superestrutura que se colocava à frente dos movimentos da infraestrutura, compensando a defasagem que os caracterizava frente aos países de capitalismo maduro. Em todos esses cenários, contudo, haveria saltos e processos moleculares. Seriam modalidades especificas de revolução passiva que teriam vigência histórica, condicionariam e determinariam fortemente os processos de generalização do capitalismo e da ordem burguesa. Muitos desses processos históricos, fracassados ou não (como o fascismo), iriam marcar profundamente as sociedades contemporâneas que vivenciariam, mais à frente, a passagem do século XX para o século XXI.

Conforme nos explica Marcus Vinícius em seu belo livro, a integridade do categorial gramsciano somente pode ser bem compreendida por meio da mobilização das ferramentas de estudo da história do pensamento político. Trata-se de uma escolha feliz para acompanhar os movimentos criativos e de ruptura que se encontram nos Quaderni, dando sustentação para a historicização das inovações conceituais da hegemonia, da revolução passiva e da filosofia da praxis, seus conceitos basilares.

Um dos tratamentos inovadores deste livro e que compõe um dos referentes do seu título é o fato de Marcus Vinícius considerar o texto gramsciano como um conjunto de “fractais”, em “constante mutação” e gerador de uma “nova consciência histórica”. Para o autor, ancorado em Marx, mas sem reiterá-lo, Gramsci ultrapassa efetivamente o marxismo e o bolchevismo na medida em que seus conceitos são deduzidos do diagnóstico histórico a respeito da transformação morfológica que havia ocorrido entre o final do século XIX e inicio do século XX, principalmente na Europa e nos EUA, exigindo que história e política passassem a ser pensadas “fora do paradigma revolucionário”. Mediante essa operação Gramsci vai se tornar “o político e o intelectual da hegemonia, pensando a política, a democracia e o consenso como formas de transformação histórica”. Assim, depois de ter descoberto o sentido e a dinâmica das estruturas em que se assentou o século XX, o autor sugere que Gramsci tenha aberto a nós a possibilidade de pensarmos, de forma similar, o mesmo para o século XXI.

Assumidamente polêmico, o livro que o leitor tem em mãos é um convite à reflexão, aberta e profunda, a respeito de um pensamento que pertence rigorosamente ao nosso tempo.

 


Alberto Aggio: Há resistências à “guerra de movimento” de Bolsonaro

Paulo Guedes, ministro da Economia do Governo Bolsonaro, se inspira no ditador Augusto Pinochet

Creio que sejam necessários alguns referenciais para compreender a conjuntura política em curso, pelo menos em sua linhas gerais. O centro da conjuntura passa pelas iniciativas permanentes e recorrentes do governo Jair Bolsonaro. É ele quem tem a ofensiva, no momento. O seu método é equivalente a uma “guerra de movimento” (para usar aqui o categorial gramsciano), com objetivos no curto e no longo prazo.

Embora o cenário mundial e nacional seja mais propício à “guerra de posições”, Bolsonaro escolheu a primeira porque se imagina dotado de um “programa” geral de alteração das perspectivas por onde o Ocidente trilhou o estabelecimento e consolidação de uma sociedade democrática. As oposições e a sociedade civil permanecem, por ora, em atitude de “resistência” e, portanto, na defensiva, mas realizam uma “guerra de posições”, em termos políticos e organizativos que poderá se consolidar e dar frutos.

A “guerra de movimento” de Bolsonaro pode ser sinteticamente vista como o que se convencionou chamar de “bolsonarismo” e seu objetivo maior é a alteração do regime político democrático no Brasil. O bolsonarismo é uma especie de pinochetismo meio torto em situação democrática. Não nasceu de um golpe de Estado e, portanto, não pode ter domínio de todo o Estado e da sociedade, mas seu movimento tem precisamente o sentido de estabelecer um regime político iliberal no Brasil. Evitar esse desfecho é essencial para a manutenção da democracia. Cada contenda com o governo tem esse preciso sentido. Talvez o episódio de manifestação de caráter abertamente nazista tenha sido o ápice desse embate. Mas, certamente, seguirão outros.

A movimentação de Bolsonaro é incessante e não tem como ser diferente. As parcas vitórias do governo em termos econômicos não são alçadas como elementos centrais pelo próprio presidente. As razões para isso estão nessa estratégia de “guerra de movimento” e não de “posições”. Os blefes de Bolsonaro em relação a Sergio Moro, Ministro da Justiça, fazem parte da mesma estratégia. Pode ser que Bolsonaro tenha que mudar sua orientação geral, mas isso é bastante improvável.

No final do livro de Thaís Oyama, Tormenta (Companhia das Letras, 2020) no qual a jornalista narra, com competência, momentos significativos do primeiro ano do governo Bolsonaro, a impressão exposta ao final não deixa de revelar a estratégia do presidente. Escreve a jornalista: “No final do primeiro ano de mandato, os lábios de Jair Bolsonaro não tremiam mais, nem seus olhos se movimentavam nervosos de um lado para o outro. Estavam fixos em 2022” (p. 211). Curiosamente, me detive nesse ponto. O final do artigo que escrevi para a revista Política Democrática On-line n. 15 (FAP, no prelo) carrega sentido similar. No inicio de janeiro, quando mandei o artigo ao editor, finalizava o texto da seguinte maneira: ” O “ano 1” de Bolsonaro está focado no segundo mandato. Ele precisa desesperadamente da sua reeleição. Para isso quer nos manter estacionados politicamente em 2018″.

Ao que parece, os anos seguintes de Bolsonaro serão mais do mesmo: movimento incessante de sentido reacionário, errático, mas controlado; atropelos na governança que exigirão reformas tópicas, com substituições aleatórias; blefes e recuos; e que a economia siga sua recuperação estabilizadora – mais do que isso, não é o objetivo deste governo.


Alberto Aggio: Da agitação vieram as chamas

Dizia-se, no século passado, antes da modernização avassaladora que assolou o país entre as décadas de 60 e 80, que o destino dos filhos das classes médias do interior seria a igreja, o exército ou a escola; em outras palavras, que seriam, na idade adulta, padres, militares ou professores. Não deu outra: passei pela primeira, fugi da segunda e, ao final, me tornei, meio que sem convicção, professor. Diante das alternativas que estavam à minha frente, não lamento a opção feita. Mais do que isso: acabei gostando muito da profissão e creio que me sai bem nela.

Do exército escapei antes de ingressar. Havia uma prova teórica e física que os meninos tinham que fazer para ingressar na “academia militar” depois de concluído o antigo ginásio. Combinamos, eu e meu irmão, que nos “esforçaríamos” para sermos reprovados em ambas as provas porque não queríamos nada com a vida militar. Tínhamos acabado de sair do seminário onde ficamos, eu 3 e ele 4 anos, longe da família, para onde voltávamos nas férias semestrais já que o seminário ficava em outra cidade. Fazíamos essa viagem em trem, com baldeação no entroncamento de Bauru. Nunca houve um atraso significativo nas viagens. O trem funcionava muito bem e era confiável.

Ao final de 1967, “fomos saídos” do seminário, ou seja, convidados a não mais retornarmos. Tivemos que completar o ginasial na cidade onde moravam nossos pais. Em poucos meses, como resultante da severa crise econômica que se abateu sobre o país, veio o desemprego e meu pai não teve outra alternativa senão migrar para São Paulo, em 1969. No inicio de 1970, toda a família se transferiu para a capital.

Mas 1967 foi efetivamente um ano movimentado. Havia agitação entre os padres e os seminaristas “maiores” (nós fazíamos parte dos “menores”). Como se sabe, depois das reformas do papa João XXIII, emergiu na igreja católica um espirito de renovação mais liberalizadora e com tintas populares que, mesclado com a influência de um “revolucionarismo” inspirado principalmente no guevarismo e no maoísmo, passou a agitar o ambiente.

Além disso, víamos pela TV os festivais de musica popular, os programas juvenis, como a Jovem Guarda e programas de entrevistas que faziam pensar na situação do país e do mundo. Tudo isso era corroborado pelas revistas que chegavam a nós nas malas daqueles que voltavam das suas cidades ou de familiares que nos visitavam. A vida ficava cada vez mais desafiadora e propícia a isso, mesmo em nós que estávamos lá como “internos”.

Tudo mudava dentro do seminário. Havia mais liberdade, mais espaço para novos desejos. Em meio a tudo que fazíamos lá, como estudar, trabalhar, jogar futebol, nadar, trabalhar servindo a comida e lavando os pratos, ler em voz alta no refeitório enquanto todos comiam … em meio a tudo isso houve algo insólito. Era necessário estabelecer o ensino de inglês. Como não havia padres para ministrar a disciplina, o prefeito dos menores decidiu pela contratação de uma professora. Era uma mudança e tanto. Semanalmente não víamos a hora da aula de inglês para incendiarmos nossa imaginação apreciando a moça, dentro e fora da sala de aula.

Estávamos certos que os padres buscavam o melhor para a formação de um caráter responsável naqueles jovens que não sabiam muito bem porque estavam lá, embora em algum momento houvessem concordado em testar a existência de alguma vocação sacerdotal em suas almas e corações. Mas as avassaladoras mudanças que se processavam conspiravam contra tais objetivos. E, pelo que me lembro, ninguém seguiu em frente e se ordenou sacerdote; anos depois, também chegou aos meus ouvidos que o “prefeito dos menores” havia abandonado a batina e se casado.

O ambiente era de agitação, abertamente convidativo à transgressão. Na Semana Santa, fui passar alguns dias em Rudge Ramos, distrito de São Bernardo do Campo. Com uma turminha, fomos em trem até São Paulo e, ao invés de tomarmos o ônibus urbano, caminhamos da Estação da Luz até o Parque Xangai (colado ao Parque Dom Pedro) só para vermos as moças de minissaia circulando pelo centro de São Paulo, informação assegurada pelas fotos que víamos em algumas revista que nos chegavam às mãos.

Na viagem compramos maços de cigarros. Fumar, sozinho ou em turma, era conquistar um status de galã. Sabíamos que fumar era uma quebra da disciplina, um risco. E, não deu outra: durante a missa da manhã, o “prefeito dos menores” junto com alguns “maiores”, vasculharam nossos armários no grande dormitório onde tínhamos nossas coisas. Encontravam o que procuravam e fizeram com que cada um se delatasse. Assumimos o “erro” e fomos punidos: mais trabalho, menos diversão durante um mês. E maior vigilância em cima de cada um de nós. Estávamos fritos: não seria mais possível passar sorrateiramente pelo corredor que levava da cozinha ao refeitório dos padres para roubarmos xícaras de sorvetes que a nós, “menores”, nos eram negadas como sobremesa.

Um dos trabalhos que fazíamos coletivamente era a encadernação de livros velhos. Por coincidência ou não, o grupo de fumadores se reunia na encadernação para conversar … e fumar (escondido). Certo dia, um dos mais distraídos deixou uma guimba mal apagada e provocou um incêndio grave, mas de pequenas proporções. Por sorte conseguimos apagar o fogo e impedir que ele se alastrasse para outros cômodos de oficinas. Obviamente, depois do rescaldo, fomos rigorosamente punidos.

Havia pouca consciência sobre toda aquela agitação. Era o espírito do tempo ou parte da idade? Difícil saber. O fato é que sentíamos uma certa agitação fora dos muros do seminário e que chegava a invadir nosso espaço com desejos que não compreendíamos muito bem nem sua validade nem suas proporções. O certo é que lá também se avivou alguma chama … mas, que queimava pra valer.


Alberto Aggio: Lula não pacificará o país

A decisão do STF cancelando a prisão em segunda instância realiza uma intervenção radical na conjuntura política. A soltura de Lula e José Dirceu da prisão, condenados a crimes de corrupção, joga o PT novamente no centro da cena política. Quem imaginava que tudo caminhava morosamente com a divisão de três terços (direita, centro e esquerda) deve ter gostado do resultado da decisão do STF. Isso porque agora o PT sai da defensiva. Não sabemos os movimentos de Bolsonaro. Talvez fique na mesma toada, agitando seus cones ideológicos. O centro deve permanecer no mesmo lugar, em busca de uma identidade mais clara e consolidada para um perfil democrático-liberal, mais progressista ou menos, em oposição aos chamados “dois extremos”.

Pelos discursos dos dois próceres petistas atendidos pela decisão do STF, o PT deve radicalizar sua posição, situando-se em oposição a Bolsonaro (quem imaginava outra coisa estava fora do mundo), mas, mais do que isso. Parece que Lula e o PT irão levantar a bandeira da identidade de “esquerda e socialista”. Com isso, Lula e José Dirceu imaginam que podem “retomar o governo”; na linguagem mais direta de Dirceu: “tomar o poder”. Considerando discursos desse tipo, fica claro que a tal teoria dos três terços, feita para ser superada, não encontrará no PT e em Lula seu algoz já que um discurso assim vai distanciar o PT do centro, necessário para a empreitada de retomada do poder.

Com o PT indo mais à esquerda – sabemos que isso é mais retórica do que outra coisa – revela-se que uma das preocupações de Lula é com o Psol, que cresceu significativamente nesse processo. Trata-se, portanto de uma retomada. Não creio que falar em socialismo a essa altura possa atrair Ciro Gomes e o PDT, aferrados a um nacionalismo ancilosado (o mesmo me parece que se pode dizer do PSB). Essa retomada do discurso petista me parece que só pode vingar nos termos e no campo movediço do lulismo. E ai nós ja sabemos como as coisas se movem, juntando maneirismos e malandragem, no limites, a corrupção. Se não for isso, esquece: não haverá condições de ampliar seus apoios.

Muito provavelmente essa esquerda não se unirá, a não ser pela lógica perversa da corrupção. Outros segmentos de esquerda, a democrática e liberal, está fora de qualquer compromisso como esse e fora desse suposto terço, parte da divisão politica e ideologicamente da sociedade brasileira. Ela ja abandonou qualquer veleidade socialista e não voltará atrás. Esses terços imaginários dificilmente se unirão. A situação também é complicada no campo das direitas e das correntes e partidos ao centro. O futuro de todos eles será decidido democraticamente na competição eleitoral.

Uma coisa é clara. Lula imagina equivocadamente que o tempo passou em vão. Sua libertação ajudará a compreender melhor que a teoria dos três terços só faz sentido dentro de uma lógica de irredutibilidade das estratégias políticas. Ela foi imposta por Bolsonaro e isso lhe garantiu até agora a inciativa política; há grandes cientistas sociais que acreditaram nisso. Mas a realidade não é idêntica a esse desejo, o Brasil é mais complexo. A libertação de Lula ajudará a colocar por terra também a tese de que com Lula na prisão o país não encontraria paz. Como se pode ver pelos discursos dos próceres que estão no centro da cena, trata-se de uma sandice, bem ao gosto do Sr. Fernando Haddad.

Lula não pacificará o Brasil. Bolsonaro é a antítese da paz e da democracia. O Brasil precisa encontrar um rumo novo.